Domenico Losurdo - Nietzsche, O Rebelde Aristocrata. Biografia Intelectual E Balanço Crítico. (2009)

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Domenico Losurdo

Nietzsche o rebelde aristocrata Biografia intelectual e balanço crítico

Tradução de Jaime A. Clasen

E,e

Editora Revan

Copyright © 2009 by Domenico Losurdo Edição original: Bollati Boringhieri Editore. Turim. Todos os direitos reservados no Brasil pela Editora Revan Ltda. Nenhuma parte desta publi­ cação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos ou via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.

Tradução

Jaime A. Clasen Revisiio da traduçiio Giovanni Semeraro

Revisiio

Roberto Teixeira

Capa Sense Design & Comunicação

/mpresstlo e acabamento

(Em papel off-set 75g após paginação eletrônica em tipo Times New Roman, 11/13) Divisão Gráfica da Editora Revan. L89n Losurdo, Domenico, 1941Nietzsche : o rebelde aristocrata : biografia intelectual e balanço critico / Domenico Losl1rdo ; tradução de Jaime A. Clasen. - Rio de Janeiro : Revan, 2009. 1108p. Tradução de: Il ribelle aristocratico : biografia intellettuale e bilancio critico Apêndices Inclui bibliografia e índice ISBN 978-85-7106-399-0 1. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900. 2. Filosofia alemã. 3. Filosofia moderna. 1. Título. 09 -6118.

CDD: 193 CDU: 1(44)

26.11.09

30.11.09

016404

DEDICATÓRIA

Aos jovens e aos menos jovens que em longos anos, na Universidade de Urbino ou nos cursos organizados pelo Instituto Italiano para os Estudos Filosóficos, seguiram, discutiram e estimularam esta minha interpretação de Nietzsche. A presente tradução brasileira do livro, bem como a tradução alemã (que sai simultaneamente) e a tradução inglesa (que está em preparação) são de certo modo uma segunda edição. Além das falhas tipográficas, corrigi alguns erros que me foram indicados por Jan Rehman no âmbito de uma resenha­ ensaio amigável e simpática, e por Giuliano Campioni, no âmbito de uma rese­ nha-ensaio bastante polêmica. A ambos. vai o meu agradecimento.

"Quem não o pode reivindicar? Dize-me apenas de que precisas e te encontrarei uma citação de Nietzsche. [ . .}Pela Alemanha e contra a Alemanha, pela paz e contra a paz, pela literatura e contra a literatura" (Tucholsky, 1985, p. 14). "Todo autor tem um sentido no qual todas as contradições en­ tram em acordo, senão não há nenhum sentido. [. . .}Por isso é preciso procurar um que concilie todas as contradições" (Pascal, 1954, aforismo 558). ''A

política é agora o órgão de pensamento em sua totalidade" (B, I, 2, p. 258).

"Menos que nunca podemos ver em Platão só um artista. { . . } Erramos quando consideramos Platão um representante do gênero artístico grego: enquanto essa capacidade foi uma das mais comuns, aquela especificamente platônica, que é dialético-política, foi algo único " (KGA, II, 4, p. 1 4) . "Não s e poderia cometer erro maior do que supor que só a arte

nos interessa: como se ela devesse equivaler a um fármaco ou um narcótico, com o qual se pudesse eliminar de si todas as ou­ tras misérias da existência" (WB, 4, 1, 451).

Sumário

Nietzsche; o rebelde aristocrata Primeira parte - Nietzsche no seu tempo. Em luta contra o socratismo e o judaísmo ·

1. A crise da civilização: de Sócrates à Comuna de Paris 121 1. O nascimento da tragédia como reinterpretação da grecidade?

/21

2. A greeidade trágica como antídoto para a modernidade "mole"

/25

3. A Comuna de Paris e a ameaça de uma "horrenda destruição" da civilização

/28

4. O suicídio da grecidade trágica como metáfora do suicídio do Antigo Regime 5. Das guerras antinapoleônicas a O nascimento da tragédia

/32

136

6. O jovem Nietzsche e a adesão ao nacional-liberalismo alemão

/40

7. "Pessimismo germânico", "visão séria do mundo", "visão trágica do mundo" /41 8. O "espírito alemão" como "salvador'' e "redentor" da Civilisation

144

9. "Otimismo", "felicidade" e .desvio revolucionário: o radicalismo de Nietzsche 1O. Recuperação antipelagiana do cristianismo? /52 11. O cristianismo como "religião erudita" e subversiva

/5 5

12. Eva, Perséfone e Prometeu: a reinterpretação do pecado original 13. "Serenidade grega", ''sensualismo" e socialismo 14. Apolíneo, dionisíaco e questão social

/64

15. Atenas e Jerusalém; Apolo e Jesus; Dionísio e Apolo 16. Arte, política e Kulturkritik

/57

/60 /69

173

17. Um apelo à "luta contra a civilização"

n7

18. O manifesto do partido da visão trágica do mundo

/80

19. História universal, juízo universal, justiça divina, teodiceia, cosmodiceia

2. A tradição, o mito e a crítica da revolução 1. "Preconceito" e "instinto": Burke e Nietzsche 2. Hybris da razão e reação "neocriticística"

/87

/91

3. A radicalização do neocriticismo: a verdade como metáfora 4. Direitos do homem e antropocentrismo

/87

/96

/98

5. "Metafisica do gênio" e elitismo cultural /101 6. O "Estado dórico" como ditadura a serviço da produção do gênio

3. Socratismo e ''judaísmo atual"

/109

1. ''Profundidade trágica" ariana e "desprezível frase judaica"

/109

/107

/83

/47

2. Socratismo e imprensa judaica em luta contra a germanicidade 1 114 3. O judaísmo.na música e em O nascimento da tragédia 1120 4. A Alemanha dionisíaca e os "pérfidos anões" /125 5. Alexandrinismo, judaísmo e mundo "judeurromano" /129 6. No limiar da teoria do complô /133

4. Afundação do li Reich e o conflito dos mitos genealógicos l. Em busca de uma grecidade e de uma germanicidade volksthamlich /139 2. Gregos, cristãos, germanos e indoeuropeus /144 3. Nietzsche e o mito genealógico gregogermânico /146 4. Imitação da França e abdicação que a Alemanha faz da sua missão /150 5. Conflito social e recuperação nacional-liberal da "velha fé" /153 6. O jovem Nietzsche, a luta contra a "mundanização" e a defesa da "velha fé" . 7. "Mundaruzação" e crise dos mitos genealógicos /160

5. Do ''judaísmo" de Sócrates ao ''judaísmo" de Strauss

/139

/156

/165

l. Mitos genealógicos e judeofobia /165 2. Strauss, o judaísmo e as ameaças à língua e à identidade alemã /168 3. "futemacional judaica" e "futemacional estética" 1174 4. "Culturama" e judaísmo /178 5. Filisteísmo e judaísmo / 18 1 6. Judeofobia, antissemitismo e excesso teórico e artístico em Nietzsche e Wagner

/185

Segunda parte - Nietuche no seu tempo. Quatro abordagens sucessivas na crítica da revolução

6. O "rebelde solitário"rompecom a tradição e a "comunidadep:Jpular" /191 1. O "iluminismo popular" da Prússia como traição do "autêntico espírito alemão" /191 2. O mito genealógico germânico e a condenação de Hegel /193 3. Deslegitimação do moderno e diagnose da "doença histórica" /198 4. Da crítica "cristã" da filosofia da história à crítica da filosofia da história como cristianismo secularizado /20 1 5. Filosofia da história, modernidade e massificação /204 6. Filosofia da história, elitismo e volta do antropocentrismo /206 7. Culto da tradição e pathos da ação contrarrevolucionária /209 8. O "homem de Schopenhauer" como antagonista do "homem de Rousseau" e da revolução /213 9. Duas figuras de intelectuais: o "maltrapilho cheio de cuidados" e o "rebelde solitário" /217 1O. Schopenhauer, Wagner e a "consagração" pela "batalha" /220

7. O "rebelde solitário" se torna "iluminista"

/223

1. Os Grandery'ahre, o desencanto de Nietz.sche e o desaparecimento dos fantasmas da iliécia /223 2. Distanciamento da teutomania e ruptttra com os nacional-liberais alemães /224 3. Crítica do chauvinismo e ponto de chegada "iluminista" /229 4. A desconstrução do mito genealógico cristãogennânico /231 5. A releitura da história da Alemanha: condenações e reabilitações /234 6. A Europa, a Ásia e a Grécia (reinterpretada) /238 7, Iluminismo, judaísmo e unidade da Europa /241 8. Voltaire contra Rousseau: reinterpretação e reabilitação do iluminismo /247 9. Nietzsche e o iluminismo antirrevolucionário /252 10. O filósofo andarilho /257 11. Nietzsche na escola de Strauss /259 12. Biografia, psicologia e história na virada "ilumirústa" /266 8. Do "iluminismo" antirrevolucionário ao encontro com os grandes moralistas /211 1. Suspeita dos sentimentos morais e deslegitimação do apelo à 'justiça social" /271 2. Pressão plebeia, sentimentos morais e "iluminismo moral" /277 3. O "santo" e o "mártir" revolucionário: altruísmo e narcisismo /281 4. A história, a ciência e a moral /284 5. Moral e revolução /286 6. Ampliação do campo do conflito social e encontro com os moralistas: "boa consciência", "encantamento" e "mauolhado" /290 _

9. Entre nacional-liberalismo alemão e liberalismo europeu 1295 1. Organismos representativos, sufrágio universal e partidocracia /295 2. Do estatalismo da polis grega ao socialismo: Nietzsche, Constant e Tocqueville /300 3. Realismo político e utopia antiquada /305 4. Nietzsche, o liberalismo europeu e a denúncia da crise da civilização /308 5. A mediocridade do mundo moderno e o espectro da "chinesice" europeia /312 6. Judeus, povos coloniais e ralé: inclusão e exclusão /316 7. A urúdade e a paz da Europa e o valor permanente da guerra /319

1 O. O cantor da "comunidade popular", o "rebelde solitário", o "iluminista" antirrevolucionário e o teórico do "radicalismo aristocrático" /323 1. Da virada "iluminista" à virada imoralista /323 2. Leis antissocialistas, "cristianismo prático" e "indecência" de Guilhem1e I /328 3. Da crítica do Estado social à crítica da "constituição representativa" /331

4.

"Não podemos ser senão revolucionários"

5. A sombra da suspeita ataca os moralistas

6. 7. 8.

/335 /337

Hegel e Nietzsche: duas críticas contrapostas da visão moral do mundo Da culpa universal à "inocência do devir" Quatro etapas na evolução de Nietzsche

/339

/342 /345

11. "Radicalismo aristocrático,,. e "novo partido da vida"

/351

1. O "novo partido da vida" 351 2. "Nova nobreza" e "nova escravidão" /355 3. Gesto aristocrático de distinção e apartheid social /357 4. Aristocracia, burguesia e intelectuais /361 5. Do elitismo cultural ao cesarismo /363 6. Movimento feminista e "embrutecimento universal" /368 7. Uma "nova idade guerreira" /370

Terceira parte - Nietzsche no seu tempo. Teoria e prática do "radicalismo aristocrático" ·

12. A escravidão nos Estados Unidos da América e nas colônias e a luta entre abolicionistas e antiabolicionistas

/379

1. O carro da civilização e os escravos /379 2. Nietzsche, a escravidão e a polêmica antiabolicionista

/384

3. Entre reintrodução da escravidão clássica e "nova escravidão"

4. Trabalho e servitus na tradição liberal

/389

/394

5. A Guem1 de Secessão, o debate sobre o papel do trabalho e as peculiaridades da Alemanha 6. Otium e trabalho: a liberdade e a escravidão dos antigos e dos modernos

7.

Marx, Nietzsche e a "mais-valia"

/399

/403

/407

8. Raça dos senhores e raça dos servos:

Boulainvilliers, Gobineau, Nietzsche

/409

13. "Hierarquia", Grande Corrente do Ser e Grande Corrente da Dor /415 1. O crurn d a civilização e a compaixão pelos escravos /415 2. O cmTo da civilização e o ressentimento dos escravos /419 3. Miséria do pobre e responsabilidade e tédio do rico /421 4. Schopenhauer e Nietzsche: entre visão ''trágica'' da vida e recaída no hannonicismo /427

14. A "multidão infantil", o "livre pensador" e o "espírito livre''. Crítica e metacrítica da ideologia /43 1 1. As correntes e as flores: a critica dà ideologia entre Marx e Nietzsche /43 1 2. A ideologia como legitimação e contestação do sistema social existente /436 3. Violência imediata e forma da universalidade /442 4. Da reticência nacional-liberal à falsidade do radicalismo aristocrático /445 5. As religiões como "instrumentos de criação e de educação" nas mãos da classe dominante /449 6. A cidade, o jornal e a plebe /452 7. "Espíritos livres" contra "livres pensadores" /456 15. Da crítica daRevolução Francesa à crítica da revoluçãojudeucristã /461 1. Crise revolucionária e aceleração do tempo histórico /461 2. Da Revolução Francesa à Reforma e da Reforma aos "agitadores cristãos" e aos "agitadores sacerdotais" hebraicos /465 3. Cristianismo e revolução /471 4. Condenação da revolução, critica da "esperança" e critica da visão unilinear do tempo /474 5. Doutrina do eterno retorno e fim do antropocentrismo (do judaísmo até a Revolução Francesa) /478 6. Radicalismo aristocrático e nova expulsão do judaísmo na Ásia /484 7. Luta contra a tradição judeucristã e reconquista do Ocidente

/489

/493

16. O longo ciclo da revolução e a maldição do niilismo 1. Três ondas de "niilismo" /493 2. "Revolução total" e niilismo (político, "metafisico" e "poético") /497 3. As posições possíveis em relação ao niilismo /500 4. A rebeldia niilista como crítica e como metacritica /502 5. Incômodo, fascínio e maldição do niilismo em Nietzsche /506 6. Revolução total, ataque à "grande economia do Todo" e niilismo /51O 7. Negação total, niilismo e loucura /514 8. Uma categoria polêmica /517 9. Nas origens do niilismo: classes dominantes ou classes subalternas?

/520

17. O último Nietzsche e o sonhado golpe de Estado contra a "monar­ quia social" de Guilherme II e Stocker 1523 1. A Alemanha como foco do contágio revolucionário /523 2. Entre Frederico III e Guilherme II /529 3. A emancipação dos "escravos domésticos negros'' e Guilhenne II, o "idiota escuro" /534 4.A "monarquia social" de Stõcker e Guilhenne II e a contrarrevolução auspiciada por Bismarck

!l

/536

5. "Liga antialemã" e golpe de Estado contra Guilhenne II / 6. Grande capital judeu, "oficialidade aristoaática" prussiana e cruzamento eugâlioo /548 7. O "radicalismo aristocrático" e o partido de Frederico ill /551

18. "Antissemitismo" e extensão da legislação antissocialista aos cris­ /555 tãos e aos "antissemitas" 1. Polêmica antijudaica dos cristãos e poÍêmica anticristã dos judeus 1555 2. Stõcker e Disraeli: o entrelaçamento de inclusão e exclusão entreAlemanha e Inglaterra /560 3. AAlemanha, a França, a Rússia e os judeus /562 4. Nietzsche e as três figuras do judaísmo 1565 5. Zaratustra e o aplauso dos antissemitas /570 6. Zaratustra, o macaco e Dühring /573 7. A "questão judaica" como "questão social" (Dühring) ou a "questão social" como "questão judaica" (Nietzsche) /576 8. Antissemitismo feudal, antissemitismo "anticapitalista" e "socialismo feudal" /579 9. Denúncia do antissemitismo anticapitalista e ajuste de contas com os socialistas, os cristãos­ socialistas e os subversivos em geral /582

19. "Novo partido da .vida", eugenia e "aniquilamento de milhões de mal-sucedidos" /587 1. Naturalização do conflito e abordagem da eugenia /587 2. Otimismo/pessimismo; ser/devir, razão/arte; consciência histórica/mito supra-histórico; doença/saúde /590 3. Limitação dos nascimentos, "castração" dos mal-sucedidos e outras medidas de eugenia /595 4. ''Morte livre", ''niilismo ativo" e "niilismo em curso" /597 5. Da "supressão" dos mendigos ao "aniquilamento" dos mal-sucedidos /600 6. Eugenia, utopia e distopia 1605

Quarta parte -Além da "metdfora" e da "antecipação". Nietz,sc/ie numa perspectiva comparada

20. ''Metáfora" , "antecipação" e "tradutibilidadedaslinguagens" /5 1 1 1. A "metáfora" como remoção e o atalho da "antecipação" /611 2. Nuremberg ideológica, princípio do tu quoque e mito do Sonderweg alemão 3. "ln.atualidade" e gesto aristocrático de distinção /620 4. A "grande economia do Todo" e os custos da compaixão /626 5. Sociologia e psicopatologia das classes intelectuais /630 6. A revolução como doença, degeneração e décadence 1636

/615

7. Da inocência das instituições à "inocência do devir" 8. Da dismal science à "gaia ciência"

/640

/644

21. Polttica e epistemologia entre liberalismo e "radicalismo aristocrático"

1649

1. Epistemologia, defesa do indivíduo e crítica da revolução /649 2. A polêmica nominalista e a critica nietzscheana da inconsequência liberal /652 3. A oscilação de Schopenhauer entre nominalismo e realismo e a ruptura de Nietzsche /655 4. Do nominalismo ao perspectivismo /658 5. Plebeísmo da ciência, perspectivismo e vontade de poder /662 6. Três projetos políticos, três plataformas epistemológicas: Mill, Lenin, Nietzsche /666 7. Perspectivismo, crítica dos direitos do homem e dissolução do sujeito /669 8. A dissolução do sujeito em Nietzsche e na cultura europeia /673

22. Otium et bellum: distinção aristocrática e luta contra a democracia

1619

1. ''Radicalismo aristocrático" e "grande reação conservadora": Prússia, Rússia e América /679 2. A "distinção" aristocrática entre final do Século XVIll e final do Século XIX: Sieyes contra Nietzsche /686 3. Antigo regime e papel militar da aristocracia /690 4. Otium et bellum, "guerra e arte" /694 5. O guerreiro e o soldado, a guerra e a revolução /697

23. Socialdarwinismo, eugenia e massacres coloniais /701 1. Seleção e contrasseleção no1 2. Entre eugenia e genocídio: o Ocidente no final do Século XIX nos 3. Conflito social, expansão colonial, critica da oompaixão e condenação do cristianismo no9 4. Cristianismo, socialismo e "espíritos livres": a inversão das alianças n12

Quinta parte - Nietzsche e a reação aristocrática entre duas épocas históricas

24. Filósofos, historiadores e sociólogos: o conflito das interpretações n19 1. O "complô" de Elisabeth 1719 2. A intei:pretação de Nietzsche antes da Vontade de potência: as criticas à "esquerda" m4 3. A intei:pretação de Nietzsche antes da Vontade de potência: os aplausos à "direita" n28 4. Do "protonazismo" de Elisabeth à "convergência objetiva" de Lukács com os ideólogos nazistas n31

ll

5. Reconstrução histórica, "autoengano" de Nietzsche e direito à "deformação" por parte do intérprete n34 6. Filósofos e historiadores ou o pathos antipolítico como remédio e como doença

n42

7. Uma hermenêutica seletiva da inocência: Nietzsche e Wagner n47 8. Gobineau e Chamberlain à luz da hermenêutica da inocência n5 l

25 Radicalismo aristocrático,

éJite paneuropeia e antissemitismo

1755

l. A Inglaterra e "a via para a distinção" aristocrática n55 2. A decadência europeia e o "atraso" da Alemanha n57 3. Celebração pennanente da "essência" alemã e denúncia da estraneidade de Wagner em relação n62

à Alemanha autêntica

4. Critica do II Reich e reação aristocrática n68 5. Racialização horizontal e racialização transversal n69 6. Élite pan-europeia e cooptação do grande capital judeu n12 7. Mitologia ariana, Antigo e Novo testamentos

n15

26. A civilização em busca dos seus escravos 1. Processos ideológicos e tempo histórico

1779

n19

2. O pathos da Europa da reação aristocrática ao nazismo

n84

3. O mito genealógico grecogennânico do II ao m Reich n87 4. A guerra total, a sagrada união patriótica e a crise do racismo transversal n9o 5. Persistência da reação aristocrática e persistência da racialização transversal n93 6. Da negação da ideia de "nação" em Boulainvilliers ao chauvinismo imperialista /796 7. Divisão do trabalho, chinezaria operária e escravidão racial n99

27. Transformações da mitologia ariana, denúncia do complô revoluci­ onário e saída antissemita /803 l . Em busca do Ocidente autêntico, ariano e anticristão /803 2. Os judeus como povo chandala e como povo sacerdotal /807 3. A revolução como complô e o papel dos sacerdotes judeus /8 1O 4. Critica do cristianismo "nietzscheanismo judeu" e contribuição de Nietzsche para a teoria do complô judeu /814 5. Da revolução como complô ao judeu como vírus revolucionário /8 16 6. Hitler e Rosenberg intérpretes de Nietzsche e do nietzscheanismo /820 7. Übermensch, Untermensch e desconstrução nominalista do conceito de hwnanidade /825 8. "Antigermanismo" e "anti-antissemitismo" /829

Sexta parte - No laboratório filosófico de Nietzsche

28 Umfilósofo

"totus politicus"

/837

l. A unidade do pensamento de Nietzsche /837 2. Nietzsche e os historiadores

/841

3. Continuidade e descontinuidade: gênio, espírito livre, hierarquia e super-homem /847 4. Continuidade e descontinuidade:o "iluminismo" desde Pilatos aoAntigo regime /852 5. Continuidade e descontinuidade: da neutralização da teodiceia do sofrimento à celebração da teodiceia da felicidade /856 6. O filósofo, o brâmane e o "partido da vida"

/859

7. "Autodisciplina lingüística" contra "anarquia" e "acanalhamento lingüístico" /863 8. Aforismo, ensaio e sistema /867

29. Como pôr dois mil anos de história em discussão. Antidogmatismo e dogmatismo do radicalismo aristocrático /871 l. Philosophiafacta est quae philologiafuit /871 2. Interpretação do "texto da natureza" e da história e problematização do "óbvio" 3. O filólogo-filósofo e o olhar de fora e do alto 4. O olhar metacrítico

/874

/876

/882

5. Comparàtística, tensão para a totalidade e tradutibilidade das linguagens /884 6. "Silogismo retroativo" e olhar a partir de dentro /888 7. ''Não há fatos, mas só interpretações": junto com o ''fato" desaparece o "texto"

/892

8. Identificação empática e liquidação da mediação conceituai /895 9. Como orientar-se entre as interpretações: da psicologia à fisiopsicologia 1O. Dois tipos de máscara radicalmente diferentes

/897

/900

11. Psicologia e etnologia das visões do mundo /903 12. Reaparição do "texto" e sua transformação em ''fato"

1905

13. "Silogismo retroativo ", "estrutura da alma" e onipresença da vontade de potência

/909

14. "Doença", "má fé" e impossibilidade de autorreflexão /911

30. Do mito supra-histórico à abertura de novas perspectivas para a pesquisa histórica /917 ·

1. Ódio contrarrrevolucionário e evidenciamento dos aspectos "reacionários" do processo revolucionário /917 2. Radicalização da consciência histórica e longue durée /923 3. ''Luta de categorias e de classes" e leitura do fenômeno religioso /925 4. Ampliação do campo do conflito social e papel da psicologia /928 5. A mulher, os sentimentos e a subversão /929 6. Um perfil feminino da história da subversão

ll

/932

Sétima Parte - Niett,Sche e nós - Radicalidade e carga desmistificadora do projeto reacionário

31. O aristocrata radical e o grande moralista

/937

1. Celebração da escravidão e condenação da parceliz.ação e aaisia do trabalho i ntelectual /937 2. Desprezo pela democracia.e denúncia da "nacionalização das massas" /942 3. Elitismo e construção da personalidáde individual

/943

4. Zaratustra entre poema pedagógico do espírito livre e catecismo do radicalismo aristocrático /948 5. Eros e Polemos: Heine e Nietzsche

/952

32. Crise do mito genealógico do Ocidente e crítica do universalismo imperial 1959 ·

1. Celebração da escravidão e condenação da ideia de nússão /959 2. Uma critica ante litteram da "gumahwnanitária" e do "imperialismo dos direitos hwnanos" /961 3. A crise do núto genealógico "judeu-cristão-grego-ocidental" /964 4. Denúncia da revolução e fuga do Ocidente /966 5. Condenação da revolução CJistã orientalizante e CJise final do eurocentrismo /969

33. Individualismo e holismo, inclusão e exclusão: a tradição liberal, Nietzsche e a história do Ocidente /975 1. Individualismo e antiindividualismo da tradição liberal a Nietzsche /975 2. O indivíduo como "noção coletiva"

/979

3. ''Individualismo proprietário", "individualismo aristocrático" e nominalismo antropológico /982 4. Nominalismo antropológico e holismo da tradição liberal a Nietzsche /984 5. O individualismo como "grande narração" e engenharia social /988 6. Construção dos conceitos gerais e engenharia social plebeia /993 7. A história ambígua da crítica do pensamento calculador /995 8. Antigos, modernos e pós-modernos

/998

Apêndice - Como se constroi a inocência de Nietzsche. Editores, tradu­ tores e intérpretes II 001 1. A judeofobia do jovem Nietzsche

/1002

2. A suspensão da política e da história / 1004 3. Criação, fisiologia e degeneração / 1005 4. Além do catecismo "nietzscheano"

/ 1008

Apêndice II Os óculos e o guardachuva de Nietzsche. Resposta aos meus críticos /1011 -

1. O desapontamento de Gadamer /1012 2. "Enfurecimento" e "melhoramento" /1013 3. Emerson e Nietzsche

/1015

4. O ministério público e a ré: uma es1!anha convergência /1017 5. O conflito das faculdades: filósofos e historiadores /1019

6. Os afastamentos da "nova direita" e da esquerda pós-moderna /1020

Referências bibliográficas e siglas 11 025 Índice analítico

11 073

Primeira Parte

Nietzs�he no seu tempo em luta contra o socratismo e o judaísmo "Aniquilamento da civilização grega por obra do mundo judaico ". (VII, 83) "Afinal, Sócrates era, de fato, um grego? A feiúra é, com bastante frequência, a expressão de um desenvolvimento híbrido, obstruído pelo cruzamento". (GD, O problema Sócrates, 3) "Quando Sócrates e Platão tomaram o partido da virtude e da justiça, foram judeus, ou não sei o que mais ". (XII, p. 33 1) "O drama musical está de fato morto, morto para sempre? { ..] Esta é a mais séria pergunta da nossa arte, e quem, como alemão, não compreende a seriedade desta pergunta, caiu vítima do socratismo dos nossos dias. { .] Este socratismo é a imprensa judaica; não digo uma palavra a mais". (XIV, p. 1 0 1 ) .

"Alguém m e disse uma vez que o senhor é judeu e, enquanto tal, não totalmente senhor da lingua alemã ". (Do esboço de uma carta imaginária a David Friedrich Strauss, VII, p. 589)

1 A CRISE DA CMLIZAÇÃO: DE SÓCRATES À COMUNA DE PARIS 1 . O nascimento da tragédia como reinterpretação da grecidade?

Vinício de 1 872: ao olhar por curiosidade as edições novas numa livraria amos começar com uma espécie de experimento intelectual. Estamos no

alemã, topamos com um livro de título ao mesmo tempo singular e atraente: O nascimento da tragédia pelo espirita da música. Folheamos suas páginas para ver de que se trata. Salta aos olhos o fronti spício: ele informa que o autor é professor titular de filologia clássica na Universidade de Basileia. Nas pági­ nas seguintes, são frequentes as referências aos mitos gregos, a Ésquilo, Sófocles, Eurípides. Estamos numa situação menos afortunada (ou talvez na realidade pouco feliz) do que a de Wilamowitz, que conhece Nietzsc�e há algum tempo e que não tem dúvida: crê que está diante de um texto de filologia clássica e fica imediatamente indignado com um método ou uma falta de método imperdoável num docente universitário dessa disciplina, o qual ''trata uma série de questões importantíssimas de história da literatura grega" mais como um "professor so­ nhador" do que como um autêntico "pesquisador cientista".1 Mais cautelosamente, de nossa parte, hesitamos em formular um juízo. Ao folhear o novo livro, nos deparamos com o Prefácio por Richard Wagner. Este é celebrado também pelo "magnífico escrito em memória de Beethoven"; por outro lado, sobretudo nas páginas finais, são frequentes as referências à música e aos musicistas alemães. Somos, assim, levados a voltar ao subtítulo, ou seja, à segunda parte do título; trata-se de um texto de musicologia ou de critica musi­ cal? Tampouco essa perspectiva lança alguma luz mais favorável sobre o autor, o qual, de fato, poucos meses depois, é forçado a uma constatação amarga, a saber: os especialistas da filologia ou da música rotulam-no respectivamente como "filólogo de brincadeira" ou como "literato da música" (B, II, 3, p. 1 3). À luz da história de vida do grande filósofo diante do qual agora sabemos estar, resultam inaceitáveis estes dois julgamentos, e todavia nem sempre te­ mos consciência de que a sua refutação pressupõe uma mudança radical ·da 1 Wilamowitz-Mõllendo rff, 1972 a, pp. 2 12-4 e 218 nota.

perspectiva de leitura do O nascimento da tragédia. Se continuarmos a julgar que a obra "é antes de tudo urna homenagem a Wagner",2 não podemos não considerá-la totalmente caduca: bem longe de ser duradoura, tal homenagem tomou-se sucessivamente o seu contrário. Tampouco seria persuasiva urna interpretação desse livro como um texto exclusivamente comprometido em refletir sobre o fenômeno artístico na Grécia ou em geral. 3 Realmente, logo depois do Prefácio, o autor declara querer con­ tribuir para o desenvolvimento da "ciência estética" (GT, 1 ; 1, 25), enquanto o capítulo que antecede imediatamente o conclusivo convida a elevar-se "com um ousado impulso para urna metafisica da arte" (GT, 24; 1, 1 52). Contudo, absolutizar ou privilegiar esses temas significaria privar-se da compreensão de numerosas referências aos grandes acontecimentos políticos do tempo, a co­ meçar pela guerra de dois anos antes, evocada já no Prefácio, e evocada, além disso, como exemplo da "corajosa seriedade" dos soldados prussiano-alemães e como estímulo à "comoção patriótica" do autor e dos leitores do livro. Mais importante que a presença dos temas políticos é o fato de que eles não são absolutamente ocasionais e externos à reflexão estética. Com certeza, a celebração da tragédia antiga é recorrente em contraposição com o melodra­ ma e a ópera. É , porém, interessante ver de que modo é motivada a condena­ ção deste "gênero artístico verdadeiramente moderno". No seu fundamento está "urna necessidade de natureza não estética'', ou melhor, "uma necessida­ de absolutamente não estética", e esta reside "na glorificação otimista do ho­ mem em si, na concepção do homem original como homem naturalmente bom e artístico". É uma ideologia que finalmente assumiu urna configuração "ame­ açadora e terrível" nos "movimentos socialistas atuais" (GT, 1 9; 1, 122-3). Do céu, ao qual aparentemente a "metafisica da arte" remetia, somos obrigados a descer para o terreno da história e da política, da contemplação do belo e da "ciência estética" somos sorvidos pelo redemoinho de um conflito dramático. O conflito é tão dramático que não deixa espaço para meias medidas; não se trata tanto de formular um juízo estético como de "aniquilar (vernichten) a ópera", este veículo do contágio subversivo. Para conseguir tal resultado é necessário travar urna dura "luta contra aquela serenidade alexandrina que nela tão ingenuamente se exprime" (GT, 1 9; 1, 1 25). São tons decididamente militantes. Só podem ser compreendidos se não se perder de vista o fato de que, ainda no fim da sua vida consciente, Nietzsche continua a pôr lado a lado "a ópera e a revolução" (EH, O nascimento da tragédia, 1), ou seja, só se 2 Fink, 1993, p. 18. 3 É o caso de Fink, 1993, pp. 9-45.

tivermos presente que, desde o início, a reflexão estética está estreitamente entrelaçada com a reflexão e a luta políticas. A denúncia dos efeitos políticos catastróficos do "otimismo" vai lado a lado com a apaixonada polêmica contra a interpretação bastante difusa do mundo grego, que pretende projetar sobre ele o ideal, na verdade moderno, de uma "serenidade" vazia e superficial. Por outro lado, a recuperação da grecidade autêntica e a liquidação de suà imagem "serena" são desenvolvidas remetendo, sim, à tragédia e à arte helênica, mas târnbé.tp à religião helênica, como de­ monstram, aliás, as contínuas referências a DionísiQ e Apolo. Portanto, são confrontadas e contrapostas duas visões globais do mundo que, junto com a arte, abraçam qualquer outro aspecto da vida, sem excluir a dimensão política. O nascimento da tragédia não pode ser realmente recuperado, mesmo se lhe atribuindo o mérito de haver contribuído para uma compreensão histórica mais adequada da grecidade. Está declarado o desprezo pela "nossa douta historiografia moderna", que busca "apropriar-se 'historicamente', ao lado de outras antiguida­ des, também da antiguidade grega" (GT, 20; 1, 130). A "avaliação histórica" esclarecem os textos do mesmo período - toma, na realidade, impossível a correta "interpretação dos problemas eternamente iguais" (BA, 5; 1, 742) e, portanto, "o 'interesse histórico'" trai a cultura (BA, 2; 1, 677). Em termos ainda mais drásticos se exprime um apontamento, sempre de 1872: levar a sério "o lado histórico" signi­ fica levar a sério "a coisa errada" ( VII, 411). Embora formulada em relação ao fenômeno religioso, esta consideração quer ter um alcance mais amplo. É verdade, no período da publicação do livro em questão, Nietzsche se dedica ainda como filólogo e historiador à polêmica contra a visão unilateral­ mente serena e olímpica do mundo caro a ele: "A grecidade de Goethe é, antes de tudo, historicamente falsa, e, em segundo lugar, demasiado mole (weich) e não viril" (VII, 778); teria sido essa moleza dos modernos que teria removido da grecidade a consciência aguda que ela tinha da dimensão trágica da existên­ cia. É uma tese implicitamente reforçada pelo título aposto à terceira edição (1878) do livro: O nascimento da tragédia, ou seja, grecidade e pessimis­ mo. Contudo, o intérprete não pode identificar-se imediatamente com a autoconsciência de Nietzsche, como se antes da sua leitura tivéssemos apenas a de Goethe ou, mais propriamente, de Winckelmann, e como se o tema da serenidade helênica tivesse sido partilhado por todos. Na realidade, Schelling já sublinha "o elemento trágico, o traço de profun­ da melancolia que atravessa o paganismo inteiro".4 Quando lemos em Nietzsche que "a civilização grega descansa numa relação de domínio de uma classe 4 Schelling,

1856-1861, vol. XII , p. 346.

pouco numerosa sobre um número de não livres quatro ou cinco vezes superi­ or" (VIII, 60), somos levados a pensar em Wilhelm von Humboldt, segundo o qual a escravidão da antiga Grécia é "um meio injusto e bárbaro para garantir a mais alta forma e beleza para urna parte da humanidade mediante o sacrificio de uma outra parte".5 Por sua vez, Hegel nota repetidamente que o fundamen­ to e a condição da "bela liberdade" grega é a escravidão. Também nesse caso, se apenas levantarmos o véu da beleza, veremos surgir urna dimensão trágica, a qual pode até assumir um aspecto decididamente repelente, como acontece, por exemplo, por ocasião da periódica perseguição desencadeada pelos nobres espartanos, com "desumana dureza", contra os hilotas.6 O tema da escravidão, e dos sofrimentos que ela acarreta, está muito presen­ te também em Schelling, que, apelando para a autoridade de Aristóteles, serve-se dele para denunciar a vacuidade de um progressismo que ignora o peso de dor e de miséria sobre o qual descansa toda civilização. Depois da revolução de 1 848, a Filosofia da mitologia eleva um hino a Dike: essa "potência", que significa a "expiação universal do gênero humano", suscita pavor no seu irromper repentino; Antígona é chamada a inclinar-se diante dela pelo "coro trágico" de Sófocles.7 Menos ainda a Grécia é sinônimo de uma serenidade imperturbada para o filósofo que age imediatamente por trás de Nietzsche. O mundo como vonta­ de e representação atribui a Platão e Pitágoras o mérito de ter "acolhido com admiração, e trazido da Índia ou do Egito" a "verdade filosófica" que aspira e convida a aspirar ao Nirvana, ou seja, a "um estado no qual não há quatro coisas: nascimento, idade, enfermidade e morte". 8 É um tema que, no O nas­ cimento da tragédia, ecoa na amarga verdade de Sileno, o qual, como vere­ mos, sintetiza assim o ideal ao qual aspirar: "não ter nascido, não ser, ser nada". Mais tarde, será o mesmo Nietzsche a sublinhar, em sentido autocrítico, que O nascimento da tragédia "de certa forma está impregnado do perfume do mestre de cerimônia fúnebre de Schopenhauer". Então é reinterpretado de modo radical o subtítulo colocado na terceira edição: "Grecidade e pessimismo" -este teria sido um título sem qualquer equívoco, a saber, como primeira elucidação sobre como os gregos acabaram com o pessimismo - como o superaram. . A tragédia é justamente a prova de que os gregos não eram pessimistas; sobre este ponto, como sobre todo o resto, Schopenhauer se enganou (EH, O nascimento da tragédia 1). .

5 Humboldt, 1903-36 a, pp. 1 18-9. 6 Hegel, 1 9 19-20, pp. 629-30. 7 Schelling, 1856- 1 861, vol. XI, p. 530-1. 8 Schopenhauer, 1976-82 a, p. 487 (§ 63).

Agora Nietzsche atribui à sua obra juvenil o mérito de ter começado a romper com a visão já não mais otimista, mas pessimista da grecidade. Como aquelas estéticas, as categorias psicológicas também não estão realmente em condições de explicar a gênese e o significado do O nascimento da tragédia.

2. A grecidade trágica como antídoto para a modernidade "mole " Em todo caso, não é certamente a preocupação pelo rigor filológico e histó­ rico que inspira e distingue o jovem professor de filologia da Universidade da Basileia. É conhecida a ironia de Wilamowitz a propósito das desenvoltas passa­ gens da Grécia à Índia ou ao Oriente budista,9 que, aliás, já conhecemos em Schopenhauer. Pode-se acrescentar que não são menos surpreendentes em Nietzsche as passagens da Grécia dos Séculos VII-V AC para a Europa da segunda metade do Século XIX.-Como "Sócrates e Eurípides servem para expli­ car o drama neolatino", a música e a cultura dos "povos neolatinos" (VII, 326). assim, sempre "a partir dos gregos, devemos compreender a obra de arte" de Wagner, o qual representa "o renascimento da tragédia grega autêntica" (VII, 372-73). Mais importante ainda é uma outra consideração. Não parece ser particu­ larmente relevante o papel que o espaço e o tempo desempenham na definição da grecidade autêntica. Desta, Alexandre é "a cópia grosseira" (CV, 5; 1, 792); embora escrito alguns séculos depois, o Evangelho de João, pelo contrário, é considerado uma "criação totalmente grega", ou melhor "um fruto daquele mes­ mo espírito do qual tinham nascido os mistérios" (VII, 156). Não se trata tanto de investigar as manifestações históricas concretas do "homem helênico" (CV, 5; 1, 792) quanto de colher a "essência (Wesen) helênica", ou melhor o "caro­ ço" (Kern) de tal essência (GT, 20; 1, 1 2 9). E é este núcleo mais profundo e mais remoto, não definível a partir da empiria e das aparências, que constitui o metro com que medir e avaliar os autores individuais. A arte de Eurípides tem um "caráter quase antigrego" (ST; 1, 540), e Sócrates e Platão representam uma "ruptura com o elemento grego", sendo que o último - encarece ulterior­ mente um fragmento - "combate o elemento helênico" (VII, 3 98-9). Mais tarde, ao sublinhar a linha de continuidade com as avaliações expres­ sas no O nascimento da tragédia, Nietzsche confirmará que os dois filósofos devem ser excluídos da grecidade autêntica, enquanto "sintomas de decadência, instrumentos da decomposição grega, pseudogregos e antigregos" (GD, O pro9

Wtlamowitz-Mõllendorff, 1 972 a, p. 2 12.

b/ema Sócrates, 2). O

socratismo representa a perversão dos mais profundos

O problema Sócrates, 4). É enganoso "tomar [ . . . ] a ideomania de Platão, o seu delírio quase religioso das formas, como um acontecimento e um testemunho ao mesmo tempo da alma grega" (FW, 357). "instintos dos helenos mais antigos" (GD,

Na realidade, o autor da doutrina das ideias "dissera não" à "vida grega" (JGB,

28). A sua filosofia já está imbuída de cristianismo, o qual, ao enterrar a Hélade e a antiguidade clássica, não fez �enão desenvolver e plebeizar o platonismo (infra, cap. 1 5 § 2). De modo análogo Nietzsche argumenta em relação a Epicuro. Este é a antítese de um "pessimismo dionisíaco": logo é totalmente estranho à grecidade autêntica e trágica, e tem mais a ver com o cristianismo; o cristão, de fato, "é apenas uma espécie de epicureu e, igual àquele, é constitucionalmente românti­ co"

(FW, 370).

Nos anos futuros, capítulos inteiros e decisivos da cultura e da

história grega serão considerados espúrios com respeito à grecidade autêntica. Mas, já agora, topamos com a tese pela qual, bem considerado, "a degeneração é predominante também na Héla�" (VIII,

gata ciência:

78). Portanto, concluirá mais tarde A (Fw, 340).

"Devemos superar também os gregos!"

Até no tocante aos "dois séculos da época trágica" propriamente dita, eles não estão sempre à altura de sua essência, ou seja, dos seus instintos mais profundos e mais verdadeiros. Parmênides representa a irrupção de um "mo­ mento antigrego" (PHG,

9; 1, 836): "a ausência de perfume, de cor, de alma e

de forma, a falta completa de sangue, de religiosidade e de calor ético" que caracterizam a sua filosofia, são totalmente incompreensíveis "num grego" (PHG;

1 1 ; 1, 845).

Nietzsche acaba, de qualquer modo, reconhecendo que a grecidade

cara a ele não é uma realidade histórica: "A grecidade tem para nós o valor que os santos têm para os católicos"

(VII, 1 8).

Voltando mais tarde ao significado do par conceituai pessimismo/otimismo, Nietzsche observará: o "pessimismo romântico" de Wagner e Schopenhauer nada tem a ver com o "pessimismo dionisíaco" que, por sua vez, é o "pessimismo do futuro" mais que de um passado esplêndido e remoto

da tragédia

(FW, 370). O nascimento

pretendeu promover "um pessimismo da força, de um pessimismo

clássico"; no entanto, "o termo clássico não é usado aqui no sentido de uma determinação histórica, mas psicológica", contrapõe-se a "romântico" (XIII, 229). Mais precisamente, a grecidade é uma categoria :filosófica, a qual funciona como princípio de legitimação ou deslegitimação dos autores individuais, dos diversos movimentos culturais e políticos e própria história grega.

das diversas fases da história em geral e da Ecce homo esclarece isto de modo inequívoco:

Tenho o direito de considerar a mim mesmo como o primeiro filósofo trágico. [ ... ] Antes de mim não existia a transposição do elemento dionisíaco em pathos filosófico: faltava a sabedoria trágica - em vão procurei um sinal

qualquer até nos grandes gregos da filosofia, os que existiram dois séculos antes de Sócrates. Permaneceu em mim a dúvida quanto a Heráclito. . (EH, O nascimento da tragédia, 3). .

Vimos Nietzsche polemizar contra a projeção moderna da "serenidade" sobre o mundo helênico; essa polêmica nos coloca no caminho de uma proje­ ção diferente e contraposta. Para tal propósito, o filósofo, tendo deixado para trás os anos do

O nascimento da tragédia,

se exprime com grande franqueza:

"Em qual disfarce expus aquilo que senti como 'dionisíaco'! De que maneira douta e monótona, e ao mesmo tempo não bastante erudita para poder produzir o efeito de abrir a algumas gerações de filólogos um novo campo de trabalho!"

(XI, 424). E ainda: "A minha filologia foi apenas um subterfúgio, para o qual me voltei ansiosamente: não posso enganar a mim mesmo a este respeito"; foi um expediente sugerido ainda pelo sentimento doloroso de não ter "nenhum com­ panheiro"

(XII, 57).

Ou, para citar um texto de

1 886, "foi a fé de não estar só

neste ponto, de não ver sozinho" que estimulou a construção, com "arte muito sutil de cunhar moeda falsa", da imagem trágica dos "gregos"

(MA, Prefácio,

1 ) . É a solidão dolorosamente sentida no mundo moderno a impelir na busca de

improváveis companheiros de caminhada na Hélade pré-socrática. Nessa ati­ tude juvenil há também um resíduo de falta de coragem: "Que infeliz timidez falar como erudito de uma coisa da qual poderia ter falado como 'experiente'

(Erlebter)" (XI, 427). Em conclusão, para compreender o modo de proceder de Nietzsche é pre­ ciso inverter o aforismo precedentemente citado, que toma distância de Goethe (e Winckelmann). Posto de novo em pé, o juízo crítico sobre a grecidade cara a estes dois autores deveria soar assim: ele "é, antes de mais nada, demasiado mole e não viril, e por isso deve ser considerado historicamente falso". Em Nietzsche a grecidade autêntica é construída em contraposição a tudo o que há de mole, de flácido e de efeminado no mundo moderno; é dessa denúncia que é preciso partir, se quisermos colher a trama e o significado do O nascimento da tragédia. Para confirmar tudo isso há uma ulterior confissão contida num aforismo que, sempre com referência à sua obra juvenil, se exprime assim: ''Fico a cada ano sempre mais franco, na medida em que o meu olhar penetra sempre mais fimdo neste Século

XIX,

neste século de grande hipocrisia moral"

(XI, 423-4).

O percurso

intelectual é definido aqui com clareza: da denúncia do presente à invocação e transfiguração de um passado bastante remoto.

3. A Comuna de Paris e a ameaça de uma "horrenda destruição "

da civilização Mas o que solicita a fuga, ou melhor, a busca de uma saída da modernidade? O que há de tão inquietante no presente que impele na direção de uma alterna­ tiva colocada na antiga Grécia? Enquanto tentamos descobrir o fio condutor que nos permite orientar-nos naquilo que por ora se apresenta como um labirin­ to, nos deparamos em algumas páginas, num parágrafo que se destaca entre todos os outros pelo seu tom angustiado: por causa do "otimismo", a civilização vai de encontro a uma "horrenda destruição"; a "fé na felicidade terrena de todos" leva a sociedade a tremer "até às camadas mais profundas", semeando o descontentamento num "estrato bárbaro de escravos", que, seduzido por ideias utópicas e sem fundamento algum, percebe agora "a sua existência como uma injustiça

( Unrecht)" e

explode em revoltas incessantes (GT,

1 8 ; 1, 1 1 7).

A dramaticidade desse alerta dissipa qualquer dúvida. Não estamos dian­ te de uma t;xplicação filológica e histórica; aliás, mais que a interpretação oti­ mista da grecidade, é o otimismo enquanto tal que constitui o alvo da polêmica do

O nascimento da tragédia. A sua preocupação é evidente,

ou melhor, a sua

angústia por um perigo não mais remoto ou hipotético, mas real e urgente.

É

transparente a referência à Comuna de Paris, vivida por grande parte da cultu­ ra do tempo como o anúncio ameaçador de um possível fim iminente da civili­ zação. Logo depois

das jornadas parisienses de junho de 1848 , Tocqueville

lançara um grito de alarme: "não só na França, mas em toda a Europa, o chão da civilização europeia treme".10 Os acontecimentos de

23 anos depois pareci­

am confirmar as previsões mais catastróficas. Tratava-se, observara Burckhardt num curso de lições seguido com interesse e participação por Nietzsche - de uma explosão provocada pela "grande questão social", agora no centro do con­ flito político. Na França, a ordem fora restabelecida, mas era preciso não es­ quecer que "em outros lugares a doença serpeia no organismo".11 A leitura que Nietzsche faz da Comuna de Paris como uma espécie de revolta servil não é insólita na cultura do tempo. Na véspera da revolução de

1848, Tocqueville chamara a atenção contra o perigo das "guerras servis",12 comparando depois, indiretamente, proletários modernos e escravos antigos. Aliás, no momento em que

O nascimento da tragédia é publicado,

ainda está

vivo o eco da Guerra de Secessão que inflamara os Estados Unidos alguns 1 0 Tocqueville, 1864-7, vol. 11

IX, p. 570.

Burckhardt, 1 978 b, p. 383.

12 Tocqueville, 1 95 1 , vol. III, 2, p. 727.

anos antes. Não por acaso Marx condena os protagonistas da repressão na França como "negreiros'', 13 capazes de qualquer atrocidade quando se trata de reconduzir à ordem os "escravos", mas celebra a revolta operária como uma "guerra dos escravos

(geknechtete)

contra os seus escravizadores, a única

guerra justificável na história".14 A correspondência e os fragmentos contemporâneos ao O nascimento da tragédia esclarecem de maneira inequívoca com que intensidade Nietzsche tinha vivido a Comuna de Paris e quão dolorosa e indelével foi a marca que esse acontecimento deixou nele. Com a notícia de um incêndio do Louvre por insurgentes - escreve numa carta a Gesdorff de 2 1 de junho de 1 87 1 - "fiquei por alguns dias completamente destruído pelas dúvidas e dominado pelas lágri­ mas: toda a existência científica, filosófica e artística me pareceu um absurdo se um só dia podia aniquilar as mais maravilhosas obras de arte, ou melhor, períodos inteiros da arte" (B, II, 1 , p. 204). Ao mesmo tempo no Louvre insiste Bagehot do outro lado do Mancha - os insurgentes quiseram destruir tudo o q.ue em Paris é digno de ser visto e admirado, qualquer testemunho da "cultura" e da civilização.15 E de novo somos reconduzidos ao que, na vertente oposta, escreve Marx, indignado pelo fato de que as classes dominantes, en­ quanto procedem a uma repressão cruel digna de Tamerlão, rotulam a revolta desesperada dos operários parisienses como um assalto e uma conjuração con­ tra a "civilização" por ação de bárbaros "incendiários" e adeptos do "vandalis­ mo" .16 Posteriormente, a notícia do incêndio se revela falsa, mas isso não mo­ difica o estado anímico de Nietzsche, líricamente expresso por um fragmento de alguns anos depois: "Outono-sofrimento-restolhos-lícnides, astros. A mesma coisa quando chega a notícia do presumido incêndio do Louvre - sentido do outono da civilização. Nunca uma dor mais profunda" (VIII, 5 04). Tentemos agora submeter

O nascimento da tragédia

a uma sondagem,

a uma primeira leitura rápida que, sem a intervenção de qualquer outro texto, leve a sério o sobreaviso aflito contra o perigo mor tal representado pela revolta servil e pela Comuna de Paris. O que alimentou uma e a outra foi a ilusão moderna de poder conhecer e transformar a essência da realidade, eliminando dela o negativo e o trágico. Mas quando iniciou essa devastadora superstição progressista? Muito antes do iluminismo ao qual geralmente se remete, é possí­ vel surpreender a 1 3 Marx-Engels,

hybris

da razão e das luzes já em terra grega. De Sócrates

1955, vol. XVII, p. 350. 1955, vol. XVII, pp. 355 e 358. 15 Bagehot, 1 974 e, p. 197. 1 6 Marx-Engels, 1955, vol. XVII, pp. 355-9 e 334. 1 4 Marx-Engels,

parte "o homem teórico" {GT, 1 5 ; 1, 98), como também o "otimista teórico'', que, com a sua "fé na atingibilidade da natureza das coisas" e no saber (GT, 1 5 ; 1, 1 00), pretende ao mesmo tempo "dever corrigir a existência" (GT, 1 3 ; 1, 89). Em relação à maré que avança, incessantemente engrossada pelo otimis­ mo e pela expectativa da felicidade, inclusive a barragem tradicionalmente re­ presentada pelo cristianismo começa a revelar rachaduras preocupantes, pois ele também está contagiado pelo "espírito otimista" já configurado como "o germe destrutivo da nossa sociedade {GT, 1 8; 1, 1 1 7). Não se pode, pois, parar na metade do caminho, na crítica de uma trajetória ruinosa. O remédio não pode ser identificado sequer na grecidade, se esta continua a ser lida como sinônimo de serenidade imperturbada e imperturbável . Tal interpretação, que remonta aos polemistas proto-cristãos {GT, 1 1 ; 1, 78), atinge na realidade um só aspecto, o apolíneo, testemunhado em primeiro lugar pela escultura. A tragédia e a música, porém, nos colocam na presença de uma dimensão diferente e mais profunda. Sem nenhuma opção e obrigado a revelar uma verdade que teria preferido manter escondida, Sileno, companheiro de Dionísio, rasga os brilhan­ tes véus apolíneos e põe a nu o abismo da existência: Raça efêmera e miserável, filha do acaso e da dor, por que me obrigas a dizer-te o que mais te valeria ignorar? O que tu deverias preferir não o podes escolher: é não teres nascido, não seres, seres nada. Mas isto te é impossível, o melhor que podes desejar é morrer, morrer depressa (GT, 3; 1, 35).

Tal verdade dionisíaca assume uma expressão transfigurada e estupefata na arte apolínea, a qual desenvolve uma função até socialmente benéfica na medida em que ajuda o homem a suportar "os terrores e a atrocidade da exis­ tência" (GT, 3 ; 1, 35). Mas isso não deve levar a perder de vista a dimensão mais profunda, a intensidade trágica e dionisíaca do mundo grego, que encontra uma poderosa expressão no Prometeu de Ésquilo. Este, destruindo a visão do progresso própria de "uma humanidade ingênua", põe em evidência "todo o fluxo de dor e de angústia" que a invenção do fogo já comporta {GT, 9; 1, 69). Louca se revela agora a pretensão da felicidade terrena para todos, que sem­ pre mais caracteriza o mundo moderno. No entanto, foi a visão de Sócrates que triunfou. À grecidade trágica e dionisíaca seguiu-se assim a alexandrina, decidida­ mente inclinada a "crer numa correção do mundo por meio do saber, numa vida guiada pela ciência": a renúncia a ''uma consolação metafisica" aplana o caminho para a busca de "uma consonância terrena", de uma felicidade confiada às "máqui­ nas" e aos "crisóis", além das instituições políticas (GT, 1 7; 1, 1 1 5). Assim é introduzida uma contradição insanável e ruinosa. Como toda civili­ zação, também a alexandrina "tem necessidade, para poder existir duravelmente,

de um estrato de escravos; mas, na sua concepção otimista da existência, ela nega a necessidade de tal estrato" e proclama a "'dignidade do homem"' e a " 'dignidade do trabalho"' (GT, 1 8; 1, 1 1 7), lançando assim as bases para o inces­ sante e ruinoso ciclo revolucionário, para as sucessivas ondas

de

revoltas de

escravos. Então é preciso ver "em Sócrates o ponto decisivo e o vértice da chamada história universal" (GT, 15;

1,

100). O pendant literário do filósofo é

constituído por Eurípides, em cujo teatro já predomina, "pelo menos segundo os sentimentos, o quinto estado, o do escravo" (GT, 1 1 ; 1, 78), a "categoria bárbara" que agora, como revela a revolta desencadeada por ela no coração da Europa, ameaça com "horrenda destruição" a civilização enquanto tal. Estamos num momento de virada dos acontecimentos iniciada há mais de dois mil anos. Começa a ficar claro o significado do

O nascimento da tragédia. Pode­ crise da civilização de

ria tranquilamente ter levado como título ou subtítulo: A

Sócrates à Comuna de Paris.

Os acontecimentos terríveis que se consuma­

ram em 1 8 7 1 devem ser investigados e perseguidos até suas fontes mais remo­ tas.

É preciso então partir do filósofo grego e do seu pendant literário, das duas

figuras que encarnam o otimismo teórico e prático e cuja influência se "esten­ deu sobre a posteridade até hoje, e para todo o futuro, semelhante a uma som­ bra que se torna cada vez maior ao pôr do sol" (GT, 15; 1, 97).

É verdade, a gestação do O nascimento da tragédia se inicia antes da Comuna de Paris. Mcts, aos olhos de Nietzsche, assim como dos seus contem­ porâneos, os horríveis acontecimentos que se verificaram na França constitu­ em apenas o momento culminante de uma subversão que se alastrava há muito tempo.

É por isso que, já nos fragmentos e nos textos que precedem e prepa­

ram o livro, a reconstrução da história da cultura helênica se entrelaça indissoluvelmente com a reflexão sobre a história das revoluções na Europa. A morte da tragédia na Grécia encontra o seu análogo na vicissitude do grande teatro inglês: depois de ter alcançado o seu momento mais alto no início do século XVII, "ele morre violentamente na metade desse século por causa da revolução política", ou seja, por causa da primeira revolução inglesa (VII,

36).

Construída, como está conforme um "conceito abstrato", a tragédia euripidiana nos reconduz à França, onde o racionalismo começa a incubar as desordens revolucionárias (VII, 39).

ll

4. O suicídio da grecidade trágica como metáfora do suicídio do Antigo Regime A Grécia de Sócrates e Eurípides é lida por Nietzsche com o olhar constantemente voltado para a Europa do seu tempo e, em particular, para a França devastada por um incessante ciclo revolucionário, que culminou na Comuna de Paris. Só assim.se pode compreender a aspereza da condenação de Sócrates como autor "plebeu" e "extremamente revolucionário" (KGA, II, 4, p. 354) e de Eurípides como porta-voz do "quinto estado", ou seja, da "oclocracia" (VII, 35). Por outro lado, no O nascimento da tragédia os anacronismos são eviden­ tes e frequentemente conscientes. Quando ela denuncia, como vimos, a supers­ ticiosa confiança posta pela cultura alexandrina em "máquinas" e "crisóis'', não podemos não pensar nas fundições e no processo de industrialização da Alema­ nha do século XIX. Percebe-se o eco da leitura de Schopenhauer, segundo o qual devem ser considerados "realistas unilaterais, portanto otimistas e eudemonistas" aqueles que esperam o progresso e as mudanças, e melhorias reais da política ou da ciência, de "constituições e legislações", ou da "máquina a vapor e o telégra­ fo".17 Ao subscrever a denúncia dessa visão do mundo, Nietzsche se empenha em buscar sua origem já em Sócrates e na cultura alexandrina. É interessante notar que, nesse mesmo p.eríodo de tempo, ainda que exprimindo um juízo de valor diferente e contraposto, Engels argumenta de modo análogo: negligenciada pelos "gregos da idade clássica", a "investigação científica da natureza" dá os seus primeiros passos graças aos "gregos do período alexandrino"; 18 assim são postas as bases para o desenvolvimento das forças produtivas e, portanto, para a superação da escravidão, seja antiga ou moderna. O nascimento da tragédia vê em Eurípides, todo permeado de alexandrinismo, o intérprete da aspiração dos escravos, ou seja, do "quinto es­ tado". De novo estamos projetados na Europa do século x1x. Somos levados a pensar em Lassalle, que se empenha em chamar a atenção para os sofrimentos e o papel do proletariado configurado por ele como "quarto estado" (vierter Stand) ou, na vertente oposta, num autor como Strauss, impaciente com a es­ cassa energia das autoridades diante das veleidades subversivas, exatamente, do "quarto estado". 19

17 Schopenhauer, 1 976-82 b, p. 569. 18 Marx-Engels, 1 955, vol. XX, p. 20. 19 Lassalle, 1919, pp. 1 94-6 epassim; Strauss, 1872, p. 282.

O nascimento da tragédia censura a cultura alexandrina por ter teorizado a "dignidade do homem" e a "dignidade do trabalho". No entanto, um fragmento contemporâneo parece exprimir-se de modo sensivelmente diferente: trata-se de "dois conceitos que os gregos não tinham", os quais, graças à sua capacidade de olhar a realidade de frente, não percebiam a necessidade totahnente moderna de mistificar a realidade com discursos sobre a "dignidade do trabalho" (VII, 140). Com efeito, deparamo-nos com duas palavras de ordem que remetem à proclama­ ção dos direitos do homem sancionada pela Revolução Francesa e às lutas e polê­ micas sobre a escravidão, sobre o trabalho e o direito ao trabalho que se espalha­ ram durante o longo ciclo revolucionário inaugurado pela crise do Antigo Regime. No dia 27 de abril de 1 848, o governo provisório surgido do colapso da monarquia de Jull10 publica uma solene proclamação que anuncia a abolição da escravidão nas colônias, condenada como "atentado contra a dignidade humana".20 Junto com o significado político do O nascimento da tragédia começa a surgir a originalidade de sua abordagem. Ela projeta na Grécia do século v1-v AC uma vicissitude cuja etapa fundamental ocorre na Europa entre o século xvm e o x1x . Ao indicar que a crise da grecidade trágica é a "cultura socrática", com o seu "otimismo", a sua crença na bondade original do homem (a virtude pode ser ensinada a todos, e todos podem aprendê-la), com a espera confiante de um mundo feliz (GT, 1 8 ; 1, 1 1 7) . Então, são os elementos constitutivos, se­ gundo Burckhardt, da crise do Antigo Regime: não se pode compreender a ideologia revolucionária sem o "pressuposto da bondade da natureza humana", a "grande vontade otimista" e a promessa de "realização da felicidade univer­ sal", com a vinda de uma sociedade na qual "não haverá mais miséria". 21 Esse diagnóstico é compartilhado também por Taine, segundo o qual promover as desordens na França foi uma filosofia caracterizada pelas "promessas de feli­ cidade terrena" para "todos".22 É uma vicissitude iniciada com o advento dos phi/osophes, mas o pri­ meiro dos philosophes conforme O nascimento da tragédia foi Sócrates, cujo pensamento é sinônimo, como veremos, da "dúbia filosofia das luzes". Por outro lado, quando um apontamento do outono de 1 869 condena Sócrates como "fanático da dialética" (infra, cap . 2 § 1 ), somos levados a pensar no requisitório de Taine contra os protagonistas da revolução enquanto "fanáti­ cos da lógica".23 Citando e subscrevendo a análise de um contemporâneo da -

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20 Wallon, 1974 a, p. CLXV (a proclamação está registrada na conclusão da Introdução). 2 1 Burckhardt, 1978 b, pp. 385, 388 e 391. 22 Taine, 1899, vol. 11, p. 18 (=Taine, 1986, p. 389). 23 Taine, 1 899, vol. VII, p. 129 (=Taine, 1989, tomo 2, p. 141).

revolução, o historiador francês caracteriza os jacobinos como "bilotas bêba­ dos e bárbaros que usurparam o lugar dos superiores":24 e eis que volta à mente o angustiado sobreaviso de Nietzsche contra uma revolta servil já ini­ ciada em terra grega. Num texto coevo ao O nascimento da tragédia, lemos que a base social de massa da subversão euripídea da grecidade trágica é constituída pela frente matizada dos �'j ovens senhores endividados, pelos velhos bonachões até à estouvadice (leichtsinnig-gutmüthig), pelo éter em Kotzebue, pelos escravos domésticos prometeicos" (ST; 1, 5 3 6). De novo saltam aos olhos as semelhanças com a análise do desabamento do Antigo Regime na cultura do tempo e, em particular, em Taine. Ainda no caso do historiador francês, a cena é dominada por "homens infamados por crimes ou por dívidas", por "gente" que "tem dívidas com o açougueiro, com o padeiro, com o vendedor de vinho etc", 25 por "lacaios, porteiros, emprega­ dos domésticos de todo tipo", por "criados, felicíssimos por serem agora os donos dos seus donos", 26 por "mulheres da vida", "mulheres de progra­ mas", ''prostitutas" e "mulheres ordinárias".27 Quanto aos "velhos bonacheirões até à estouvadice", aos quais faz refe­ rência o texto de Nietzsche, é um topos da literatura comprometida com a crítica da revolução a denúncia da ingenuidade da velha aristocracia, propensa a deixar-se contagiar pelas palavras de ordem do movimento que a conduzirá à ruú1a e ao patíbulo. A nobreza - observa Tocqueville - troca as teorias iluministas e revolucionárias por ditos espirituosos e jogos divertidos aos quais "ela se une com todo gosto para passar o tempo".28 Só quando é tarde demais se apercebe da realidade: "o que constituíra o divertimento do seu espírito durante o tempo livre tomava-se uma arma terrível voltada contra ela".29 Poder-se-ia dizer que se assiste a uma espécie de suicídio do Antigo Regime, assim como se deve falar de "suicídio'', segundo Nietzsche, para a tragédia grega (GT, 1 1 ; 1, 75), que se deixa ingenuamente dominar por um racionalismo, ou melhor, por uma filosofia das luzes de cuja periculosidade não suspeita. 24 Taine, 1 899, vol. VI, p. 179 nota 1 (=Taine, 1989, tomo 2, p. 1082, nota 105). 25 Taine, 1899, vol. VI, pp. 172-3 e nota 1 (=Taine, 1989, tomo 2, pp. 1074-5 e nota 88); cf. Burckhardt, 1978 b, p. 410. 26 Taine, 1899, vol. VI, p. 171 (=Taine, 1989, tomo 2, p. 1073). 27 Taine, 1899, vol. VI, pp. 169, 174-5 e nota 3 (= Taine, 1989, tomo 2, pp. 1071, 1077-8 e nota 96 e 108 1). 28 Tocqueville, 195 1 , vol. II, 1, p. 196 (AR, livro III, cap. 1). 29 Tocqueville, 195 1 , vol. II, 2, p. 109.

Na véspera do desmoronamento da aristocracia, Taine, por sua vez, ob­ serva que a ela está "imbuída de máximas humanitárias e radicais". 30 Nesse momento - prossegue o historiador francês citando e subscrevendo a análise de um contemporâneo - "uma piedade ativa enchia os espíritos, o que os ricos temiam mais era passar por insensíveis". 3 1 Tendo se tornado "epicureus e fi­ lantropos", os nobres enchem a boca com as "grandes palavras liberdade, jus­ tiça, bem-estar público, dig1tidade do homem". 32 Novamente nos deparamos com uma palavra de ordem do jovem Nietzsche projetada e condenada na Grécia do século v1 AC. Se se quer sair da crise - sublinha O nascimento da tragédia - é preciso acabar com as "doutrinas de moleza", próprias do "oti­ mismo" e da "cultura socrática" (GT, 1 8 ; 1, 1 1 9). Em confirmação da perspectiva de leitura aqui sugerida, podemos fazer inter­ vir duas resenhas, particularmente significativas pelo fato de que o seu autor conhe­ ce e partilha das ideias e das preocupações do amigo resenhado e exprime ou é chamado a exprimir, como escreve Nietzsche numa carta endereçada a ele, "a nossa posição" (B, II, 3, p. 1 2). Pois bem, Erwin Rohde - é dele que se fala sintetiza assim o significado do Nascimento d tragédia: "Do tratamento histórico da distante antiguidade o autor avança através da amplidão dos tempos até o pre­ sente". Não se trata de um salto lógico ou de uma divagação: "o otimismo teórico herdado de Sócrates" transformou-se, no mundo moderno, em "otimismo prático, que, tendo-se tornado pretensão estridente, sempre mais ameaça desencadear contra esta civilização podre um inferno de potências destrutivas",33 e já desembocou no "vandalismo de bárbaros socialistas".34 Volta aos partidários da Comuna a acusa­ ção de terem posto fogo ao Louvre e, através dela, ressoa o apelo a tomar consci­ ência da dramaticidade de situação. Felizmente, nem tudo está perdido. Ao exorci­ zar o espectro do socialismo e da sua carga de atos de vandalismo e ao representar uma esperança de salvação para a civilização - prossegue o recenseador, identifi­ cando-se mais uma vez com o autor resenhado - convoca o "povo alemão", a "nação alemã", cuja grande música parece anunciar a retomada da grecidade trá­ gica e o fim do ciclo ruinoso iniciado há mais de dois mil anos. 35 Se Rohde sublinha que, longe de se limitar a denunciar "o mal do tempo" pre­ sente, o autor do O nascimento da tragédia "convida todos aqueles que vivem na 3º Taine, 1899, vol. II, p. 149 (= Taine, 1986, p. 5 18). 31 Taine, 1899, vol. II, p. 158 (= Taine, 1986, p. 527) 32 Taine, 1899, vol. II, p. 132 ( Taine, 1986, p. 501). 33 Rohde, 1972 a, p. 195. 34 Rohde, 1 972 b, p. 207. 35 Rohde, 1972 b, pp. 208-9. =

diáspora, tristes e nostálgicos dos tempos passados, a wna esperança renovada",36 na vertente oposta, subscrevendo substancialmente a análise, mas invertendo o juízo de valor, Wilamowitz denuncia Nietzsche não só como "professor sonhador", mas tam­ bém como "apóstolo e metafisico".37 Num e noutro caso é evidenciado o fato de que quem inspira o tex1o, amado ou odiado, é uma forte presença política.

5. Das guerras antinapoleônicas ao Nascimento da tragédia Sim, a denúncia da modernidade, que está no centro do O nascimento da tragédia, não tem nada de abandono nostálgico e inerte. Não só é de batalha, mas, nesse momento, olha confiante para a possibilidade de transformação radical do presente na Alemanha e na Europa. Aqui, torna-se evidente a influ­ ência exercida pelo outro grande acontecimento político do tempo sobre uma obra amadurecida - observa o Prefácio "entre os horrores e as grandezas da guerra que principiava" (GT, Prefácio; I, 23). O nascimento da tragédia escreverá mais tarde o filósofo - foi longamente meditado "nas frias noites de setembro diante da muralha de Metz, quando fazia o serviço de enfermagem". Junto com a derrota da França, "os canhões da batalha de Wõrth", sob cujo estrondo o livro começa a ser escrito (EH, O nascimento da tragédia, 1 ), anunciam a possível liquidação da modernidade ao mesmo tempo vulgar e rui­ nosa iniciada com Sócrates e Eurípides . Imediatamente depois de Sedan, é lícito esperar uma virada radical, porque a derrota da França é a derrota dos países do iluminismo e da revolução. O triunfo do exército prussiano se reveste de um significado que vai muito além do âmbito militar: "A única força política produtiva na Alemanha, que não é preciso detalhar a ninguém, alcançou agora a vitória no modo mais extraordinário". Tal­ vez esteja concluído, ou esteja para ser concluído, o ciclo iniciado com "a grande Revolução Francesa". O liberalismo, pelo menos aquele vulgar, marcado pela massificação democrática, "terá se esvaído em sangue, junto com os seus mais rudes irmãos", ou seja, o socialismo e o comunismo, "por causa daquela potência inflexível [o exército prussiano-alemão] que se indicou acima" (VII, 355). Nietzsche certamente não está isolado nessa leitura da guerra terminada havia pouco. Em Basileia, Burckhardt põe em evidência "o enfraquecimento do povo revolucionário êáôâil+çí".38 Do outro lado do Reno, de modo análogo argu-

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36 Rohde, 1 972 b, p. 207. 37

Wilamowitz-Mõllendorff, 1972 a, pp. 218 n e 2 14. 'M Burckhardt, 1978 a, p. 133 (é um acréscimo à mão no manuscrito).

menta Renan: ao sofrer uma humilhante derrota, tomou-se um país "desfibrado pela democracia" e, mais em geral, pelo "sabat democrático" proveniente da revolução; se a Pníssia consegue evitar o contágio democrático e a "democracia socialista", ela poderia desenvolver uma nobre "missão de salvaguarda da ordem social europeia". 39 Graças às suas virtudes militares, os alemães são os únicos em condições de defender a Europa da ameaça da subversão. 40 Em primeiro lugar, à história cultural e política da Alemanha remete, ao contrário, toda uma outra série de temas que atravessam em profundidade O nascimento da tragédia, a começar pela contraposição entre sentimento sério e trágico da vida, próprio dos alemães, e superficialidade otimista, sinônimo de vi­ são do mundo filisteia e banáusica, própria dos povos neolatinos. Se dermos ouvi­ do a Wagner, expoente de primeira linha da ideologia dominante na Alemanha da época, Sedan é a vitória do soldado alemão que, no seu operoso e "sério silêncio", soube "pôr fun à arrogância" dos seus inimigos, penetrando profundamente no território inimigo e "no coração vaidoso da França".41 Estamos na presença de um topos que remonta à época das guerras antinapoleônicas, quando Fichte contrapõe ao ')ogo agradável", ao qual os franceses reduzem a cultura, a "serie­ dade" intelectual e moral dos alemães, enquanto Ernst Moritz Amdt (o animador incansável da resistência contra o exército napoleônico de ocupação) atribui aos alemães uma "profundidade", totalmente desconhecida de um povo albern, isto é, alegre de modo superficial e fátuo, como seria o modo francês.42 E agora reabramos O nascimento da tragédia: reagindo à moda do sé­ culo xvm (o século da hegemonia também cultural da França), Kant e Schopenhauer "introduziram um modo infinitamente mais profundo e .sério de enfrentar as questões éticas e a arte" (GT, 1 9; 1, 1 28). Mérito análogo tem a Alemanha no campo musical: com Bach, Beethoven e Wagner, livrando-se das "rendas" e "arabescos da melodia operística" e da ópera neolatina, a música alemã se apresenta como um "demônio que brota de uma profundeza inexaurível" (GT, 1 9; 1, 1 27). O Nietzsche desses anos não se cansa de prestar homenagem "àquele espírito alemão viril, sério, melancólico, duro e audaz, aquele espírito que se conserva sadio desde a época da Reforma, do filho de mineiros que é Lutero" (BA, 5 ; 1, 749). Ainda a quarta Inatual, ao evocar a "grande guerra dos alemães " de alguns anos antes, celebra a "serenidade (Heiterkeit) propri­ amente e unicamente alemã", uma serenidade que não ignora a seriedade e o �9 Rcnan, 1 947, vol. 1, pp. 333, 383 e 405. 40 Rcnan, 1 947, vol. 1, p. 350. 41 Wagner, 1 9 10 h, p. 1 -2 . 42 Cf.

Losurdo, 1 997 a , cap. VII, 4 (pp. 3 1 1 e 3 1 5).

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trágico da existência, antes característica daqueles que, como Lutero, Beethoven e Wagner, "sofreram profundamente a vida e tomaram a voltar-se para ela, por assim dizer, com o sorriso do convalescente" (WB, 8; 1, 480- 1). O sentimento vazio e a superficialmente otimista da vida atribuem um valor fundamental ao gosto do aspecto exterior. E, segundo as publicações antinapoleônicas, "o luxo da roupa" e "a mutável elegância dos tecidos e o seu fascínio sedutor" estariam no centro das preocupações dos franceses.43 Esses - sentencia, por sua vez, Bi smarck - "têm di�eiro e elegância, mas nenhuma individualidade, nenhum sentimento individual do próprio eu - vivem sozinhos na massa".44 Também esses temas se encontram em Nietzsche . A já citada carta a Gersdorff, de 2 1 de junho de 1 8 7 1 , condena não só "o nivelamento da 'elegância' francês-judaica", mas também o ''élan dos nossos deploráveis vizi­ nhos", um gesto estetizante, bem diferente da autêntica "coragem (Tapferkeit) alemã" (B, II, 1, p. 203) Sempre Amdt contrapõe à "mentira" e à "vaidade" dos franceses não só a "honra", mas também a "fidelidade" dos alemães. Até o fim - nesse meio­ tempo começa e fracassa a revolução de 1 848 - ele gosta de concluir as suas cartas in deutscher Treue, com a garantia da sua "fidelidade alemã".45 Tam­ bém o jovem Nietzsche presta homenagem à "fidelidade do soldado alemão, experimentada nos últimos tempos"; é preciso saber reconhecer nele "aquela força resistente, hostil a toda aparência, da qual podemos esperar ainda uma vitória sobre a pseudocultura da 'época atual "' (BA, 2; 1, 69 1 e BA, 3 ; 1, 694) Explícita e sem reservas é, nesses anos, a adesão aos temas ideológicos que se desenvolveram a partir da sublevação antinapoleônica, das chamadas "guerras pela liberdade" (Freiheitskriege). A quinta conferência Sobre o futuro das nossas escolas faz referência explícita a elas; aí celebra-se a Burschenschaft, o movimento estudantil que, depois de ter combatido pela "liberdade da pátria", ao voltar à universidade, aspira a libertar também esta da "barbárie não alemã, dissimulada artificiosamente sob toda forma de erudição" (BA, 5; 1, 748). É intenso o pathos teutomaníaco e galófobo. Dir-se-ia que foram conjun­ tamente Wagner e o Fichte dos Discursos à nação alemã que influenciaram o jovem Nietzsche. Mérito do grande musicista é também sentir .

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Com profunda altivez, a originalidade e inexauribilidade ainda hoje existente dessa língua [alemã], a força sonora das suas raízes, nas quais intuía, ao contrário das línguas de origem românica, somente derivadas e artificiosa43 Cf.

Losurdo, 1 997 a, cap. IX, G (p. 429). 1 983, p. 167. 45 Cf. Losurdo, 1 997 a, cap. VII, 2 (p. 307).

44 ln Hcrre,

mente retóricas, uma maravilhosa inclinação e preparação para a música, para a verdadeira música (WB, 9; I, 486-7). Não é difícil perceber aqui o eco, imediato ou mediato, exatamente dos Discursos fichteanos, empenhados em celebrar, em contraposição aos france­ ses e à sua língua morta, a "originalidade"46 do "povo da língua viva'', capaz de descer "até à raiz onde os conceitos brotam da natureza espiritual".47 O Apelo aos alemães escrito por Nietzsche a favor do grande musicista, ou seja, o Apelo à nação alemã, assim como seu próprio autor o define (B, II, 3 , p. 1 65), quase evocando os Discursos de Fichte, ressoa com acentos que remetem claramente ao filósofo da guerra antinapoleônica: é necessário mobilizar-se para "o bem e a honra do espírito alemão e do nome alemão"; aqueles que conservaram o "senso de honra", não devem deixar faltar o seu apoio por uma música e uma arte que possam constituir "o fator mais importante de uma nova vida com característica originalmente alemã" (MD; 1, 893-4 e 896). Mais tar­ de, numa fase bem diferente da sua evolução, Nietzsche aproximará de modo explícito, mas no âmbito agora de um juízo asperamente crítico, Fichte e Wagner, ambos culpados de "teutomania" (Deutschthümelei) exaltada (XII, 55). Mas, nos anos do O nascimento da tragédia, a adesão a tal ideologia parece ser sem reservas, como é confi rmado por uma anotação do verão­ outono de 1 8 73; aí se presta homenagem à "excelente caracterização dos ale­ mães e dos franceses" contida num pamphlet de Gõrres (VII, 700), um dos porta-vozes mais magníloquos da teutomania e da galofobia que se desenvolve­ ram na onda da sublevação contra Napoleão 1 e bem viva e vital no momento do conflito com a França de Napoleão III. Enfática ressoa nas conferências de Basileia a celebração do Burschenschaftler, o membro das associações estu­ dantis, que tinham exercido um papel de primeiro plano na revolta e na guerra contra a ocupação francesa: Em meio ao júbilo da vitória e no pensamento voltado para sua pátria liberta­ da, ele fizera a si mesmo a promessa solene de continuar alemão. Alemão! Ent
46 Fichte,

1 97 1 , vol. VII, pp. 342 e 375.

47 Fichte, 1 97 1 , vol. VII, pp. 327 e 338-9.

6. O jovem Nietzsche e a adesão ao nacional-liberalismo alemão Não deve surpreender a colocação ideológica e política aqui sugerida pelo autor de O nascimento da tragédia (e das conferências Sobre o futuro de nossas escolas). Demos uma olhada no seu processo de formação. Durante o período de estudo em Bonn, Nietzsche, como ele mesmo relata numa carta à irmã e à mãe (B, 1, 2, p. 1 5), se dirige ao cemitério para prestar homenagem ao túmulo de Ernst Moritz Amdt; o popular herói da resistência antinapoleônica que já conhecemos. O momento em que essa visita acontece é significativo. Estamos em outubro de 1 864; com a guerra travada junto com a Áustria, para arrancar da Dinamarca os ducados da Silésia, Holstein e Lauenburg, a Prússia deu início ao processo de unificação e hegemonização da Germânia. Dois anos depois, com a notícia do estouro da guerra desencadeada por Bismarck, desta vez contra a Áustria (ex-aliada), Nietzsche se define e assina uma carta "como granadeiro prussiano" pronto a pegar em armas (B, 1, 2, p. 126) . O desenvolvimento das operações militares é seguido com inquietação, tendo em vista a reação da França, para a qual a Áustria se volta a fim de garantir o "equilíbrio" europeu ameaçado com as vitórias do exército prussiano. Mas tal "equilíbrio" - observa Nietzsche numa carta a Gersdorff de 1 º de julho de 1 866 teria o seu "centro em Paris", consagraria a continuidade da política francesa de hegemonia e, portanto, poria em perigo a "realização das nossas esperanças alemãs", agora mais do que nunca ao alcance da mão. Se mais uma vez elas viessem a ser frustradas por causa da intervenção no conflito por parte de outras potências europeias, a esta ulterior humilhação seria preferível "a honra de ser atingido no campo de batalha por uma bala francesa". Feliz­ mente, as perspectivas são animadoras: uma "guerra contra a França" deve­ rá seguir-se à "guerra de aniquilamento" da potência da Áustria. Além de seus resultados militares e políticos, esse acerto de contas poderá "produzir na Alemanha uma unidade espiritual" (Gesinnugseinheit), que cimentaria definitivamente a unidade nacional (B, 1, 2, pp. 1 43-4) . Como se vê, mesmo permitindo-se algum tom melodramático, o jovem Nietzsche revela um senso robusto da realidade histórica e política; está consciente do fato de que a realização da unidade política da Alemanha passa através da liquidação das ambições napoleônicas da França, ainda dura de morrer; prevê e auspicia a prova de força que se verificará quatro anos mais tarde. Enfim, a carta a Gersdorff observa que, para a Prússia e a Alemanha criou-se a situação mais favorável "a partir de 5 0 anos atrás", ou seja, a partir da sublevação antinapoleônica de 1 8 1 3 . -

Nesse momento, parece estar completa a identificação com o programa político do chanceler de ferro, que em Berlim assumiu a condução do governo. Não nos esqueçamos que Bismarck, no plano interno, foi o protagonista de uma revolução a partir de cima, que introduziu o regime parlamentar, e, no plano internacional, vê o seu principal antagonista em Napoleão III e na França bonapartista. Compreende-se então o entusiasmo expresso pelo jovem Nietzsche: Devemos estar orgulh�s por ter semelhante exército, ou melhor, até, -horribi/e dictu - tal governo, que não faz os seus planos apenas no papel, mas os respeita com a máxima energia, com enom1e dispêndio de dinheiro e de sangue, diante até do grande aventureiro francês, Louis /e diable. Qualquer partido que aprova essas metas políticas é, em substância, um partido liberal (B, 1, 2, pp. 142-3).

Um mês depois, numa outra carta, ao confirmar o seu entusiasmo, Nietzsche revela-se bastante interessado nos escritos publicitários e nas posi­ ções políticas de Treitschke (destinado em breve a tornar-se uma espécie de ideólogo mais ou menos oficial do Segundo Reich) e se considera membro ou simpatizante do "partido liberal-nacional", favorável à "anexação incondicio­ nal" da Saxônia à Prússia e, mais em geral, à política de unificação nacional confiada por Bismarck à força e à disciplina do exército prussiano (B, 1, 2, p. 1 59). Tão completa é nesse momento a sintonia com a Alemanha que se está perfilando no horizonte, que o jovem estudante, longe de reivindicar a sua "inatualidade", segundo o gesto que caracterizará mais tarde a sua filosofia, declara não ser "ingrato em relação ao presente" (B, 1, 2, p. 1 7 1 ). As sucessivas provas de força com que a Prússia prepara a edificação do Segundo Reich são lidas, na Alemanha, por uma grande opinião pública, como a continuação da rebelião, iniciada algumas décadas antes, contra a humilha­ ção imposta à nação pela França. Quando estoura a guerra de 1 870, o brilhante professor de filologia clássica abandona momentaneamente o ensino univers i­ tário, ministrado na cidade suíça neutra de Basileia, para alistar-se como volun­ tário nas fileiras do exército prussiano. Ele leva consigo a esperança e os mitos de seu tempo, que estão no centro também de O nascimento da tragédia .

7. "Pessimismo germânico ", "visão séria do mundo ", "visão trá­ gica do mundo " São esperanças e mitos que conhecem agora um processo ao mesmo tem­ po de radicalização e de sistematização filosófica. A "seriedade" e a "profundida­ de" alemã, à qual a imprensa antinapoleônica não se cansa de prestar homena-

gem, toma-se, assim, a "visão séria do mundo'', que exprime o "verdadeiro espí­ rito alemão" (VII, 259) e mergulha suas raízes no "pessimismo germânico" (VII, 305). Acentuá-la tem um grande significado também no plano político: "A Revo­ lução Francesa nasceu da fé na bondade da natureza". É preciso saber tirar dela a lição certa: ''Uma visão do mundo distorcida e otimista acaba desencadeando todos os horrores" (VII, 280). À optimistische Weltbetrachtung, que continua a grassar além do Reno, o jovem Nietzsche contrapõe a "visão séria de mundo (ernste Weltbetrachtung) como única salvação para o socialismo" (VII, 259). Aquela que, nos apontamentos preparatórios, é a "visão séria de mundo", está representada em O nascimento da tragédia como a "visão trágica de mundo" (tragische Weltbetrachtung) (GT, 1 7; 1, 1 1 1 ) . Tendo agora se tomado dominante, este tema se apresenta em múltiplas variações: é absolutamente necessário recuperar o "conhecimento trágico (tragische Erkenntniss) (GT, 1 5 ; 1, 1 0 1 ), a cultura que precisa decidir-se a se chamar "trágica" (GT, 1 8; 1, 1 1 8), própria daqueles que ousam ser "homens trágicos" (GT, 20; 1, 132), à altura da "época trágica", cujo retomo se perfila no horizonte (GT, 1 9; 1, 1 28). Bem longe de ser recente, o conflito entre as duas visões contrapostas do mundo começou a manifestar-se já em terra grega. Embora tenham transcor­ rido dois milênios desde o seu desaparecimento, felizmente a grecidade trágica não morreu. Pode renascer, já está renascendo no âmbito da cultura alemã. Demonstra isso a música daquele tipo de novo Ésquilo que é Wagner, o qual põe fim ao predomínio exercido pela ópera madurecida em terra latina e carac­ terizada, como sabemos, por uma minosa carga otimista e subversiva. Porém o demonstram também Schopenhauer, "o filósofo de um classicismo reavivado, de uma grecidade gem1ânica [ . . . ] , de uma Alemanha regenerada" (FS , IV, 2 1 3), e Kant, o qual, evidenciando os limites e conflitos da razão, se revela também totalmente estranho à superficialidade inata no otimismo iluminista e racionalista. Nesta mesma chave é lido Lutero (GT 23; 1, 1 47), crítico implacá­ vel de uma razão e de uma visão do mundo harmonicista e, portanto, também ela ressoando temas e ecos dionisíacos. A ameaça mortal representada pelo "homem teórico" e pelo "otimista prático" só pode ser evitada pelo ·'homem dionisíaco" (GT, 7; 1, 56). É uma figura que parece voltar atualmente. "Expulso da cena trágica, expulso por uma potência demoníaca, que falava pela boca de Eurípides" (GT, 12; 1, 83), e, no plano filosófico, de Sócrates, Dionísio faz de novo irmpção em cena não só teatral e musical, mas sobretudo histórica e política, graças ao "renascimento da tragédia" em terra alemã (GT, 1 6; 1, 1 03), na Alemanha que derrotou os países do socratismo, do otimismo e da revolta servi l.

O povo alemão é chamado então a ser o herdeiro da civilização grega, por Nietzsche celebrada em tons apaixonados. Para tal propósito se falou, talvez, de neoclassicismo. Mas é uma categoria enganosa, e não só pelo fato de que, dedicado a Wagner, O nascimento da tragédia concentra a sua atenção espe­ cialmente em seu Tristão e lwlda, uma ópera decididamente "romântica" (GT, 2 1 ; 1, 1 3 5-7). Esta é uma razão mais importante. Certamente não assistimos à recuperação da antiguidade clássica enquanto tal. Ao contrário do que fará nos anos seguintes, nesse momento Nietzsche exprime um juízo bastante severo sobre a romanidade, caracterizada, em nítido contraste com a Grécia, pela "avidez devoradora do poder mundial e das honras do mundo". Sinônimo de espírito utilitário, a ··mundanização" encontra a sua "expressão mais grandiosa, mas também mais terrível", exatamente no "imperium romano" (GT, 2 1 ; I, 1 3 3). Para compreender esses julgamentos, é preciso fazer referência ainda uma vez ao clima ideológico e político do tempo. Na casa de Wagner, Nietzsche lê e discute o Catecismo político de Kleist.48 É o autor que, poucos dias depois da batalha de Jena, escreve: "Nós somos os povos subjugados pelos romanos".49 Se, enquanto conquistadores animados de uma ambição imperial desmedida, os fran­ ceses aparecem aos olhos de Kleist, de Fichte e de uma vasta cultura e publicismo como os "novos romanos", opondo-se ao expansionismo destes e rejeitando sua política de equalização opressora está um povo desprovido de unidade no plano político e estatal, claramente mais fraco no plano militar, mas infinitamente mais rico e mais profündo no plano da cultura e da criatividade artística e filosófica, um povo que, portanto, pode ser comparado com o da Grécia antiga. Este tema conhece uma nova vitalidade na onda da guerra franco-prussiana, quando o grande filólogo Ernst Curtius compara, também ele, os franceses com os romanos, celebrando nos "alemães" o povo capaz de guardar a própria peculiaridade, contra o universalismo agressivo, e de evitar qualquer atentado contra a "liberdade dos povos". 50 O julgamento bastante severo formulado em O nascimento da tragédia sobre romanidade não impede que Nietzsche, como vimos, se remeta, naquele mesmo período de tempo, ao Tácito admirador dos germanos e de seu espírito de independência e que, cm tal leitura, se toma uma espécie de crítico ante litteram da civilização latina. Não é por acaso que se trata do único autor latino caro ao Fichte dos Discursos à nação alemã e aos protagonistas da resistên­ cia antinapolcônica, empenhados na polêmica contra os novos romanos.51 4� C. Wagner, 1 976-82, vol. 1, p. 424. 49 Kleist, 196 1 , vol . II, p. 770 (carta a Ulrikc von Kleist de 24 outubro de 1 806). 5° Cf. Losurdo. 5 1 Cf.

1 997 a, cap. XIII, 1 2 (p. 573). Losurdo, 1997 a, cap. 1, 5 (p. 55).

Wagner se posiciona de modo análogo a Nietzsche. Também ele celebra a ligação indissolúvel que une "ideal grego" e "espírito alemão" e contrapõe negativamente os romanos (cuja herança foi assumida pela França) aos gregos (cuja herança é reivindicada pela Alemanha): "No teatro, os romanos celebra­ vam os seus jogos gladiadores e os gregos, as suas tragédias". 52 Entre os dois povos há um abismo: é o abismo que separa a "civilização" da autêntica "civi­ lidade" (civiltà) .

8. O "espírito alemão " como "salvador " e "redentor " da Civilisation Agora está claro: o país que sofreu em Sedan uma irremediável derrota era símbolo não só da subversão, mas também da "civilização". Neste ponto, a opo­ sição entre Alemanha e França se configura como a antítese entre Cultur e Civilisation. Particularmente significativa para tal propósito é a carta a Gersdorff, muitas vezes citada, de 2 1 de junho de 1 87 1 . Depois de ter celebrado a "antiga saúde alemã" da qual deram prova o exército e a nação, Nietzsche prossegue assim: "Sobre essa base é possível edificar: podemos de novo esperar! ". Trata-se de não perder de vista a "cabeça da hidra internacional que repentinamente se levantou com tanta monstruosidade para anunciar outras lutas futuras". No en­ tanto, a catástrofe da Comuna de Paris é o resultado de uma devastação de longa data e de caráter mais geral: "a 'civilização' latina, agora por toda parte dominan­ te, revela o mal incrível que aflige o mundo" (B, II, l , pp. 203-4). Somos reconduzidos mais uma vez ao clima ideológico que acompanha o choque entre França e Prússia. No momento em que se iniciam as hostilidades, Napoleão III se volta para os seus soldados, dizendo: "A França inteira vos segue com seus votos ardentes e o universo tem os olhos voltados para vós . Do nosso sucesso depende a sorte da liberdade e da civilização" (civilisation).53 Bismarck zomba dessa pretensão quando, fazendo referência à Comuna, acentua que, sem a intervenção do "bárbaro" prussiano, teria sobrado bem pouco da "capital da arte e da civilização" (Civilisation).54 Surgem assim as duas ideo­ logias contrapostas da guerra. À França, que se autoproclama representante 52 Wagner,

1 9 1 O i, pp. 36 e 60. Estmnos na presença de um tema ideológico de e:\1raordi­ nária vitalidade ainda em pleno século xx (assim pensa Heidegger), graças também à mediação de Nietzsche (cf. Losurdo, 1 9 9 1 , pp. 1 46-1 55). 53 ln Sorel, 1 973, p. 5 6 5 . 54 Bismarck, s. d. , vol. III, p. 29.

privilegiada da civilização como tal, a Alemanha responde distinguindo entre "civilização" superficial (civiUzzazione) e "civilização" autêntica (civiltà), e se ergue como guardiã desta última. Também esta dicotomia tem uma longa história. Nos anos da impotência política e militar da Alemanha e do seu recuo no plano econômico, os seus grandes intelectuais tinham julgado oportuno agitar valores diversos e mais es­ senciais com respeito ao desenvolvimento da simples riqueza material. Com alusão polêmica à França, Schleiermacher chamara os alemães a fazer uma barreira "à grosseira barbárie e ao frio sentido terreno do século", à "miserável empiria" (jammerliche Empirie); "o antigo caráter nacional" dos alemães escrevera Schelling em 1 802 - pode ser despertado só mediante "uma religião ou filosofia dominante" que se coloque em clara oposição ao utilitarismo de além-Reno; a Alemanha - insistira Amdt - deve decididamente rechaçar aquela "meia formação espiritual, aquele banal jogo intelectual, que espolia a vida de tudo o que é sagrado e a natureza de todo segredo". 55 Como para o choque entre Antigo Regime e os philosophes, de modo semelhante Nietzsche procede, no que respeita ao tema da oposição entre "ci­ vilidade" [civiltà = cultura] e "civilização"; ele o retoma e radicaliza até chegar a projetá-lo na antiguidade clássica. A fé supersticiosa em "máquinas" e "cri­ sóis" e "o sofisticado prazer de existir" se impõem já desde o declínio da grecidade trágica; mas esse banáusico otimismo teórico e prático é agora destruído graças à "filosofia alemã", graças particularmente a Kant e Schopenhauer. Com Sedan, no entanto, verificou-se uma virada. O nascimen­ to da tragédia proclama que sem visão trágica da vida e sem "sabedoria dionisíaca" não há civilização autêntica: "Tudo o que agora chamamos de civi­ lidade (Cultur), cultura (Bildung), civilização (Civilisation) deverá um dia comparecer diante do infalível juiz Dionísio". Retomando a si mesma e assu­ mindo até o fundo a herança da grecidade trágica, a Alemanha deve libertar-se de uma vez para sempre do "artificio de uma civilização neolatina" (romanische Civilisation) (GT, 1 9; 1, 128-9). Compreende-se então o pathos com que o jovem Nietzsche se exprime sobre a "essência alemã", um tema, segundo o testemunho de Cosima, que estava no centro das conversas na casa de Wagner e das comuns esperanças que as alimentavam .56 É um tema que conhece muitas variações em O nasci­ mento da tragédia, empenhado em levantar um hino, além de à deutsches Wesen, ao "nobre núcleo (Kern) do caráter do nosso povo", ou seja, ao "caro55 Cf. Losurdo, 56 C.

1 997 a, cap. VII, 4 (p. 3 1 3 ). Wagner 1 976-82, vol. I, p. 49 1 . ,

ço puro e forte da essência alemã'', ao "caroço nobre do caráter do nosso povo'', à "esplêndida saúde, profundidade e força dionisíaca" do "espírito (Geist) alemão" e do "gênio" (Genius) alemão". Ao contrário do que acontece na "França civilizada" (civilisiert), na Alemanha, civilização e modernidade são só um fenômeno passageiro e superficial que mal cobre "a íntima atitude dionisíaca de um povo" e do qual é possível desembaraçar-se de uma vez para sempre com a "expulsão do elemento neolatino" (GT, 23; 1, 146-7 e 1 49 e GT, 24; 1, 153-4). Já iniciado com as guerras contra Napoleão 1, esse p rocesso de recon­ quista da autêntica identidade alemã recebeu ulterior impulso da nova e decisi­ va vitória conseguida sobre a França. No entanto, ele parece ter parado pela metade. Em vez da radical "libertação do elemento neolatino" (Romanismus), que a nova situação impõe e torna possível, "até agora houve apenas remanejamentos" desse elemento. Análogas incertezas e falta de rigor já se manifestaram no passado. Mesmo conduzida contra a hegemonia de Roma, a própria Reforma não conseguiu obter resultados melhores (VII, 329). Mas, agora, a perspectiva é mais favorável: "O espírito germânico luta para penetrar até o espírito grego [ . . . ] E assim como é certo que as nossas guerras persas apenas começaram, com a mesma segurança sentimos que vivemos na época da tragédia" (VII, 229-30). O Segundo Reich é chamado a varrer definitivamente "a visão liberal e otimista do mundo, a qual afunda as suas raízes nas doutrinas do iluminismo francês e da revolução, isto é, numa filosofia totalmente estranha à Alemanha, francamente neolatina, banal e antimetafisica" (CV, 3 ; 1, 773). "O espírito ale­ mão" é, de algum modo, o "salvador" (Retter) (VII, 43 1), a "força redentora" (erlõsende Kra.ft) (VII, 429). Enquanto profundamente atravessada pela rei­ vindicação da felicidade e por uma visão simples e vulgar da vida, a civilização lança as premissas da revolução. O "enorme crescimento da civilização mate­ rial" - observa já Burckhardt - é uma característica da "época revolucioná­ ria", que ainda não está concluída. 57 É uma afirmação contida sempre no curso das lições às quais Nietzsche também assiste. Em termos análogos se exprime, poucos anos antes, Wagner, que também celebra no "espírito alemão" o "salvador" (Erretter), que age como elemento "redentor" (erlõsend) da "ruína" iminente sobre a Europa.58 Aparece com clareza a influência, neste momento, desenvolvida sobre o jovem filólogo-filó­ sofo pelo grande musicista. Este último já insiste no fato de que os franceses 57 Burckhardt, 1 978 b, pp. 3 78-9. 58 Wagner, 1 9 1 0 f, p. 84.

constituem "o povo dominante da hodierna Civilisation"59 e o povo "'moder­ no' até os ossos''. 60 Também para Wagner, uma virada pode e deve ser repre­ sentada pela guerra franco-prussiana: "Enquanto os exércitos alemães avan­ çavam vitoriosos para o centro da ' civilização' francesa, surge de improviso entre nós o sentimento de vergonha pela nossa dependência dessa civiliza­ ção". 61 Trata-se de fazer as contas com uma devastação de longa data, que remete em última análi se à "eivilização universal dos romanos". 62 As concordâncias com Nietzsche são claras. Segundo este último, empe­ nhando-se na "luta" não só contra o caráter subversivo incurável da França, mas também contra o "tremendo perigo" representado pelo "afã (Getreibe) político americano", o "espírito alemão" reafirma a herança da Grécia trágica, recuperada graças também a Schopenhauer e Wagner, e à sua "maravilhosa unidade", e confirma a sua autêntica identidade (VII, 423 e 425). A luta contra a modernidade e a civilização é, ao mesmo tempo, o compromisso pela recupe­ ração da germanicidade autêntica. São necessárias "'oficinas da luta contra o tempo presente' e para a renovação da essência alemã" (VII, 262), sem nunca perder de vista a "distinção entre o que é alemão e o que é pseudoalemão" (Afierdeutsch) (VII, 256).

9. "Otimismo ", ''felicidade " e desvio revolucionário: o radica­

lismo de Nietzsche À grecidade trágica como à germanicidade autêntica resultam totalmente estranhos o "otimismo" e a ideia de "felicidade'', que estimulam a vulgarização da civilização moderna e engrossam a maré da revolução. De fato, a ideia de felicidade, posta em situação de acusada por Nietzsche em virtude de sua carga subversiva intrínseca, acompanha e estimula todo o ciclo revolucionário nas duas margens do Atlântico. É conhecido o papel central que a ideia de felicidade ocupa no iluminismo, ou seja, no âmbito da filosofia que prepa­ ra ideologicamente a derrocada do Antigo Regime.63 A revolução nos Estados Unidos proclama, entre as verdades "por si mesmas evidentes", o- exercício de "direitos inalienáveis" em cujo âmbito entram "a vida, a liberdade e a busca da 59 Wagner, 1 9 10 f, p. Wagner, 1 9 10 f, p. 61 Wagner, 1 9 10 f, p. 62 Wagner, 1 9 10 f, p. 63 Mauzi, 1960. 60

1 15. 1 1 8. 1 1 3. 120.

felicidade", que aqui é o gozo tranquilo de uma confortável esfera privada. O processo de radicalização plebeia da Revolução Francesa é acompanhado pelo pathos crescente da ideia de felicidade. Em 1 793, aparece a nova Declaração dos direitos do homem e do cidadão, que, no artigo 1, proclama: "O fim da sociedade é a felicidade (bonheur) comum". O artigo 2 1 esclarece: "Os socor­ ros públicos são uma divida sagrada. A sociedade deve a subsistência aos cida­ dãos desafortunados [literalmente: infelizes, malheureux], seja arranjando-lhes um trabalho, seja dando àqueles que não estão em condições de trabalhar os meios para viver". Atravessando o Atlântico, o direito negativo à felicidade (o qual garante à esfera privada a ausência de toda interferência estranha) transfor­ mou-se em direito positivo (o qual exige a intervenção pública para sanar situa­ ções de miséria e de infelicidade de outro modo irremediáveis). A reivindicação desse direito positivo encontra a sua formulação mais apaixonada nos dois célebres discursos pronunciados por Saint-Just no Ventoso do ano II, a poucos meses do fatal Termidor de 1 794, que veria também Robespierre subir à guilhotina: A felicidade é uma ideia nova na Europa [. . . ]. Não tolereis que haja no Estado um só pobre e infeliz [ . . . ]: que a Europa saiba que não quereis mais no território francês nem um infeliz nem um opressor. . . Os infelizes são as potências da terra; têm o direito de falar como donos aos governos que deles descuidam. 64 Quem cita de tal modo Saint-Just, unificando dois discursos diferentes, é um outro revolucionário, Babeuf, no momento em que se dirige aos juízes do tribunal que dali a pouco condenariam também a ele à pena capital. 65 E o babeuvismo, nas suas diversas transformações e configurações, desempenha depois um papel não irrelevante na Comuna de Paris. Não há dúvida, Nietzsche tem razão: a ideia de felicidade age de modo explosivo por ao menos um século, que vai do triunfo do iluminismo à catástrofe de 1 87 1 . Mesmo depois desta data, ela não cessa de estender a sua carga revolucionária. Uma terrível ame­ aça que continua a pairar sobre a civilização: não só o longo ciclo revolucioná­ rio que se desenvolveu no Ocidente, o próprio "socialismo", o novo perigo com o qual é preciso acertar as contas, deve ser considerado "um fruto daquele otimismo" que já provocou tantas desgraças (VII, 379). Ao argumentar desse modo, Nietzsche não está absolutamente isolado na cultura do seu tempo. Alguns anos antes da revolução de 1 848, Stimer obser­ vava: "é a 'felicidade do povo' que se busca depois da revolução";66 o ciclo de 64

Sa int Just, 1984, pp. 7 1 5 e 707 (relatórios de 13 e de 8 de Ventoso do ano II). -

65 Cf Babeuf, 1988, p. 3 1 6. 66 Stirner,

1979, p. 244.

modo algum está concluído ! Na véspera da Comuna de Paris, Renan chega à conclusão de que a maldição e a ruína da França residem na ideia de "felicida­ de vulgar" e na pretensão de realizar uma sociedade para a qual "os indivíduos que a compõem gozam da soma de bem-estar máxima possível". 67 Cerca de dez anos depois, Gumplowicz, expoente de primeiro plano do socialdarwinismo, sublinha a relação que subsiste entre "Revolução Francesa, socialismo, comu­ nismo", por um lado, e "visãe otimista" e esperança de uma ordem social me­ lhor e mais feliz, por outro lado. 68 No conjunto, entre os séculos xvm e XIX, a denúncia da revolução se de­ senvolve sob a bandeira da crítica da ideia de felicidade. Segundo Gentz, que­ rer pôr fim mediante transformações políticas a "toda miséria da vida", querer proporcionar ao homem nesta terra uma "redenção" e uma libertação dos "ce­ nários de dor" em que ele está inevitavelmente imerso, significa desconhecer "a natureza das coisas" e a "natureza do homem". 69 A difusão destes temas ideológicos conhece um ulterior desenvolvimento em seguida à revolução de 1 848 e à revolta operária do junho parisiense; na Alemanha, os nacional-liberais Zeller e Treitschke assimilam o socialismo ao "epicurismo", em busca do "mai­ or gozo possível", à "supervalorização dos bens materiais" e ao "materialismo mais ávido";70 na França, Tocqueville condena em bloco a filosofia "sensualista e socialista"; 71 na Itália, Rosmini troveja contra "a felicidade terrena e carnal", que constitui o fim ilusório das diversas tendências socialistas e comunistas. 72 É uma condenação que, em 1 878, encontra a sua consagração numa encíclica de Leão XIII; o que impele a humanidade "quase à sua extrema ruína" é, em primeiro lugar, "o ardente desejo da felicidade" terrena.73 Na vertente oposta, o movimento proto-socialista está empenhado em rei­ vindicar, nas palavras de Saint-Simon, a "felicidade social do pobre'',74 ou seja, nas palavras de Weitling, um autor repetidamente citado e criticado por Stirner,75 a "felicidade humana", a "felicidade terrena". Owen, por sua vez, proclama: "A FELICIDADE DE TODOS será a finalidade e o objetivo de toda parte desta reorga67 Renan, 1 947, vol. 1, p. 482. 68 Gumplowicz, 1883, p. 30 1. 69 Gcntz,

1836- 1838, vol. 1, pp. 8-9. Losurdo, 1983 a, cap. V, 3 . 71 Tocqueville, 1 951, vol. XV, 2 , pp. 107-8. 72 Tocqueville, 1 95 1 , vol. XV, 2, pp. 107-8. 73 ln Giordani, 1956, p. 30 (encíclica Quod apostolici muneris). 74 Saint-Simon, 1968, p. 64. 75 Stimer, 1979, pp. 279 e 323. 7° Cf.

nização em toda a extensão da sociedade".76 Também o jovem Marx sublinha que a revolução social passa através da busca da "felicidade real" com a consequente "crítica do vale de lágrimas" e da "felicidade ilusória" procurada no além. 77 Neste contexto, convém sobretudo citar um autor bem conhecido de Nietzsche, que é Heinrich Heine: "As massas não suportam mais com paci­ ência cristã a sua miséria terrena, querem, em vez disso, a felicidade nesta terra. O comunismo é, pois, um�consequência natural de tal concepção muda­ da do mundo e, de fato, difunde-se em toda a Alemanha". 78 Então, onde reside a originalidade de Nietzsche? Em primeiro lugar, no esforço de recuar o máximo possível na determinação das origens do ciclo da subversão. Não é suficiente remontar até o iluminismo. A visão otimista do mundo já está presente no Renascimento (VII, 280). Mas o que é Renascimento, por sua vez, senão a "época do despertar da antiguidade alexandrino-romana no século xv"? Já nos deparamos aqui com a "destruição do mito" e com a "monstruosa mundanização", que são o fundamento da busca da felicidade terrena para todos e do ciclo da subversão (GT, 23; 1, 148-9). Este ciclo tem agora uma duração bimilenar. E, dada a perspectiva da longa duração, toma-se sem sentido a costumeira distinção-contraposição entre inícios liberais da Re­ volução Francesa e sua radicalização plebeia e jacobina. Além de se desenvolver no plano temporal, o extremo radicalismo de Nietzsche se desenvolve também no plano por assim dizer espacial. Ou seja, não se trata apenas de perguntar pelas origens remotas da ruinosa ideia de felicidade, mas também as suas configurações e expressões múltiplas e desi­ guais. Sabemos que o otimismo é o fundamento também da ópera. Mais em geral, isso se manifesta - sublinha Nietzsche numa carta a Gersdorff de 28 de setembro de 1 869 "sob as formas mais bizarras", não só no "socialismo", mas também na "doutrina vegetariana" e até na prática da "cremação", em qualquer tentativa de reformar ou modificar a existência humana, desconhe­ cendo o seu caráter de "ruína completa" (B, II, 1 , p. 58). Poucos dias antes, ao sustentar, sob a influência de Schopenhauer, mas com uma consequencialidade estranha ao Mestre, as razões da dieta vegetariana, Nietzsche se encontrara com Wagner, que o tinha até acusado de "arrogância" por sua pretensão de pôr de novo em discussão, com sua recusa de qualquer "compromisso", a ordem natural inteira. 79 Depois de ter tentado resistir em Tribschen, o jovem filólogo -

1973 , pp. 255-6 e 225 ; o maiúsculojá está no texto de Owen. 1955, vol. 1, p. 379. 7x Heine, 1969-78, vol . V, pp. 197-8. 79 C. Wagner, 1976-82, vol. 1, p. 152. 76 ln Bravo,

77 Marx-Engels,

acabara claramente fazendo própria a argumentação do musicista e até radicalizando-a; como resulta da carta a Gersdorff, a doutrina vegetariana é uma das tantas manifestações da hybris otimista e revolucionária daqueles que pretendem mudar e subverter o mundo. É uma visão substancialmente partilha­ da pelo interlocutor e destinatário da carta, o qual, numa linha de continuidade com o "otimismo", coloca também o "socialismo", "domínio das massas, tirania da plebe, comunidade de bens, opressão de tudo o que é significativo no plano espiritual" (B, II, 2, p. 55). A penetração temporal e espacial c;lo mal iIJlpÕe um remédio à altura da situação. Não se pode satisfazer a crítica com esta ou aquela manifestação da ideia de felicidade . Schopenhauer já estava ciente da inadequação de tal atitu­ de . Também ele, como tantos outros, subl inha a relação entre hedonismo e comunismo, cuja filosofia pode ser sintetizada assim: "Gaudeamus igitur!"; ·'edite, bihite. post mortem nu/la voluptas".80 Mas além da agitação desse tema tradicional, assistimos agora à elaboração de uma visão do mundo abrangente, chamada a liquidar de uma vez por todas o otimismo revolucioná­ rio. É na Alemanha que dimensão política e dimensão filosófica do debate se entrelaçam mais estreitamente. Ao tomar posição contra o autor do O mundo como vontade e represen­ tação, Dühring denuncia o papel "particularmente inquietante" que o "pessimis­ mo" tem na "questão social": ele não só estimula uma atitude de espera e de resignação, mas legitima também uma eventual ulterior piora das condições de vida das massas populares . 81 Eis então a necessidade de confirmar, já no título de um livro, o '·valor da vida", e reforçá-lo ao procurar colocar-se à altura do desafio de Schopenhauer e, portanto, inserindo a reivindicação da felicidade numa filoso­ fia abrangente da história; assin1 se explica a formulação da tese para a qual "o aumento do valor da vida" constitui "a lei fundamental da história". 82 Nietzsche, que nos anos seguintes se empenhará em "estudar profunda­ mente" Dühring, começando a escrever longos trechos de sua obra (VIII, 1 29 s.), em julho de 1 866, ainda estudante universitário, atribui ao contrário a Schopenhauer o mérito de ter-lhe "tirado dos olhos as vendas do otimismo" (B, 1, 2, p. 140). Ao intervir no debate relativo à ideia de felicidade, O nascimento da tragédia já se coloca à altura filosófica à qual este debate eminentemente pol ítico fora elevado por Schopenhauer.

1976-82 c, vol. IV, pp. 1 82, 1 80 e 1 90 e Schopenhauer, 1 976-82 b, p. 592. Díihring, 1875, p. 348. Mi Díihring, 1 875, p. 339. Mo Schopenhauer, xi

1 O. Recuperação antipelagiana do cristianismo? Diante da maré otimista e socialista, o cristianismo, com o seu dogma do pecado original e da miséria humana irremediável que esse dogma explica e consagra, pode constituir uma barreira? Esta orientação é dominante, em nível europeu, na cultura conservadora ou liberal-conservadora. Na Itália, Manzoni identifica em Rousseau o P,Onto de partida da catástrofe da França; removendo a realidade do pecado original e esquecendo, por isso, que "uma felicidade verda­ deiramente perfeita" é "reservada para uma outra vida" e não pode ser buscada "na vida presente", o filósofo francês acredita p�der responsabilizar as "institui­ ções sociais viciadas" pela dor e pelo sofrimento e termina, na realidade, produ­ zindo aquele seu "terrível e deplorável discípulo" que é Robespierre e favorecen­ do o nascimento do próprio movimento socialista. 83 Não são apenas os ambientes declaradamente católicos ou cristãos que conclamam a religião dominante no Ocidente a servir de dique à maré revolucionária. Já nos anos anteriores a 1 789, Rivarol, um autor conhecido de Nietzsche (VIII, 594; XI, 20), indica no cristianis­ mo o instrumento indispensável para ensinar o povo "a suportar a sua desgraça" e a renunciar à ideia de ser "feliz''. 84 Mais tarde, Burckhardt apresenta "o conflito entre a visão do mundo procedente da Revolução Francesa e a Igreja, particular­ mente a católica", como "um conflito que tem suas bases mais profundas no otimismo da primeira e no pessimismo da segunda":ss A longa difusão desse tema ideológico é confirmada pela dura polêmica que contra ele trava o movimento revolucionário. Moses Hess troveja contra o "dogma infame da imperfeição de toda coisa terrena" definido como o "dogma da nossa vergonha", o "dogma da nossa escravidão". Também aos olhos de Heine ele constitui um elemento constitutivo essencial da ideologia da conser­ vação e da reação: "Quem crê no pecado original não negará também os privi­ légios hereditários". Já vimos Marx fundamentar o proj eto revolucionário de realização da "felicidade real" na radical "crítica do vale de lágrimas". Noutra ocasião, toma-se explícita a sua polêmica contra aqueles que pretendem justi­ ficar e eternizar a ordem existente, com sua carga de opressão política e social, remetendo à natureza decaída do homem, em consequência de sua queda fatal . "É suposição tautológica que, se a escravidão forma a natureza do ho­ mem, a liberdade contradiria tal natureza". 86 83 Manzoni, 1963, pp. 741 -4. M4 ln Groethuysen, 1964, pp. 348. 85 Burckhardt, 1 978 a, p. 1 50. 86 Marx-Engels, 1955, vol. 1, p. 49.

Portanto, de um lado e de outro, o tema do pecado original é percebido como uma trincheira de importância estratégica decisiva. Mas ela ainda é de­ fensável ou, na realidade, já foi conquistada pelo movimento subversivo? Logo depois da revolução de julho, um estadista de prestígio como Stein faz a ligação entre as novas perturbações com a difusão incessante da crença segundo a qual o homem estaria "livre do pecado original". Chamado a Berlim para dispu­ tar com a filosofia hegeliana..(ela própria critica duramente a "representação", ou seja, o "mito" do pecado original), Schelling, ao retomar o Kant teórico do "mal radical da natureza humana", sente-se obrigado a recordar amargamente que com esta doutrina o filósofo de Kõnigsberg "tomou-se imediatamente ini­ migo da multidão, cujo consenso por um certo período de tempo tomara seu nome popular". 87 Mais tarde, Engels sabe que pode contar com interlocutores atentos também nos ambientes cristãos quando celebra o cristianismo primitivo como um fenômeno progressivo exatamente porque nele não há �'traço algum do pecado original".88 Agora se entende a perplexidade e a oscilação de Schopenhauer. Este, por um lado, espera ainda uma possível reação da comunidade cristã contra o contágio moderno e otimista; por outro lado, já se põe em busca de uma possí­ vel alternativa. Em polêmica contra aqueles que desejariam edificar "o céu na terra", ele agita a verdade profunda contida, mesmo que seja "em forma místi­ ca", no relato bíblico do pecado original. Por aqui começa a dura polêmica contra todos os "otimistas, inimigos do cristianismo", isto é, da doutrina do pe­ cado original, contra todos aqueles que partem da premissa de que a terra pode ser um "lugar de felicidade", como se Deus tivesse criado o mundo para que o homem "se divertisse alegremente nele". Infelizmente, o tema da "culpa pro­ funda do gênero humano pelo próprio fato de existir" caiu no esquecimento na própria Igreja oficial, agora inclinada a um pelagianismo que, com sua confian­ ça na razão e no homem, continua a alimentar a vontade de viver e aplana a estrada para as desastrosas utopias fundadas na ideia de progresso. Felizmen­ te, para relembrar aos esquecidos a verdade da culpa e do pecado, ele provê, além do cristianismo da origem, também e sobretudo a tradição religiosa orien­ tal . 89 Assim está identificada a alternativa possível. Na esteira de Schopenhauer, também o jovem Nietzsche é da opinião de que, se há algo a salvar no cristianismo, é exatamente o mito do pecado original. Certa­ mente, no filólogo-filósofo, que já há alguns anos leu e assimilou a crítica de Strauss 87 Sobre isto cf. Losurdo, 1997 a, cap. IX, 7. 88 Marx-Engels, 1955, vol. XXI, p. 1 1 ; cf., também XXII, pp. 459 e 471. 89 Schopenhauer, 1976-82 e, vol. V, p. 306 e Schopenhauer, 1 976-82 b, p. 802.

ao cristianismo,90 que está todo cheio de admiração pela Grécia pré-socrática e que não hesita em exprimir-se com desinibida franqueza, não há espaço para a referên­ cia ortodoxa ao relato bíblico. Resta o fato da necessidade de opor o tema politica­ mente ruinoso da bondade original da natureza do homem, o tema caro a Rousseau, o autor seguido com atenção já nos anos de Pforta (B, 1, 1, p. 2 1 6). Em relação à visão "iluminista" da natureza, própria "do mundo neolatino" - a referência é sobre­ tudo ao Emílio (VII, 305 e GT, 3; 1, 37) - aos olhos do jovem Nietzsche resulta sem dúvida mais profundo o mito éristão do pecado original. Conhecemos as implicações socialistas da obra: tendo se imposto no cur­ so da luta contra "a velha representação eclesiástica do homem em si corrupto e perdido'', ela pode ser entendida como "o dogma de oposição do homem bom". Perseguindo as "perspectivas paradisíacas" do "'homem bom original "' ( Urmensch) e dos "seus direitos" (GT, 1 9; 1, 1 22-3), perdendo de vista "a terrível seriedade da verdadeira natureza" e divertindo-se com uma pressupos­ ta "realidade idílica", a obra se revela ao mesmo tempo vazia e perigosa; dela "não emana, absolutamente, a dor elegíaca de uma perda eterna" (GT, 1 9; 1, 125), aquela perda eterna que o relato bíblico descreve, de modo mítico e, no entanto, profundo, como consequência do pecado original. Por certos versos, Nietzsche parece, nesses anos, compartilhar do programa schopenaueriano de recuperação de um cristianismo depurado das incrustações pelagianas e, portan­ to, suscetível de ser aproximado do hinduismo. Nesse sentido, numa carta à irmã de 5 de novembro de 1 865, pronuncia-se pelo "cristianismo original", bem difü­ rente daquele "moderno, adocicado e desfocado" (B, 1, 2, p. 95). Alguns meses depois, voltando-se para Gersdorff, afirma: "Os verdadeiros hindus são cristãos" e "os verdadeiros cristãos são hindus" (B, 1, 2, p. 122). Fazendo eco a um tema claramente schopenhaueriano, um texto de fevereiro de 1 87 1 inclui os "santos" e o "santo no deserto", junto com os artistas, entre os "grandes 'indivíduos"' que compreenderam "o fim supremo da vontade do mundo" (VII, 354). Imediatamente evidente é o valor político desse cristianismo redescoberto voltando atrás com respeito à degeneração da modernidade. Graças a ele pode­ ria ser possível salvar a civilização, relegitimando servidão ou escravidão: "esta última não afetou de modo algum nem o cristianismo primitivo nem os germanos, e tanto menos depois foi por eles considerada condenável" (CV, 3; 1, 769). À modernidade e à louca pretensão dela de abolir a escravidão e a servi­ dão são agora contrapostas tanto a grecidade pagã como a Idade Média cristã. Por um longo período histórico, o cristianismo pode ter expresso "aversão pelo matrimônio e pelo Estado", além da escravidão, mas isto não tem nada a ver 90 Janz,

198 1 , vol. 1, p. 146.

com uma atitude abolicionista: "A emancipação é uma coisa totalmente dife­ rente" (VII, 267). Quer dizer, como ele soube acomodar-se com o matrimônio e o Estado, assim, depois de sua ascensão ao poder, o cristianismo não teve dificuldade por longo tempo em reconhecer e aceitar a realidade da escravi­ dão . Em polêmica contra a reivindicação, frequentemente eivada de temas evangélicos, do "retorno da propriedade à comunidade", ainda um texto de 1 879 repreenderá os "nossos socialistas" por serem, na realidade, profunda­ mente hostis à lição fundamental do cristianismo. Eles "hostilizam aquele judeu da antiguidade pelo fato de ter dito: não roubar. Segundo eles, o sétimo manda­ mento deve ser antes: não possuir" (WS, 285).

1 1 . O cristianismo como "religião erudita " e subversiva Uma agravante das dúvidas sobre o cristianismo é também a persuasão de que ele passou agora a fazer parte das "religiões eruditas" (Gelehrtenreligionen) (GT, 1 8; 1, 1 1 7), isto é, das religiões ligadas a um con­ teúdo positivo dogmaticamente fixado, incapazes de desenvolvimento e de re­ novação, obrigadas a uma defesa que se torna cada vez mais dificil. A catego­ ria aqui utilizada leva a pensar na "religião erudita" (gelehrte Religion), e "confiada ao cuidado dos eruditos" (Gelehrten), objeto da crítica de Kant, que a ela contrapõe a "religião natural", fundada na "razão humana universal", ou sej a, a "religião puramente moral". A atitude de Nietzsche é bem diferente. Por trás está agindo a dicotomia cara a Wagner entre cultura autêntica, que aprofunda as suas raízes no povo e que se toma capaz de unir em torno de si a comunida­ de, e pseudocultura reduzida à ocupação ou ao divertimento solitário de intelec­ tuais sem raízes (infra, cap. 4, § 1). No entanto, mesmo empenhado em celebrar a incessante criatividade do mito, na Religião dentro dos limites só da religião, Nietzsche pode ter lido a confi rmação das crescentes dificuldades encontradas pelo cristianismo e pela Igreja cristã: "a profissão de fé na história sagrada", o dever, imposto por uma "religião erudita", de crer, como numa indiscutível verdade histórica, em relatos que remetem para um tempo assaz remoto, tudo isto - observa Kant - "oprime duramente as pessoas conscienciosas", as quais, ao contrário, se sentiriam li­ bertadas se pudessem aderir livremente a um conteúdo, a partir de uma inves­ tigação racional. 91 Mas, do ponto de vista de O nascimento da tragédia, não se ganha nada ao ir da história à razão. Uma religião que confia sua sorte a 9 1 Kant,

1900, vol. VI, pp. 163-7.

uma ou a outra se expõe ao ácido corrosivo da investigação filológica e filosó­ fica e necessita, então, da defesa afanosa dos seus exegetas e dos seus apologetas, tomando-se exatamente uma "religião erudita", incapaz de inspirar e mover uma comunidade no seu conjunto e, portanto, destinada a exaurir-se: Esta é a maneira pela qual as religiões costumam extinguir-se: quando as p roposi­ ções núticas que formam a base de uma religião chegam a ser sistematizadas, pelo intelecto e pelo rigor de umdogmatismo ortodoxo, como uma suma definitiva de acontecimentos históricos, e quando se começa a defender com inquietação a credibilidade dos mitos, impedindo que eles naturalmente evoluam e se multipli­ quem; quando, numa palavra, desaparece o sentimento do mito para dar lugar à tendência para procurar os fundamentos históricos da religião (GT, 10; 1, 74).

É uma atitude não diferente daquela expressa pelo amigo Rohde, o qual, ao escrever a sua segunda resenha para O nascimento da tragédia e inspi­ rando-se neste, coloca-se esta pergunta retórica: Quem [pode ser] tão louco de querer curar o mal do tempo com os remédios de fórmulas religiosas dos séculos passados? Verdadeiramente, a comuni­ dade, cada dia mais reduzida, daqueles que com apreensão olham para esse trabalho e para o seu ilusório brilho, pode comparar-se com aqueles gregos no remoto Ponto, dos quais o retórico Dione Crisóstomo conta: isolados entre estirpes cíticas hostis e já pela metade tomados bárbaros nos costu­ mes e nos usos, nos eternos versos de Homero se revigoram nas antiquíssimas imagens de uma magnificência poética há muito tempo desaparecida, mas de resto, em dolorosa renúncia levavam a culpa de terem nascido tarde.92

Os bárbaros citas são aqui os modernos, aos quais o cristianismo está já amplamente subjugado . Nietzsche se exprime em termos análogos: A respeito da religião, observo um esgotamento, cansamos-nos dos símbo­ los carregados de significado. Todas as possibilidades da vida cristã, as mais sérias e as mais desordenadas, as mais inócuas e as mais meditadas, foram todas experimentadas, é tempo de imitar ou de fazer alguma coisa diferente. Até o escárnio, o cinismo, a hostilidade aí se gastaram - vê-se como uma superficie de gelo em tempo de degelo, em toda parte o gelo está sujo, despedaçado, sem brilho, cheio de poças, perigoso. Então me parece conveniente apenas uma abstenção cheia de cuidado, perfeitamente deco­ rosa: de tal modo presto homenagem à religião, embora ela esteja moribunda [ . ]. O cristianismo é deixado à mercê da história crítica (VII, 7 1 1 ). ..

92 Rohde, 1 972 b, p. 207.

É um fragmento do verão-outono de 1 873. Uma redação posterior parece ter deixado qualquer dúvida para trás: mais que moribundo, o cristianismo já está morto, e deve ser entregue não só à "história crítica", mas também à "autópsia" (VII, p. 75 1). Não faz sentido, portanto, esperar pela recuperação antipelagiana de uma religião em agonia ou até em decomposição. Por outro lado, a contaminação pelagiana pode realmente ser considerada um simples incidente na história do cristianismo? Ele está verdadeiramente em condições de conter a maré revolu­ cionária ou pode acabar por engrossá-la ulteriormente? Se Marx sustenta que na religião (cristã) acaba exprimindo-se, apesar de tudo, o "protesto contra a miséria real" (infra, cap . 14 § 2), uma consciência análoga começa a surgir na vertente dos inimigos da revolução, ainda que com um juízo de valor diferente e oposto. Nas conversas privadas, Schopenhauer se exprime com franqueza maior que nos escritos destinados ao público. Ele não se limita então a condenar o cristianismo pelagianizado e espúrio dos seus modernos representantes, mas mira diretamente a figura de seu fundador: ele é "apenas um demagogo" ou "um demagogo judeu".93 Abandonado o tom compungido que mostra em públi­ co, na casa de Wagner, Gobineau não esconde a própria hostilidade a propósito daquela religião fundamentalmente plebeia e hostil às "grandes personalida­ des" que é o cristianismo (infra, cap . 23 § 3). No que diz respeito a N ietzsche, os seus julgamentos ainda não tomaram a aspereza dos anos seguintes. Todavia, nele já há suficiente clareza. Estamos na presença de uma religião que aparece já contagiada pelo iluminismo e pelo "otimismo", de modo a eliminar tudo o que aí existe de "profundo, de esotérico, de acessível só ao indivíduo cheio de talento". Com as suas tendências demo­ cráticas e niveladoras, o cristianismo acaba configurando-se como uma espé­ cie de "democracia ética" (VII, 45); pode-se até perguntar se ele não é "hostil nas suas raízes a toda forma de civilização (Kultur) e, portanto, necessaria­ mente vinculado à barbárie" (VII, 244).

1 2. Eva, Perséfone e Prometeu: a reinterpretação do pecado original Agora está claro. A originalidade de Nietzsche não reside no diagnóstico da doença revolucionária, a qual, aliás, pondo sob acusação a ideia de felicida­ de, colhe um aspecto ideológico essencial do ciclo revolucionário. A novidade é 93 Schopenhauer,

1971, p. 105.

que agora uma anamnese que vem de muito longe se toma parte integrante desse diagnóstico. Eis que agora os espíritos começam a dividir-se também na indicação do remédio. Ainda há sentido em continuar a esperar que o cristianis­ mo possa debelar o flagelo que se alastra há mais de dois milênios? Se até as igrejas cristãs parecem empenhadas em deslegitimar a situação de subversão progressista mediante a referência ao mito do pecado original, resta o fato de que a doença, que começou a manifestar-se em terra grega já antes da chega­ da do cristianismo, continuou a crescer apesar do seu triunfo. Talvez seja preciso olhar em tomo em busca de uma alternativa mais válida e mais eficaz. Já antes de Nietzsche, Schelling, além do relato bíblico, remete a temas e mitos extraídos da antiguidade clássica. Ao condenar as tentativas revolucionárias de realização do "verdadeiro Estado", as lições de Stoccarda invocam a autoridade de Platão, a quem atribuem o mérito de ter amadurecido a consciência da "maldição original" que pesa sobre o homem e sob re as instituições políticas.94 Mas é sobretudo significativo o apelo da Filosofia da mitologia a Perséfone, a virgem inocente violada por Hades e arrastada aos ínferos, que representa "a infelicidade, a primeira infelicidade, a queda original";95 e esta infelicidade parece agora ainda mais inevitável porque não é o resultado de uma culpa moral, como no caso de Eva e Adão. O significado também político deste discurso não escapa aos contemporâneos. Ao mito de Perséfone e da insuperável "infelicidade original", caro a Schelling, mas para o qual mais tarde o próprio Nietzsche acena (M, 130), Rosenkranz contrapõe o mito de Prome­ teu, que surge - como no jovem Marx, embora de uma forma menos combativa e com tons mais reformistas que revolucionários - como símbolo do progresso da humanidade. 96 Mas, também a este último mito Schelling se volta, a partir, porém, de preocupações políticas e ideológicas bem diferentes: "A sorte do mundo e da humanidade é por natureza algo trágico". Contra qualquer progressismo super­ ficial, a punição infligida por Zeus demonstra a carga de "força e violência (Kratos e Bia)" inerente à história: "o grande espírito de É squilo" não perde nunca de vista esse "eterno elemento trágico" e, portanto, também não quer banir do Estado o elemento da terribilidade".97 Vão é, então, o sonho de uma comunidade política conciliada e fundada na igualdade e no reconhecimento 94 Schelling, 1856- 1861, vol. VII, pp. 461-62. ' 95 Schelling, 1856- 1861, vol. XII, p. 160. 96 Rosenkranz, 1969, pp. VI-VII. 97 Schelling, 1856-1861, vol. XI, pp. 486-7.

recíproco. O terrível suplício infligido a Prometeu realiza uma ação sustentada mesmo por uma profunda motivação ética: "É uma contradição que não deve­ mos eliminar, ao contrário, devemos reconhecê-la e encontrar apenas a sua justa expressão". 98 A leitura que Nietzsche faz desse mito não é diferente; ele alerta a tomar nota, sem subterfúgios da "indissolúvel contradição", da "contradição no cora­ ção do mundo", do "rochedo" que inevitavelmente pesa sobre toda civilização. No franco e másculo reconhecimento desta inevitabilidade reside a clara supe­ rioridade de tal mito em relação ao relato bíblico que, ao colocar a queda na conta do "embuste mentiroso" da serpente, ou seja, da "curiosidade'', "seducibilidade" e "sensualidade" da mulher, se revela propenso a "remover fraudulentamente" a "desgraça na essência das coisas" (GT, 9; 1, 69-70). O relato bíblico está todo centrado no tema de uma queda acidental e redimível . A natura lapsa, resultado da catástrofe, não parece um dado insuperável . A história do cristianismo está marcada pela recorrente manifestação de tendên­ cias propensas a sustentar que a salvação possa encontrar o seu início já nesta terra; assim se explica o surgimento de movimentos messiânicos revolucionári­ os. É a confi rmação do fato de que o relato bíblico não é propriamente uma verdadeira "tragédia pessimista" (GT, 9; 1, 69) . Mas uma outra razão leva Nietzsche a preferir o mito de Prometeu. Para esclarecer, podemos partir da áspera crítica que Marx faz de Malthus. Este "re­ conhece na miséria humana a punição do pecado original e em geral tem neces­ sidade de 'vale de lágrimas terreno"',9') por outro lado, o "princípio da popula­ ção" teorizado por ele (a inadequação perene e não eliminável dos recursos em relação à população) é uma espécie de "pecado original econômico disfarça­ do",100 o qual, porém, apresenta características singulares. Dir-se-ia que ele atin­ ge de modo exatamente seletivo: enquanto legitima a miséria da classe operária, não contém limites para a riqueza e o gozo das classes exploradoras; para estas últimas - observam ironicamente as Teorias sobre a mais-valia Malthus con­ sidera oportuno e indispensável "adoçar a estadia no vale de lágrimas". 1 º1 O pecado original cristão parece fazer a sua maldição pesar sobre o mundo enquanto tal, condenando todos os homens à renúncia, a uma vida ganha median­ te o trabalho e o suor do rosto. Formulada em termos tão gerais, esta condenação começa a ser percebida como um estorvo por causa não só do processo de -

98 Schelling, 1 856-186 1 , vol. XI, p. 485. 99 Marx-Engels, 1955, vol . XXVI, 2, p. 1 10. 100 Marx-Engels, 1955, vol . XXIII, p. 645 nota. 101 Marx-Engels, 1955, vol. XXVI, 2, p. 1 1 0.

secularização e do aumento da riqueza social global (com a rápida obsolescência dos ideais ascéticos), mas também de um desenvolvimento industrial que acentua a polarização da riqueza e da miséria. Não é mais a difusa limitação dos recursos próprios de uma sociedade fundamentalmente agrária; é o entrelaçamento de opulência e privação que deve ser agora justificado, um entrelaçamento que se toma sempre mais vistoso e cada vez mais é percebido como intolerável pelas massas populares, à medida q�e se desenvolvem as forças produtivas. A leitura que Nietzsche faz do mito de Prometeu pretende responder exa­ tamente a esse desafio. É a ')ustificação do mal humano", do preço terrível que a civilização comporta. O significado do mito pode ser sintetizado nesta "fórmula abstrata": "Tudo o que existe é justo e injusto, e em ambos os casos é igualmente justificado" (GT, 9; 1, 69 e 7 1 ). Ou seja, para dizer desta vez com a linguagem mais explícita de um "prefácio" para um "livro não escrito" e não conhecido do grande público, "o abutre que devora o figado do fautor prometeico da cultura" revela uma "verdade" profunda e inevitável: "a escravidão entra na essência da civilização". Não se pode fugir dessa maldição, e ela pesa inexoravelmente, mas não de modo indiferenciado: "a desventura dos homens que vivem de trabalho e de privação deve ser ainda aumentada; para tomar possível que um restrito nú­ mero de homens olímpicos produzam o mundo da arte" (CV, 3; 1, 767).

1 3. "Serenidade grega ", "sensualismo " e socialismo Neste ponto talvez fique mais claro o alvo da polêmica contra a "serenidade grega". O que se visa não é tanto a leitura de Winckelmann, agora remota por causa, seja da distância temporal, seja porque está separada em relação ao pre­ sente pelos conflitos e as paixões de um longo ciclo revolucionário que a tomou totalmente obsoleta. Outro alvo é o do questionamento do "conceito de 'serenida­ de grega'" cara a "escritores sensuais" (DW, 2; 1, p. 56 1). A referência é em primeiro lugar a Heine, explicitamente citado noutra ocasião e considerado culpa­ do de ter teorizado e celebrado uma presumida "serenidade grega", entendida como sinônimo de "conforto (Behagen) sem perigo" e de "sensualismo cômodo" (VII, 35 1 -2). De fato, em contraposição com o cristianismo, o autor objeto dessa crítica celebra de modo explícito e repetido a griechische Heiterkeit ou hellenische Heiterkeit, cuja redescoberta no Renascimento e na modernidade assinala a libertação ou a possibilidade de libertação de um ')ugo milenar" . 102 102

Heine, 1 969-78, vol. III, pp. 370 e 684-5 e vol. VI, 1 , p. 367.

No entanto, por outro lado, Heine parece partir de pressupostos análogos àqueles de Nietzsche. Também ele é da opinião que ó cristianismo está agora moribundo: Desde o momento em que uma religião pede ajuda à filosofia, o seu fim é inevitável. Ela procura defender-se, mas com todas as suas tagarelices aftm­ da sempre mais na sua ruína. Como todo absolutismo, a religião não deve ser justificada [... ]. Ape1ias a religião publica um catecismo arrazoado, apenas o absolutismo político publica um diário oficial - no fim, ambos são vizinhos. 103

Somos imediatamente levados a pensar no diagnóstico de O nascimento da tragédia sobre a doença que ameaça o cristianismo enquanto "religião emdita". Mas, em Heine, para provocar o mal, ou melhor, a morte, intervém outro fator, talvez ainda mais relevante. Isto está esclarecido numa carta a Heinrich Laube de l O de julho de 1 83 3 : A religião espiritualista que dominou até agora era benéfica e necessária, até que a maior parte da humanidade vivesse na miséria e devesse consolar-se com a religião celeste. Mas desde que, graças aos progressos da indústria e da economia, tomou-se possível arrancar os homens da sua miséria material e fazê-los felizes na terra, desde então . . O senhor me compreende. E as pessoas nos compreenderão se lhes dissermos que, em consequência disso, devem comer todo dia carne de boi e batatas e trabalhar menos e dançar mais. Pode estar certo disto, os homens não são burros. 104 .

No entanto, a morte do cristianismo coincidiria então, segundo Nietzsche, com a morte da civilização, a qual não pode passar sem escravos ou sem uma classe de homens destinados ao sacrifício. Neste ponto, surge com clareza o contraste entre os dois autores. Sim, ambos pensam que o cristianismo está des­ tinado a ceder o lugar a uma espécie de renascimento pagão ou neopagão. Mas como é diferente o quadro político e o contexto de filosofia da história, no qual esses acontecimentos são colocados! Se Nietzsche olha, de algum modo, com respeito o tema bíblico do pecado original, este representa, para Heine, o compo­ nente mais repugnante, isto é, as "partes pudendas" da religião dominante no Ocidente que, agitando o espantalho dessa remota e irremediável queda, negaria aos homens, e em particular às massas deserdadas, o direito à felicidade terrena. 1 05 Agora, estamos na véspera de uma virada radical e benéfica: 103 Heine,

1 969-78, vol. III, p. 578. l 969-78, vol. III, p. 884. 105 Hcine, 1 969-78, vol. III, p. 577. 1º4 Heinc,

Falarei daquela religião cujos primeiros dogmas anunciam a danação da carne, e que não apenas atribui ao espírito o predonúnio sobre ela, mas pretende mauí-la completamente para glorificar o próprio espírito; falarei daquela reli­ gião cuja missão não natural introduziu no mundo o pecado e a hipocrisia, enquanto até as mais inocentes alegrias dos sentidos, com a danação da carne, se transfonnaram em pecado, de modo que a impossibilidade de ser puro espírito devia neces_$élriamente gerar a hipocrisia; falarei daquela religião que, postulando a rejeição de todos os bens mundanos, e a imposição de uma humildade canina e de uma paciência angeliêal, tomou-se o sustentáculo mais seguro do despotismo. Hoje os homens revelaram a essência dessa religião, não se deixam mais encantar pelas promessas celestes, sabem que a matéria contém uma parte de bem e não é toda do demônio, e reivindicam os prazeres terrenos, este belo jardim divino, nossa herança inalienável. Exatamente por­ que hoje compreendemos perfeitamente as consequências daquele espiritualismo absoluto, temos motivos para julgar a concepção crisi.:i-católica do mundo como tendo chegado à sua exaustão. Já que toda época é uma esfinge que desaparece no abismo assim que seu enigma estiver resolvido. 1 06

Vimos Nietzsche condenar Heine como "sensualista". E sabemos que, na cultura liberal e conservadora do tempo, sensualismo é, em última análise, sinô­ nimo de social ismo . Assim também em Heine, mas com juízo de valor diferente e oposto. A categoria de "sensualismo" tem agora um significado univocamente positivo. 107 É sinônimo de "reabilitação da matéria", 108 de "reabilitação da car­ ne", 109 de reivindicação de felicidade terrena para todos, em primeiro lugar, para aqueles que há tempo estão excluídos dela: Sim, digo fonnalmente, aqueles que virão depois de nós serão mais belos e mais felizes. Dado que creio no progresso, creio que a humanidade está desti­ nada a ser feliz, e, portanto, cultivo um conceito da divindade mais alto que toda aquela gente piedosa que delira acerca do destino de dor do homem. E gostaria de estabelecer já nesta terra, sob o patrocítúo de instituições políticas e industriais livres, aquela felicidade que nos deveria ser dada, segundo a opinião dos devotos, só no paraíso, no dia do juízo universal. 1 10

106 Heine, 1 969-78, vol. III, p. 362. 1º7 Heine, 1 969-78, vol. 111, pp. 533-4. 108 Heine, 1 969-78, vol. III, p. 568. 109 Heine, 1 969-78, vol. III, p. 402. 1 1 º Heine, 1969-78, vol. III, p. 5 1 9.

No modo de ver dos sansimonistas, a história do Ocidente é lida como "a luta de longa data entre espiritualismo e sensualismo, sendo que o último, depois de longa opressão, procuraria reconquistar os seus direitos". 1 1 1 Rotulado como "sensualista", Heine não hesita em rotular, por sua vez, os seus adversários como espiritualistas: Deixando, por isso, o nome de espiritualismo para a ímpia (frevelhaft) arro­ gância do espírito que, áspirando a uma glorificação exclusiva, procura pisar, ou pelo menos condenar, a matéria - e o nome de sensualismo à oposição que, movendo-se em direção contrária, tende a uma reabilitação da matéria e reivindica aos sentidos os seus direitos inalienáveis, sem negar os do espí­ rito, ou antes, sem negar a sua supremacia. 1 1 2

Entregue à história, a ideia de um Deus sofredor como o Deus cristão, o qual morre na cruz, procura empenhar-se na realização da felicidade terrena: "quem vê o seu Deus sofrer, suporta mais facilmente as próprias dores"; o homem moderno não pode encontrar satisfação numa religião que não garante "mais nenhuma alegria, mas só consolação". 1 13 Um alegre sentimento neopagão da vida é chamado agora a informar a existência terrena e as relações político­ sociais. Volta a ter alguma atualidade "aquela antiga serenidade grega, aquela alegria vital, que parecia satânica aos cristãos".114 Privando a religião e a ide­ ologia dominante do tema do pecado original, o neopaganismo se torna um momento da agitação socialista e revolucionária. O alvo da polêmica de Nietzsche é este: a seus olhos, uma visão que ignore a "horrenda profundeza" como fundamento da beleza e serenidade gre­ ga, permanece presa não só à "pura superficie", mas também ao "presente" (VII, 352): quer dizer que ela própria está contagiada pela subversão moderna que se deve, ao contrário, represar e bloquear. Compreende-se, então, a aspe­ reza do(; tons: A grecidade é a palavra resolutiva para todos aqueles que buscam modelos brilhantes para a sua éúirmação consciente da vontade; por isso, finalmente, saiu das mãos de escritores sensuais o conceito de "serenidade grega", de maneira que, de modo irreverente, uma vida dissoluta de vagabundos ousa justificar-se, ou melhor, elevar-se, com a palavra "grego".

111

Hcine, 1 969-78, vol. III, p. 77 1 (e um trecho tirado do manuscrito).

1 1 2 Heine, 1969-78, vol. III, p. 556. 1 1 3 Heine, 1969-78, vol. II, p. 493.

1 14 Heine, 1 969-78, vol. III, 684.

Em todas essas representações que, de tudo o que é mais nobre, se desviam para o que é mais vulgar, a grecidade é entendida de modo por demais rude e simples, e, em certo sentido, foi representada segundo a imagem de nações não ambí­ guas, por assim dizer, unilaterais (por exemplo, os romanos) (DW, 2; 1, 561).

Quer dizer, a grecidade de Heine é romana ou, mais propriamente, neolatina; não esqueçamos que os novos romanos são os franceses, os protagonistas do ciclo revolucionário que culminou na Comuna, ao qual agora se trata de pôr um fim de uma vez para sempre graças à vitória alemã e à volta da grecidade trágica.

1 4. Apolineo, dionisíaco e questão social Assim, de O nascimento da tragédia e dos escritos contemporâneos surge um tema que, à primeira vista, parece diferente e oposto. Eis que inespe­ radamente nos deparamos, na descrição de uma "comunidade superior" dionisíaca, com características singulares: "Ora o escravo é homem livre, ora se rompem todas as delimitações rígidas, hostis, que a necessidade, o arbítrio e a ·moda descarada' estabeleceram entre os homens. Agora, no evangelho da harmonia universal, alguém se sente não só reunido, reconciliado, fundido com o seu próximo, mas verdadeiramente uno com ele" (GT, 1 ; 1, 29). Ou seja, para citar uma versão diferente deste texto, "fazem desaparecer todas as divisões de casta, estabelecidas entre os homens pela necessidade ou pelo arbítrio", se juntam em unidade "o nobre e o homem de origens baixas" (DW, 1 ; 1, 555). A partir disso, não faltaram os intérpretes que se sentiram autorizados a sugerir uma leitura em perspectiva mais ou menos "revolucionária" ou subver­ siva do jovem Nietzsche. Este, porém, insiste repetidamente sobre a estranhe­ za à vida política propriamente dita da esfera da qual aqui se trata: "o coro ditirâmbico é um coro de transformados, no qual o passado civil e a posição social são completamente esquecidos; eles são os servidores sem tempo do seu deus, que vivem fora de qualquer esfera social" (GT 8; 1, 6 1). Ainda mais explícita é uma anotação manuscrita: ao contrário do "gênio apolíneo", que tem uma dimensão "militar" e "política", "o gênio dionisíaco não tem nada a ver com o Estado" (VII, 322) . Ou melhor, não tem nada a ver com o "mundo da realidade cotidiana", ou, se tem alguma relação com ele, a tem somente no sentido de que visa a fazê-la esquecer, imergindo-o num "elemento letárgico". Longe de querer contestar e anular "as habituais barreiras e os habituais limites da existência", o periódico "abismo do esquecimento" das festas dionisíacas serve para torná-los mais toleráveis (GT, 7; 1, 56) e, portanto, desenvolve um

função de consolidação de um ordenamento e de uma civilização que, inevita­ velmente, comportam terríveis sacrificios. E, de fato, Nietzsche se pergunta se na Alemanha há alguma coisa de ànálogo às "festas orgiásticas de Dionísio" e julga poder localizá-la, além de em certas procissões medievais, as quais "pas­ savam de cidade em cidade cantando, saltando e arrastando consigo uma mul­ tidão enorme e sempre crescente ", também na "festa carnavalesca" (Fastnachtspiel) (GMD, 1, 521 e 5 1 6). A mistura das categorias, dos papéis sociais, das individualidades singulares, transformadas e fundidas numa festa unânime, que ocorre em tal ocasião, tudo isso não põe em discussão as hierar­ quias sociais e políticas da vida comum, no âmbito da qual a individualidade tem uma colocação determinada e estável, que não pode ser mudada e trocada por outra pelo jogo. O nascimento da tragédia institui uma distinção entre "impulsos dionisíacos" e impulsos "políticos"; só estes últimos têm por objeto a conquista do poder, da honra, da riqueza, enquanto os primeiros têm a ver com o êxtase, entendido no sentido etimológico do termo, como saída de si e anulação e es­ quecimento da própria singularidade (GT, 2 1 ; 1, 1 33-4). Trata-se agora de per­ guntar-se sobre o objetivo significado político-social dessa distinção de esferas. Na esfera apolínea, a arte e a beleza ocultam com seu esplendor a carga de sofrimentos que a civilização comporta. Na esfera dionisíaca, ela está terrivel­ mente presente, mas não é uma classe social determinada que a sofre nem tampouco um indivíduo determinado; é "o uno original", aquele que "eterna­ mente sofre e está cheio de contradições" (GT, 4; 1, 38); é a "unidade metafisica de todas as coisas" (BA, 4; 1, 7 1 6) . É nessa esfera, onde está ausente o principium individuationis, que se desenvolve a "comunidade superior" dionisíaca já vista. Mas ela é tão pouco política que não é sequer limitada ao homem; mais que "geralmente humana'', ela é "universalmente natural" (DW, 1 ; 1, 555). E assim, "sob o feitiço do dionisíaco não só se estreita o laço entre homem e homem, mas também a natureza alienada, hostil ou subjugada celebra de novo a sua festa de reconciliação com o seu filho perdido, o homem". Agora o indi­ víduo se dissolveu numa "misteriosa unidade original" que abraça não só os homens, mas também os entes do mundo animal e natural, todos unidos e fun­ didos "no evangelho da harmonia universal" (GT, 1 ; 1, 29-30). Por trás está agindo a leitura de Schopenhauer. Não por acaso, numa carta a Gersdorff de 7 de novembro de 1 8 70, Nietzsche comunica ter escrito um ensaio "sobre a concepção dionisíaca do mundo" que analisa a "antiguidade grega" procurando captá-la a partir do "nosso filósofo" (B, II, 1 , p. 1 55). Leia­ mos agora O mundo como vontade e representação: além da esfera dos fenômenos e das aparências, além do véu de Maia, deixa de vigorar o

principium individuationis, a vontade, essência única e indivisa, "está fora [ . . ] de qualquer pluralidade, embora as suas manifestações no tempo e no espaço sejam inumeráveis".115 Compreendemos agora que "a angústia infligida aos outros ou pessoalmente sofrida, a malvadeza e a dor atingem para sempre a essência una e idêntica, mesmo se os fenômenos, nos quais esta e aquela condição se manifestam, existem como indivíduos distintos". 1 16 Como por en­ canto, os contrastes e as desarmonias próprias de um mundo marcado pelo principium individuationis se aplacam na "quietude do gênero" (Ruhe der Gattung). 1 1 7 É um gênero que abarca a natureza no seu conjunto, a totalidade do real: neste âmbito não há lugar para protestos e recriminações de indivíduos, reabsorvidos agora, no mundo das essências, numa unidade sem rachaduras. E o dispositivo ideológico ao qual também o j ovem Nietzsche recorre. A seus olhos, S.chopenhauer é educador também por ter sabido evocar a figura "do santo, no qual o eu está inteiraJ11ente fundido e a sua vida sofredora não é mais, ou quase não mais, sentida individualmente, mas como um sentimento de igualdade, de comunhão e de unidade ( Gleich-Mit und Eins-Gefühl) de todos os seres vivos". Acende-se o "mais deslumbrante fogo amoroso, à cuja luz não compreendemos mais a palavra 'eu'" (SE, 5 ; 1, 382). Esta transfiguração e esta identificação empática com o todo torna tolerável aquele sacrificio de inu­ meráveis indivíduos sem o qual a civilização não é pensável . Às vítimas imola­ das no altar da civilização são, assim, lembrados "novos deveres" que "não são os deveres de um isolado"; não, "com eles se pertence antes a uma comunida­ de potente ( Gemeinsamkeit), que não é mantida junta por formas e leis exter­ nas, mas por um pensamento fundamental'', pela preocupação de promover a produção do gênio nas suas diversas configurações (SE, 5 ; 1, 3 8 1 -2). A visão dionisíaca do mundo ousa "olhar de frente os horrores da existên­ cia individual'', mas, ao mesmo tempo, nos impele a captar a "eterna alegria da existência", colhendo-a, todavia, "não nas aparências, mas por trás das aparên­ cias". Um mundo dominado pelo principium individuationis contém inevita­ velmente a divisão entre escravos e senhores, e, portanto, a condenação de uma casta a uma vida de privações e de sofrimentos; até os mais afortunados são obrigados a "reconhecer que tudo o que nasce deve estar pronto para um fim doloroso". Mas se, além dessa esfera das aparências, atingirmos "o próprio ser primigênio", a "vontade do mundo" na sua "transbordante fecundidade" e "superabundância", não obstante as perdas que ela continuamente comporta, .

1 1 5 Schopenhauer, 1 976-82 a, pp. 1 73-4. 1 16 Schopenhauer, 1 976-82 a, p. 455. 11 7 Schopenhauer, 1 976-82 b, p. 6 1 7.

então o quadro muda de modo radical: mesmo sob o "aguilhão" dos "tormen­ tos'', podemos nos tomar "uma só coisa com a incomensurável alegria original da existência". Fica estabelecido que "nós vivemos de modo feliz, não como indivíduos, mas à medida que somos aquele único vivente, com cuja alegria geradora estamos fundidos" (GT, 1 7; 1, 1 09). O tigre e a pantera se agacham aos joelhos do homem dionisíaco (GT, 20; 1, 1 3 2): não que eles tenham tomado­ se cordeirinhos inócuos e inofensivos; apenas que a sua agressividade é reco­ nhecida, inserida e, portanto, aceita na economia dionisíaca do uno-todo. Neste nível, o sujeito da dor, da felicidade e da culpa não é o indivíduo concretamente determinado, mas o Uno originário. É a partir de tais pressupos­ tos que, por ocasião da Comuna de Paris, Nietzsche se recusa a pôr "o crime de uma luta contra a civilidade" exclusivamente na conta dos revoltosos: "aqueles ímpios" são, na realidade, "portadores de uma culpa universal" (allgemeine Schuld), que envolve todo o passado junto com o presente. Nesta declaração se quis, às vezes, ler uma espécie de indulgência ou de compreensão pelas razões dos partidários da comuna, mas, na realidade, na mesma carta, à qual aqui se faz referência, é duríssima a polêmica, como tínhamos visto, contra a "cabeça de hidra internacional". Mais que urrí juízo moral e político, a atribui­ ção de uma "culpa universal" é uma consideração de caráter metafisico, na base da qual, schopenhauerianamente, há "identidade entre existir e ser culpa­ dos" (CV, 5 ; 1, 785). Agora se compreende porque, nos apontamentos preparatórios de O nas­ cimento da tragédia, as reflexões sobre o "homem trágico" se entrelaçam estreitamente com as reflexões relativas à "solução da questão social" (VII, 1 2 1). Para estimular umas e outras está o "medo do socialismo" (VII, 4 1 2). Para este movimento, em muitas ocasiões, tinham chamado a atenção de Nietzsche as cartas do amigo Gersdorff, que lhe recomendava vivamente o estudo da "economia política" e, particularmente, a leitura de Lassalle: só assim se podia compreender adequadamente "a chamada questão social", o surgimento do "socialismo" e do "comunismo'', o crescente desassossego do "proletaria­ do", "esta peste de toda civilização superior" (B, 1, 3, pp. 224 e 229). Em tais situações de grave perigo, "a única salvação frente ao socialis­ mo" pode ser constituída, como sabemos, pela visão "séria", "trágica" ou "dionisíaca" do mundo. Remeter à esfera numênica do Uno originário, consti­ tuída à base da transcendência em relação a toda determinação e caracteriza­ ção, serve para desarmar a questão social, a carga de sofrimento suportado por uma classe e por indivíduos determinados : ''Na música e na lírica dionisíaca, o homem quer exprimir-se como ente genérico (Gattungswesen) [ . . . ], toma-se homem da natureza entre homens da natureza" (VII, 66). Convém confrontar

este trecho com outro: "quem quer que tenha um olhar mais profundo" reco­ nhecerá as "mentiras transparentes" implícitas nos "presumidos ' direitos iguais para todos ', nos ' direitos fundamentais do homem' , do homem como ente ge­ nérico (des Gattungswesens Mensch), na dignidade do trabalho" (VII, 338). Portanto, a categoria de "ente genérico" que, como se sabe, exerce um papel de primeiro plano no projeto comunista do jovem Marx, parece ser ora afirma­ da ora negada por Nietzsche. Na realidade, como surge com clareza do segundo trecho, agora já há consciência plena do fato de que na categoria de gênero e de ente genérico ressoa o eco profundo da Revolução Francesa, da reivindicação da égalité e da proclamação dos direitos do homem enquanto tal. Já a partir dos anos da juventude, Nietzsche recorre a uma estratégia resultante de dois movimentos à primeira vista divergentes mas, na realidade, perfeitamente convergentes na obra de destruição de uma categoria tão carregada de ecos revolucionários. Em nome da unicidade irrepetível de qualquer realidade individual, o pathos nominalista dissolve e reduz aflatus voeis todo conceito geral, a começar pelo conceito de homem enquanto tal (infra, cap. 8 § 4 e 2 1 § 2); por outro lado, o homem enquanto tal é absorvido numa realidade infinitamente mais ampla, que abrange o mundo animal e natural inteiro. A peculiaridade do período juvenil consiste no fato que este segundo movimento se desenvolve remetendo à natu­ reza, ou seja, ao "grande Pã" (GT, 1 1 ; 1, 7 5), mas também a uma comunidade, a um gênero (Gattung) que, na sequência de Schopenhauer, é dilatado até incluir e engolir o homem enquanto tal. Concluindo, o dionisíaco tem uma dupla função. Ao rasgar o véu que co­ bre o espetáculo de uma natureza cruel e desapiedada, refuta a ideia de felici­ dade que acompanha a parábola ruinosa da modernidade; mergulha ainda mais os sofrimentos das vítimas sacrificiais da civilização numa categoria de gênero que, abrangendo a natureza inteira, é descarregada de sua carga política sub­ versiva. A civilização pressupõe, por um lado, a visão do trágico da existência com a consequente renúncia da fé na felicidade terrena de todos; por outro lado, a aceitação de uma dimensão que inclui o "despedaçar-se doprincipium individuationis", a anulação do "elemento subjetivo", o "esquecimento com­ pleto de si" por parte do indivíduo ou do escravo destinado a ser sacrificado. Por isso o dionisíaco pode ser comparado com a "embriaguez", embriaguez na qual é bom que estejam imersas em primeiro lugar as vítimas sacrificiais (GT, l ; 1, 28-30). Todos, livres e escravos, entram para sempre numa comunidade, numa unidade universal da vontade de viver que, através de atrozes sofrimen­ tos e do esquecimento desses atrozes sofrimentos, alcança o seu fim superior, a saber: a produção da beleza, da arte e da civilização enquanto tal. ·

15. Atenas e Jerusalém; Apolo e Jesus; Dionísio e Apolo Para compreender melhor a atitude de Nietzsche, devemos voltar ao debate sobre antiguidade clássica e cristianismo, que atravessa profundamente a cultura alemã do tempo. Fascinado pelo robusto sentido terreno e mundano que caracte­ riza o paganismo, Heine convida a escolher "entre Jerusalém e Atenas, entre o santo sepulcro e o berço da arte, entre a vida no espírito e o espírito na vida", entre o ')udaísmo fundado sobre a mortificação" e a grecidade que, muitas vezes, utiliza a arte como "tribuna" para "pregar dessa altura a vida". 1 18 Aqui estamos diante de duas categorias idealtípicas: ao ascetismo e à "limitação nazarena" (encarnada em primeiro lugar pela tradição judeu-cristã), se contrapõe a afirma­ ção alegre da vida própria dos "helenos" de ontem e de sempre.119 Sabemos já que Nietzsche não pode ser reconhecido nesta dicotomia Jerusalém/Atenas, ou seja, nazarenos/helenos, porque ela está toda construída sobre um conceito de "serenidade grega" propensa ao "otimismo" e ao "sensualismo" que presidem a revolta dos escravos e a subversão e devastação modernas. Diante de uma dicotomia não privada de semelhança com aquela que aca­ bamos de ver nos coloca o Wagner de Arte e revolução, o qual confronta e contrapõe Apolo e Jesus, grecidade pagã e cristianismo. Depois de ter "superado a rude religião natural da pátria asiática", o "espírito grego" encontra "a sua expressão mais adequada em Apolo".12º A sociedade grega, fundada no c�lto dessa divindade, confia aos "bárbaros orientais" e aos escravos o trabalho e a produção material. Graças a isso se abre o espaço para se realizar e se desenvol­ ver o princípio da "força e beleza" do indivíduo, que encontra em Apolo a sua expressão plástica. Contra esse mundo se ergue o cristianismo, que, certamente, rejeitando e superando a divisão do gênero humano e o exclusivismo da "humani­ dade especial" (Sondermenschentum) sobre a qual descansa a civilização gre­ ga, 121 afirma a fraternidade universal dos homens; contudo, a nova religião pro­ clama este princípio no âmbito de uma visão que nega o mundo, a vida e a arte, e esmaga o livre desenvolvimento do indivíduo. Aproveitando-se também da inven­ ção da "máquina", 1 22 que pode tomar o lugar dos escravos infelizes, o mundo contemporâneo pode esperar a conciliação dos ensinamentos dos "dois mestres

11 8 Heine, 1 969-78, vol. IV, pp. 175-6. 1 19 Heine, 1969-78, vol. IV, pp. 17-8. 1 20 Wagner, 1 9 10 a, pp. 9-10. 1 21 Wagner, 1910 a, p. 26. 122 Wagner, 1910 a, p. 33.

mais sublimes da humanidade", exatamente Jesus e Apolo, 1 23 e, portanto, edificar uma sociedade na qual a esplêndida florescência da individualidade e da arte não conhece mais a limitação e o exclusivismo próprios da Grécia. Mesmo colocados em posições sensivelmente diferentes, o Wagner revo­ lucionário de 1 848 e Heine compartilharam o ponto de vista segundo o qual o mundo contemporâneo, superando o exclusivismo da antiguidade clássica e aproveitando-se da lição cristã, ou seja, judeu-cristã, é chamado a universalizar a atenção ao corpo e à arte, que constitui o grande mérito da civilização grega. Bem diversamente se posiciona o jovem Nietzsche: a seu ver, a dicotomia cara ao Wagner de 1 849 tem, de qualquer modo, o mérito de chamar a atenção sobre a escravidão, sobre o fundamento real do esplendor grego e da civiliza­ ção enquanto tal, refutando, portanto, o mito de uma diferenciada felicidade e "serenidade grega", que constitui agora, como demonstra o exemplo de Heine, um componente da agitação revolucionária. Publicada num momento em que o seu próprio autor é contagiado por tal agitação, Arte e revolução julga que os escravos podem ser substituídos pelas máquinas. Mas essa ilusão desapareceu no Wagner que dialoga com o jovem Nietzsche e que, antes ainda de O nasci­ mento da tragédia, tece também os louvores do "espírito da música" onipresente nas diversas manifestações da civilização grega, mas também do "autêntico antigo Estado dórico", com a sua severa "organização militar". 1 24 Em O nascimento da tragédia e nos escritos coevos, a civilização se mantém num difícil equilíbrio entre dionisíaco e apolíneo, que é ao mesmo tempo a problemática relação entre Oriente e Ocidente, entre Ásia e Europa. O "cortejo dionisíaco" procede "da Í ndia para a Grécia" (GT, 20; 1, 1 32), e a Grécia à qual se presta homenagem está situada "entre a Í ndia e Roma" (GT, 2 1 ; 1, 1 33). Bem longe de celebrar o dionisíaco enquanto tal, O nascimento da tragédia, se preocupa em sublinhar "o imenso abismo que separa os gre­ gos dionisíacos dos bárbaros dionisíacos". Ou melhor, olhando-se bem, não há "força mais perigosa que essa dionisíaca, tão grotescamente rude" (GT, 2; 1, 3 1 -2), que "nos asiáticos significava o desencadeamento mais rude dos instintos inferiores, com a destruição, pelo menos periódica, de "todos os vín­ culos sociais", ou melhor, de "todo vínculo estatal e social" (DW, 1 ; 1, 556 e 5 5 8). ''A ação suprema da grecidade" foi ter domado o Oriente dionisíaco (VII, 1 1 8). Além da civilização grega, é a civilização enquanto tal que pode ser pen­ sada só .a partir da subjugação de tal elemento bárbaro. É essa ação de força m

Wagner, 1 9 1 O a, p. 4 1 . 124 Wagner, 1 9 10 f, p. 1 2 1 .

que toma possível a "separação e divisão da massa caótica" em castas. Sur­ gem assim as "castas militares" (CV, 3; 1, 775) e "a organização das castas intelectuais" (VII, 380 e 4 1 3). Enquanto mantém os escravos e as "grandes massas" com a sua "mordaça de aço" (CV, 3 ; 1, 769 e 772), o Estado, de quem Apolo é o símbolo, promove a guerra, a qual, além da educação dos guerreiros, provê também o recrutamento dos próprios escravos: "para o Estado, a guerra é uma necessidade, do mesmo modo que para a sociedade é necessária a escravidão" (CV, 3; 1, 774). Não obstante a sua "horrível origem", está bem claro que o Estado constitui "talvez o objeto mais alto e mais venerável para a massa cega e egoísta" (CV, 3; 1, 771). A história da grecidade é a história da sua luta contra o dionisíaco bárbaro: "Nunca a grecidade correra um perigo maior que o do aproximar-se tempestu­ oso do novo deus" (DW, 1 ; 1, 556). Foi Apolo, com "a sua potência de amansar Dionísio que vinha da conquista da Á sia"; "foi o povo apolíneo a cativar com a beleza aquele instinto extremamente poderoso" (DW, 1 ; 1, 556 e 55 8). Por outro lado, essa vitória não é conseguida de uma vez para sempre: De fato, posso explicar o Estado dórico e a arte dórica apenas como um contínuo campo de batalha do apolíneo: só numa contínua oposição à natu­ reza titânico-bárbara do dionisíaco podiam ter longa duração uma arte tão teimosamente desdenhosa, circundada de baluartes, uma educação tão guer­ reira e áspera, um Estado tão cruel e desapiedado (GT, 4; 1, 4 1 ).

O reconhecimento tributado à "visão dionisíaca do mundo" não deve fazer perder de vista aquele tributado à "visão dórica do mundo", além de ao "Estado dórico" e à "arte dórica" (GT. 4; 1, 4 1 -2). A luta não é só de longa duração, mas, até certo ponto, deixa de ser vitoriosa: "O mundo helênico de Apolo é pouco a pouco interiormente dominado pelas forças dionisíacas. O cristianismo já estava pronto" (VII, 137). Portanto, o dionisíaco não subjugado por Apolo e pela grecidade autêntica é a barbárie asiática e oriental. Com o Oriente, Nietzsche participa da representação comum pela qual ele é sinônimo de um panteísmo no plano religioso e de um organicismo no plano político, que não deixam espaço para a objetividade emergir. Para dizer com Hegel, "dissipam a diferença e a determinação", enquanto tem lugar "a imersão na falta de consciência, a unidade com Brahma, a aniquilação": se pense no ''Nirvana budista".125 Na medida em que comporta "a dissolução do momento da autoconsciência na essência" e no qual a individualidade singular e toda realidade "éjogada nesse abismo do aniquilamento", também o panteísmo de 125 Hegel, 1 969-79, vol. V, p. 389. 11

Spinoza é expressão de uma "visão oriental", 126 ou seja, de uma "representação oriental". 127 Aos olhos de Nietzsche, o cristianismo já remete ao Oriente, pois, ao afir­ mar a ideia de igualdade entre os homens, mesmo que seja declinando-a em termos religiosos, cancela as diferenças e absolutiza o elemento dionisíaco: "com o movimento cristão-oriental, a antiga religião dionisíaca inundou o mun­ do, e todo o trabalho da grecidade pareceu vão" (VII, 1 1 8). O doentio "desen­ volvimento do dionisíaco" desemboca na "mística absoluta" (VII, 1 54), no total abandono a uma "devoradora meditação estática" (ekstatische Brüte) (GT, 2 1 ; 1, 1 3 3-4) . Uma vez absolutizado, o elemento "estático" (e dionisíaco) age ruinosamente, ao fazer desaparecer num todo indistinto a individualidade, o principium individuationis, as diferenças e as hierarquias que são as únicas que tornam possível o Estado e a civilização autêntica. Mas então, por que o jovem Nietzsche insiste nos limites de um apolíneo não fecundado pelo dionisíaco? Noutras palavras, quais são os elementos positivos introduzidos na cultura e na civilização enquanto tal por um dionisíaco que foi depurado pela sua carga bárbara dissolvente? Temos nos detido amplamente num aspecto. Trata-se de refutar de uma vez para sempre o otimismo, cujas consequências desastrosas se manifestam no incessante ciclo revolucionário: a visão unilateralmente apolínea da antiguidade grega não é outra coisa senão o otimismo vazio e superficial que os hodiernos intérpretes projetam sobre o passa­ do, com o resultado de privar a modernidade de alternativas. Separado de Dionísio e do fundo trágico da existência, Apolo se toma a bandeira do "iluminismo" e das "convicções políticas iluministas": é um deus "invadido de luzes" (aufgekltirt), o protótipo do indivíduo "apolíneo, sereno e sensato, mas um pouco imoral" (BA, 3 ; 1 , 70 1 -2), com o qual tende a identificar-se o homem moderno. Mas não é tudo . Nesses anos, Nietzsche espera apaixonadamente uma recuperação alemã da grecidade autêntica. Portanto, tem em vista uma sociedade que seja capaz de unidade e o seja, sobretudo, em ocasiões de momentos cruciais como aquele que viu a Prússia e a Alemanha enfrenta­ rem a potência militarmente hegemônica da Europa continental, o país da "civilização" e da subversão moderna. O dionisíaco responde também a essa exigência. É o momento da unidade cordial, ou melhor, da "comunida­ de superior" que já conhecemos . É graças a ela que a Grécia consegue fazer frente ao formidável ataque da Pérsia; sem ela, nenhuma sociedade estaria em condições nem de legitimar o recurso permanente à escravidão 126 Hegel, 1969-79, vol. XX, pp. 1 85 e 165- 166. 1 27 Hegel, 1 969-79, vol. VI, p. 198.

(mais ou menos . camuflada) nem de enfrentar os desafios das recorrentes situações de crise.

1 6. A rte, política e Kulturkritik Não há dúvida, Wilamowitz tinha razão ao banir O nascimento da tragé­ dia do âmbito da filologia clássica. E pelo menos nisso concordava Ritschl, que, ao receber o livro de seu discípulo, ou ex-discípulo, observava lapidarmente numa nota de diário: "Extravagância brilhante". 128 Sobre a "extravagância", sobre a originalidade absoluta deste livro, não há dúvidas; mas onde reside o seu caráter "brilhante", o seu fascínio fodiscutível? Não basta, ou pode ser até enganoso, remeter à esplêndida prosa; mais tarde, o próprio Nietzsche chamará atenção para a "sedução das palavras" (JGB, 1 6). À primeira vista, O nascimento da tragédia é composto de argu­ mentos bastante disparatados: a tragédia e a filosofia grega, o pensamento de Kant e Schopenhauer, e a música de Bach, Beethoven e Wagner; o cristianis­ mo e o budismo; a Grécia empenhada contra a Pérsia e as esperanças postas na Alemanha que surgia da guerra vitoriosa contra a França; o angustioso so­ breaviso contra o otimismo e o socialismo, e a denúncia desprezadora do "irre­ quieto e bárbaro turbilhão confuso que se chama agora "o presente" (GT, 15 ; 1, 1 02); as reflexões sobre a antiguidade clássica e a condenação de toda "frívola divinização do presente" (GT, 23; 1, 148-49). Para conferir unidade a essa aparente mixórdia, também não basta dizer que é um texto filosófico. Entretanto, trata-se de uma categoria bastante am­ pla, que pode subsumir espécies muito diferentes entre si. Sobretudo, com esta afirmação ainda não está determinado o motivo de fundo capaz de conferir unidade a O nascimento da tragédia e salvá-lo e compreendê-lo como texto filosófico. Já sublinhei a inadequação da interpretação em perspectiva mera­ mente estética, a qual não está em condições de explicar as referências à realidade e à luta política (e militar) do tempo. Uma vez conseguida a presença simultânea dos múltiplos temas, trata-se agora de descobrir o tema central, quer dizer, aquele suscetível de reconduzir o caos aparente a uma ordem, a um todo coerente e unitário. E o interesse estético? Ritschl lê na obra do seu discípulo ou ex-discípulo a celebração da arte como "força replasmadora, redentora e libertadora do mundo" (B, II, p. 541); por sua vez, Rohde evidencia em O nascimento da 128

ln Janz, 1981, vol. 1, p. 470.

tragédia as "nobres aspirações a uma civilização verdadeiramente artística". Com isso, está confirmada e avalizada a leitura em perspectiva eminentemente estética? Na realidade, a "nova civilização" é pensada por Rohde em contraposição à "civilização podre" do presente e ao seu "inferno de potências destrutivas". 129 A invocação de uma nova civilização artística é, em primeiro lugar, um projeto político, que implica a luta sem quartel contra certas institui­ ções e certas relações políticas e sociais e a edificação de outros bem diversos, a liquidação de uma ideologia e visão do mundo e a elaboração e difusão de outra bem diferente. Não é por acaso que, ao escrever a Nietzsche, o amigo Romundt se lamenta por viver numa "sociedade moderna da civilização, sem religião, arte e metafisica" (B, II, 2, p. 454). Certamente - observa por sua vez Nietzsche - é preciso assumir "o artis­ ta como mestre'', mas só porque ele pode esclarecer algo de fundamental que vai muito além da arte; "A grecidade é a única forma em que se pode viver o horrendo sob a máscara do belo" (VII, 80). Se o otimismo moderno estimula a revolta dos escravos e o triunfo da barbárie, o pessimismo cristão é a fuga do mundo. A arte-religião grega revela, ao contrário, a sua solitária grandeza pelo fato de promover a "felicidade da existência" apesar do pessimismo (VII, 8 1 ), apesar da clara consciência da carga de sofrimento e de dor (a escravidão e o esgotamento da massa), que está no fundamento da civilização. Só a arte toma possível na Grécia "a exaltação da vontade" e, por isso, a aceitação da "reali­ dade cruel" da civilização, que "edifica os seus arcos triunfais sobre a escravi­ dão e sobre a destruição" (VII, 140). Por outro lado, o renascimento da arte autêntica é uma condição preliminar da regeneração da Alemanha e do relançamento da sua "missão" na luta contra a civilização e a modernidade. Que o tema da arte não tenha um significado meramente estético e menos ainda possa servir para mergulliar O nascimento da tragédia num banho de pureza, segundo o costume de não poucos intérpretes, é ulteriormente confirma­ do pelo fato de que a referência de Nietzsche à arte vai facilmente além de uma referência à sociologia da arte, como surge da análise e das perguntas acerca das forças sociais que inspiram ou consagram o sucesso de Eurípides e, à distância de dois milênios, do melodrama latino. E essa sociologia da arte acaba, por sua vez, configurando-se como uma sociologia dos "partidos" políticos que continuam a se confrontar também no terreno ideológico, cultural e artístico, bem como se confrontavam há mais de dois milênios, no tempo de Sócrates e Eurípides. Compreende-se então por que o Prefácio afirma que não há "oposição entre comoção patriótica e vontade estética" (GT, Prefácio; 1, 24), e um texto 129 Rohde,

1972 a, p. 195.

do mesmo período, indo mais além, sublinha que, bem longe de haver oposição, subsiste uma "misteriosa conexão [ ... ] entre Estado e arte, entre cobiça política e criação artística, entre campo de batalha e obra de arte" (CV, 3; 1, 772). Reflexão estética e reflexão política estão de tal modo estreitamente entrelaçadas que se tomam inseparáveis . Se, por um lado, remete à tragédia grega e, portan­ to, à arte, a categoria do "trágico" revela, por outro lado, uma clara conotação histórica e política. Como é cpnfirmado pelo anúncio, confiante e batalhador, do "ilúcio da época trágica do presente" (VII, 28 1). A própria expressão "metafisica da arte" evoca a expressão "metafisica do gênio", que consagra a "hierarquia natural do reino do intelecto" (infra, cap. 2 § 5) e, portanto, revela-se carrega­ da de um significado intensivamente político de celebração da aristocracia, tan­ to na ordem natural como na ordem político-social. Poesia e arte significam uma relação ingênua e simples com a natureza e o instinto, e a música em particular representa o incontrastável "domínio do instinto" (VII, 49); e, como veremos, "simplicidade", "ingenuidade" e "instinto" levam a aceitar tranquilamente, sem artifício e sem complicações cerebrais e moralistas, o dado do fato natural da escravidão. A "metafísica da arte", cele­ brada com o olhar voltado para a Grécia trágica, não é tão etérea que desdenhe a legitimação de uma instituição considerada repugnante pelo homem moderno mole e antiartístico. Somente graças à "metafísica da arte" conseguimos com­ preender o valor da "dissonância na música" e na vida; portanto, "exatamente o mito trágico deve convencer-nos que até o feio e o desarmônico são um jogo artístico". Do feio e do desarmônico ligados inextricavelmente à vida faz parte integrante a escravidão, o sacrifício de massa que se consuma sobre o altar da produção do gênio e da arte. Neste sentido, "a existência e o mundo aparecem justificados apenas como fenômeno estético" (GT, 24; 1, 152). Por outro lado, Sócrates, pendant filósofo de Eurípides (expressão, como sabemos, do "quinto estado, o estado do escravo"), exprime com seu otimismo uma visão do mundo "tanto antiartística quanto corrosiva para a vida" (GT, 24; 1, 15 3). Portanto, a política constitui o aspecto principal desse entrelaçamento inseparável. Somente graças a ela podemos captar a unidade de fundo que subsiste entre as repetidas referências à Comuna de Paris, ao movimento soci­ alista e à guerra franco-prussiana, e as análises sutis do melodrama, da tragé­ dia esquílea e da wagneriana. De fato, também esses gêneros e essas expres­ sões literárias e musicais são interpretadas em perspectiva política. A leitura de Ésquilo não é menos política que a leitura de Sócrates, o grande responsável pela catástrofe política da grecidade, bem como a leitura de Wagner não é menos política que a de Rousseau, protagonista de primeira grandeza de uma catástrofe política de modo algum concluída. Nem se deve esquecer que o

Eurípides visado por O nascimento da tragédia é o autor celebrado por Heine como "democrático" . 1 30 Por outro lado, a quarta Inatual rejeitará com desdém qualquer interpretação em perspectiva meramente estética do apelo à arte e ao grande musicista em particular (infra, cap. 6 § 1 0). Mas não basta sublinhar a centralidade da política em O nascimento da tragédia. Vimos que, em vez de limitar-se à imediatez, ela parte de muito longe. Pretende abranger com o olhar. mais de dois milênios de história. Vale a pena lembrar que um dos subtítulos, por algum tempo levado em consideração por Nietzsche, soava: "Uma contribuição para a filosofia da história" (VII, 84). E é substancialmente nessa perspectiva que, no final de sua vida consciente, o autor de Ecce homo relerá a sua obra juvenil. Nela, "a oposição entre apolíneo e dionisíaco" é "traduzida em metafisica" e considerada o fio condutor da própria história; na sua tragédia e na sua idade trágica, a Hélade se revela em condições de colher e afirmar a "unidade" dos dois momentos e, portanto, de não recuar perante a carga de negatividade que é o próprio fundamento da civilização, supe­ rando assim o pessimismo" (EH, O nascimento da tragédia, l). Compreende-se bem o sucessivo re-pensamento relativo ao subtítulo: A categoria de "Philosophie der Geschichte" remetia a Hegel e à sua escola, implicava a legitimação do moderno, do mundo que brotara da Revolução Fran­ cesa, aquele mundo que, ao invés, se procurava pôr em discussão, ou melhor, em questão. Todavia, mesmo posteriormente separado, aquele subtítulo conti­ nua a indicar uma pista que não deve ser descuidada. Estamos na presença de uma filosofia da história caracterizada pela polêmica contra o "espírito do tem­ po" (Zeitgeist), pela "crítica do tempo presente" (Zeitkritik) (VII, 4 1 8 e 696), em última análise pela rejeição da modernidade. É uma rejeição tanto mais radical porque é motivada pela persuasão de que nela incubam os germes de uma catástrofe. Numa carta ao amigo Gersdorff, de 7 de novembro de 1 870, Nietzsche é explícito: "o futuro da civilização provo­ ca em mim a máxima preocupação (B, II, 1 , p. 1 55). Por outro lado, já vimos a leitura da Comuna de Paris como sintoma do "outono da civilização". Ainda mais dramático é um fragmento do verão-outono de 1 873 : Por toda parte se notam os sintomas de uma extinção da cultura, de uma completa extirpai;
1969-78, vol. III, p. 416; sobre isto, cf. Losurdo, 1997 a, cap. VI, 3. (p. 271).

Em todo caso, se impõe uma "nova consideração da civilização" (VII, 3 3 1 ) ; não é mais adiável a prestação de contas com o presente e com as ame­ aças que pairam sobre o futuro.

1 7. Um apelo à "luta contra a civilização " A importância aqui atribuída à política na Gênese de O nascimento da tragédia pode causar admiração; mais tarde, Nietzsche afirmará que o livro "é indiferente à política - hoje se diria 'não alemão'" (EH, O nascimento da tragé­ dia, l ). Na realidade, vimos a presença recorrente do tema da "essência alemã", chamada a recuperar a si mesma e a grecidade autêntica a fim de regenerar a civilização na Alemanha e na Europa. Aliás, a afirmação de Ecce homo é desmentida por um fragmento do mesmo período, que se exprime assim: "Este escrito se posiciona de maneira alemã, chega até a mostrar fidelidade ao Reich crê verdadeiramente ainda no espírito alemão" (XIII, 227). Para dissipar qual­ quer dúvida há, no entanto, a Tentativa de uma autocrítica, que precede a reedição de 1 8 88 de O nascimento da tragédia. Nessa ocasião, Nietzsche se lamenta por ter de novo colocado grandes "esperanças" na "essência alemã" e na medi­ ocridade do mundo moderno (GT, Tentativa de uma autocrítica, 6). Nada seria mais errado do que ler O nascimento da tragédia assimilan­ do o seu autor a um daqueles filólogos ou acadêmicos eruditos, já desprezados por ele nesse momento. Cerca de 1 5 anos mais tarde, ao percorrer a sua evo­ lução precedente e os anos de juventude, Nietzsche escreverá: Fiz várias tentativas não desprovidas de perigos para atrair para mim ho­ mens [a referência é, em particular, a Wagner] aos quais pudesse falar de coisas tão estranhas: todos os meus escritosforam até agora redes lançadas, desejava pegar homens de almas profundas, ricas e serenas [ ... ]. Mais tarde imaginei "seduzir'' ajuventude alemã (XI, 507).

Sempre nesse período de tempo, um ulterior fragmento é mais exato: "Di­ rigi as minhas Considerações inatuais de jovem para jovens, aos quais falei das minhas experiências interiores e dos meus votos, a fim de atraí-los nos meus labirintos" (XI, 579). Portanto, como resulta em particular dos trechos evidenciados em itálico, é constante o desejo do proselitismo, a aspiração a ganhar as forças politicamente mais promissoras (a juventude), ou seja, as per­ sonalidades mais significativas do tempo, e ganhar não só e não tanto para ideias filosóficas quanto, sobretudo, para "votos" (Gelobnisse), para o anelo de um futuro, em última análise, para um projeto político. 77

A palavra de ordem com que nos deparamos ao analisar a correspondên­ cia, os trabalhos preparatórios e os fragmentos contemporâneos da obra que marca a estreia filosófica de Nietzsche - "Luta contra a civilização" (VII. 385) - dá o que pensar. Não se trata de um tema isolado; a carta a Gersdorff de 7 de novembro de 1 8 70 sublinha: "Para o período que está diante de nós, a civiliza­ ção precisa de gente que lute: devemos conservar-nos sãos para esse fim" (B, II, 1, p. 1 5 6). Alguns meses ames, no momento em que estourou a guerra franco-prussiana, uma carta dera expressão à angústia diante da sorte da "nos­ sa civilização gasta": poderia até tratar-se do "começo do fim !" (B, II, 1 , p. 1 30). É uma angústia ligada também ao desenvolvimento do conflito social. Um fragmento, que se refere à preparação de uma das conferências da Basileia, sublinha a necessidade de elaborar "propostas (contra o socialismo)" (VII, 298); algum tempo depois, um "rascunho das Considerações inatuais" elenca entre os títulos programados, ou a se levar eventualmente em consideração, também "a crise social" (VII, 699) . As preocupações por essa crise desempenham um papel importante já em O nascimento da tragédia. Nas conferências do mesmo período de Basileia, o chamado à luta é repetido e agudo, e a ambição de ganhar a juventude para o conflito que se prepara é explícita e declarada. É até um reconhecimento do terreno com uma avaliação das diversas formações e das forças em campo. O inimigo é localizado naqueles que se identificam sem problemas com o presen­ te, considerando óbvia e pacífica a sua aceitação e a própria existência de filisteus satisfeitos: são os "'óbvios '". Na vertente oposta vemos a "solidão" e o desespero dos que, considerando agora inútil qualquer tentativa de resistência e de oposição, não percebem mais a "necessidade de combater". Entre uns e outros se erguem "os combatentes (die Kampfenden), isto é, aqueles que são ricos de esperança" (BA, Introdução; 1, 646). Estes últimos têm como pontos de referência, de um lado, aquele "sublime combatente" que é Wagner (GT, Prefácio), do outro lado, Schopenhauer, que pouco depois será incluído, na terceira Inatual dedicada a ele, entre os "bons e corajosos combatentes ", empenhados em opor-se à parábola catastrófica do otimismo e da modernidade (SE, 3; 1, 359). Os combatentes que já tomaram posição, entre os quais Nietzsche pretende claramente colocar-se, têm a tarefa de atrair e unir a si, numa frente comum de luta, aqueles que até àquele mo­ mento se deixaram dominar por um sentido de impotência: Deixai-vos encontrar, ó isolados, em cuja existência creio! Vós, desinteressa­ dos, que carregais as dores pela corrupção do espírito alemão [. . . ]. Eu me dirijo a vós. Pelo menos por esta vez não vos escondais na caverna do vosso isolamento e da vossa desconfiança (CV, 2, 1, 763).

A situação que se criou impõe uma decisão. Todos são colocados "diante da encruzilhada" (BA, 4; 1, 728). De um lado, temos os "bárbaros do século x1x", que, como veremos, podem contar com uma terrível força de choque. Nem por isso aqueles que mais sofrem por causa da "nossa atual barbárie" (CV, 2; 1, 763) devem abandonar-se ao desânimo e à deserção do "campo de batalha". É necessário estar à altura da situação: Nada queremos para nós; não devemos nos preocupar em saber quantos indiví­ duos cairão nessa luta, nem devemos pensar em nós mesmos cairmos entre os primeiros. É exatamente porque levamos a coisa a sério que não devemos levar tão a sério a nossa individualidade: no instante em que caímos, um outro sem dúvida pegará a bandeira, em cujas insígnias cremos (BA, 3; 1, 695-96).

Reprováveis não são apenas o "desânimo" e a "fuga na solidão". É preciso também evitar a atitude de quem está pronto até ao sacrifício extremo, mas, como num gesto estetizante, que não se põe o problema de incidir concretamente sobre a realidade. Apesar de tudo, a situação não é, de modo algum, desespera­ da; pode-se muito bem ter "confiança". O domínio da cultura moderna na escola e na sociedade de modo algum é estável, ou melhor, "a época de tudo isso aca­ bou, os seus dias estão contados"; bastará dar início à luta e esta suscitará imedi­ atamente um "eco" em "mil almas corajosas" (BA, 2; 1, 673). Da mobilização que se impõe, Nietzsche pretende ser o arauto destinado a tornar-se substancial­ mente supérfluo graças exatamente ao sucesso da sua ação: "Se vós mesmos forneceis vossas armas, apresentai-vos no campo de batalha, quem terá vontade de olhar para trás, para o arauto que vos chamou?" (BA, Prefácio; 1, 650). O chamado à mobilização dirigido àqueles que pretendem opor-se e rechaçar os bárbaros da modernidade caracteriza já um terreno potencialmente favorável para iniciar a batalha. O nascimento da tragédia lamenta aquela espécie de abdicação ou de traição que se verificaram "naqueles círculos cuja dignidade poderia consistir em extrair incansavelmente da fonte grega, nos círculos dos que ensinam nos institutos superiores de cultura" (GT, 20; 1, 1 30). É uma questão de importância central para o futuro da Alemanha e da civilização corno tal. Para citar ainda a carta de Gersdorff: "De vez em quando porei a nu as instituições escolásticas" (B, II, 1 , pp . 1 55-6). Segundo o testemunho de Cosirna Wagner, as conversas a três com Nietzsche versavam, além do terna já visto da autêntica "essência alemã", também sobre "reforma das escolas", que tal essência era chamada a salvar e regenerar.131 Por outro lado, ao tomar a defesa de O nasci­ mento da tragédia contra Wilamowitz, Richard Wagner sublinha a contribuição 131 C. Wagner, 1976-82, vol. 1, p. 49 1 .

que o seu autor pode fornecer para a causa "da nossa educação nacional", dos "nossos institutos de cultura alemães", do "espírito alemão", da "cultura alemã".

1 8. O manifesto do partido da visão trágica do mundo Não se deve perder de ·vista o fato de que O nascimento da tragédia é contemporâneo de uma série de apaixonadas intervenções "sobre o futuro de nos­ sas escolas" que, se limpas do vírus da modernidade nelas já penetrado e inoculado e se oportunamente remodeladas, poderiam e deveriam constituir um poderoso instrumento de luta contra a devastação moderna. Sim, o liceu é o terreno mais favorável para a batalha no horizonte. Separada nas suas diversas faculdades e, portanto, destinada à especialização, a universidade conserva um eco só bastante fraco da antiguidade clássica. A situação do liceu é bem diferente. Aqui, apesar de tudo, atuam ainda "as forças mais salutares provenientes da antiguidade clássica". Com as oportunas reformas, tais institutos escolares "talvez se transformem um dia [. . . ] em arsenais e oficinas dessa luta" contra "a barbárie do presente (BA, 3; 1, 694). Por outro lado, se no liceu "a luta não acabar em vitória, todas as outras instituições da cultura deverão ceder" (BA, 2; 1, 674-75). Todavia fique claro que o liceu é um terreno de batalha privilegiado, mas não exclusivo. Uma carta ao amigo Rohde pode dar uma ideia do estado de espírito de Nietzsche e dos planos que ele concatena com a publicação do O nascimento da tragédia e as conferências de Basileia. Anuncio-te, em todo segredo e convidando-te também ao segredo, que es­ tou, entre outras coisas, preparando um memorial sobre a Universidade de Estrasburgo, como interpelação ao Reichsrath para dirigir a Bismarck: pre­ tendo aqui mostrar como é ignominioso ter deixado fugir um momento exce­ lente para fundar um instituto cultural realmente alemão, que visa à regene­ ração do espírito alemão e ao aniquilàmento da chamada "cultura" hodierna. Luta de faca ! Ou de canhões! (B, II, 1, pp. 279-80).

A conquista da vitória, durante essa luta de vida ou morte, pressupõe o acerto de contas com a visão distorcida, unilateral e superficialmente apolínea da antiguidade clássica, denunciada por O nascimento da tragédia e que ago­ ra se trata de liquidar a partir dos liceus. Então se compreende porque os filólogos, por um lado, constituem o alvo de uma dura polêmica enquanto, por outro lado, são cortejados. Nietzsche é explícito: "Tenho, sobretudo, de ganhar a geração mais jovem dos filólogos, e seria para mim sinal de ignomínia não ter sucesso nesta empreitada" (B, II, 1 , p. 282). A obra dos :filólogos é essencial, mas sob a

condição de eles se livrarem da "dificuldade" que muitas vezes revelam "em relação aos aspectos mistéricos e orgiásticos da antiguidade". Trata-se de neu­ tralizar o filólogo propenso a separar Apolo de Dionísio e a projetar sobre a grecidade o seu próprio "iluminismo" banal (BA, 3; 1, 70 1 -2). Recuperar as instituições culturais à grecidade autêntica significa recuperá-las, ao mesmo tempo, para a germanicidade autêntica. No passado, não faltaram tentativas de devolver vitalidade ao estudo da antiguidade clássica nos liceus, mas estes fracassaram por causa da abstração erudita que os ca­ racterizou; não eram sustentados por um movimento nacional: O insucesso da tentativa de fazer o liceu voltar ao grandioso movimento da cultura clássica é derivado do caráter não alemão, pode-se dizer quase es­ trangeiro ou cosmopolita, desses esforços culturais, ou seja, da crença de que é possível tirar debaixo dos pés o chão da pátria, e permanecer ainda de pé, enfim da ilusão de poder saltar diretamente, sem se servir de pontes, naquele distanciado (entfremdet) mundo grego, pelo fato de ter renegado o espírito alemão e, em geral, o espírito nacional (BA, 2; 1, 689).

Agora, com a conclusão triunfal da guerra com a França, interveio uma situ­ ação radicalmente nova. Para estimular ou garantir a recuperação da grecidade autêntica pode servir o forte movimento de regeneração nacional: "o nexo que liga realmente a mais íntima natureza alemã ao gênio grego é algo bastante misterioso e dificilmente compreensível", no entanto é indissolúvel; o "verdadeiro espírito ale­ mão" deve procurar "apertar a mão desse gênio grego, como sólido apoio no rio da barbárie" (BA, 2; 1, 69 1 e BA, 3; 1, 695). Não se trata de uma tarefa simples. Para poder derrotar as forças da modernidade não são suficientes a coragem e o espírito de sacrifício, do qual é mesmo preciso dar prova. Além de tudo isto se impõe uma adequada plataforma teórica: "aos práticos prosaicos [. . .] faltam propriamente ideias, e por isso faltam também as ideias de uma verdadeira práxis" (BA, 2; 1, 673). Neste ponto, O nascimento da tragédia se apresenta como uma espécie de ma­ nifesto teórico do partido da visão trágica da vida. Ele deve ser lido em estreita conexão com as conferências Sobre o futuro das nossas escolas, chamadas a esclarecer - é o próprio Nietzsche que sublinha isto numa carta ao seu Mestre - "a consequência prática das minhas visões", ou seja, das visões contidas no livro re­ centemente publicado, ''todo invadido de esperanças na essência alemã" (B, II, 1, p. 282). Ou seja, para dizer de modo diferente: as conferências são "decididamente exortativas e, em comparação com O nascimento, devem ser defmidas como po­ pulares, ou seja, exotéricas" (B, II, 1, p. 296). Pode parecer estranho que se fale de "manifesto" a propósito de uma obra tão fascinante também no plano literário. Convém então ter presente que

Assim falou Zaratustra será definido por seu autor como uma "sinfonia" (B, III, 1, p. 353), mas também como o "meu 'manifesto"' (B, III, 1 , p. 482). Arte e política estão em total contradição: aos olhos de Nietzsche a sedução literária e poética exercida por um texto é até o pré-requisito da sua eficácia pedagógi­ ca e política (infra, cap. 28 § 7). Como se não bastasse o termo "manifesto", fala-se aqui do "manifesto" do "partido da visão trágica do mundo". Mas, no fundo, a definição é sugerida pelo próprio Nietzsche, que mais tarde se glorificará de ter tido por trás dele, nos anos de O nascimento da tragédia, "todo o partido wagneriano" (B, III, 5, p. 370). Com efeito, vemos que ele agora faz apelo aos amigos parà agir conjuntamente a fim de defender o musicista e a sua "seriedade e profundidade alemã na visão da vida e do mundo" dos ataques do "partido oposto" (infra, cap. 3 § 1). Não há dúvida sobre a identidade desse partido, ou melhor, desses "partidos monstruosos" (ungeheure Parteien), empenhados de modo ferreamente organi­ zados em promover um conformismo servil com respeito ao presente. Na hipótese infeliz de que os jovens, para os quais Nietzsche se volta, devessem deixar-se seduzir por esta exibição de força e capitular a ela, eis a situação que se criaria: Tanto às vossas costas como à vossa frente estarão homens que têm os mes­ mos sentimentos que vós. E quando quem vai na frente pronunciar uma palavra de ordem, esta ressoará através de toda a tropa. Neste caso, o primeiro dever é combater arregimentados (in Reih ' und G/ied), e o segundo é o seguinte: aniqui­ lar (vemichten) aqueles que não querem se deixar arregimentar (BA, 4; 1, 728).

Aqui a polêmica tem por alvo, claramente, a social-democracia alemã, não só temida e marcada pela sua forte centralização de tipo militar por uma ampla opinião pública, mas também pelo espírito de sacrificio do qual os seus militantes dão mostra. É uma organização - escreverá alguns anos mais tarde Treitschke que "domina os ânimos de uma massa completamente dependente, não mais acessível a qualquer outra influência". 132 Não há dúvida - acentua Nietzsche nas notas preparatórias às conferências de Basileia - que quem representa o perigo mais grave são "os servidores de uma massa, especialmente os servidores de um partido", aqueles que estão prontos a "abraçar um partido e subordinar a ele a própria vida", trabalhando em seguida pelo "fim da civilização (VII, 244). Alguns anos mais tarde, a terceira Inatual volta ao mesmo tema e com uma linguagem bastante semelhante. De novo se põe em guarda contra a ca­ pacidade de sedução daqueles que agora são definidos como "partidos podero­ sos" (mãchtige Parteien). Certamente, o jovem que se deixasse deslumbrar m

Treitschke, 1878, p. 6.

se encontraria numa situação não desprovida de vantagens . Não lhe faltaria "nem coroa nem recompensa". Mas, sobretudo, ganharia uma sensação de segurança e de força irresistíveis : Tanto atrás como diante dele terá outros tantos companheiros de ideias e, quando o chefe de fila lançar a palavra de ordem, ela ecoará por toda a fila. Aqui o primeiro dever:_diz: "combater arregimentados" (in Reih ' und Glied), o segundo: tratar como inimigos todos aqueles que não quiserem deixar-se arregimentar (SE, 6; 1, 402).

Mais grave é a ameaça a enfrentar pelo fato de ela assumir uma dimen­ são que vai muito além da Alemanha. Conhecemos o grito de alarme contra a Internacional lançado por Nietzsche por ocasião da Comuna de Paris. Dois anos depois, o estado de espírito não mudou, como revela uma carta a Rohde de l O de outubro de 1 873 . Aí se denuncia uma "sinistra maquinação" da "Inter­ nacional'', que agora se prepara para pôr as mãos sobre tipografias e sobre editoras alemãs. Tudo está tomando dimensões "gigantescas": diante da enor­ midade do perigo, "até por carta, para tal propósito só é consentido sussurrar, não falar com clareza" (B, II, 3, pp. 1 67-8). Desde o início, Nietzsche se coloca no terreno da luta contra o movimento socialista, no qual, a seus olhos, culmina a ameaça que pesa sobre a civilização: como opor-se a essa terrível máquina de guerra, que não hesita em intimidar e até em "aniquilar" não só os seus inimigos, mas também todos os que quiserem permanecer neutros e no entanto vacilam? Não menos combativo e não menos decidido dos antagonistas é o jovem professor de filologia, o qual chama, por sua vez, a "aniquilar" a obra impregnada de ideias e sentimentos revolucionári­ os. Estamos, pois, na presença de uma luta sem limitação de golpes. Com que plataforma teórica ela pode ser vitoriosamente enfrentada pelos inimigos da civilização, da modernidade e da subversão?

1 9. História universal, juízo universal, justiça divina, teodiceia,

cosmodiceia Procuremos dar uma olhada de conjunto na relação entre filosofia e política instituída pelo "manifesto" do partido da visão trágica do mundo. Convém voltar por um momento a Schopenhauer. Ele insiste no fato de que a injustiça e a desarmonia são apenas uma aparência, que some assim que se atinge a essência, lá onde domina "lwninosamente", imperturbada e imperturbável, a 'justiça divina": "Se fos­ se possível colocar num prato da balança toda a dor do mundo, e toda a culpa do

mundo no outro prato, a balança certamente ficaria em equilíbrio". 1 33 Retomando um mote de Schiller, Hegel vê na história universal o juízo universal: assim se expri­ me já na primeira edição da Enciclopédia, publicada em Heidelberg em 1 8 1 7. 1 34 Enquanto realização progressiva da liberdade e do progresso na "corisciência da liberdade", a história universal é "a autêntica teodiceia", a única em condições de conferir um sentido às lutas e aos conflitos, 1 35 à "dor" e à "seriedade do negativo" inerentes ao processo histórico. 1 36 Publicado um ano depois da Enciclopédia hegeliana de Heidelberg, O mundo como vontade e representação sublinha que não é a história universal ou do mundo ( We/tgeschichte), mas o mundo (We/t) enquanto tal que é o juízo universal (We/tgericht). É bastante significativa a reinterpretação da palavra aqui operada. A "teodiceia" (para usar a linguagem de Hegel), ou seja, a 'justiça divina" (para usar a linguagem de Schopenhauer) não se manifesta no curso do processo histórico e das mudanças político-sociais que ele realiza, mas está presente no mundo enquanto tal, sob a condição de não pretender deter-se no nível da aparência, mas atingir a essência. No jovem Nietzsche, a história universal se dissolveu na "chamada história uni­ versal", sobre a qual ironizam O na.,cimento da tragédia (GT, 7 e 15; 1, 56 e 100) e a correspondência privada (B, II, 1, p. 190), ou seja, tomou-se uma "soberba metáfora (CV, 1; 1, 759); mais do que de 'justiça divina" se tende agora a falar de 'justiça eterna" mundana, diante de cujo "tribunal" o Estado grego encontra 'justificação'', apesar da "barbárie ingênua", da guerra, da escravidão e da carga de dor ligadas a ele (CV, 3; 1, 77 1 -2) . Enfim, faz desaparecer a teodiceia. Ela remete a um cristianismo já exangue, mas "nunca foi um problema helênico (DW, 2; 1, 560). Isto é, apesar de sua tenível carga de negatividade, o mundo não precisa de uma justificação e�irínseca, . que faça referência a uma vontade divina misteriosa, chamada a conferir sentido a um mal de outro modo inexplicável e inaceitável. No lugar da "teodiceia" entra a "cosmodiceia". A categoria já faz a sua aparição numa carta de Rohde de fevereiro de 1 872 (B, II, 2, p. 534), todavia é Nietzsche que a elabora de modo acabado. Exatamente os terríveis conflitos, exatamente "esta contenda revela ajustiça divina", inerente ao real. A "cosmodiceia" justifica o mundo não enquanto ele tende para a realização de nebulosos projetos de transformação confia.dos a uma presumida histó­ ria universal, mas a partir das suas leis intrinsecas e permanentes, a partir da "guerra entre os opostos" que o caracteriza e sempre o caracterizará (PHQ 5; 1, 825). 133 Schopenhauer, 1976-82 a, pp. 480-4. 134 Hegel, 1956 a, pp. 298-9 (Enzyc/opadie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse, 1817, § 448). 135 Hegel, 1969-79, vol. XII, pp. 28 e 540. 136 Hegel, 1969-79, vol. III, p. 24.

Se é exatamente de teodiceia que se quer falar, é preciso ter presente que para os gregos a única ''teodiceia satisfatória" é aquela trágica (sinônimo em última análise da cosmodiceia), que leva a aceitar a existência mesmo quando ela é sinô­ nimo de fadigas e de privações: ''Também não é indigno do maior herói desejar viver ainda, mesmo que fosse como trabalhador assalariado" (GT, 3; 1, 36-7). A referência é ao Aquiles homérico, o qual declara explicitamente preferir viver no mundo ao serviço de um patrã6 do que dominar sobre todas as sombras do Hades.137 Estes versos são repetidamente citados também por Heine, mas em confirma­ ção da sua visão do mundo, segundo a qual as doçuras da vida, e mesmo a do mais medíocre "filisteu", são preferiveis não só à morte, mas também à áspera existência de herói.138 No discípulo de Hegel, a crise do cristianismo e o processo de seculariza­ ção, por um lado, o desenvolvimento das forças produtivas, por outro, em úhima análise a história universal pode chegar a uma plenajustificação do mundo, depois de ter tornado obsoleto o sacrificio das massas populares e ridículo o apelo à renúncia, à ascese e ao sacrificio heróico. O tema do vale de lágrimas é substituído pela alegre aceitação da existência: ao reivindicar a felicidade terrena para todos e ao legitimar o movimento socialista, a novavisão do mundo sente a necessidade de voltar atrás para reencontrar no paganismo uma cultura que não seja surda às razões da vida. Também Nietzsche, tomando distância do espiritualismo cristão, remete aos "deuses olímpicos": "Aqui nada recorda ascese, espiritualidade e dever; aqui nos fala apenas uma existência vigorosa, ou melhor, triunfante". Sim, é o ''triunfo da existência"; aqui vem a nosso encontro "uma religião da vida". No entanto, no seu âmbito ocupam um lugar importante as renúncias e a dor impostas aos escra­ vos da civilização: "a natureza exuberante celebra as suas Saturnais e ao mesmo tempo os seus ritos fünebres". As figuras do Olimpo são de per si eloquentes: "Elas não avançam nenhuma reivindicação (/ordem nicht): nelas é divinizado aquele que subsiste, seja ele bom ou malvado" (DW, 1-2; 1, 55 8-560). É um ponto de importância decisiva, infelizmente ignorado ou afastado daqueles que, à ma­ neira de Heine, reduzem a religião helênica a uma espécie de "divertimento fan­ tástico", tudo em nome de uma presumida serenidade (GT, 3; 1, 34-5). Contra todo otimismo unilateral, romano e neolatino, é preciso ter presente uma verdade fundamental: "O grego não é nem otimista nem pessimista. Ele é essencialmente um homem (Mann), que ousa realmente olhar aquilo que é horren­ do sem querer escondê-lo de si mesmo" (VII, 77). Rechaçando a fuga cristã do mundo, se trata então de elaborar uma "cosmodiceia", mas não uma cosmodiceia 1 37 Odisseia, livro XI, vv. 488-9 1 .

m Heine, 1969-78, vol. II, pp. 253-4; cf. também vol. VI, 1, pp. 349-350 (neste caso si trata � poesia Der Scheidende).

modo de Heine, que ignore ou pretenda superar a luta, a guerra, o sofrimento: "Segundo Heráclito, o mel é ao mesmo tempo amargo e doce, e o próprio mundo é uma mistura que deve ser continuamente agitada" (PHG; 5; 1, 825). Mais tarde, Nietzsche escreverá que ')á em O nascimento da tragédia, e na sua doutrina do dionisíaco, o pessimismo schopenhaueriano aparece su­ perado" (XII, 233). É um julgamento que, pelo menos parcialmente, pode ser subscrito. Se, por um lado, o pessimismo desempenha um papel essencial en­ quanto antídoto para o otimismo e para a ideia de felicidade terrena, que esti­ mulam a catástrofe revolucionária, por outro lado, é indubitável que O nasci­ mento da tragédia não visa mais negar a vontade de viver, mas afirmá-la alegremente, apesar do sacrificio dos escravos que ela exige. Convém notar uma outra diferença importante. Em Schopenhauer, o equilí­ brio perfeito entre "dor" e "culpa'', de que fala O mundo como vontade e repre­ sentação, parece valer não só para o gênero humano no seu conjunto, mas tam­ bém para toda "criatura": "seja qual for a sorte que lhe toca, seja qual for a sorte que lhe possa tocar, será sempre injustiça". 1 39 Nietzsche, pelo contrário, mais do que tornar insignificante a carga de sofrimento das vítimas sacrificiais da civiliza­ ção, preocupa-se por inseri-la num contexto decididamente mais amplo que, em virtude· de seu caráter de necessidade e inevitabilidade, não deixa espaço para saudades e declamações morais. As vicissitudes do mundo podem ser compara­ das ao ')ogo do grande menino cósmico, Zeus, e à eterna brincadeira de uma destruição do mundo e de um nascimento do mundo" (CV, l ; 1, 758). O destino individual pode ser atroz, porém nos movemos agora num nível bem superior: O homem não é mais artista, tornou-se obra de arte: entre os calafrios da embriaguez aqui se revela o poderio artístico da natureza inteira, com a máxima satisfação extasiada da unidade original. Aqui se mistura e se desbasta a argila mais nobre, o mármore mais precioso, o homem, e aos golpes de martelo do artista cósmico dionisíaco ressoa o grito dos mistérios eleusinos : "Prostrai-vos, milhões ! Mundo, sentis o criador?" (GT, l ; 1, 30). Junto com a transcendência religiosa cristã, a cosmodiceia liquida tam­ bém a transcendência revolucionária e qualquer projeto de transformação do mundo; não é possível "m r nada na essência eterna das coisas", e "ridículo ou infame" é todo sonh de p ingenesia social e política, a pretensão de pôr de novo "em ordem o mun que está fora dos eixos" (GT, 7; 1, 57). Absorvidos e engolidos no "grande Pã", s indivíduos e as classes destinados ao sacrificio configuram-se agora como matéria-prima para as criações fantásticas e fasci­ nantes, apesar dos custos que comporta, de uma espécie de artista cósmico. ao

139 Schopenhauer, 1976-82 a, pp. 480-4.

A TRADIÇÃO, O MITO

E

A CRÍTICA

DA REVOLUÇÃO 1 . "Preconceito " e "instinto ": Burke e Nietzsche

P

ara confirmar o papel central que a denúncia do ciclo revolucionário fran cês desempenha em O nascimento da tragédia e nos textos e fragmentos coevos, convém proceder a uma comparação entre as categorias teóricas aqui utilizadas e aquelas que podemos ler na cultura europeia empenhada na conde­ nação ou na crítica da Revolução Francesa. Segundo Nietzsche, a Hélade trágica nos coloca na presença de um povo que sabe olhar a realidade: "Os gregos são ingênuos como a natureza quando falam dos escravos"; reconhecem neles e na condição deles um pressuposto ineludível da civilização (VII, 1 3 8). Aqui, ingenuidade designa a "harmonia", melhor, aquela "unidade do homem com a natureza, contemplada com tanta . nostalgia pelos homens modernos" e que pode ser definida, na esteira de Schiller, com o "termo técnico 'ingênuo"' (GT, 3 ; 1, 37). É a ausência do artificio e a rejeição de esquemas abstratos, que falsificam e violentam o real: "Os escra­ vos existem onde quer que exista uma civilização. Acho horrível sacrificar a civilização por amor de um esquema. Em que os homens são iguais? Em que são livres?" (VII, 1 3 8). E, de novo, dessa louca mistificação se busca refúgio na Hélade: "S implicidade daquilo que é grego: a voz da natureza permanece incorrupta diante das mulheres e dos escravos" ou do "inimigo vencido" (VII, 1 27). Dizer natureza significa também dizer instinto: "A escravidão é algo ins­ tintivo no mundo helênico" (VII, 46). No fundamento desse discurso surgem duas dicotomias fundamentais estreitamente interligadas : à natureza se contrapõe o artificio, assim como ao sadio instinto se contrapõe um intelectualismo turvo; se o instinto na sua simplicidade e ingenuidade segue a natureza, ao artificio e ao esquema abs­ trato recorre uma razão que é, na realidade, sinônimo de contorções cere­ brais. Estas duas dicotomias estão amplamente difundidas na cultura e na publicística europeias empenhadas em criticar a Revolução Francesa. Em polêmica contra a palavra de ordem da égalité que surgiu dela, Haller ce­ lebra a lei natural da desigualdade e do domínio dos poucos sobre muitos,

fundada na "ordem divina, eterna, imutável" (ewige, unabãnderliche Ordnung Gottes) . 1 40 Mas convém apresentar o que Burke diz. Talvez este autor não seja total­ mente desconhecido de Nietzsche, pois na Alemanha goza logo de um sucesso extraordinário, particularmente no âmbito da cultura romântica.141 É preciso não perder de vista outros fios possíveis: o grande antagonista da Revolução Francesa desempenha, obviamente, um papel central na História da reação de Stirner. 142 E, sobretudo, Emerson se exprime sobre ele com muito entusias­ mo . 143 Pois bem, podemos ler em Burke que o ideal da égalité, a reivindicação "abstrata" da igualdade jurídica viola "a ordem natural das coisas", a "ordem social natural", ou melhor, é manchada pela "mais abominável das usurpações", aquela que se toma culpada de espezinhar as "prerrogativas da natureza", ou seja, o método da natureza".144 Gentz é ainda mais drástico: na sua tradução, "the method of nature" se toma o "divino método da natureza" (gõttliche Methodik der Natur). 145 Esta última expressão lembra imediatamente uma expressão análoga de Nietzsche, a "sagrada ordem da natureza" (hei/ige Naturodnung), segundo a qual os homens, na sua imensa maioria, "nasceram para servir, para obedecer" (BA; 3, 1, 698). Sem perder de vista a primeira, passemos agora à segunda dicotomia. O "instinto" sadio . é chamado por Nietzsche a dar testemunho acerca do caráter vão e ilusório da égalité e dos direitos do homem, acerca da inevitabilidade da escravidão. Infelizmente, "o iluminismo despreza o instinto" (VII, 1 04). Mas o "instinto" do qual se fala aqui faz imediatamente pensar no sábio "preconceito'', celebrado por Burke em contraposição ao racionalismo revolucionário abstrato: Nós, ingleses, somos, geralmente, homens ligados aos sentimentos mais naturais (untaught fee/ings), homens que, ao contrário de se desfazer de todos os velhos preconceitos, preferem cultivá-los. [ ... ] A simplicidade do nosso caráter nacional condicionou o nosso modo de ser, que é inteiramente fruto daquela simplicidade natural.146 As características exemplares postas por Nietzsche em evidência no mundo grego em contraposição à modernidade ("simplicidade" e capacidade de escu140 Hegel, 1969-79, vol. VII, p. 403 (Grundlinien der Phi/osophie desRechts, § 258 A, nota). 141 Cf. Losurdo, 1 997 a, cap. V, 4 e Losurdo, 2001, cap. XV, 2. 142 Stirner, 1 967, vol. 1, pp. 135 s. e 169 s. e passim. 143 Cf. Parrington, 1 969, vol. II, p. 491. 144 Burke, 1 826, vol. V, pp. 104 e 79 ( Burke, 1 963, pp. 210 e 193). 145 Gentz, 1 967, p. 70. 1 46 Burke, 1826, vol. V, pp. 168 e 172-3 (= Burke, 1963, pp. 257 e 260-1). =

tar "a voz da natureza") são atribuídas por Burke aos ingleses, e sempre em oposição à modernidade, a qual encontra no iluminismo e na Revolução Fran­ cesa a sua manifestação mais ruinosa. Os ingleses estão bem conscientes de que no preconceito está contida uma "sabedoria latente", uma sabedoria pro­ funda e extensa, que, tendo se acumulado no decorrer dos séculos, se torna "instinto". 147 Analogamente, aos olhos de Nietzsche, Sócrates errou ao nutrir desprezo pela "sabedoria incônscia" (unbewujJte Weisheit), pela "sabedoria instintiva" (instinktive Weisheit), por tudo "o que é instintivo" (ST; 1, 542). Urna carga de dissolução e subversão está inerente nesta atitude de suspeita e de hostilidade em relação àquilo que subsiste ou é afirmado "só por instinto". Sim, o socratismo condena tanto a arte vigente quanto a ética vigente: para onde quer que ele volte o seu olhar indagador, vê a falta de juízo (Mangel der Einsicht) e o poder da loucura (Macht des Wahns), e dessa carência deduz a íntima improce­ dência e reprovação de quanto existe no presente (GT, 13; 1, 89).

E de novo somos reconduzidos à polêmica de Burke travada contra a pre­ sunção dos "iluminados" (enlightened): "O fato de um sistema ser velho lhes parece boa justificativa e motivo suficiente para destruí-lo [ .. .]. Neles, a suspeita, enquanto levar a marca da duração, é erigida em sistema". Mas - prossegue o whig inglês - não é lícito "permitir que esses humanos vivam e ajam seguindo apenas as luzes da própria racionalidade individual, porque suspeitamos que tal seguimento seja bastante limitado em cada indivíduo".148 Analogamente, Nietzsche completa assim a sua acusação contra o proto-iluminsta grego: Sócrates acreditou dever corrigir a existência: ele, sozinho (der Einzelne), entra com ar de desprezo e de superioridade, qual precursor de uma civiliza­ ção, de urna arte e de uma moral completamente diferentes, num mundo onde atribuiríamos à nossa máxima sorte conseguir colher com veneração um frag­ mento (GT, 13; L 89-90).

Burke ridiculariza. o "espírito de proselitismo" religioso que preside ao pro­ jeto de demolição do Antigo Regime em nível internacional, 149 e repreende os revolucionários por quererem santificar o ano de 1 789 como o "ano da emanci­ pação" (the emancipating year), ou seja - reforça o tradutor alemão do whig inglês -, como o "ano da redenção" (Erlosungsjahr).150 Nietzsche, por sua 147 Burke,

1826, vol. V, pp. 168 e 174-6 ( Burke, 1963, pp. 257 e 262-3). Burke, 1 826, vol. V, pp. 168-9 ( Burke, 1963, pp. 257-8). 149 Burke, 1 826, vol. VII, pp. 13-14; sobre isto cf. Losurdo, 1996, cap. III, 4. 15º Burke, 1 826, vol. V, p. 83 (cf. Burke, 1963, p. 195) e Gentz, 1 967, p. 73. =

148

=

vez, denuncia a "atividade missionária de Sócrates", o qual acha "a sua erística improdutiva" exatamente com "a seriedade e a dignidade de uma missão divi­ na" (ST; 1, 5 4 1 ) . Segundo Burke, o que leva a fazer calar "o sentimento comum do natural" (the commonfeeling ofnature) é o "fanatismo", ou melhor, o "fanatismo selva­ gem" (direfanaticism) da consciência revolucionária151 que, na França de 1 789, já se alastra na agitação anabatista de dois séculos antes. Uma linha de continui­ dade, dentro do princípio de um exaltado espírito missionário, leva das guerras religiosas às lutas desencadeadas pelos protagonistas de 1 789 e, com maior ra­ zão, pelo jacobinismo.152 Também esses temas estão bem presentes em Nietzsche, que rotula Sócrates como um "fanático da consciência" (VII, 4 1 ), um "fanático da dialética" (VII, 22), ou seja, um "dialético fanático" (VII, 1 7). Uma clara linha de continuidade, de Burke a Nietzsche, caracteriza o diag­ nóstico da doença, mas o seu surgimento conhece agora uma drástica retrodatação. As origens da cruzada contra o "preconceito", ou seja, contra o "instinto" são pesquisadas e investigadas já em terra grega, mais de dois milênios antes da difusão do iluminismo propriamente dito. "Eurípides é o poeta do racionalismo (Rationalismus) socrático (ST; 1, 540), e tanto o filósofo como o poeta são um e outro expressões de um "intelectualismo temerário" (verwegene Verstéindigkeit) (ST; 1, 537-8) e de uma "dúvida filosófica das luzes" (zweife/hafte Aujk/arung) (GT, 13; 1, 88). Ambos se posicionam como "agitadores do povo" (VolksveljUher), como bem compreendem os "sequazes do 'bom tempo antigo "', os defensores, em última análise, do Antigo Regime (GT, 13; 1, 88). É apartir dessa agitação que se cria uma "massa influenciada pelas luzes" (aufgeklarte Masse), uma "cama­ da burguesa média" (bürgerlicher Mittelstand) e uma "mediocridade burgue­ sa" (bürgerliche Mittelmaj3igkeit), sobre os quais Eurípides pode fundar "as suas esperanças políticas" (ST; 1, 535; SGT; 1, 605 ) . Não há dúvida. Já em terra grega se manifesta o fanatismo das luzes, pelo qual são afetados o "ímpio Eurípides" e os "Lucianos zombadores da antiguida­ de" (GT, 1 0; 1, 74). Significativamente, a referência crítica ataca um autor defini­ do e celebrado por Engels como "o Voltaire da antiguidade clássica".153 O fana­ tismo da lógica chega ao seu ápice em Sócrates. A pretensão insana segundo a qual "tudo deve ser consciente para ser ético" (VII, 4 1 ) comporta não só o ani­ quilamento da tragédia (VII, 22), mas também o advento da "democracia", a qual "vence enquanto racionalismo e enquanto combate contra o instinto" (VII, 46). 1 5 1 Burke, 1 826, vol. V, pp. 278 e 279 nota (= Burke, 1963, pp. 334 e 335 nota).

152

Cf. Losurdo, 1996, cap. III, 4.

1 53 Marx-Engels, 1955, vol. XXII, p. 45 1.

Platão é continuador de Sócrates. Ele travava uma luta mortal contra todas as relações estatais existentes e era um revolucionário do tipo mais radical. A exigência de formar os conceitos jus­ tos de tudo parece inócua; mas o filósofo que crê tê-los encontrado trata todos os outros homens como ignorantes e imorais, e todas as suas institui­ ções como tolices e obstáculos ao verdadeiro pensar. O homem dos concei­ tos justos querjulgaie dominar; acreditar possuir a verdade foma fanáticos. Essa filosofia partia do desprezo da realidade e dos homens; ela revela bas­ tante depressa uma tendência tirânica (KGA, II, 4, p. 155).

Como na cultura liberal e conservadora do tempo, também em Nietzsche a critica das ideologias revolucionárias abstratas acompanha a denúncia dos inte­ lectuais que as incarnam: "Do meu Estado ideal expulsarei os chamados 'intelec­ tuais' (Gebildeten), como Platão queria expulsar os poetas" (VII, 1 64). São os anos em que Treitschke exprime a esperança de "que o terror desta guerra leve embora, como uma chuva purificadora, o calor sufocante brumoso do moderno intelectualismo" ( Üb erbildung), da pseudocultura iluminista e revolucionária.154 Aliás, é o próprio Bismarck que, a partir da denúncia do movimento niilista, previ­ ne contra os efeitos ruinosos, tanto na Rússia como na Alemanha, da Überbildung, de um intelectualismo abstrato e intrinsecamente subversivo.155 Alvo da polêmica tanto de Nietzsche e de Treitschke como de Bismarck, é, em última análise, a figura do intelectual sem raízes e engagé, que, exatamente naqueles anos, começa a adquirir na França uma consistente evidência sociológica e política; só que o primeiro acha que pode situarjá em Sócrates o ponto de partida e o modelo de tal figura. Já em terra grega surgiu o intelectual "iluminista e dissolvente (Aujkléirer und Aujloser) da natureza e do instinto" e, ao mesmo tempo, animado por "paixão política" (VII, 85), o "homem teórico" empenhado não só em "comba­ ter a sabedoria e a arte dionisíacas" e em "dissolver o mito'', mas também em produzir "uma correção do mundo por meio do saber" (GT, 17; 1, 1 1 5).

2. Hybris da razão e reação "neocriticística " A cruzada contra o preconceito produz um efeito de desilusão em relação à sociedade existente, a qual agora, tendo desaparecido a veneração e o respeito acumulados nos séculos, torna-se corpo exangue para os experimentos da razão. 1 54 ln Fenske, 1 977, p. 426; sobre isto cf. Losurdo, 1997 a, cap. XIII, 12 . 1 55 Bismarck, s. d., vol. III, p. 50. .2.1

As consequências de tal atitude são desastrosas. Burke exprime todo o seu "hor­ ror" por aqueles revolucionários ou reformadores impetuosos, os quais não hesi­ taram em "cortar em pedaços o corpo do seu velho genitor para pô-lo no caldei­ rão do feiticeiro na esperança de que ervas venenosas e encantamentos estra­ nhos possam devolver-lhe saúde e vigor".156 Com uma imagem diferente, mas de significado análogo, se exprime Nietzsche, sempre partindo daquele proto­ iluminsta que, aos seus olhos, é S.ócrates: "Quem é esse que ousa sozinho negar a essência (Wesen) grega", dissolvendo a "estupefata admiração" que ela mere­ ce? "Que força demoníaca é essa, que pode atrever-se a derrubar no pó um tal filtro encantado? Que semideus é esse, para o qual o coro dos espíritos dos mais nobres entre os homens deve gritar: 'Ai! ai! tu destruíste o belo mundo, com pulso poderoso; ele cai, ele desaba! "' (GT, 13; 1, 90). Mais ainda que a Burke, somos remetidos a Taine, também ele empenha­ do em sublinhar as consequências desastrosas da cruzada iluminista contra o "preconceito" com uma linguagem que faz pensar mais uma vez na linguagem de Nietzsche: eis que "o encanto está quebrado" e com ele dissipa-se o prestí­ gio e a solidariedade de uma ordem político-social, de um mundo inteiro.157 É o início de uma ferida que não consegue mais cicatrizar. A denúncia da hybris da razão, a qual leva a julgar que a sociedade seja manipulável à vontade, está largamente difundidá nos intelectuais ocupados na crítica da revolução. O livro de um membro da emigração contra-revolucioná­ ria francesa tem um título explícito: De l 'usage et de l 'abus de l 'esprit philosophique au dix-huitieme siecle . [Do uso e do abuso do espírito filo­ sófico no Século XVJl/}158 Em terra alemã, Adam Müller polemiza contra a louca pretensão dos filósofos de transformar o Estado num objeto dos "seus experimentos", 1 59 com o olhar mais propriamente voltado para o jacobinismo e para o proto-socialismo; Tocqueville põe as ruinosas expérimentalions do ci­ clo revolucionário francês na conta da louca pretensão, iluminista e racionalista, de poder descobrir e impor um "remédio [político] contra esse mal hereditário e incurável da pobreza e do trabalho".160 Para voltar à proximidade imediata de Nietzsche, vemos Rohde indicar a Comuna de Paris como a saída final da "ilusória representação de poder medir todos os abismos com a corrente da lógica", da "ética puramente lógica", do 156 Burke, 1 826, vol. V, p. 1 83 (= Burke, 1 963, p. 268). 157 Taine, 1899, vol. li, pp. 17-18 ( Taine, 1986, pp. 387-8). 158 ln Baldensperger, 1 968, vol. li, p. 45. 159 Müller, 1935, p. 213. 160 Tocqueville, 195 1, vol. XVI, p. 240. =

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otimismo teórico e prático.1 61 A consciência criticista dos limites da razão se configura agora como o único antídoto possível para a loucura revolucionária. É mérito da grande filosofia e cultura alemã tê-lo preparado: "De fato, no nosso povo, aquela presumida onipotência do conhecimento lógico foi vitoriosamente rechaçada com o criticismo kantiano no seu âmbito de força que está limitado ao fenômeno" . 1 62 Quem se exprime assim é o resenhista de O nascimento da tragédia, o qual extrai esse argumento da obra resenhada. Esta chama respeitosamente a atenção contra "a desgraça que cochila no seio da cultura teórica"; é preciso, de uma vez para sempre, "esconjurar o perigo" inerente à pretensão iluminista e racionalista de poder penetrar completamente o real. Felizmente, "grandes criaturas, com dons universais, souberam utilizar com incrível perspicácia o aparato da própria ciência para mostrar os limites e a natureza condicionada do conhecimento enquanto tal e para negar de modo tão decisivo a pretensão da ciência a uma validade universal e a objetivos universais". Sim, "a enorme coragem e sabedoria de Kant e Schopenhauer conseguiram obter a vitória mais difícil, a vitória sobre o otimismo que se esconde na essência da lógica, a qual é, afinal, o substrato da nossa cultura" (GT, 1 8; 1, 1 1 7-8). Vale a pena notar que esse reconheCimento ocorre no mesmo parágrafo que denuncia o horror da Comuna de Paris e o perigo iminente da "classe bárbara dos escravos" em revolta. Isto é, toma-se de decisiva importância pol ítica adquirir, na esteira de Kant e Schopenhauer, a consciência do absurdo da crença "na cognoscibilidade e atingibilidade de todos os enigmas do mundo" (GT, 1 8; 1, 1 1 8). A hybris da razão é o pressuposto da engenharia social revo­ lucionária: o "intelecto unilateral", próprio do racionalismo socrático, alimenta "uma vontade monstruosa" (ungeheuer) (ST; 1, 541). Deparamo-nos aqui com um tema central de O nascimento da tragédia e dos textos que o prepararam: "Pela sua excessiva (übermãj3ig) sabedoria, que resolveu o enigma da Esfinge, Édipo teve de precipitar-se num irresistível turbilhão de atrocidades" (GT, 4; 1, 40). Mas um significado análogo tem tam­ bém o recurso ao mito de Prometeu, como esclarece particularmente um escri­ to do mesmo período: "Com Prometeu, é mostrado à grecidade um exemplo de como um excessivo (übergroj3) avanço no conhecimento humano atua de modo igualmente ruinoso para quem promove tal avanço e para quem usufrui dele" (DW, 2; 1, 5 65). E de novo somos reconduzidos à publicística envolvida na crítica da revolução; para dizer com Gentz, o tradutor de Burke na Alemanha, 161

Rohde, 1972 b, p. 207. 1972 a, p. 195.

162 Rohde,

"a sobrecarga de saber" (Uebermaft des. Wissens) pode ser "ruinosa para a humanidade" e é, portanto, necessário refreá-la.163 Por outro lado, na Alemanha do século XIX está amplamente difundida a refe­ rência a Kant e ao criticismo em função exatamente da distância tomada em relação � hybris da razão censurada ao projeto iluminista e revolucionário. Para citar um autor conhecido de Nietzsche, Trendelenburg não se cansa de sublinhar que o saber do homem está em condições de .colher apenas um "fragmento" (Brnchstück) da realidade e, portanto, se configura como um simples "esboço" (Stückwerk).1M Nem a limitação dos poderes cognoscitivos do homem deve constituir motivo de escândalo: como não se admirar com a limitação do olho humano, que não pode perscrutar o "sol celeste" (Himmelssonne), mas apenas a "claridade terrestre" (Erdenhelle), assim não devemos escandalizar-nos diante da afirmação pela qual o pensamento humano pode penetrar exclusivamente "o círculo do finito e do limitado" .165 Também para Stahl, a razão deve saber contentar-se em obter um "frag­ mento" (Bruchstück): "Não é preciso dar ocasião à soberba do pensamento de crer que o homem pode penetrar na vontade eterna e desvelar o segredo de cada coisa"; é absurda a pretensão de produzir "um sistema uniforme que abranja o universo inteiro".166 Novamente, e de modo ainda mais declarado, o evidenciamento dos limites da razão e o apelo direto ou indireto ao criticismo estão em função de uma denúncia da arrogância da razão iluminista e revoluci­ onária. Sobretudo depois de 1 848, a tomada de distância da revolução é moti­ vada com uma explícita referência a Kant. É o caso de Haym - ainda um autor conhecido de Nietzsche - que explica assim a sua evolução intelectual e políti­ ca e o seu repúdio do radicalismo juvenil: A fé ingênua, segundo a qual na razão especulativa nos seria dado um instrumento infalível para iluminar a fundo a profundidade da verdade, a essência de Deus e do mundo, começou a vacilar; vislumbrei a convicção de que nós, com todo o nosso conhecimento, não nos encontramos num con­ tinente que se alarga até o infinito - nesae ponto não acreditei em Kant - mas numa ilha circundada pelo mar. 167

Nesse sentido, já em 1 863 Haym declara considerar o autor da Crítica da razão pura o "maior filósofo que jamais existiu".168 Independentemente tam1 6J Gentz, 1836- 1838, vol. 1, p. 2. 1 64 Trendelenburg, 1964, vol. II, pp. 494-495. 165 Trendelenburg, 1964, vol. II, p. 492. 166 Stahl, 1 963, pp. XXII-XXIV. 1 67 Haym, 1902, p. 147. 168 Haym, 1930, p. 2 12.

bém da referência a Kant, na cultura europeia empenhada na crítica da revolu­ ção e de suas diversas etapas, torna-se um motivo recorrente o alerta contra "a temeridade presunçosa da inteligência".169 Em consonância com a cultura na­ cional-liberal do tempo, Nietzsche acusa Strauss, empenhado em liquidar a ve­ lha fé em nome da razão, de ter permanecido aquém dos resultados do criticismo: Ele não tem conhecimento algum da antinomia fundamental do idealismo e do sentido extremamente relativo de cada ciência e razão. Noutras palavras: exatan1ente a razão deveria dizer-lhe quão pouco se pode estabelecer com a razão sobre o "em si" das coisas (VII, 587).

Então se toma inevitável o ajuste de contas com Hegel, crítico impiedoso desse "criticismo", ou seja, dessa "desesperação na razão", que, renegando "a coragem da verdade e a fé na potência do espírito'', condena o mundano e terreno a uma opacidade irremediável . 170 Na afirmação da incognoscibilidade do absoluto, Hegel divisa "o último degrau da humilhação do homem".171 En­ tretanto, "enquanto o homem ainda tiver fé na dignidade do seu espírito, tem ainda a coragem da verdade" e, por conseguinte, rejeita o kantismo.172 A esse criticismo, na realidade sinônimo de problematicismo fátuo e de cunho conservador, a Fenomenologia fornece uma crítica impiedosa: O medo da verdade poderá ocultar-se a si e aos outros por trás da dissimu­ lação de que o inflamado zelo pela própria verdade torna difícil, até impossí­ vel, encontrar outra verdade fora daquela única vaidade de ser sempre mais inteligente do que qualquer pensamento que seja, provenha ele de si mesmo ou de outro; essa impotência, que é capaz de tornar vã qualquer verdade para voltar-se depois em si mesma e que se alimenta de seu próprio intelecto, o qual, dissolvendo todo pensamento, não sabe encontrar um conteúdo, mas apenas o árido eu. 173

Quer dizer, em virtude da liquidação da objetividade do conhecer, a pretensa rejeição do dogmatismo do objeto desemboca no dogmatismo do sujeito. Sobre o "prometeísmo" de Hegel concordavam não só os adversários, mas também os discípulos. 174 Não faz sentido falar a tal propósito - acrescen­ ta Trendelenburg com transparente referência a Hegel - de "descrença" 169 Guizot, 1849, p. 9. 110 Hegel, 1956 b, pp. 7-8. 171 Hegel, 1 966, vol. I, p. 5. 172 Hegel, 1966, vol. I, p. 42. 173 Hegel, 1969-79, vol. III, p. 75. 174 Rosenkranz, 1966, p. 2 16.

( Ung/auben) ou "preguiça" (Trãgheit) do pensamento.175 Na vertente opos­ ta, é muito dura a polêmica de Rosenkranz contra "a ignorância padresca e a imbecilidade pietista", a qual não se cansa de repetir que a razão do homem é limitada, que o seu conhecimento é apenas Stückwerk.1 16 O "sonho de uma onisciência feliz'', que Gentz denuncia nos revolucioná­ rios, 177 parece encontrar o seu pendant filosófico na filosofia hegeliana, com a sua afirmação da total transparência do real à razão e ao seu ideal de saber absoluto. Dando expressão a uma tendência amplamente difundida entre a es­ querda hegeliana, Herzen acha. que pode ler a dialética como uma "álgebra da revolução" (infra, cap. 1 7 § 1). E, nesse momento, a hostilidade e até a repug­ nância que Nietzsche percebe nos confrontos de Hegel é a hostilidade e a repugnância que percebe nos confrontos da "álgebra da revolução".

3. A radicalização do neocriticismo:

a

verdade como metáfora

Mas então, onde reside a originalidade do jovem filólogo-filósofo? Já tive­ mos ocasião de constatar a radicalidade que caracteriza os balanços históricos feitos por ele, sobretudo no sentido de que, longe de se limitarem ao presente e ao passado próximo, eles partem de muito longe. A hybris da razão não data a partir só do iluminismo e da Revolução Francesa. Já em terra grega se mani­ festou "o incontrolado impulso cognoscitivo" que "barbariza do mesmo modo que o ódio pelo saber"; por algum tempo, os helenos tiveram êxito numa em­ presa assaz dificil, "domaram o seu impulso cognoscitivo, em si insaciável, por um olhar sobre a vida" (PHG, 1 ; 1, 807). Mas, no fim, eles mesmos foram dominados. É o triunfo de Sócrates, em vão criticado por Aristófanes pelo seu apego às "sutilezas abstratas" (ST; 1, 544). Desenvolveu-se assim um ciclo ruinoso que só agora parece poder ser bloqueado e neutralizado: finalmente, a filosofia alemã conseguiu pôr em crise o "socratismo científico, mediante a demonstração de seus limites" (GT, 19; 1, 1 28). Mas não é tudo. A condenação do "homem teórico", que se ilude de poder penetrar na essência íntima das coisas, adquire uma radicalidade sem prece­ dentes também no sentido que, indo bem além de Kant, não se satisfaz mais com a distinção entre fenômeno e númeno. É a objetividade do conhecer en­ quanto tal que está em discussão; ela não pode mais reivindicar para si nem 175 Trendelenburg, vol. II, p. 492. 176 Rosenkranz,

1862, vol. 1, p. 85.

1 77 Gentz, 1836-8, vol. 1, p. 3.

sequer o âmbito restrito do fenômeno. É uma tendência que se pode já ler em Schopenhauer, mas que com Nietzsche conhece um relance ulterior. Bem con­ siderado, a "verdade" é apenas "um exército móvel de metáforas" (WL, 1 ; 1, 880), ou melhor, uma "metáfora soberba" (CV, 1 ; 1, 759). Vimos Haym compa­ rar o conhecimento com uma ilha minúscula circundada por um mar tempestu­ oso; agora até a ilha está submersa. Ou, para retomar as imagens de outros expoentes do neocriticismo, um saber não só objetivo, mas também como tota­ lidade, como pretendia Hegel, não é pensável nem mesmo como "fragmento". Devemos voltar a essa radicalização do "criticismo", na qual se empenha­ ram dois textos um pouco posteriores a O nascimento da tragédia, ou seja, Sobre o pathos da verdade e Sobre a verdade e a mentira em sentido extramoral. Convém, no entanto, desde agora fazer uma pergunta: o que é aquilo que o jovem Nietzsche contrapõe à hybris da razão que ele, como sabe­ mos, não se cansa de denunciar? A cada vaga das incessantes agitações que se sucederam na França e na Europa, a partir de 1 789, a crítica da revolução apresenta um elemento de continuidade, que consiste na denúncia da arrogância e da hipertrofia da razão, que está no fundamento da subversão. Contudo vemos que, à medida que se desenvolve o processo de escolarização, a religião passa a ser sempre mais apoiada e depois substituída por outros antídotos. Já nos anos 1 830, um modes­ to filósofo ligado ao teísmo, e rotulado como "demente" por um rápido aceno de Nietzsche (VII, 5 1 0), à "vazia generalidade do conceito" opõe "a intuição espi­ ritual, poética e religiosa".178 Não muito diferente é, em última análise, a atitu­ de de Schopenhauer, que à razão como instrumento da vontade de viver con­ trapõe a arte e a religião-compaixão. Podem-se surpreender ainda, no jovem Nietzsche, elementos residuais dessa duplicidade, pois ele censura na rasura positivista de Strauss o fato de não ter "nenhum conceito do cristianismo" (VII, 592), da sua força e capacida­ de de sedução espiritual . O nascimento da tragédia celebra a "sabedoria" (Weisheit) que, "sem se deixar enganar pelos sedutores desvios da ciência, volta-se com olhar imóvel para a imagem total do mundo", dando prova do "heróico salto para o imenso" (GT, 1 8 ; 1, 1 1 8-9). Esta identificação extra-raci­ onal, intuitiva e simpatética com a totalidade conserva algo do frêmito religioso, embora cedendo o lugar à "doce loucura do entusiasmo artístico", contra a qual infelizmente Sócrates é totalmente imune (GT, 14; 1, 92). Às vezes, em contraposição ao mundo da história e da razão, são invocadas conjuntamente e de modo explícito arte e religião: "Chamo de 'supra-históri178

Weisse, 1 832, pp. 42-3.

cas ' as potências que desviam o olhar do devir, voltando-o para o que dá à existência o caráter do eterno e do imutável, à arte e à religião" (HL, 1 O; 1, 330). Seja como for, os dois temas tendem a fundir-se num só: "A minha reli­ gião, se posso ainda definir assim a minha atitude, reside no trabalho para a produção do gênio" (VIII, 46). Como se vê, delineia-se uma virada: A luta contra a hybris da razão é conduzida, sobretudo, em nome da arte. Para dizer com Rohde, o "altíssimo ato de consciência científica", a que se elevaram Kant e Schopenhauer, abre o espaço para "as niais nobres aspirações a uma civiliza­ ção verdadeiramente artística". 179 Por outro lado, como para os grandes críticos da revolução, também para o jovem Nietzsche a ciência que se desenvolve unilateralmente e sem controle é sinônimo de destruição e de morte. O antídoto é representado por uma "sabedoria" superior, que respeite os instintos e seja amiga da verdade, que agora coincide com a arte. "O socratismo despreza o instinto e por isso nega a arte. Ele nega a sabedo­ ria exatamente lá onde se encontra a sua esfera mais peculiar"; pelo fato de desco­ nhecer a "sabedoria instintiva", a "sabedoria inconsciente", o mundo de Sócrates é "um mundo absurdo e invertido" (ST; 1, 542). Mas "a arte é mais poderosa que o conhecimento, pois quer a vida, enquanto o conhecimento alcança como seu fim último somente o aniquilamento" (Vernichtung) (CV, 1 ; 1, 760).

4. Direitos do homem e antropocentrismo Junto com a reivindicação da "felicidade", Nietzsche empenha-se em cri­ ticar e desconstruir a outra palavra de ordem fundamental proveniente da Re­ volução Francesa, aquela que faz referência ao "homem" enquanto tal, o titular do direito à felicidade. Simples "alucinações conceituais" são os discursos so­ bre a "dignidade do homem", a "dignidade do trabalho", os "direitos iguais para todos" e os "direitos fundamentais do homem" que desejariam eliminar toda distinção entre livres e escravos, entre senhores e servos (CV, 3 ; 1, 765-6). Para libertar-se desse montão de ninharias modernas, é preciso voltar decidi­ damente para trás : "a humanidade (Humanitat) é um conceito absolutamente não grego" (VII, 1 27). O conceito universal do homem é a abstração de uma razão que se tomou autônoma do instinto e da sabedoria instintiva. Até aqui estamos na presença de um motivo recorrente na cultura empe­ nhada na crítica da revolução. Remete mais diretamente ao jovem Nietzsche a radicalidade do gesto com que o "objeto homem" (Menschending) é conside1 79 Rohde, 1972 a, pp. 195-6.

rado como algo "desprezível e miserável" (CV, 3 ; 1, 765). Mas é particularmen­ te significativa a "fábula" que Nietzsche conta para a refutação definitiva do projeto revolucionário: Num canto remoto qualquer do universo cintilante e difuso nos infinitos siste­ mas solares, era uma vez um astro, no qual animais inteligentes descobriram o conhecimento. Foi o minuto mais arrogante e mais mentiroso da "história universal" ( Weltgeschtchte ); mas tudo isso durou somente um minuto. Depois de alguns respiros da natureza, a estrela solidificou-se, e os animais inteligen­ tes tiveram de morrer (WL, l ; 1, 875; cf. também CV, l ; 1, 759-60).

Em virtude dessa enorme dilatação do espaço e do tempo, problemático ou quixotesco parece o discurso sobre os direitos do homem e sobre o homem como tal, agora tomado um "animal inteligente" que vive junto com infinitos outros ani­ mais, colocados num minúsculo planeta disperso num dos "infinitos sistemas sola­ res". Poucos anos mais tarde, Nietzsche escreverá: ''Homem! O que é a vaidade de um homem mais cheio de si diante da vaidade que possui o mais modesto, pelo fato de sentir-se na natureza e no mundo como 'homem'?" (WS, 304). Obviamente, por trás também deste tema há uma tradição. Podemos ler em Malthus: Quando nos esforçamos para contemplar o sistema do universo, quando pen­ samos que as estrelas são sóis de outros sistemas espalhados por todo o espaço infinito, quando refletimos que a nossa vista talvez não capte um núlionésimo daquelas esferas lunúnosas que irradiam luz e vida a mundos inumeráveis, quando a nossa mente, incapaz de pegar o incomensurável, mer­ gulha, perdida e confusa, na admiração do grandioso e incompreensível poder do Criador, não nos abandonemos ao plangente lamento de que nem todos os climas são igualmente apropriados, que a eterna primavera não reina o ano todo, que nem todas as criaturas de Deus gozan1 das mesmas vantagens. 180

Não há dúvida acerca dos pressupostos antropológicos do discurso dos direitos do homem, axiologicamente separado dos outros entes naturais e colo­ cado numa situação privilegiada. Zombando da ênfase antropocêntrica de Rousseau, Taine cita um trecho magniloquente do Emílio, e para a exatidão, da Profissão de fo do vigário saboiano : Indiquem-me um outro animal na terra que saiba fazer o fogo e que saiba admirar o sol. O quê? Posso observar, conhecer os outros seres e a sua relação, posso sentir o que é ordem, beleza, virtude; posso contemplar o 18º Malthus,

1 977, p. 182.

universo, elevar-me até à mão que o governa; posso amar o bem, fazê-lo, e deverei comparar-me aos animais? 181 A consciência da relação entre antropocentrismo e proclamação revoluci­ onária dos direitos do homem está bem presente já em Schopenhauer, o qual, depois da revolução de 1 848, cita e subscreve a tese de Gobineau, segundo o qual o homem pode ser distinguido em relação às outras espécies animais, mas não mais pela sua excelênciá; mas, ao contrário, ele é "/ 'animal méchant par excellence" . 182 Esta espécie de inversão polêmica da usual hierarquia antropocêntrica volta em Nietzsche, mas numa versão diferente, que não com­ porta nenhum juízo moral: o espetáculo do animal "apegado ao instante", e, portanto, "nem triste nem aborrecido", "faz mal ao homem, dado que, em com­ paração com o animal, ele se vangloria da sua humanidade e, no entanto, olha com inveja a felicidade daquele - já que só ele quer isto, viver como o animal nem aborrecido nem entre dores, mas em vão o quer" {HL, l ; 1, 248). A tradição judeu-cristã é colocada em discussão por Schopenhauer tam­ bém por causa do seu antropocentrismo cruelmente exclusivo, que considera a espécie humana como a única digna de atenção e de respeito, enquanto reduz os animais a "simples 'coisas ', meros instrumentos". 183 Durante a sua sucessi­ va evolução, Nietzsche censurou Descartes por ter inspirado a revolução com o "racionalismo", um racionalismo que incita a celebração do homem como sujeito pensante a ponto de assimilar os animais a simples máquinas; no entan­ to, mais do que remeter ao hinduísmo e ao budismo, como faz Schopenhauer, o filólogo-filósofo parece tirar proveito da herança da cultura grega e da antigui­ dade clássica no seu conjunto (infra, cap. 2 1 § 7 e 1 5 § 5). Ele tem um bom faro ao intuir que o antropocentrismo, a delimitação de um espaço sagrado restrito, é uma precondição para o sucessivo surgimento do dis­ curso relativo aos direitos do homem e só do homem. E é a crítica aos direitos do homem proclamados pela Revolução Francesa que estimula a crítica ao antropocentrismo. De qualquer modo, fica estabelecido que, uma vez colocado o "animal inteligente" naquela infinitude sem centro e pontos de referência, de que fala a "fábula" já vista, a crítica da hybris da razão encontra um fundamento novo e mais fascinante: deveria ficar agora evidente a todos "quão mísero, espectral, fugaz, sem objetivo e arbitrário é o comportamento do intelecto humano no âmbi­ to da natureza" (WL, 1 ; 1, 875). Aliás, é uma estratégia argumentativa presente já em Malthus: "O intelecto nasce de um grão de matéria, continua em pleno vigor 18 1 Taine,

1 899, vol. II, p. 32 (= Taine, 1986, p. 402). 1 976-82 c, vol. V, p. 253; Gobineau, 1997, p. 785 (livro VI, cap. III). 1976-82 d, p. 69 1 .

1 82 Schopenhauer, 183 Schopenhauer,

só por um certo período e não será, talvez, susceptivel, enquanto permanecer na terra, de receber mais que um certo número de impressões".184 No entanto, a sistematização e a radicalização destes motivos, às quais procede Nietzsche, implicam um salto de qualidade. Já conhecemos o dúplice movimento mediante o qual é desconstruído o conceito de homem enquanto tal, por um lado dissolvido nas infinitas realidades irredutivelmente individuais que ele em vão procura unificar e. homologar numa única espécie, por outro lado absorvido sem resíduo na natureza e colocado num plano de igualdade com as outras espécies animais. Se a teorização revolucionária dos direitos do homem intui um sinal de igualdade dentro do mundo humano e um sinal de diferença entre este último e o mundo animal e natural circundante, Nietzsche procede de modo exatamente oposto, enfatizando, por um lado, a diferença entre homem e homem e, por outro lado, a continuidade entre homem e natureza. O direito ao trabalho, à vida, à felicidade, em suma as reivindicações que começam a ser feitas exatamente pelo movimento operário, são desdenhosamente rejeitadas, negando que o homem possa ocupar na natureza uma posição privilegiada em relação a qualquer "ínfimo verme" (infra, cap. 1 0 § 3).

5. "Metafisica do gênio " e elitismo cultural Negada na relação entre mundo humano, por um lado, e mundo animal e natural, por outro, a descontinuidade reaparece em forma radical no âmbito da espécie humana; já como estudante universitário, Nietzsche sublinha a solidão dos "heróis do espírito". Separado deles por um abismo intransponível é o Dummkopf, o "tolo" que, na sua obtusa e quase animalesca busca da "felicida­ de", parece de fato descender do macaco (B, 1, 2, p. 84). Embora com lingua­ gem diferente, a um resultado igual chega Malthus que, depois de ter afirmado a preeminência na vida dos "prazeres do intelecto", prossegue deste modo: "Mas como posso comunicar esta verdade a uma pessoa que na prática jamais provou um prazer intelectual? Seria como procurar explicar a um cego a natu­ reza e a beleza das cores [. . .]. Entre nós não existe metro comum".185 Bem presente também em Lagarde186 e em Wagner, 187 a celebração do gê­ nio, ou seja, da personalidade de exceção, em contraposição à mediocridade e à 184 Malthus, 1977, p. 183. 185 Malthus, 1 977, p. 128. 186 Lagarde, 1 937, p. 79. 187 Wagner 191 O 1, p. 46.

vulgaridade da massificação democrática, desempenha wn papel importante em Schopenhauer, que ao "gênio" ou seja ao "grande espírito de todo tempo" contra­ põe o "homem normal"188 ou, pior, o Alltagskopf, a rasa consciência comwn, o homem da rua e da cotidianidade.189 Deparamos com um motivo recorrente entre os autores e os ambientes frequentados por Nietzsche. Sim - reforça Rohde declarando-se plenamente de acordo com o amigo, "a promoção e a elevação do gênio" constituem o "vértic�" e o "fim" da civilização (B, II, 4, p. 622). Este motivo é tão importante que se olha em volta, também fora da Ale­ manha e até da Europa, em busca de autores que possam conferir ulterior autoridade e prestígio. Já a partir de 1 864, Nietzsche chama atenção para Emer­ son (B, 1, 3, p. 23 e B, 1, 2, p. 1 20), ou antes, como dirá oito anos mais tarde, para o "excelente Emerson" (B, II, 3 , p. 258). Compreende-se bem o interesse empático por um escritor empenhado numa celebração do "gênio" particular­ mente enfática: "a natureza parece existir só em função daquele que é exce­ lente"; não é por acaso que "toda mitologia inicia com semideuses'', basta a visão de um "gênio", de um "só grande homem", para se recuperar da vista de uma inteira "população de pigmeus" ou, pior, de "membros da sociedade priva­ dos de dignidade e ofensivos, cuja existência é uma peste social". 190 Emerson está em relação amigável com Carlyle. Graças a este último, Overbeck pensa ter conseguido esclarecer para si mesmo a "tarefa" que o espera, que é a busca da grandeza da beleza (B, II, 4, p. 233). Também Rohde olha com simpatia para o escritor inglês, esse "homem excelente, profundo e entusiasta", ainda que sobrecarregado pela retórica (B, II, 4, p. 422). É o autor que, depois de 1 848, ao tomar posição contra o abolicionismo americano e a agitação do movimento operário europeu, imagina um primeiro ministro britâni­ co dirigir-se nestes termos a mendigos e vagabundos, sobretudo irlandeses: "Sois claramente prisioneiros, não livres . . . Tendes a natureza dos escravos ou, se preferirdes, de servos que vagabundeiam à maneira dos nômades sem con­ seguir encontrar um patrão". Bem, alguém deve prover à massa, ou melhor, ao rebanho dos debandados, os quais, porém, devem submeter-se a uma dura disciplina, da qual não é lícito subtrair-se: à desobediência seguirá o "açoite" e, em caso de necessidade, a condenação à morte.191 É Engels quem relata esses trechos, o qual, por sua vez, comenta: "Imagi­ na-se que o açoite é genial"; enquanto a classe dominante é considerada "par1 88 Schopenhauer, 1976-82 c, vol. V, pp. 90-2 e Schopenhauer, 1976-82 a, p. 329. 189 Schopenhauer, 1 976-82 b, pp. 2 15 e 194; Schopenhauer, 1976-82 e, vol. IV, p. 213. 1 9º Elnerson, 1983 a, p. 615. 1 9 1 Carlyle, 1983, pp. 49-58.

ticipante do gênio", "toda classe oprimida, quanto mais duramente for oprimida, tanto mais é excluída do gênio". 192 Dir-se-ia que, no âmbito do processo de secularização, a participação no gênio tenha substituído a investidura divina como elemento de legitimação do domínio. O pensamento ocorre em Nietzsche, que nesse momento fala com simpatia do "venerável Carlyle". A ele se reconhece pelo menos o mérito de ter desejado, ainda que com motivações confusas, a "vitória" da Alemanha, um país que, ape­ sar de tudo, representa "a esperança de uma civilização futura", chamada a pôr fim de uma vez para sempre à "civilização degenerada e gasta" própria da Fran­ ça (VII, 5 1 4). A convergência é tanto mais fácil porque, neste momento, a cate­ goria de gênio tem um caráter um tanto formal e subsume em si, schopenhauerianamente, também a figura daquele que "anela mais profunda­ mente pela santidade, porque de seu observatório viu mais longe e mais clara­ mente que qualquer outro homem", chegando a avistar, além da "vontade nega­ da" e transcendida, "a outra margem de que falam os hindus" (SE, 3 ; 1, 358). É verdade, em seguida Nietzsche se expressa de modo impiedoso acerca do escritor inglês, cujo moralismo e persistente apego ao cristianismo põe a nu. Todavia, permanecem alguns elementos de consonância: a distância irrecuperável instituída entre homem comum e grande personalidade e, portan­ to, a ênfase na celebração do herói ou do gênio; ademais, como veremos, a tentação, que às vezes aflora, de evitar o perigo socialista mediante a militarização dos operários e dos "vagabundos" (infra, cap. 22 § 5). Bastante vital também fora da Alemanha, a celebração do gênio está pre­ sente igualmente em expoentes de primeira grandeza do l iberalismo. À avassaladora vaga niveladora Mill contrapõe uma visão da história não privada de analogias com a de Carlyle, do qual é resenhista assaz benévolo ou entusias­ ta e cujo "épico poema" sobre, ou melhor, contra a Revolução Francesa se vangloria de ter logo celebrado, antes de se fazerem ouvir os "críticos co­ muns", como "uma daquelas produções de gênio acima de qualquer regra e tendo vigor de lei por si mesmas".193 Não se trata de um debate puramente literário e estético, visto que Mill prossegue assim: "Tudo o que é sábio e nobre é iniciado, e deve sê-lo, por indivíduos, geralmente por um só. A honra e o mérito do homem médio estão no fato de que é capaz de seguir essa iniciativa". É verdade que o liberal inglês se defende antecipadamente da acusação de querer também ele proceder ao "culto do herói", mas só para proporcionar uma versão menos ameaçadora e mais adocicada, uma versão que, excluindo o 192 Marx-Engels, 1955, vol. VII, pp. 264-5. 193 Mill, 1965 a, pp. 133-166 (emparticularp. 133); Mill, 1 965 b, p. 225 (= Mill, 1976, p. 169).

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direito à violência, se limita a reivindicar para "o homem forte e de gênio [ . . . ] a liberdade de indicar o caminho" para a massa. 194 Estamos, pois, em presença de um motivo que conhece notável sorte a nível europeu. Se este "elitismo cultural" - como foi definido195 - começa a partir sobretudo da segunda metade do século XIX, tem pelo menos um século de histó­ ria. Já na segunda metade do século xvm, antes ainda do estouro da Revolução Francesa, em reação à luta c9ntra o privilégio feudal auspiciada pelos ambientes reformadores e às vezes promovida pelo absolutismo monárquico, tinha surgido no âmbito do primeiro conservadorismo alemão a celebração do "gênio", humi­ lhado pelo "despotismo" dos "medíocres" e pelo prevalecimento, no mundo mo­ derno, de regras "gerais" e niveladoras. 196 Em termos análogos, Rivarol censu­ rara ao absolutismo monárquico uma obra de achatamento que humilhara a aris­ tocracia e colocara "as obras do gênio" ao "alcance do populacho".197 A partir do estouro da Revolução Francesa, esta fora considerada como culpada por des­ prezar o "gênio" e faltar com "respeito pelas grandes personalidades". 198 Poder-se-ia dizer que a elaboração e a difusão do elitismo cultural são contem­ porâneas à crise do Antigo regime e ao desenvolvimento do processo de "massificação" moderna. Agora se compreende porque Marx se compromete a combater tal tema. A ideologia alemã parte de Stirner. Este, em polêmica contra as reivindicações niveladoras agitadas pela massa e pelo movimento socialista, à intercambiabilidade dos trabalhos e dos indivíduos comuns contrapõe a incomparabilidade e a unicidade de um pintor como Rafael. 199 Contra a pretensão de estabelecer uma espécie de barreira naturalista intransponível entre os homens, o teÀto de Marx e Engels chama a atenção para as condições sociais e materiais que tomam possível o surgimento dessas personalidades eÀtraordinárias da arte e da cultura: "A concentração exclusi­ va do talento artístico em alguns indivíduos e o seu sufocamento na grande massa, que está ligado a ela, é consequência da divisão do trabalho". 200 Já em Smith, Marx pudera ler: A diferença entre os talentos naturais dos homens é de fato muito menor do que se pensa, e, em muitos casos, as inclinações muito diversas que parecem distin­ guir na idade madura os homens de diversas profissões são mais efeito do que 194 Mill, 1972, p. 124 (= Mill, 1981, p. 97). 1 95 Struve, 1973, pp. 13 e s. 196 Mõser, 1842, p. 2 1 . 197 l n Matteucci, 1957, p . 263 nota 68. 198 Gentz, 1 836-1838, vol. II, p. 34. 199 Stimer, 1979, p. 281 . 200 Marx e Engels, 1 955, vol. III, pp. 378-79.

causa da divisão do trabalho. A diferença entre dois personagens tão diferentes como wn filósofo e wn vulgar carregador de rua, por exemplo, parece derivar não tanto da natureza quanto do hábito, do costume e da instrução. 201

Neste sentido, o homem de massa e o gênio são duas faces diferentes de uma mesma realidade social, e as duas figuras se movem num espaço e em condições historicamente e materialmente determinadas: Rafael, como qualquer outro artista, era condicionado pelos progressos téc­ nicos realizados antes dele, pela organização da sociedade e pela divisão do trabalho na sua cidade e, enfim, pela divisão do trabalho em todos os países com os quais a sua cidade mantinha relações. Que um indivíduo como Rafael possa desenvolver o seu talento, depende da divisão do trabalho e das condições culturais dos homens que dela derivam. 202

O significado político da celebração do gênio não só é evidente, mas às vezes tem um valor até imediato. No momento da Restauração, intervindo no debate político-constitucional que precede, na França, a aprovação da Carta, o ex-jacobino Gõrres identifica a única ideia "liberal e generosa" na proposta de uma Câmara Hereditária dos Iguais, ideia que "impede o tumulto das eleições, favorece o talento, torna permanentes o gênio e a virtude".203 No jovem Nietzsche podemos ler o seguinte apontamento: "Marchar em fileira. Aversão pelo gênio. O homem 'social '. O socialismo" (VII, 259). Como antes da Revolução Francesa, as�im agora o "gênio" é contraposto à revolução socialis­ ta que parece perfilar-se ameaçadoramente no horizonte. O Stimer contra o qual Marx e Engels polemizaram nos leva à proximida­ de de Nietzsche. Por outro lado, exatamente nos anos da juventude deste últi­ mo, Haym atribui à cultura romântica o mérito de ter sabido reivindicar os direitos da "genial imediatez".204 Ao elaborar o motivo do gênio, além do iluminismo, Haym questiona também a filosofia hegeliana, culpada por ter her­ dado, com o seu racionalismo, toda a rasura do iluminismo: -

O que até agora apenas o gênio científico (das wissenschaft/iche Genie) parecia em condições de realizar, aparece agora de improviso como algo que podia ser aprendido por qualquer um, bastando que estudasse a lógica nova. À guisa do Novurn Organum, essa lógica pretendia ser um cânone univer­ salmente utilizável, um instrumento acessível a todos de um conhecimento 201

Smith, 1 98 1 , p. 28 (livro 1, cap. li). Marx-Engels/ 1955, vol. III, p. 378. 203 ln Losurdo, 1997 a, cap. II, 9 (p. 1 32). 204 Haym, 1906, p. 1 1 . 202

científico mais vivo, ut ingenii viribus et excellentiae non multum relinquatur. 205

Uma clara contraposição entre a "metafisica do gênio", por um lado, e, por outro lado, a "razão filisteia", que presidiria à filosofia hegeliana da história, é instituída também por Nietzsche, o qual, portanto, retoma um motivo ampla­ mente difundido e com uma longa história para trás. Só que agora se assiste, ainda uma vez, a uma raáicalização extrema. No entanto, a polêmica antidemocrática se caracteriza pela sua clareza. Reconhecer a "hierarquia na­ tural do reino do intelecto" (BA, 3; 1, 699) significa inclinar-se e ensinar a inclinar-se diante do "grande gênio, o guia para todas as épocas" (BA, 1 ; 1, 67 1 ). Salta aos olhos a franqueza ou a brutalidade com que se afirma que "todo homem, com toda a sua atividade, adquire uma dignidade apenas enquanto for, consciente ou inconscientemente, um instrumento do gênio" (CV, 3; 1, 776); blasfemo em relação com a "sagrada ordem da natureza" é querer conceder instrução e liberdade àqueles que "nasceram para servir, para obedecer" aos "grandes heróis de uma época, os quais procedem solitários" e modelam e plasmam à sua vontade o "barro" constituído pela massa (BA, 3; 1, 698). "Os heróicos" são "aquela espécie de homens que, só ela, tem importância" (FW, 292), e tais heróis ou "gênios" ou "grandes indivíduos contemplativos capazes de criações eternas" se colocam a "uma distância enorme" com respeito à "massa obtusa, entorpecida, que se multiplica por instinto" (BA, 4; 1, 722), cuja existência não tem nenhum significado autônomo. Sim, só o "gênio" consegue dar um sentido aos "corpos semianimalescos" da "massa" (BA, 5 ; 1, 75 1). O elemento mais novo é, porém, constituído pela tese segundo a qual a orga­ nização inteira da sociedade deve estar inspirada pela tomada de consciência do fato que "a criação do gênio [... ] é o fim de toda civilização" (SE, 3; 1, 358). Impõe­ se, então, a "dura necessidade de trabalhar para o gênio, de modo que tome possí­ vel o seu surgimento" (BA, 1 ; 1, 666), de modo a reproduzir e eternizar a hierarquia natural e imodificável que preside e deve continuar a presidir o ordenamento políti­ co-social. Infelizmente, há uma tendência contraposta para definir a modernidade: "Democratizam-se os direitos do gênio" (BA, 1 ; 1, 666). Nesse conte:\.10 se coloca a difusão dos institutos escolares. A promovê-la estão os "ardentes - ou melhor, fanáticos - adversários da verdadeira cultura, ou seja, daquela que adere à nature­ za aristocrática do espírito". Comprometidos em "emancipar as massas do domínio dos grandes indivíduos", eles acabam por "inverter o ordenamento mais sagrado do reino do intelecto", ou seja, a obediência e o serviço humilde e incondicional das massas "sob o Cetro do gênio" (BA, 3; 1, 698). 205 Haym,

1974, p. 327.

É só com Nietzsche que a "metafisica do gênio" se torna o centro de um programa político de oposição radical à modernidade e às tendências subversi­ vas e massificantes ligadas a ela. Subindo de novo com decisão uma ladeira ruinosa e de longa duração, é preciso fazer com que a diferença natural e irrecuperável que subsiste entre homem e homem encontre o seu pleno reco­ nhecimento mediante a articulação da sociedade em "castas".

6. O "Estado dórico " como ditadura ao serviço da produção do gênio Nessa luta contra a corrente, um modelo pode ser constituído pela "verda­ deira república platônica", cuja essência é "a organização do Estado dos gênios" (VII, 379) Não há dúvida, pelo menos um mérito é preciso reconhecer a Platão. No vértice do "Estado perfeito" por ele sonhado colocou o gênio, mesmo se não tivesse em mente esta categoria no seu significado geral, excluindo dela, por influência destruidora do ')uízo socrático sobre a arte'', os "artistas geniais". No entanto, esta "lacuna exterior e quase casual" não prejudica o mérito de ter visto a "ligação entre Estado e gênio'', de ter compreendido que "a verdadeira finalida­ de do Estado" reside na geração e preparação do gênio, em comparação com o qual todo o resto é apenas um instrumento (CV, 3; 1, 776-7). No Estado aqui tomado como modelo desempenha um papel essencial "o gênio militar", que deve ser "reconhecido por nós como o fundador original dos Estados" (CV, 3 ; 1, 775). É preciso não se deixar enganar "por aquele fictício esplendor com o qual os modernos envolveram a origem e o significado do Estado". O seu dever único, e decisivo, é tornar possível e defender uma "con­ figuração da sociedade" que gire em torno da "contínua e dolorosa procriação daqueles privi legiados homens da cultura, em cujo serviço deve esgotar-se (verzehren) todo o resto" (CV, 3 ; 1, 769). A organização da sociedade, a civili­ zação enquanto tal, a criação artística "apoia-se numa base terrível'', num "lado horrendo, digno de um animal feroz" (CV, 3 ; 1, 767). As insensatas palavras de ordem modernas, como "dignidade do homem" e "dignidade do trabalho", mistificam a realidade e dão partida ao carro da civilização. Que sentido tem falar de "dignidade" para o "trabalho devorante" (verzehrende Arheit) ao qual está condenada a massa, e que sentido tem falar de "dignidade do homem" para "todos os milhões de homens", cuja condição é caracterizada por uma "terrível miséria" (farchtbare Noth) e pela "necessidade de encontrar um traball10" (Arbeitsnolh), por "devorante" que seja, de modo a poder sobreviver? Apesar de s�ias frases altissonantes, também o mundo moderno "se comporta de .

modo totalmente escravista" (CV, 3; I, 764). Na tentativa de fugir da morte por inanição e "continuar a tcxlo custo a vegetar'', a maioria dos homens aceita sujeitar­ se a um trabalho e a uma condição em última análise servil (VII, 336-37). Esta construção poderosa não é isenta de elementos de fragilidade. As classes dominantes pcxleriam retroceder horroriz.adas diante da vista da enorme carga de dor, da "crueldade que descobrimos na essência de toda civilização". Em tal caso "o uivo da compaixão" e "o impulso para a justiça e para uma igual distribuição da dor" fariam "desabar os muros da civilização". A educação guerreira ajuda a superar estes elementos de fraqueza, enquanto uma forte organização militar impede a "sublevação da massa oprimida" (CV, 3; 1, 768). Portanto, por motivação mais de política interna do que internacional, a guerra e a "classe militar" fornecem "o arquétipo do Estado": são elas que tomam possível "uma 'sociedade guerreira', semelhante a uma pirâmide apoiada sobre uma vastíssima base de escravos" (CV, 3; I, 775). Junto com a "categoria militar", são chamados a desempenhar funções de disciplinammto da sociedade também um "�ago para ajustiça do espírito" e ''verda­ deiras autoridades eh instrução", que gozam de amplíssimos poderes (VII, 385). Estas fonnulações de Nietzsche às vezes foram lidas como a teorização de wna "ditadura pedagógica".:n> Esta categoria, porém, é enganosa. Ela pode resultar adequada na pre­ sença de uma elite que considere o seu domínio como algo provisório, destinado a tomar­ se supérfluo depois que as massas conseguiram elevar-se ao seu nível. Mas aqui estamos na presença de uma perspectiva totalmente diferente, que parte do pressuposto do caráter irrecuperável da diferença. A ditadura do gênio está destinada a durar eternamente e a fàz.er com que ninguém possa "nunca perturbar a organização de casta e a série hierárqui­ ca das classes" (WL; 1, 882), impondo para esse fim um controle social férreo, que age seja através do instituto da escravidão, seja através eh guerra. Neste sentido, é "Apolo o verdadeiro deus que consagra e purifica o Estado". Ele, "como se diz no início da Ilíada, atira a flecha contra os burros e os cães. E logo depois golpeia os próprios homens, e por toda parte se espalham as fogueiras dos cadáveres" (CV, 3; I, 774). É o "Estado dórico", o "Estado tão cruel e sem piedade'', que já conhecemos, e em cujo fundamento está a "visão dórica do mw1do". E essa visão deve agora ser retomada e reatualizada pelaAlemanha: "os grandes gêníos" hão de ser considerados "como guias e condutores (Führer und Wegweiser) - genuínos e fiéis - do verdadei­ ro espírito alemão" (BA, 4; 1, 723). A autêntica civilização chamada a impor-se sobre as ruínas da civilização deve ser caracterizada pela "hannonia preestabelecida entre aquele que guia e aqueles que são guiados (Führer und Gefahrtem) (BA, 5; 1, 752). Mesmo difimdido a nível europeu e ocidental, o elitismo cultural se caracteriza na Alemanha pelos tons marcadamente cesaristas que tende a assumir. 206 Cf.

Ross, 1984, p. 351.

SOCRATISMO E "JUDAÍSMO ATUAL" 1 . "Profundidade trágica " ariana e "desprezível frase judaica " imos as razões que levaram Nietzsche a preferir o mito da tragédia eterna

Ve necessária de Prometeu ao da queda histórica e acidental de Adão e

Eva. Mas na sua exposição, O nascimento da tragédia faz uma reviravolta imprevista: A lenda de Prometeu é propriedade originária da comunidade inteira dos po­ vos arianos e um documento de seus dotes de profundidade trágica; poderia até não ser inverossímil dizer que este mito possui para a essência ariana (arisches Wesen) exatamente a mesma importância característica que o mito do pecado original tem para a essência semítica, e que entre os dois mitos existe um grau de parentesco como entre irmão e irmã (GT, 9; 1, 68-9).

Neste ponto, a comparação entre o mito de Prometeu e o mito bíblico do pecado original se configura como um confronto entre o ariano e o semita: à coragem varonil do primeiro, capaz de olhar de frente a realidade, até no que esta tem de mais terrível, se contrapõe a covardia feminina do segundo. O ariano se caracteriza pelo modo franco e direto de pensar e argumentar; ele é "contemplativo" (beschaulich), no sentido de que sabe contemplar e ver (schauen) o real, sem interpor entre o real e ele mesmo uma cortina constitu­ ída ao mesmo tempo de pávidos autoenganos e de sofismas. Bem diferente é o semita, inteiramente empenhado em remover, e remover mediante a cavilação e o artificio (wegdeuteln), aquilo que há de inquietante ou de terrível na reali­ dade. É evidente: só os "povos arianos" revelam dotes de "profundidade trági­ ca" (GT, 9; 1, 68-70). Mesmo fortemente presente na cultura do tempo, a dicotomia ariano/semita, com a relacionada crítica ou descrédito do judaísmo, parece fazer em O nascimento da tragédia uma única e isolada irrupção. Bem diferente é o quadro fornecido pelo epistolário. Surge com clareza o furioso antijudaísmo ou judiofobia do jovem estudante universitário, o qual pro­ cura o alojamento de que precisa em Leipzig através de um anúncio no Leipziger Tagblatt, "numa área não comercial" (B, 1, 2, p. 1 23), que o poupe da presença dos judeus.207 Numa carta à família de 22 de abril de 1 866, ele exprime a sua 201 Sobre isso Hayman ( 1 980, p.

78)já chamou a atenção.

felicidade por ter "finalmente" encontrado uma pensão onde é possível gozar da comida sem ter que tolerar a vista dos "feios focinhos j udaicos" (Judenfratzen), e, sempre com referência aos judeus, dos "nojentos macacos privados de espírito e outros comerciantes" (B, 1, 2, p. 1 25). As coisas são decididamente piores no teatro, pelo menos quando se trata de assistir à repre­ sentação da Afrikanerin de Meyerbeer (o musicista de origem judia escarne­ cido por Wagner) : topa-se eom ')udeus e camaradas judeus (Juden und Judengenossen) para onde quer que se volte o olhar" (B, 1, 2, pp. 1 27-28). A judiofobia se entrelaça com expressões de desprezo em relação aos negros: Vi a Afrikanerin (a propósito, enviai-me a roupa limpa): a música é ruim de

modo deplorável; as pessoas têm um aspecto repugnante, e no fim da apresen­ tação se crê vivamente que o homem deriva do macaco (B, 1, 2, p. 1 32).

Concentremo-nos, porém, na polêmica contra os judeus . Geralmente, os biógrafos sublinham o claro contraste que surgirá mais tarde entre o antissemitismo da irmã Elisabeth e a atitude bem diferente do filósofo. Neste momento, porém, os lados estão trocados: é o estudante universitário que assu­ me tons de radicalismo antijudaico que em vão se procurariam nos outros mem­ bros da família. O encontro pessoal com Wagner ainda está por acontecer: o resultado será um ulterior reforço de tendências já em ato, para as quais o grande musicista fornecerá motivações teóricas, que, aliás, assumem uma fas­ cinante forma artística e musical. Para aumentar a dose há um esboço autobi­ ográfico datável do verão de 1 8 67 à primavera de 1 8 68, no qual Nietzsche aponta com desprezo para a "Berlim judaica" (KGA, 1, 4, p. 509). Quem se dedica a reconstruir a biografia intelectual de um autor tão fas­ cinante, não pode deixar de se fazer uma pergunta: é só a página anteriormente citada de O nascimento da tragédia que dá expressão aos temas de fobia judaica que o autor leva consigo desde os anos dos estudos universitários, ab­ sorvido pela leitura de Schopenhauer e de Wagner e continua a alimentar gra­ ças à frequentação do venerado musicista e da sua admirada companheira e mulher? Encontramos antecipado o tema de fundo daquela página numa carta que, em agosto de 1 866, Deussen envia a Nietzsche: um abismo separa o "indo­ germano, que pensa de modo claro'', do "semita" e "oriental", que não é capaz disso (B, 1, 3, p. 1 25). Mas vamos dar agora uma olhada nos cadernos de apontamentos . Assistimos à contraposição da Hélade autêntica e trágica ao judaísmo, como também à modernidade. Ao contrário dos gregos, que também nisto mostram "moderação", "a religião judaica tem um temor indizível da mor­ te, e isto para os que visam com sua oração principalmente obter uma vida longa" (VII, In6); sim, "o judeu é apegado à vida com uma incrível tenacidade" ili!

(VII, 1 02); "para os hebreus do Antigo Testamento a ameaça mais terrível não são as penas eternas, mas a destruição completa"; "o pior dos males é o não ser" (VII, 140- 1 ) . Em conclusão, temos a ver com uma religião que, olhando só o "bem-estar sobre a terra" (VII, 1 1 9), alimentou e alimenta a ruinosa busca da felicidade. Ao fazer do mundo terreno o lugar de realização de esperanças exaltadas, o judaísmo exprime o mesmo otimismo que se manifesta nos movi­ mentos e nas desordens da revolução. Uma conclusão se impõe: defender a civilização da destruição que a ameaça significa também "atacar a desprezível frase hebraica, a qual fala do céu sobre a terra" (VII, 1 2 1). A denúncia do otimismo judeu está amplamente difundida na cultura europeia do tempo. Pense-se, por exemplo, em Kierkegaard, o qual exprime também todo o desprezo pelo "otimismo judaico", caracterizado pela "gana de viver em grau máximo, com a qual nunca se viu alguém tão agarrado à vida". 208 Por outro lado, tal tema está bem presente, mas desta vez com um juízo de valor positivo, igual­ mente no Strauss que depois se tornará o alvo da crítica feroz de Nietzsche. No final do século XIX, o encontramos ainda numa personalidade de primeira cate­ goria do judaísmo francês, a qual descobre no "eudaimonismo" o mérito de fundo da ''filosofia do judeu", estimulado assim na busca de uma vida não aflita por desgraça e injustiça, porém "doce" e rica também de "prazeres materiais".209 Mas, para compreender o modo de se comportar do autor de O nasci­ mento da tragédia, é necessário obviamente ter presente, em primeiro lugar, a influência exercida sobre ele por Schopenhauer e Wagner. No primeiro, é cons­ tante a condenação do 'judaísmo otimista" (e da "sua variante, o islã").21 º Já com o seu "otimismo'', Spinoza demonstra ser judeu: sim, "os judeus são mais serenos do que as outras nações".21 1 A polêmica de Schopenhauer se dirige sobretudo contra o Antigo Testamento, caracterizado por uma concepção ba­ nalmente otimista da vida, como resulta já da ideia de um Deus criador do nada de um mundo que, dada a sua origem, não pode não ter um valor fundamental­ mente positivo e, portanto, se presta a ser o lugar da realização da aspiração à felicidade.212 O segundo não tem dúvida sobre o fato de que os "otimistas rasos por antonomásia" são os "filhos de Abraão, cheios de belas esperan­ ças". 213 De modo análogo se exprimem os interlocutores daquele que é agora 208 Kierkegaard, 1948, vol. III, p. 1 36. 209 Lazare, 1969, pp. 152-3. 2 10 Schopenhauer, 1976-82 b, p. 569. 211 Schopenhauer, 197 1 , pp. 108-9. 2 1 2 Schopenhauer, 1976-82 b, pp. 802 e 796. 213 Wagner, 1 9 1 O o, p. 256. l!l

professor de filologia clássica em Basileia: numa carta dirigida a ele, Malwida von Meysenbug denuncia o "otimismo colossal" dos franceses, que "de modo algum é inferior ao dos judeus" (B, II, 4, p. 2 1 9). Ignorando a dimensão trágica da existência, os seguidores do "otimismo" abandonam-se a uma "serenidade" vazia e superficial. Antes ainda da publica­ ção de O nascimento da tragédia, Wagner declara que os discursos relativos à presumida "serenidade grega" são expressão da tendência, bem presente na música e na cultura judaica, a transformar a Hélade numa "sinagoga neo­ helênica"214 (talvez seja uma alusão, em particular, a Heine: O judaísmo na música terminava com um ataque dirigido a ele) .215 Portanto, ao judaísmo con­ duz não só o otimismo em geral, mas também a leitura em chave banalmente otimista e serena da grecidade clássica. Estamos na presença de um texto (Sobre dirigir) que deve ter influenciado notavelmente Nietzsche. Numa car­ ta a Gersdorff, de março de 1 870, ele anuncia a publicação deste "pequeno escrito" que, pela sua importância, é aproximado ao ensaio de Schopenhauer Sobre a.filosofia nas universidades (B, II, 1 , p. 1 05), um ensaio que, não por acaso, ao pronunciar a sua dura acusação contra o otimismo, o coloca na conta da persistente influência do ')udaísmo". 21 6 Na verdade, não tem um sentido único a relação entre mestre e discípulo, ou seja, entre musicista e filólogo-filósofo. Este observa, num apontamento do inverno de 1 869-70, que a visão da Hélade cara a Winckelmann não significa apenas o temível "achatamento" de um mundo bem mais profundo e trágico do seu superficial intérprete. Tampouco se trata apenas de um erro de perspecti­ va, sobre o qual, aliás, não se pode passar: "Tinha-se na frente a imagem da grecidade romana e universalista, ou seja, o alexandrinismo". Tudo isso é verdade, mas no triunfo moderno dessa visão há muito mais: "a beleza e a rasura aliadas, deveras necessariamente. Teoria escandalosa! Judia! " (VII, 8 1 ). Tal como a denúncia do "otimismo", assim a denúncia da "serenidade", pseudogrega e na realidade moderna, encontra unido o partido da visão trágica do mundo. Numa carta marcada por venenosos temas antijudaicos, Cosima zomba da presumida "serenidade grega" e daqueles que pretendem estar "tranquilos" e "serenos à maneira grega" (griechisch heiteren). Está em ques­ tão um joalheiro que, com seu aspecto, já de longe evoca a "Judeia" e que se distingue pela sua "natureza nada problemática": para ele "tudo é harmônico" (B, II, 2, pp. 1 5 9-60). Gersdorff, por sua vez, ao dar livre desabafo a seu des2 1 4 Wagner, 1910 g, p. 3 1 7. 215 Wagner, 19 10 b, pp. 84-5. m Schopenhauer, 1 976-82 e, vol. IV, p. 236. 1ll

prezo pelo "homem da serenidade" (Heiterkeitsmensch}, faz a ligação dessa figura não só com a rasura da "época presente", mas também com o judaísmo que, pelo que parece, celebra os seus triunfos em Berlim (B, II, 2, p. 46 1). Otimismo, serenidade, judaísmo e civilização moderna tendem a constituir um conjunto unitário e repugnante. É um ponto sobre o qual Wagner insiste; mas de modo análogo pensam e sentem os seus discípulos, entre os quais nesse momento, se coloca Nietzsche, que desempenha também um papel de primeiro plano no âmbito da escola. É ele quem converte Gersdorff ao amor ou ao culto do Mestre, e no decorrer dessa obra de conversão, não só o convida a ler os textos teóricos do musicista, mas também claramente o previne a respeito da polêmica em andamento com os ambientes judeus. Numa carta presumivelmente do início de março de 1 870, Gersdorffagradece a ele por ter-lhe "calorosamen­ te recomendado" a leitura de Ópera e drama. Depois acrescenta: "Até este momento, sobre o Teu Amigo, escutei apenas as fofocas e os insultos da im­ prensa judaizada (verjüde/t) [ . . ] O judaísmo na música me abriu completa­ mente os olhos" (B, II, 2, pp. 1 63-4). A resposta de Nietzsche não se faz espe­ rar: é bom que a amizade esteja agora consolidada por uma admiração comum a uma personalidade tão grande, mas ao mesmo tempo tão hostilizada; "não é fácil e precisa de uma sólida coragem viril para não se deixar transtornar pelos gritos terríveis" do "partido contrário", entre cujas fileiras se distinguem - su­ blinha a carta - os "nossos 'judeus '". Sim, são aqueles que, colocados à frente da "maior parte dos homens da nossa época moderna" (Jetztzeit), repelem com horror, junto com a "ascese e negação da vontade" schopenhaueriana, "a incrível seriedade e a profundidade alemã na visão da vida e do mundo de Wagner, que jorra de cada nota" (B, II, 1 , p. 1 05). A obra de persuasão se torna plenamente eficaz. Gersdorff, que nesse meio tempo, graças à mediação do amigo, pôde assistir a uma representação do musicista e entrou em relação direta com ele, faz questão de sublinhar isso numa carta de 4 de abril de 1 870, sempre dirigida a Nietzsche. Declara ter compreendido plenamente a "indignidade (Nichtswürdigkeit) do judaísmo". Diante da luta da ''vulgaridade contra o gênio", é preciso saber assumir uma posição clara e inequívoca, sem se deixar impressionar pela desordenada "rai­ va do judaísmo" (B, II, 2, pp. 1 88 e 1 92). Vimos Nietzsche denunciar o "partido contrário" ao da visão trágica do mundo. Aos olhos dos amigos, ele parece ser o líder do partido que se reúne em tomo de Wagner, empenhando-se em defendê-lo também na polêmica suscita­ da pela sua declaração de guerra contra a presença poluidora do ')udaísmo sim - na música" - como soa o título de seu pamph/et -, mas também, mais em geral, na cultura e na vida político-social no seu conjunto. Quando Nietzsche .

ill.

informa a Rohde sobre sua aspiração a ocupar a cátedra de filosofia que ficou disponível em Basileia, o amigo lhe responde encorajando-o: o próprio Schopenhauer "teria sorrido" com a ascensão de um discípulo seu, que "anun­ ciará a verdade ao mundo e repelirá da sua sinagoga os judeus e aqueles que são mal circuncidados no espírito" (B, II, 2, p. 332). Não há mais dúvida: neste momento, não é só Wagner a ter a opinião segundo a qual "a nossa inteira civilização é uma mistura bárbaro-judaica".217 Também no jovem Nietzsche, que celebra o musicista como "o grande irmão espiritual" de Schopenhauer (B, II, 1 , p. 8), a condenação da civilização e da modernidade é, ao mesmo tempo, a denúncia do caráter raso e vulgar do juda­ ísmo. Pelo menos na correspondência e nos cadernos de apontamentos que preparam O nascimento da tragédia. E no texto entregue para impressão?

2. Socratismo e imprensa judaica em luta contra a germanicidade Entre os cadernos de apontamentos e O nascimento da tragédia há uma série de conferências que depois convergem em grande parte no livro realmen­ te publicado. Convém deter-se sobre uma delas em particular, a de 1 º de feve­ reiro de 1 870, Sócrates e a tragédia. Wagner recebe imediatamente o texto, o lê a Cosima e depois escreve ao autor exprimindo ao mesmo tempo pleno consentimento e profunda preocupação: Nietzsche não acabará "quebrando o osso do pescoço"? Aqueles que já são "iniciados nas minhas ideias" - escreve o musicista - não irão gostar da excessiva severidade nas comparações dos "erros divinos" de grandes personalidades da Hélade. Mas, sobretudo, como reagirá o grande "público" ao "modo surpreendentemente moderno" como Sócrates é tratado? "O senhor poderá receber a absolvição apenas se daquele lado ninguém entender nada". É verdade que a conferência provocou "espan­ to" e agitação em Tribschen, particularmente a Cosima (B, II, 2, p. 1 3 7-8). Quem confirma, dois dias depois, é exatamente Cosima. Depois de ter reforçado os convites genéricos à cautela, a sua carta acrescenta uma reco­ mendação que lança luz sobre a identidade dos inimigos à espreita: Não nomeies os judeus, e sobretudo não en passant. Mais adiante, se quer iniciar esta luta terrível, que Deus o ajude, mas não imediatamente, a fim de que no seu caminho nem tudo se transforme em confusão e desordem. Espe­ ro que o senhor não me entenda mal. O senhor saberá como estou de acordo 217 Wagner,

l 9 10; p. 268.

no fundo da alma com as suas declarações; mas por ora não se deve desco­ brir, nem descobrir deste modo (B, II, 2, p. 140).

Portanto, a conferência foi lida em Tribschen em perspectiva decidida­ mente antijudaica. A essa altura convém relê-la, e relê-la na versão que suscita em Wagner e na sua amiga um sentimento feito ao mesmo tempo de admiração e inquietação . É, sobretudo, a c?nclusão que chama a sua atenção: O drama musical está verdadeiramente morto, morto para sempre? Realmen­ te, o Germano não poderá colocar ao lado daquela desaparecida obra de arte do passado nada além da "grande obra", mais ou menos como ao lado de Hércules costumava aparecer o macaco? Esta é a pergunta mais séria da nossa arte e quem como Germano não compreende a seriedade desta per­ gunta caiu vítima do socratismo dos nossos dias, que sem dúvida não sabe produzir mártires nem fala a língua do "mais sábio entre os gregos", que certamente não se gaba [como o Sócrates histórico] de não saber nada, mas que na verdade não sabe nada. Este socratismo é a imprensa judaica: não digo nem mais uma palavra (ST; 1, 549 e XIV, 101).

À dicotomia entre germanos e judeus corresponde a dicotomia entre tra­ gédia grega, agora renascida em terra alemã, e ópera moderna, que é sinônimo de visão otimista e vulgar da vida e que não por acaso é difundida pela impren­ sa alemã, a qual procura assim realizar no presente a mesma destruição da tragédia e da visão trágica da vida, da qual Sócrates foi protagonista no seu tempo. Além disso, sem se dar ao trabalho de exibir a afetada modéstia do filósofo grego, o judaísmo contemporâneo não esconde a presunção e a arro­ gância de suas luzes. Compreende-se o entusiasmo na casa de Wagner. Cosima percebe no texto de Nietzsche tons não apenas caros a ela, mas também "familiares" (B, II, 2, 1 38). Richard auspicia uma proficua "divisão do trabalho", que permita que o musicista e o filólogo entrelacem os seus esforços para um objetivo co­ mum: "'O senhor poderia libertar-me de uma boa parte, até de toda uma metade da minha missão. Enquanto o senhor talvez seguisse inteiramente a sua mis­ são" (B, II, 2, p. 145-6). Isto é, tendo resultado num trabalho mais amplo e coerente, Sócrates e a tragédia poderia representar o pendant no plano his­ tórico-filológico do .Judaísmo na música e dos outros trabalhos de Wagner, dedicados à descontami�ação da cultura e da essência germânicas de toda influência judaica e veterotestamentária. Com os planos confiantes e belicosos para o futuro se entrelaçam as pre­ ocupações com o presente. Os socráticos "fanáticos pela lógica - declarara Nietzsche na sua conferência - são insuportáveis como vespas (Wespen) (ST; ill.

1, 54 1 ); mas Cosima lhe dá a recomendação "materna" de não atiçar de modo prematuro "o ninho de vespas" ( Wespennest) representado pelos ambientes e pelo poder judaicos (B, II, 2, p. 1 40). Motivo de preocupação é sobretudo a conclusão: ela questiona diretamente, sem ulteriores explicações e, portanto, com uma certa falta de jeito, a "imprensa judaica", que, alguns anos depois, será um dos pontos centrais da polêmica sobre o antissemitismo.218 Nietzsche se apressa a substituir o adjetivo; agora, na nova versão, é a "imprensa hodierna" que representa o "socratismo". Esta modificação é tanto mais cômoda porque, aos olhos dos amigos de Tribschen, não mudou substancialmente nada: devia ser universalmente sabido, segundo Wagner, que "todos os jornais da Europa estão quase exclusivamente nas mãos dos judeus"219 e que o ''jornalismo ju­ deu" é uma potência bastante inquietante.22º Esta é a opinião também de Nietzsche : um apontamento do início de 1 874 confirma que os judeus "agora na Alemanha possuem a maior parte do dinheiro e da imprensa" (VII, 766). Mas não é só neste ponto que o jovem professor de Basileia aceita o autorizado conselho de Cosima. Ao relatar ao amigo Deussen acerca da sua conferência, ele observa: Em parte ela provocou ódio e raiva. O choque é inevitável. Sobre a questão principal já aprendi a deixar de lado qualquer cuidado: compassivos e con­ descendentes em relação ao indivíduo, devemos ser rígidos como a antiga virtude romana ao exprimir a nossa visão do mundo (B, II, 1 , pp. 98-9).

Portanto, em Tribschen têm razão: certos temas estão carregados de ma­ terial explosivo; ambientes bem precisos estão à espreita. Isso não significa que se deva recuar covardemente. Se for o caso, pode ser oportuna uma certa cautela verbal. É o que esclarece uma carta de alguns dias antes enviada ao amigo Rohde. Depois de ter relatado a conferência, Nietzsche acrescenta: Graças a ela estreitou-se ainda mais a ligação com os meus amigos de Tribschen. Para eles sou esperança a caminho. O próprio Richard Wagner me fez perceber do modo mais comovente qual missão (Bestimmug) ele vê prefigurada em mim. Tudo isto é fonte de grande angústia. Sabes como Ritschl se exprimiu a meu respeito. Mas não quero deixar-me tentar: não tenho absolutamente qualquer ambição literária e não tenho necessidade alguma de seguir modelos dominantes, porque não aspiro a posições bri-

218 Cf Boehlich, 1 965, passim. 219 Wagner, 1 982, p. 35 1 . 220 Wagner,

1 9 1 O m, pp. 56 e 58.

Ihantes e famosas. Quando for o momento, pelo contrário, quero exprimir-me de modo sério e franco, o máximo que for possível (B, II, 1 , p. 95).

Agora estamos em condições de fazer um balanço da situação. Nietzsche tomou consciência dos perigos inerentes ao seu novo percurso intelectual, mas, bem longe de renunciar à luta, tomou a cargo a "missão" confiada a ele por Richard Wagner, aceitando ao mesmo tempo os conselhos à prudência: antes do que apostar no escândalo-imediato para conseguir a celebridade, convém permanecer firmes sobre a "questão principal", mas ao mesmo tempo exercer uma certa autocensura a fim de poder exprimir-se com maior franqueza. É com este espírito que Nietzsche trabalha em O nascimento da tragé­ dia, que agora está tomando forma. Na véspera de sua publicação, ajudiofobia parece ter alcançado o ápice, como testemunha a rejeição feita a um pedido da irmã: "Como podes pretender que eu encomende um livro de um escandaloso antiquariato judeu?" (B, II, 1 , p. 262). Impõe-se uma pergunta: quais vestígios deixou a judiofobia do epistolário, dos apontamentos manuscritos e de Sócrates e a tragédia na obra pouco depois publicada pelo editor de Wagner, por reco­ mendação deste e tendo presente também na capa o modelo constituído por um texto do musicista? Devemos perguntar-nos se desapareceu a aproximação entre socratismo e imprensa judaica (ou cotidiana), o tema de fundo da conferência que tinha ao mesmo tempo entusiasmado e alarmado os amigos de Tribschen. Na realidade, ainda a diversos meses de distância de tal conferência, podemos ler um apon­ tamento que localiza no ') udaísmo dos nossos dias" uma manifestação essenci­ al do "socratismo", o qual é "hostil ou indiferente à arte" (VII, p. 99). No O nascimento da tragédia são numerosas as referências ao infeliz papel socrático desempenhado na Alemanha pela "imprensa" e ')ornais" (GT, 22; 1, 143-4); e é difícil pensar que se trata de referências inócuas se tivermos presente o con­ texto e, sobretudo, se não esquecermos o convite de Cosima à auto-censura e o propósito expresso por Nietzsche de acolhê-lo. Mas o ponto mais importante não é este. Vimos a leitura de Schopenhauer como grande intérprete da "grecidade germânica", sinônimo de civilização au­ têntica. De onde vem o perigo de desnaturamento e degeneração? É um ponto sobre o qual lança luz uma carta a Wagner: "Devo ao senhor e a Schopenhauer se até hoje permaneço fiel à seriedade germânica da vida, a uma consideração aprofundada dessa existência enigmática e problemática"; essa "visão do mun­ do mais séria e mais espiritual" corre o risco de ser manchada de um ')udaísmo invasor" (B, II, 1 , p. 9). Leiamos agora a conferência de Basileia de 1 ° de fevereiro de. 1 870: "Do ponto de vista infinitamente aprofundado da consciênll1

eia germânica, aquele socratismo aparece como um mundo totalmente absur­ do" (ST, 1, 541 ). A dicotomia germanismo-judaísmo coincide com a dicotomia germanismo-socratismo. E não poderia ser diferente: socratismo é sinônimo de judaísmo, como demonstra o final, depois modificado, que identifica e rotula na "imprensa judaica" o porta-voz do "socratismo dos nossos dias". A oposição germanismo-socratismo atravessa em profundidade O nasci­ mento da tragédia: "Do fundo dionisíaco do espírito alemão saiu uma força que não tem nada em comum com as condições postas a fundamento ( Urbedingungen) da cultura socrática" (GT, 1 9; 1, 1 27). Certamente, não se fala de judaísmo, mas o socratismo, ao qual se faz referência de modo explícito, não tem mais nada a ver com o judaísmo? Seria muito surpreendente: nesse caso, o texto efetivamente publicado resultaria em total contradição com os cadernos de apontamentos. Aqui encontramos formulada a tese segundo a qual o "socratismo da nossa época" não é só uma força hostil à arte em sentido genérico, mas é também "sem simpatia pelo futuro da arte germânica"; ele "não tem o sentido da pátria, mas apenas do Estado" (VII, 1 3). Uma diferença abissal o separa dos gregos autênticos, caracterizados pelos "mais naturais instintos de pátria" (Heimatsinstincte) (GT, 2 1 ; 1, 1 3 2). Isto é, os judeus podem até respeitar as leis do país em que vivem, mas são, de qualquer modo, estra­ nhos à nação; não é por acaso que constituem um povo sem pátria, heimatslos, por excelência ! Conhecemos o papel decisivo atribuído por O nascimento da tragédia a Sócrates na destruição da tragédia. Mas um apontamento preparatório do inverno de 1 869-70 diz "aniquilamento da civilização grega por obra do mun­ do judeu" (VII, 83). A morte da Hélade trágica se torna responsabilidade do judaísmo ou do socratismo? O problema não existe, os dois termos são indissolúveis. Tem-se até a impressão de que o que liga ao mundo judaico o filósofo coveiro da grecidade autêntica seja uma afinidade não apenas eletiva. Estamos na presença de uma figura que salta aos olhos não só pela sua visão intrinseca­ mente anti-helênica do mundo, mas também pela sua "feiura externa bizarramente atraente" (ST; 1, p. 541). Não se trata de uma particularidade negligenciável . "É significativo que Sócrates fosse o primeiro grande grego a ser feio" (ST; 1, 545). Somos levados a pensar nos "feios focinhos judeus", os quais, quando estudante universitário, Nietzsche queria evitar ver. Por outro lado, ainda no verão de 1 877, Rohde, numa carta endereçada ao amigo então professor em Basileia, exprime o seu desgosto pela "horrível cara semita" que caracteriza em geral esses judeus "de pernas tortas" (B, II, 6, 1 , p. 595-6). Por trás está, obviamente, Wagner, segundo o qual as "fisionomias" judaicas em

geral não causam "uma boa impressão";221 em todo caso, já por seu "aspecto exterior", o judeu se revela "desagradavelmente alheio com relação à naciona­ lidade" alemã e europeia. 222 Aos olhos de Nietzsche, não menos "desagrada­ velmente alheio" com respeito aos gregos é Sócrates, com "os seus olhos sali­ entes, os seus lábios inchados, o seu ventre caído" (ST; 1, p. 544). Mais tarde, o filósofo grego será explicitamente rotulado como judeu. E Nietzsche chegará a essa conclusão denunciando em Sócrates uma "feiura" tisica, indício de "um desenvolvimento híbrido (gekreuzten), impedido pelo cruzamento" (Kreuzung) (infra, cap . 1 5 § 2 e cap. 1 9 § 1). Agora, porém, nesses anos juvenis, se tem a clara impressão de estar diante de uma figura estranha em todo nível com respeito à Hélade autêntica. Que o socratismo continue a remeter ao judaísmo é, aliás, confirmado pelas reações, à primeira vista bastante singulares, de Nietzsche e do seu cír­ culo de amigos, às polêmicas suscitadas por O nascimento da tragédia. O primeiro deles define o autor da crítica feroz, Wilamowitz, como um "rapazola acometido de arrogância judaica" (B, II, 3, p. 3 0). Até aqui nos encontramos na presença de um estereótipo banal e genérico.223 Mais interessante é o juízo formulado sobre Ritschl. Como é sabido, Ritschl se declara "alexandrino" de­ mais para poder aderir às teses de seu discípulo ou ex-discípulo (B, II, 2, p. 54 1 ); este, poucos meses depois, se lamenta com o amigo Rohde porque o Mestre ou ex-Mestre lhe mandou um "ensaio judeu-romano" (B, II, 3, p. 1 8 1 ). Talvez nesta definição haja ainda uma referência malévola à origem judaica da mulher de Ritschl, que Nietzsche já mencionara alguns anos antes (KGA, 1, 4, p. 5 1 9). O mais interessante, porém, não é o aspecto pessoal . Vej amos a tomada de posição de Rohde. Numa carta de 5 de junho de 1 972, ele vê a capital do Reich, onde está ocorrendo um impetuoso desenvolvi­ mento capitalista, com destacada participação das finanças judaicas, e de onde Wilamowitz lançou o seu ataque contra O nascimento da tragédia (e a visão trágica da vida), como uma cidade caracterizada pela "mais repelente opulên­ cia judia" (widerwiirtigste Judenüppigkeit) (B, II, 4, p. I I ). Presente já, como vimos, no Nietzsche estudante universitário e largamente difundido nas publi­ cações do tempo, este tema judiófobo ou antissemita se torna agora estreita­ mente interligado com a crítica da modernidade. 224 Como aparece com clareza de duas sucessivas cartas de Rohde: 221 Wagner

,

222 Wagner,

1982, p. 12 1 . 1 9 10 b, p. 69.

1 965 b, p. 43 e Dühring, 188 1 b, p. 88. 188 1 .b, pp. 6 e 20.

223 Cf. por exemplo, Treitschke, 224 Cf. Dühring;

ili.

Diante desta Berlim sinto uma verdadeira repugnância; é como se todos os elementos mais horríveis da civilização hodierna estivessem aqui unidos num grande tumor para permitir que o mundo compreenda em que realmente consiste esta civilização.

É

"o azafamar-se de um formigueiro civilizado" (B,

"maré alta da vulgaridade" (B,

II, 4, p. 1 1 7).

II, 4,

pp.

77-8); é a

Sim - insiste Gersdorff- Berlim é

uma horrível cidade ') udaica'�; a indicar uma possível alternativa estão "Wagner e todos aqueles grandes [que] não têm nenhum ponto em comum com o espíri­ to da 'época presente"' (B,

II, 2,

p.

46 1 ) .

Agora é claro. S e otimismo é sinônimo de judaísmo e s e a visão trágica da vida remete em primeiro lugar aos povos arianos, aqueles que a rejeitam se tomam afetados pela vulgaridade própria do tempo mesmo do judaísmo e da modernidade.

3. O judaísmo na música

e em

O nascimento da tragédia

Que papel o antijudaísmo ou a judiofobia desempenha em

da tragédia?

O nascimento

Quando lemos que a existência socrática é uma existência "ar­

rancada do solo pátrio

(losgelost von dem heimischen Boden),

vivida sem

ligação na selvajaria do pensamento, do costume e da ação" (GT,

23; 1, 1 48),

quando lemos isto não podemos não pensar em Wagner e na sua caracteriza­ ção dos judeus "como uma l inhagem étnica sem ligação com o solo"

(bodenlos}225

e com a típica "frieza do apátrida"

(bodenlose Nüchternheit).226

Nietzsche, por sua vez, caracteriza assim o homem socrático: Imagine-se o vagar sem regra da fantasia artística, não freado por nenhum mito pátrio; imaginemos uma cultura que não tenha nenhuma sede originária fixa e sagrada, mas que seja condenada a exaurir todas as possibilidades e a nutrir­ se afanosamente de todas as culturas (GT, 23; 1, pp. 145-46). O homem socrático, "o homem sem mitos está eternamente esfomeado, no meio de todos os passados, escavando em busca de raízes, a custo de esca­ var para isso na antiguidade mais remota" (GT, mento corre em direção a Wagner e

à

23 ; 1, 1 46). De novo o pensa­

sua denúncia da "intelectualidade

raciocinante das camadas superiores do judaísmo", totalmente privada de "raízes".227 Onerado por um passado irremediavelmente desaparecido, o judeu 225 Wagner,

1 9 1 0 b, p, 7 1 . 1 9 1 0 b, p, 85. 227 Wagner, 1 9 1 0 t>, p. 77. 226 Wagner,

errante não consegue reconhecer como pátria própria nenhum dos países em que se estabelece, acabando por agir como elemento de dissolução de todas as tradições culturais com que entra em contato; e por isto é que ele encarna o "demônio implacável da negação".228 Neste sentido, o judaísmo ou o socratismo, segundo a linguagem de O nascimento da tragédia, é sinônimo do iluminismo destruidor do mito. Então irrompe "o homem abstrato (não mais guiado por mitos), a educação abstrata, o costume abstrato, o direito abstrato, o Estado abstrato" (GT, 23; 1, 1 45). Wagner não se cansa de insistir na "fria indiferença", 229 na "incapacidade interior de vida" do judeu. 230 Desprovido de uma língua materna real, irremedi­ avelmente estrangeiro na terra e no povo em que vive, ele é "quase incapaz de exprimir artisticamente os seus sentimentos e as suas visões",231 no máximo pode tomar-se "pensador", jamais autêntico "poeta".232 Somos reconduzidos ao O nascimento da tragédia: Sócrates é um "homem teórico" e um declara­ do "adversário da arte trágica" (GT, 1 7 e 13; 1, 1 1 5 e 89); enquanto poeta do socratismo estético", Eurípides se comporta como "o primeiro poeta 'sóbrio' (nüchtern)", comprometido em "condenar os poetas 'judeus"' (GT, 1 2; 1, 87). É a Nüchternheit já denunciada por Wagner, o qual desenvolve ulterior­ mente a sua requisitória acrescentando uma nova acusação. Esta mesma situ­ ação objetiva impede o judeu de ser artista autêntico, favorece o seu desenvol­ vimento intelectual unilateral: O verdadeiro poeta, seja qual for o gênero artístico em que se ponha a fazer poesia, recebe os seus estímulos sempre e só a partir da visão fiel e amorosa da vida espontânea (uwillkürlich), da vida que se lhe manifesta apenas no povo. Mas onde o judeu culto encontra este povo?"233

O judeu é estranho à "comunidade histórica" em cujo âmbito vive; no entanto, "só quem cresce de modo inconsciente (unbewujJt) nessa comunida­ de é participante de suas criações".234 A criação artística pressupõe a identifi­ cação plena e espontânea com um povo e uma cultura determinados. E ao contrário, nas palavras desta vez de O nascimento da tragédia, "o socratismo lógico" exerce uma "influência dissolvente dos instintos" (GT, 1 3 ; 1, 9 1 ), olha 228 Wagner, 1 9 1 0 b, p. 85. 229 Wagner, 1 9 1 0 b, p. 7 1 . 23º Wagner, 1 9 1 0 b, p. 84. 23 1 Wagner, 1 9 1 0 b, p. 72. 232 Wagner, 1 9 1 0 b, p. 74. 233 Wagner, 1 9 1 0 b, p. 75. 234 Wagner, 1 9 10 b, p. 7 1 . ili

com hostilidade e toma suspeitos as normas e os modelos de vida seguidos "só por instinto" (GT, 13; 1, 89). A arte é assim condenada pelo "socratismo estéti­ co", cuja "lei suprema soa mais ou menos assim: 'Tudo deve ser acessível ao intelecto (verstandig) para ser belo'" (GT, 12; 1, 85). Mas isto, segundo Wagner, é exatamente o modo de se comportar do judaísmo: a limitada "capacidade de percepção musical do judeu culto" permite que ele aprecie "só aquilo que lhe parece acessível ao intelecto'; (verstandlich); fica impedida a ele a dimensão mais profundamente "popular (volkstümlich) e artística".235 Separada do povo e dos seus sentimentos mais profundos, reduzida ao exer­ cício intelectualista, nos judeus não só a arte, mas a cultura enquanto tal, "a cultu­ ra apreendida e paga pode valer apenas como luxo". Por outro lado - insiste sempre Wagner - o peso exercido pelo judaísmo fez com que "as nossas artes modernas e a própria música" se tenham reduzido a artigos ou exibições de "luxo".236 No Prefácio a Richard Wagner, O nascimento da tragédia declara que não se espera, certamente, compreensão e simpatia da parte daqueles que não estão "em condição de ver na arte mais que um acessório agradável, um tinido de guizos diante da 'seriedade da existência'" (GT; Prefácio, 1, p. 24). Junto com o intelectualismo, e enlaçada com ele, para caracterizar os judeus e selar a sua frigidez estética - prossegue Wagner - está a visão vulgar e mercantil da vida: "O olho deles sempre se ocupou com coisas muito mais práticas" do que com a arte.237 Mas tampouco o socratismo tem razão, aos olhos de Nietzsche, de contrapor negativamente a arte trágica não só ao "inte­ lecto", mas também ao "útil" (GT, 14; 1, 92). Empenhado em "defender os seus atos com razões e contra-razões", na tragédia euripideana o herói parece tor­ nar-se infeliz só por causa de "erros de cálculo"; agora já não surge a "como­ ção", mas um involuntário efeito "cômico", e a vida é assim nivelada pela "co­ média nova com o seu contínuo triunfo da manha e da astúcia" (ST; 1, 54 7). Até nos seus melhores expoentes, a música judaica - declara por sua vez Wagner - não consegue "produzir em nós o efeito profundo que agarra coração e alma"; e não poderia ser diferente, dada a sua intrínseca "característica da frieza, da indiferença até à trivialidade e o ridículo".238 Irremediavelmente marcados pelo seu intelectualismo, privados de uma relação orgânica com a língua, a cultura, os sofrimentos e as alegrias, o destino do país em que vivem, obrigados a se exprimir numa "língua de macaquice'', os 235 Wagner, 236 Wagner, 237 Wagner, 238 Wagner,

1 9 1 0 b, p. 7 1 . 1 9 1 0 b, p. 74. 1 9 1 0 b, pp. 72-3. 1 9 1 0 b, p. 79 .

judeus podem produzir apenas uma música imitativa, à semelhança dos "papa­ gaios". A estas "aves estúpidas" - como Wagner as define239 - O nascimento da tragédia parece contrapor "a ave dionisíaca", que indica ao povo alemão o caminho de volta para si e da reconquista da tragédia e da visão trágica da vida (GT, 23 ; 1, 149). Como é sabido, o alvo privilegiado da polêmica de Wagner, mais do que Mendelssohn, é Meyerbeer. Referência explícita a ele faz a segunda conferência Sobre o futuro das nossas escolas: considera-o expressão daquele "agregado cosmopolita" (profundamente influenciado pela "civilização francesa, antigermânica no seu íntimo" e com uma forte presença também na "imprensa"), do qual o país saído triunfalmente da guerra é chamado a livrar-se de uma vez para sempre (BA, 2 ; 1, 690). Em O nascimento da tragédia, ao contrário, Meyerbeer não é explicitamente citado. No entanto, o compositor alemão de origem judaica, ou seja, o discípulo de Rossini, que recorre a um libretista italiano, é contagiado, segundo a opinião de Heine, pela alegria e pela "sensualidade itali­ ana"240 e celebra o seu triunfo na Paris saída da revolução de Julho; em suma, Meyerbeer está claramente envolvido na condenação da "ópera" latina, otimista e intrinsecamente subversiva, sentenciada pelo O nascimento da tragédia. Para entender, voltemos à acusação de Wagner: "O judeu fala, sim, a língua da nação no seio da qual vive de geração em geração, mas a fala sempre como estrangeira"; já clara em relação ao "discurso", a sua incapacidade artís­ tica se revela de modo desastroso no "canto", esta espécie de "discurso excita­ do de extrema paixão".241 E agora leiamos Nietzsche: estão irremediavelmen­ te excluídos da compreensão da tragédia todos os que "não falam a música como língua materna"; ao mito trágico podem ter acesso "só aqueles que, apa­ rentados com a música de maneira imediata, encontram nela por assim dizer o seu seio matemo e estão em ligação com as coisas quase só em virtude de relações musicais inconscientes" (unbewusst) (GT, 2 1 ; 1, 1 35). Não é este o caso dos musicistas judeus, os quais - vimos em Wagner - não têm e não podem ter uma relação "espontânea'', "inconsciente'', orgânica com o povo com o qual vivem. Desprovidos de comunhão autêntica com o "objeto'',242 estão interessados só no "como", na forma exterior, não já no conteúdo, não já em ·'algo determinado, necessário e real".243 No entanto, não se produz arte e 239 Wagner, 1 9 1 0 b, p. 75. 24º Heine, 1 969-78, vol. III, p. 338. 24 1 Wagner, 1 9 1 0 b, pp. 70 e 72 . 242 Wagner, 1 9 1 0 b, p. 78. 243 Wagner, 1 9 1 0 b, p. 74.

não se produz emoção estética permanecendo fechados na gaiola do formalismo intelectualista. A fim de levar a termo a liquidação de Meyerbeer, Wagner não hesita de fazer Heine intervir, ele mesmo judeu e todavia obrigado a reconhecer a inconsis­ tência artística de seus "famosos colegas músicos".244 O julgamento crítico de Heine sobre um musicista determinado (de origem judia) é lido pelo musicista alemão como a admissão e confirmação involuntária da incapacidade do judaís­ mo enquanto tal de produzir música autêntica. Mas Nietzsche não parece proce­ der de modo diverso. Foi Heine que chamou a atenção sobre o "significado polí­ tico da ópera" de Meyerbeer.245 Na França saída da revolução de Julho, o entu­ siasmo pela expulsão definitiva dos Bourbons explicava o extraordinário sucesso de um musicista que "se inflama pelos interesses mais sagrados da humanidade e confessa sem rodeios de palavras o seu culto pelos heróis da revolução".246 O nascimento da tragédia insiste, como sabemos, na cumplicidade que liga ópera, subversão moderna e socratismo Gudaísmo). Se não é a "serenidade" (Heiterkeit) observa ironicamente Heine -, de qualquer modo é a "nostalgia pela serenida­ de" que atravessa em profundidade a ópera de Meyerbeer.247 Aparece, portan­ to, uma palavra chave da polêmica de Wagner e, sobretudo de Nietzsche, para quem a "serenidade", o "otimismo", a indiferença da visão trágica da vida mar­ cam profundamente o judaísmo e marcam o compasso da trajetória revolucioná­ ria. O culto da serenidade - prossegue ainda Heine - funda o "domínio supremo da harmonia" que caracteriza a música de Meyerbeer:248 os seus heróis "se irritam de modo harmônico, exultam de modo harmônico, soluçam de modo har­ mônico". 249 Somos levados a pensar, por contraste, na "alegre sensação da dissonância na música" dionisíaca (e wagneriana), no "admirável significado da dissonância musical" e do "desarmônico" de que fala O nascimento da tragé­ dia (GT, 24� 1, 152). Do ponto de vista de Wagner e de Nietzsche, não pode haver mais dúvida: o compositor judeu e o judaísmo enquanto tais remetem à odiada civilização e modernidade. -

244 Wagner, 1 9 1 0 b, p. 85. 245 Heine, 1 969-78, vol. III, p. 150. 246 Heine, 1 969-78, vol. III, p. 34 1 . 247 Heine, 1 969-78, vol. III, p. 343. 248 Heine, 1 969-78, vol. III, p. 335. 249 Heine, 1 969-7�, vol. III, p. 33 6 . 1 24

4. A Alemanha dionisíaca e os ''pérfidos anões " Wagner sublinha que ojudaísmo constitui uma "essência" (Wesen) estranha à Alemanha;250 por isso agora se compreende, no povo alemão, a "repugnância instintiva" e "espontânea"251 ou a "repugnância mais íntima em relação à essên­ cia judaica".252 Também O nascimento da tragédia chama repetidamente a Alemanha a encontrar a sue! essência autêntica livrando-se de uma presença embaraçosa e poluente, pondo fim ao longo, "doloroso" período de história "no qual o gênio (Genius) alemão, afastado da casa e da pátria, vive a serviço de pérfidos anões" (tückische Zwerge) (GT, 24; 1, 154). Voltando mais tarde à sua obra juvenil, Nietzsche escreverá que "a sua tonalidade particular é dada pelo seu ser alemão-anticristão" . Em confirmação disto, em referência ao trecho que se acabou de citar, declara que ele teria em mente de modo alusivo "os padres". Portanto, segundo essa leitura retrospectiva, objeto de denúncia teria sido "o trans­ plante no coração alemão de um mito profundamente antialemão, o cristão, como a verdadeira e própria calamidade alemã" (XIII, p. 227). É uma tese reforçada em Ecce Homo (O nascimento da tragédia, 1). Tais declarações são críveis, ou Nietzsche está enganando o leitor ou, mais exatamente, a si mesmo? O que toma pouco persuasiva esta auto-interpretação é o fato de que a denúncia dos "pérfidos anões" estranhos à Alemanha autêntica não impedem que O nascimento da tragédia se refira a Lutero, aos corais protestantes, a Bach, como momentos essenciais da manifestação da "essência" trágica do povo alemão. Um texto coevo celebra os "tempos maravilhosos e profunda­ mente tocantes da Reforma" (BA, 4; 1, p. 730). O protestantismo é lido e celebrado como momento de reconquista da identidade alemã; trata-se de reapropriar-se "da íntima essência da Reforma alemã, da música alemã, da filosofia alemã" (BA, 3 ; 1, p. 7 1 0). Por volta de 1 872, ainda não se delineara a sucessiva luta frontal contra o cristianismo. Nos textos, nos cadernos de apon­ tamentos e no epistolário deste período manifesta-se uma série de distinções; pensemos no juízo altamente positivo sobre o "cristianismo originário" ou sobre o Evangelho de João (supra, cap. 1 § 10 e 2). A autointerpretação não seria mais persuasiva se com "os padres" quiséssemos entender exclusivamente o clero católico e corrigíssemos a expressão "alemão­ anticristão" pela expressão "alemão-anticatólico". Nos cadernos de apontamentos desses anos é possível ler uma avaliação da obra dos jesuítas, cujo mérito de ter feito Wagner, 1910 b, pp. 66-7. Wagner, 1910 b, pp. 67 e 76. 252 Wagner, 191 O b, p. 66. 25º

251

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valer "a ambição e a rompetição da educação" se reronhece (VII, p. 394). Por outro lado, se os "pérfidos anões" se referissem apenas à Igreja Católica, não se compreen­ deria a ênfase do apelo à Alemanha, a toda a Alemanha, a libertar-se de uma presen­ ça estrangeira que ameaça a cultura do povo alemão enquanto tal. Aliás, o cristianismo no seu conjunto se apresenta nesses anos aos olhos de Nietzsche muito mais profundo e mais metafisico (no sentido positivo que agora o termo tem) da modernidade filisteia e vulgar, que encontra expressão em Strauss e nos outros autores empenhados em difundir a pretensa visão leiga e científica da vida. Enfim, levem-se em consideração a desconfiança ou hos­ tilidade com que o filósofo olha para a Kulturkampf, que desenvolve uma dura polêmica contra Roma e os "padres" (infra, cap. 7 § 2). Se ainda houvesse dúvida sobre o fato de que a alusão maligna de O nasci­ mento da tragédia visa os judeus, há um outro trecho que pode afugentá-la defini­ tivamente. Uma vez desperta, a Alemanha autêntica "matará os dragões, aniquilará os pérfidos anãos e despertará Brunilda - nem a lança de Wotan poderá barrar o seu caminho" (GT, 24; 1, 1 54). É transparente a referência a Alberich, Mime e Hagen e à raça wagneriana dos anões que, no Anel dos Nibelungos, simboliza o maléfico espírito mercantil atribuído ao judaísmo. Todos os três pertencem, na tetralogia de Wagner, a uma "estirpe" (Art) que não é a "estirpe" (Art) de Siegfried,253 o herói intrépido e sem medo que simboliza a Alemanha. Estes "anãos" movidos só pela "avidez"254 e interessados exclusivamente na riqueza e no poder, apátridas, sem nenhuma ligação com o "solo da pátria" e com o "seio materno",255 pensam, agem, devolvem até de modo "pérfido" (tückisch),256 à semelhança dos "pérfidos (tückisch) anões" visados por O nascimento da tragédia. Além do adjetivo que acabamos de ver, Wagner recorre a toda uma série de sinônimos. Emerge a figura repelente de um "anão falso"'257 "infiel" (treulos)' "hipoc ' rita"'258 "teimoso e frio"'259 "manhoso" e "malicioso",260 que apela para a "astúcia tenaz", para enganar e ferir os seus itúmigos,261 da figura de um "anão feio",262 de um "anão malvado".263 253 Siegfried, 1 3 1 5 e 1779. 254 O ouro do Reno, 1038. 255 Siegfried, 602-605. 256 Siegfried, 1 1 81-2. 257 Siegfried, 2 1 90. 258 Siegfried, 1733 e 1735. 259 Crepúsculo dos deuses, 5 1 1 . wo Siegfried, 637. 261 Siegfried, 1390 e 1871. 262 Siegfried, 1 909. 263 Siegfried, 1 927 e Crepúsculo dos deuses, 1769.

A esta figura, descrita e rotulada com todos os estereótipos da judiofobia, se contrapõe a de Siegfried. O "rapaz dos olhos claros"264 representa o melhor da germanicidade: é um herói que sem medo enfrenta e mata o dragão, ao qual faz referência também O nascimento da tragédia, ama a natureza e a "fresca floresta"265 e exprime uma visão do mundo que, com linguagem de Nietzsche, poderemos definir como trágica e dionisíaca: "Alegre na dor / eu canto o amor; / feliz no tormento / teço a minha canção / só quem deseja entende o seu sentido". Tanto Siegfried como Brunilda reforçam: "Um e tudo: / amor luzente, / morte sorridente".266 Só os seguidores de uma visão banalmente otimista da vida podem perseguir um ideal de "serenidade" que pretende separar a alegria da dor e da negatividade da existência. A antítese germanismo/judaísmo do Anel dos Nibelungos se configura em O nascimento da tragédia como a antítese entre socratismo (judaico) e espírito dionisíaco e trágico (que a Alema­ nha deve saber herdar da Grécia pré-socrática). Como Wagner na sua tetralogia canta o sonhado fim da contaminação judaica que a Alemanha sofreu no seu próprio Olimpo (a partir de Wotan),267 assim Nietzsche faz votos de que o país saído vitorioso da guerra encontre a sua essência dionisíaca, livrando-se e de­ purando-se de qualquer elemento estranho. Até os pormenores são iluminadores. O "espírito alemão'', chamado por Nietzsche para aniquilar os "pérfidos anãos", faz pensar em Siegfried, que com a sua espada aniquila de fato aquele pérfido anão (judeu) que é Mime; e a descrição que Siegfried faz da aparência repugnante de Mime268 faz pensar na descrição que Nietzsche faz de Sócrates. Enfim, depois de ter trovejado contra os "pérfidos anãos", O nascimento da tragédia lança um olhar ideal de enten­ dimento ao leitor: "Compreendeis as minhas palavras" ( Wort). É o final do parágrafo e ele evoca imediatamente à memória o fim de Sócrates e a tragé­ dia, que na sua versão original reza assim: "Este socratismo é a imprensa judaica: não digo uma palavra ( Wort) a mais". Uma confi rmação disso acaba emergindo da mesma interpretação que Ecce Homo dá de O nascimento da tragédia. A ela é atribuído o mérito de não se deixar desviar pelo fascínio de Sócrates e por uma "idiossincrasia moral qualquer" e ter reconhecido, ao contrário, como "valores únicos" os "valores estéticos'', negados em bloco pelo cristianismo (EH, O nascimento da tragé264 Siegfried, 1578. 265 Siegfried, 1449. 266 Siegfried, 1944-1948; 2736-2738 e 2758-2760. 267 Rose, 1992, p. 68; cf. também Gutman, 1983, p. 237. 268 Siegfried, 1459-1464.

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dia, 1 e 2). Mas a surdez aos valores estéticos é censurada pelo jovem Nietzsche, na esteira de Wagner, também ao judaísmo. Se, nos primeiros anos de Basileia, judaico ou judaizante é Sócrates que, com seu moralismo, profana e destroi o mundo encantado da tragédia e da arte grega, mais tarde serão os judeus en­ quanto tais que representarão o povo moral por excelência (infra, cap. 1 5 § 2). Noutra ocasião, em vez dos "pérfidos anões'', O nascimento da tragédia fala de "monstruosas potências vindas de fora" para desnaturar e dominar o povo e o "espírito alemão'', o qual agora é chamado a "voltar à fonte originária da sua essência". Neste caso, o elemento estranho do qual libertar-se está indicado na "civil ização romana" (GT, 1 9; 1, 1 28-9). Não há dúvida, a referên­ cia imediata é à França, clamorosamente derrotada pela Alemanha dionisíaca ou que se prepara para reconquistar a sua essência dionisíaca. Mas é preciso não perder de vista o fato de que o país do iluminismo, do otimismo e da civili­ zação remete para a "Judeia". Isto não vale só para Wagner, que, exatamente na conclusão da sua polêmica contra o ')udaísmo na música", declara que o judaísmo é a expressão concentrada da odiosa "civilização moderna". 269 Particularmente significativo é o retrato que, um ano antes de morrer, o musicista alemão traça de Renan: em virtude do "otimismo" que o permeia, este se reve­ la na realidade um judeu; do outro lado, o que o define são "elegância e estrei­ teza" próprias dos franceses, uma visão do mundo atenta apenas às comodida­ des e às aparências da existência mundana.270 Já vimos a condenação que Nietzsche faz da '"elegância' francês-judaica", bem como a assimilação, por obra de Malwida von Meysenbug, de franceses e judeus, por causa do "colos­ sal otimismo" comum a ambos . Por outro lado, um indício provisório de O nascimento da tragédia aproxima de modo explícito o ')udaísmo" da "Fran­ ça" (VII, 1 04). Além da civilização, é o otimismo que une os dois termos. Já na análise de Schopenhauer, ele remete ao país das incessantes agitações revolu­ cionárias, todas alimentadas pela louca pretensão de realizar instituições que garantam a felicidade terrena de todos, dando concretude ao ideal que está no centro do judaísmo. 271 Em termos análogos, Treitschke condena o "radicalismo judaico-francês".272 Na cultura empenhada a celebrar a germanicidade em contraposição a civilização e revolução, franceses e judeus tendem a fazer o mesmo. Assim também em Nietzsche. Se eles tivessem algo a ver com o cristianismo, os "pérfidos anões" pode­ riam ser sinônimo do cristianismo judaizado, como rotulado por Schopenhauer, 269 Wagner,

191 0 b, p. 85. Wagner, 1976-82, vol . II, p. 879. 27 1 Schopenhauer, 1976-82 e, vol. IV, p. 236. 272 Treitschke, 198 1 , vol. IV, p. 486. 21° C.

ou seja, daquela igreja que mais tarde Wagner definirá como "igrej a latino­ semítica". 273 · De qualquer modo, o fato é que, no jovem Nietzsche, é o Evange­ lho de João que é valorizado positivamente, aquele no qual o cristianismo tende a separar-se das origens hebraicas para se aproximar da Grécia. Se na França está intimamente fundido e agora forma uma coisa só com a cultura nacional e popular, o judaísmo sinônimo de civilização constitui, feliz­ mente, um corpo ainda amplámente estranho na Alemanha. Por isso é somente daqui que pode partir a desejada regeneração trágica e dionisíaca: Dever-se-ia dolorosamente desesperar também da nossa essência alemã, se ela estivesse já inextricavelmente entrelaçada com a sua cultura, ou melhor, se fosse identificada com ela do mesmo modo como, para nosso horror, podemos obseivar na França civilizada; e o que por longo tempo foi a grande vantagem da França e a causa da sua esmagadora hegemonia, exatamente a unidade entre povo e cultura, poderia obrigar-nos, neste ponto de vista, a considerar uma sorte o fato de que esta nossa cultura discutível não tenha nada em comum com o nobre núcleo do caráter do nosso povo.

Mesmo com o peso que exerce na música, na vida cultural em geral e na imprensa em particular, a intelectualidade judaica continua a ser profundamen­ te estranha ao povo alemão, não tendo ainda conseguido atingir a sua "força antiquíssima, magnífica e intimamente sadia, que se move na verdade potente­ mente só em momentos extraordinários, para depois voltar a sonhar com a espera de um futuro despertar" (GT, 23; 1, 1 46-7).

5. Alexandrinismo, judaísmo e mundo ''judeu-romano " Bem considerado, a ligação entre judaísmo e latinidade é um fenômeno de vellla data e é contemporâneo da crise da grecidade autêntica vencida, por um lado, pela difusão do judaísmo e, por outro, pela irrupção do exército e do poderio roma­ no. Para Nietzsche não há dúvida: o fim da grecidade trágica é a "vitória do mundo judeu sobre a vontade enfraquecida da civilização grega" e, em última análise, à "Judeia" remetem o "helenismo romano e universalista" e o "alexandrinismo" (VII, 80-1). É por isso que o "alexandrino" Ritschl se move, aos olllos do autor de O nascimento da tragédia, no âmbito da visão ')udeu-romana". Procuremos esclarecer o quadro histórico ao qual Nietzsche se refere a partir da reconstrução que um grande historiador contemporâneo {Toynbee) 273 Wagner, 1910 r, p. 280.

faz do "encontro entre o helenismo e o judaísmo": "Foi o acontecimento mais significativo dos futuros eventos de toda a história helênica". Se Roma con­ quistou a Grécia, a penetração da cultura grega em Roma se mostrou irresistível; mas esta "Hélade conquistadora" no plano cultural, no Ocidente, é obrigada, no Oriente, a "chegar a um acordo com a inflexível terra da Judeia, adotando uma versão helenizada da fanática religião judaica". Assim se verifica "o tempestu­ oso encontro e a união final do helenismo com o judaísmo".274 Isso lança as bases para a difusão no mundo helenístico-romano das mais diversas seitas hebraicas e orientais e do advento do cristianismo. O acontecimento aqui des­ crito é colocado por Toynbee no século II a.C., mas Nietzsche tende a retrodatá­ lo, a identificar já em Sócrates os inícios da "decadência" que redundou na chegada da sociedade helenística ou seja, ''judeu-romana". É uma tendência que pode ser observada em outros autores do tempo. Publicada no mesmo ano de O nascimento da tragédia, também A antiga e novafé de Strauss fala, com um juízo de valor bastante diferente, da filosofia da religião judeu-alexandrina" e aproxima Sócrates e Platão dos ''judeus" dos "últi­ mos livros do Antigo Testamento": num e noutro caso, vemos aparecer a crença nas "recompensas e castigos no mundo füturo".275 Para dizê-lo com Burckhardt, seguido neste momento atentamente por Nietzsche, é o momento em que os gregos e os romanos, incapazes de renovar a sua religião e a sua cultura, "aca­ bam se entregando aos judeus (cristãos)".276 Essa tese deve ter marcado o mais novo professor de Basileia, como se vê por esta carta de Cosima Wagner dirigida a ele: "Lembro-me que uma vez Burckhardt lhe disse que Platão tem muito de judeu" (B, II, 6/1 , p. 1 6). Nisto consiste a catástrofe do alexandrinismo. Nietzsche sublinha que, bastante cedo, a cultura judaica, junto com a egípcia e indiana, exerceu uma influência sobre a filosofia helênica, embora isto não signifique que "na Grécia a filosofia foi simplesmente importada" (PHG, 1 ; 1, 806). Mas com o alexandrinismo se verificam um salto de qualidade e uma situação nova e radicalmente negativa. A quarta Inatual faz referência crítica a ela. Se com Alexandre Magno se produziu a "helenização do mundo e, para torná-la possível, a orientalização da grecidade", agora, porém, aparece no ho­ rizonte um contramovimento: "a terra, que agora está bastante orientalizada, tem novamente saudade da helenização". É "como se o pêndulo da história voltasse a oscilar para trás"; mas não se trata de parar no curso deste contramovimento, o "mundo alexandrino-grego"; é preciso proceder à recupe274 Toynbee, 1967, pp. 1 75-6. 275 Strauss, 1872, pp. 41 e 125. 276 Burckhardt, 1978 a, p. 32.

ração da grecidade autêntica: para tal fim é "necessária uma série de Contra­ Alexandres". Então - conclui Nietzsche - "reconheço em Wagner um tal Con­ tra-Alexandre" (WB, 4; 1, 446-7). É significativo que o momento decisivo no processo histórico chamado a superar o alexandrinismo e a civilização seja identificado no autor empenhado em lutar contra o ')udaísmo na música" e na pseudocultura da modernidade. Bem considerada, a "orientalização da grecidade" e do mundo é, na realidade, a sua infausta judaização. Estamos em 1 8 76. Em maio deste mesmo ano, Nietzsche recebe uma carta que denuncia a "gentalha judia com nariz adunco" como uma "raça inimi­ ga da civilização" (B, li, 6, 1 , p. 334) . Quem a envia é o diretor de orquestra Carl Fuchs, que manterá boas relações com o filósofo até o fim e que, ao se exprimir de tal modo, crê estar em consonância com o seu interlocutor. Portan­ to, pelo menos até 1 876, Nietzsche se movimenta à vontade num ambiente saturado de veneno antijudaico. A quarta Inatual denuncia um fato bastante inquietante: "os homens que fazem comércio de dinheiro" (um ramo da econo­ mia, como logo veremos, que caiu "em mãos particulares") se tomaram "a força dominante na alma da humanidade moderna, como a parte mais cobiçosa dela" (WB, 6; 1, p. 462). Arte e teatro estão doravante submetidos à "brutal avidez de lucro dos empresários" (WB, 4; 1, p. 448). Explicam-se agora as "grandes vitórias" conseguidas por Meyerbeer, obtidas mediante uma "rede de influências de todo tipo, tecida de maneira artificiosa"; é assim que se "tomam senhores neste campo" (WB, 8; 1, p. 474). Na vertente oposta, Wagner, empe­ nhado na defesa da pureza da língua alemã e de uma arte autenticamente popular e nacional, sofre a "hostilidade e a perfidia (Tücke)" - vemos de novo em ação os "pérfidos anões" - dos ambientes "furiosos" contra a grande inici­ ativa de Bayreuth, os quais com razão veem nela "uma das suas mais graves derrotas" (WB, 4; 1, p. 450). Sabemos da recomendação de Cosima à cautela e à autocensura. Isso talvez devesse induzir a ler, por assim dizer, em contraluz os textos precedentes à virada "iluminista". Quando, nas conferências de Basileia topamos com a afirmação de que "no jornal culmina o verdadeiro endereço cultural da nossa época" e encontra expressão particularmente clara a vulgaridade do moderno (BA, l ; 1, 67 1), não podemos deixar de ter presente que, para o Nietzsche desses anos, bem como para Wagner, jornalismo é, em última análise, sinônimo de judaísmo. À intelectualidade vazia da civilização moderna se contrapõe o "gênio", o qual, porém, pode desenvolver-se "só quando estiver maduro e nutri­ do no seio matemo da cultura de um povo". "Sem essa pátria, que possa defendê-lo e aquecê-lo" - sublinha a terceira conferência Sobre o faturo de nossas escolas - "ele não conseguirá estender as asas para o seu voo eterno" ili

(BA, 3; 1, 700). E de novo somos reconduzidos a um tema polêmico agora bem conhecido: apátrida e obrigado a exprimir-se numa língua que é sempre adqui­ rida, o judeu é incapaz, segundo Wagner, de verdadeira genialidade e criatividade artística: não é possível "fazer poesia verdadeira numa língua estrangeira". 277 Junto com a falta de uma língua materna, também o intelectualismo man­ tém os judeus irremediavelmente longe da autêntica criação artística e da genialidade em geral. WagAer é um crítico implacável da "fala dialética judai­ ca" e da "dialética", artificiosa, ainda que "elegante", à qual recorrem os inimi­ gos judeus do musicista (infra, cap. 6 § 2). Por sua vez, Nietzsche não só denuncia repetidamente o papel da dialética ("o elemento peculiar do socratismo") e da "superfetação do elemento lógico" na destruição da tragédia (ST; 1, 545-6; VII, 1 2-3), mas faz a ligação da dialética com o "socratismo da nossa época" e com a "imprensa". Sabemos que "a dialética é a imprensa" (VII, 1 3), e a imprensa lembra o judaísmo. Tampouco se deve esquecer que a dialética é sinônimo de "otimismo" (GT, 14; 1, 94-5), ou melhor, de "avidez (Gier) de co­ nhecimento insaciável e otimista" (GT, 1 5 ; 1, 1 02). Como se não bastassem o intelectualismo e o otimismo, agora irrompem também a "avidez" e a "insaciabilidade": mais uma vez somos reconduzidos ao judaísmo ou, mais exa­ tamente, aos estereótipos judiófobos. Podemos agora compreender melhor a análise desenvolvida pelo O nas­ cimento da tragédia e pelos apontamentos que a precedem e a preparam. Na Hélade trágica, o dionisíaco intervinha para evitar que "nessa tendência apolínea a forma não se enrijecesse em egípcia dureza e frieza" (GT, 9; 1, 70); só assim a grecidade autêntica conseguia temporizar "a grecidade egitizante" (VII, 46). Não podemos deixar de pôr esta categoria em relação com as declarações dos anos seguintes, que falam do "refinado egitismo" dos judeus (M, 72), ou seja, dos 'judeus corroídos pelo cativeiro egípcio" (X, 242). Por outro lado, Sócrates e Platão estão afetados pelo "egitismo" pelo fato de que, em última análise, são judeus (infra, cap. 1 5 § 2). A "grecidade egitizante" é a grecidade judaizante que triunfa com Sócrates: a dialética e a "superfetação do elemento lógico" matam a tragédia e a arte. Há de se ter presente que, no Nietzsche desses anos, os dois autores de referência são Wagner e Schopenhauer, do qual o primeiro derivou - sublinha­ rá mais tarde A gaia ciência - "o ódio pelos judeus" (FW, 99). Dadas essas premissas, não é surpreendente o fato de que a obra juvenil contraponha nega­ tivamente a versão semita do pecado original à versão ariana. Não se trata de um tema isolado. Quando lemos que "o cortejo dionisíaco" provém "da Índia 277 Wagner,

1 9 1 0 b, p. 71.

para a Grécia" (GT, 20; 1, 1 32) e que a volta da Alemanha à sua essência e vocação dionisíaca é o retomo à "pátria mítica" (mythische Heimat) (GT, 24; 1, 1 54 ) , somos levados a pensar exatamente no outro autor que exerce uma influ­ ência poderosa sobre o Nietzsche desses anos . Ao celebrar os povos "que pertencem ao tronco lingüístico jafético", isto é, dos descendentes do mítico Jafé de que fala a Bíblia, Schopenhauer os tinha convidado a recuperar as próprias origens, que remetiam à Índia. Era preciso partir daqui, como demons­ trava a descoberta do sânscrito, para "compreender mais a fundo a língua gre­ ga e a latina", herança e orgulho do Ocidente. Dessa unidade lingüística desco­ berta, a Alemanha e o Ocidente devem saber tirar proveito também no plano cultural e religioso, enveredando o caminho da volta às "sagradas religiões da pátria" (Heimat), à "religião pátria originária" (heimatliche Urreligion).278 Assim se fecharia o parêntesis infeliz do "Ocidente judaizado" (judaisiert),279 ou seja, segundo Wagner e o jovem Nietzsche, da Alemanha poluída pelos "pérfidos anões" irremediavelmente estranhos a ela. Logo após O nascimento da tragédia, Rohde se mostra preocupado: dificilmente o livro poderá obter sucesso junto daquela espécie de "sinagoga reunida" que são as revistas literárias; mas não muito melhores são as perspec­ tivas no que se refere àquela espécie de "Alexandria reunida" que são as "re­ vistas filológicas especializadas" (B, II, 2, p. 502); a referência imediata é à cultura alexandrina, mas não esqueçamos que esta, por sua vez, remete à influ­ ência exercida pelo judaísmo na idade helenista e, em particular, na cidade egípcia. Significativamente, poucos anos depois, durante a polêmica sobre o antissemitismo, Mommsen se empenhará em defender a "literatura judeu­ alexandrina" dos ataques de Treitschke.280

6. No limiar da teoria do complô Vimos que, depois da recomendação à cautela no tema da "imprensa judaica" proveniente de Tribschen, Nietzsche exprime o propósito de apro­ veitar no futuro o momento oportuno para expressar-se com franqueza. Pelo menos num dos Prefácios, não destinados ao público e dedicados não por acaso a Cosima Wagner, a autocensura parece ter desaparecido amplamen278 Schopenhauer, 1976-82 c, vol. IV, p. 236; Schopenhauer, 1976-82 c, pp. 503, 347 e 299; Schopenhauer, 1976-82 d, p. 638. 279 Schopenhauer, 1976-82 c, vol. V, p. 263. 28º Mommsen, 1965, p. 2 14.

133

te. O Estado grego põe em conexão os fenômenos de decadência do mundo moderno com a agitação e as manobras de "homens" particulares, estranhos pelo "seu nascimento" à nação. Inequívoca é a referência aos judeus: em todo objetivo de gozo material e de acumulação da riqueza, eles olham em primeiro lugar para a "segurança" e, portanto, aspiram, dentro de qualquer comunidade particular e a nível internacional, a uma organização política con­ forme esse seu ideal e inteiesse supremo . Pretendem então expulsar todo perigo e a guerra, a fim de construir um mundo à medida da sua natureza vulgar e mercantil (CV, 3; I, 772-3). Convém deter-se um instante nesta acusação. São os anos em que o senti­ mento de horror pela Comuna forma uma coisa só com a denúncia do internacionalismo e do ideal da paz perpétua: o governo revolucionário parisiense tinha decidido e levado a cabo a derrubada da "coluna da vitória na Praça Vendôme, fundida depois da guerra de 1 809 com canhões capturados por Napoleão e eleva­ da a símbolo do chauvinismo e da instigação ao ódio contra os povos".281 Talvez a isso faça referência O Estado grego quando denuncia as ilusões e a vulgarida­ de daqueles que aspiram a "tornar maciçamente inverossímil o sucesso de uma guerra de agressão e, portanto, a própria guerra" (CV, 3; I, 773). Por outro lado, já antes de 1 87 1 , a Internacional, nos escritos de Marx, tinha chamado a lutar pelo advento de "uma nova sociedade cujo princípio internacio­ nal será a paz, pelo fato de que em cada nação domina o mesmo princípio, o trabalho", 282 Nesse espírito foram celebrados toda uma série de congressos. Um deles se realizou em 1 869, em Basileia, onde Nietzsche tinha chegado há poucos meses, enquanto outro ocorrera, em 1 867, em Lausanne.283 O eco suscitado por estas iniciativas deve ter sido notável. Strauss faz referência irônica ao "famoso Congresso pela paz de Lausanne",284 estando também ele empenhado na polê­ mica contra a Comuna, a Internacional e o ideal da paz perpétua. Querer abolir a guerra não é menos quixotesco que bater-se pela "abolição dos temporais": "Como nas nuvens se condensará sempre eletricidade, assim, de tempo em tempo, entre os povos se condensará material bélico".285 É uma afirmação contida num texto sobre o qual se desencadeará depois a polêmica de Nietzsche. Mas sobre este ponto, a consonância entre os dois autores é plena. As "terríveis nuvens da guer­ ra entre os povos", os "trovões e relâmpagos" - observa O Estado grego - são 281

Marx-Engels, 1955, vol. XVII, p. 620. 1955, vol. XVII, p. 7; sobre isto cf. Sautet, 198 1 , pp. 77-93. 283 Montinari, 19 99, p. 80. 284 Strauss, 1 872, p. 260. 285 Strauss, 1 872, p. 259. 282 Marx-Engels,

também a condição que pennite que "brotem", "verdejem" e "desabrochem" as "flores luminosas do gênio" (CV, 3; 1, 772). Strauss exprime a opinião segundo a qual a ambicionada paz perpétua seria apenas sinônimo de vulgarização e de pavorosa decadência espiritual: O que querem os hodiernos pregadores da confraternização dos povos? Querem sobretudo o equilíbrio (Ausgleichung) das condições materiais da existência hu­ mana, dos meios paraã vida e o prazer; o elemento espiritual fica em segundo plano e deve selVÍf principalmente para obter aqueles meios de prazer.286

Neste sentido, segundo Nietzsche, quem nutre horror pela guerra é o "ego­ ísmo da massa ou dos seus representantes" (CV, 3 ; 1, 773). Não diversamente argumenta Strauss, o qual trava uma dura polêmica contra a Internacional operá­ ria: ela pretenderia que "os grandes Estados nacionais" se dissolvam "num monte de pequenas social-democracias aliadas, entre as quais a diversidade de língua e de nacionalidade não constituiria mais nenhuma barreira, nenhuma ocasião de conflito". 7P.7 No entanto, apesar dos nobres sentimentos que ostenta, o presumido "cosmopolita" é na realidade um vulgar "egoísta": portanto, além de perigoso e subversivo no plano político, sem qualquer dignidade moral se revela o movimen­ to internacional operário e socialista. 288 Também nesse ponto é clara a conver­ gência com Nietzsche. São os anos nos quais, nas palavras de Marx, a ideologia dominante, angustiada e aterrorizada pela Internacional, declara que "o grande problema de todos os governos civis é erradicá-la".289 A partir de um certo ponto, porém, os caminhos começam a se separar. Junto com a Internacional "vermelha", Strauss tem em mente também a Inter­ nacional "negra" da Igreja católica e dos jesuítas. Esse último alvo polêmico cai em Nietzsche, desde o início cético ou hostil nos confrontos com a Kulturkampf e a política de Bismarck de cumplicidade na França das tendências republica­ nas com o objetivo do ulterior isolamento internacional do país derrotado (infra, cap. 7 § 2). Como aparece pela referência positiva, que logo veremos, aos "instintos monárquicos dos povos", nesse momento Nietzsche deve ter olhado com simpatia para a perspectiva de restauração bourbônica que, logo depois da guerra e da derrota, parece delinear-se além do Reno. A diferença mais importante, porém, é outra. No Estado grego, o cosmo­ polita egoísta e banal, agarrado a uma visão vulgarmente hedonista e mercantil 286 Strauss,

1 872, p. 264. 1872, p. 262. 288 Strauss, 1 872, pp. 262-5. 289 Ma rx-Engels, 1955, vol. XVII, p. 361 . 287 Strauss,

1 35

da vida, adquire uma conotação étnico-religiosa e tende assim a tomar as fei­ ções do judeu. Sim - insiste Nietzsche - quem quer banir a guerra e a visão trágica da vida ligada a ela é um círculo de pessoas bem determinado e com características peculiares: Não posso deixar de ver como aqueles que propriamente têm medo sejam aqueles solitários do dinheiro, verdadeiramente internacionais e sem pátria, os quais, na sua falta113tural do instinto estatal, aprenderam a abusar da política como instrumento da Bolsa e a explorar o Estado e a sociedade como aparelhos para o seu enriquecimento (CV, 3 ; 1, 774).

A Internacional "vermelha", da qual Strauss fala, parece configurar-se no Nietzsche destes anos como a internacional judia, sinônimo de finanças desenraizadas e apátridas, comprometida em evitar as tensões e os choques en­ tre as diversas potências europeias. Que interesse tal "Internacional" podia ter num conflito, pois ela, por definição, se movia ignorando os limites estatais e nacionais? É um tema amplamente difundido na cultura do tempo. Com um jogo de palavras e retomando um tema bastante difundido na cultura e na publicística do tempo, Wagner tinha observado que o "credor dos reis" acabara conquistando também o poder político, além do econômico, e, ao se transformar no "rei dos crentes", suplantando as diversas monarquias nacionais e unificando-as sob um cetro judeu supranacional, de modo que agora eram os crentes cristãos dos diver­ sos países que deviam conseguir a "emancipação dos judeus".290 Um estudioso autorizado do antissemitismo observou que "os Rothschild faziam de tudo para evitar carnificinas inúteis" e que "a paz era a grande palavra de ordem da ban­ ca". Mas nem todos estavam felizes com esta "paz dos Rothschild ou paxjudai­ ca". Certamente não o estava aquele furioso antissemita que responde pelo nome de Toussenel, o qual advertia assim: ''Não agradeçais o judeu pela paz que vos dá. Se tivesse interesse em fazer a guerra, ele a faria". 291 Para estas finanças cosmopolitas e ligadas aos centros do poder nos di­ versos países - prossegue Nietzsche -, o horror da guerra é funcional para o tranquilo desenrolar dos próprios negócios. Os judeus veem no Estado um sim­ ples "instrumento". Deste modo acabam por se encontrar numa situação de clara vantagem com respeito aos outros cidadãos, tanto mais embaraçados em seu comportamento quanto mais longe estão dessa visão inescrupulosa e ins­ trumental. O resultado é certo: dadas as premissas, "é totalmente inevitável que tais homens [os judeus] adquiram uma grande influência sobre o Estado", 290 Wagner, 1 9 1 O b, p. 68. 291 Poliakov, 1 974-1 990, vol. III, p. 394.

o que vem acrescentar-se à preponderância conseguida a nível econômico (CV, 3; 1, 772-4). Junto com Wagner (e a sua denúncia da "usura" que permitiria que os judeus acumulassem dinheiro de modo bastante desinibido), 292 atuam tam­ bém outras leituras. Num apontamento de verão-outono de 1 873 podemos ler: "A via pela qual nos leva a cegueira das últimas gerações é aquela no fim da qual, segundo uma afirmação verídica de von Stein, 'os judeus constituirão a classe dominante, o camponês será um maltrapilho e o artesão não valerá mais nada, onde tudo se desagregará e dominará apenas a espada"' (VII, 673). É, portanto, hora de se precaver. Dir-se-ia que Nietzsche esteja polemizando contra a concessão dos direi­ tos políticos sancionada pelo Reich em 1 8 7 1 . Já algumas décadas antes, Schopenhauer - assimilando os judeus, membros de "um povo estrangeiro, ori­ ental", exatamente a "estrangeiros residentes" - tinha declarado que era preci­ so reconhecer a eles, como a todos os estrangeiros, os "direitos civis" (bürgerlichge Rechte), mas não se podiam certamente atribuir-lhes os "direi­ tos políticos" (Staatsrechte).293 Nesta mesma direção parece mover-se tam­ bém o jovem Nietzsche, que, depois da imprensa, alveja as finanças judaicas, montando o outro clássico cavalo de batalha da imprensa antijudaica. Alguns anos depois, sempre durante a polêmica sobre o antissemitismo, junto com os "apátridas jornalistas internacionais'', Treitschke acusará "as potências finan­ ceiras cosmopolitas" do mundo judeu. 294 Por sua vez, depois de ter sublinhado a estrangeiridade dos judeus em relação à nação alemã e o enorme poder que eles conquistaram, O Estado grego denuncia a "moderna economia do dinhei­ ro, caída em mãos particulares" e controlada por "uma egoísta e apátrida aris­ tocracia do dinheiro". As consequências são catastróficas em todo nível: "Vejo não só todos os males da situação social, mas também a necessária decadência das artes, seja como brotados daquela raiz ou como crescidos junto dela" (CV, 3; 1, 774). A primeira parte desta declaração ecoa um tema largamente difundi­ do nas publicações judiófobas ou antissemitas do tempo, que tende a ler a ques­ tão social como uma questão judaica, ou seja, como o resultado da avidez e do enorme poder econômico atribuído aos judeus (infra, cap . 1 8 § 7). Na sua denúncia, Nietzsche introduz também o tema da decadência da arte. É claro que é Wagner que age mais diretamente sobre ele, o qual lamenta a "completa vitória do judaísmo em todos os planos".295 292 Wagner, 1 9 1 0 b, p. 73. 293 Schopenhauer, 1 976-82 e, vol. V, p. 3 12. 294 Treitschke, 1 965 e, p. 79. 295 Wagner, 1 9 1 0 e, p. 257. 137

Talvez, porém, Nietzsche pareça lançar-se ainda além. "A enorme difu­ são do otimismo liberal" e dos "pensamentos da Revolução" não é sem cone­ xão com a influência e as manobras dos judeus: "os indivíduos mencionados acima" estão ativamente empenhados em "destruir lentamente os instintos monárquicos dos povos", de modo a puxar para si "o problema da paz e da guerra" e o poder político enquanto tal (CV, 3 ; 1, 773-4). Estamos no limiar da teoria do complô. Talvez seja wn limiar transposto pela versão preparatória do Estado grego, que denuncia a "utilização" e a "difusão consciente das ideias revolucionárias" por obra de uma aristocracia financeira que age na sombra (KGA, III, 5/2, p. 1 068). São os anos em que Wagner acusa o movimento democrático e revolucionário na Alemanha de "agitadores provenientes de uma estirpe não alemã",296 enquanto Dühring faz ironia sobre a "estirpe marxista de social-democratas judaizados"297 e acentua que o próprio Lassalle não supe­ rou "os hábitos e inclinações inatos da sua raça".298 O jovem Nietzsche, que tomou consciência da teoria do complô através de suas leituras sobre a revolu­ ção francesa (;nfra, cap. 28, § 2), sente claramente este clima.

296 Wagner, 1 9 10 1, p. 50 297 Dühring, 1 88 1 a, p. 55. .

298 Dühring,

1871, p. 559.

4 A FUNDAÇÃO DO II REICH E O CONFLITO DOS MITOS GENEALÓGICOS 1 . Em busca de uma grecidade e de uma germanicidade

volksthümlich

,

E germanicidade que acompanha a sua fundação. O significado da guerra clara nesse momento a identificação com o II Reich e com o pathos da

que apenas acabara, e da guerra em geral, reside, em primeiro lugar, na recom­ posição em sentido ético e espiritual da comunidade toda: Na convulsão da guerra fica pelo menos claro que o Estado não está funda­ do no temor do demônio da guerra, como se se tratasse de uma instituição para defender indivíduos egoístas, mas produz, antes, com amor pela pátria e pelos príncipes, um impulso ético que aponta para um destino mais alto (CV, 3; 1, 774).

Não se trata só da retomada do topos clássico que vê na guerra o remé­ dio contra o perigo do estilhaçamento particularista e individualista. Nietzsche nutre a esperança ou a ilusão de que, graças ao renascimento da tragédia e ao afirmar-se ou ao reafirmar-se a essência dionisíaca do povo alemão, fosse possível superar as lacerações da modernidade, de modo a reconstituir uma sociedade orgânica igual à grega ou àquela que ele crê que pode projetar na antiga Grécia. Por isso Wagner constitui um ponto obrigatório de referência: ele "conhece o único artista que jamais existiu, o povo poeta". Sempre fazendo referência ao grande musicista, Nietzsche prossegue assim: A arte moderna é luxo: isto ele compreendeu, e também que uma tal arte pode apoiar-se apenas na legitimidade de uma sociedade de luxo. Esta sociedade, ao fazer uso da maneira mais desapiedada e astuta do seu poder, soube tornar os fracos, soube tornar o povo ( Vo/k) sempre mais serviçal, sempre mais vulgar e estranho ao povo-nação (unvo/ksthümlich), fazendo dele o moderno "operário".

Essa ruptura é tanto mais profunda pelo fato de que do povo foram tira­ dos, por sua vez, o mito e a arte, degradados a "artes modernas", especializadas e reservadas ao luxo e ao divertimento de poucos {WB, 8; 1, 475), separadas

agora da comunidade que deveria alimentá-las e à qual deveriam estar destina­ das, e por conseguinte "estioladas na solidão" {WB, 1 ; 1, 433). É bom precisar desde já que o povo que é objeto de celebração nada tem em comum com as "massas", que podem tornar-se toleráveis ou úteis apenas sob a condição de funcionar como estímulo ou matéria-prima para as criações das quais são protagonistas os homens superiores (supra, cap. 2 § 5 e infra, cap . 6 § 5). É claramente perceptível a influência de Wagner, que também era da opinião de que "desde sempre o elemento popular (das Volksthümliche) é a fonte da qual brota toda a arte". Com o olhar voltado sobretudo para além da Alemanha, o musicista descreve assim o advento da modernidade: "Precisava­ se não do povo mas da massa, o resíduo material do povo do qual foi sugado o espírito da vida".299 Por trás de Wagner atua, por sua vez, uma ideologia mais antiga. Se na França não se tivesse perdido a lembrança dos "cantos populares" - tinha suspirado Arnim no começo do século - talvez não tivesse estourado a revolu­ ção; o que a favoreceu foi o esgotamento das tradições, sagas, lendas, expres­ sões artísticas comuns, que conferiam unidade e vitalidade ao povo.300 Feliz­ mente, na Alemanha não tinha progredido tanto a obra ruinosa do iluminismo de enfraquecimento e dissolução da comunidade, e por isso se podiam esperar um desenvolvimento e um futuro bem diferentes . A partir da luta contra o expansionismo termidoriano e napoleônico, vivida e transfigurada como suble­ vação unânime contra o país protagonista ao mesmo tempo do iluminismo, da revolução e de uma cruel campanha de conquista, começa a tomar forma a esperança ou o mito de um Sonderweg alemão, esperança e mito que se refor­ çam tanto mais quanto mais a supremacia e a ocupação militar estrangeira fazem sentir a necessidade da unidade nacional. São os anos em que o próprio Fichte, que também por algum tempo esperara a ajuda do exército da nova França para a vitória da revolução na Alemanha, não só convida a pôr de lado, por serem secundárias, as contradições internas à nação alemã, mas atribui o seu surgimento às manobras dissimuladas de inimigos externos: Muitas vezes, tanto na antiguidade como nos tempos modernos, foram usa­ das com sucesso as artes da sedução e da corrupção moral dos vencidos como meio de donúnio. Com fingimentos mentirosos, com uma confusão arti­ ficiosa dos conceitos e da língua se tentou caluniar os príncipes junto ao povo e vice-versa apenas para poder reinar mais facilmente sobre os divididos. 301 299 Wagner,

1 9 10 c, pp. 266 e 270. 300 Amim, 1978, pp. 701 -2; sobre isto cf. Losurdo, 1997 a, cap. 1, 6. 301 Fichte, 1 971, vol. VII, p. 277.

Na Alemanha, já no tempo da Reforma, príncipes e povo souberam fim­ dir-se, segundo Fichte, numa luta solidária, superando as incompreensões inici­ ais, alimentadas pelos inimigos externos. Não foi por acaso que o protestantis­ mo não triunfou nos países neolatinos; antes, foi repelido, como sinônimo de subversão: "Somente onde há profundidade alemã nos governantes e afabilida­ de alemã no povo, esta doutrina pode estar de acordo com a autoridade".302 Num povo "originário", e�tamente porque é vida, a cultura se difunde em todos os estratos sociais; nos povos ligados a uma língua "morta", a cultura é um jogo do intelecto e um divertimento superficial mais ou menos refinado: em tal caso "as classes cultas se separam do povo e se servem dele apenas como um órgão cego para realizar os seus planos". 303 Os intelectuais alemães que de maneira não crítica absorvem ou macaqueiam essa cultura, pela ânsia de apa­ recer, por sua vez, refinados, "querem abrir artificiosamente entre as classes superiores e o povo aquele abismo que em outros lugares surgiu espontâneo".304 Era um dado de fato que a cultura iluminista proveniente de Além-Reno, com uma difusão limitada aos ambientes de Corte e às classes intelectuais e sem uma sólida burguesia por trás, em terra alemã não tinha encontrado certamen­ te, como na França, uma cultura nacional e popular; ela tivera antes o efeito de estimular um cosmopolitismo às vezes superficial e estranho à vida e aos pro­ blemas da nação e do povo, um cosmopolitismo cujo olhar estava voltado para o centro metropolitano de um império que oprimia também a Alemanha. Explica-se agora o recurso de Fichte a uma ideologia que, ao rotular a ação de desagregação e erradicação desenvolvida pelo iluminismo, chama os intelectuais a se juntarem ao povo envolvido na luta contra o exército de ocupa­ ção. "Se permanecermos alemães não nos distanciamos do povo que nos com­ preende e nos considera semelhantes a ele; se, ao contrário, passarmos para o outro lado, o povo não nos compreende mais e vê em nós outras naturezas". Sob o impulso da situação objetiva, que põe na ordem do dia a necessidade de isolar os invasores, a distância entre franceses e alemães é elevada a um dado da natureza, como a diferença insuperável entre um povo "artificial e estuda­ do" e um povo "natural e espontâneo".3º5 É a partir desse momento que, como foi observado, " Volk" se toma "uma palavra muito mais expressiva que 'povo "'; ela denota "um conjunto de indiví­ duos ligados por uma 'essência' transcendente [ . . . ],juntamente com a natureza 302 Fichte, 1 971, vol. VII, pp. 349 e 351. 303 Fichte, 1971, vol. VII, p. 3 27. 304 Fichte, 1971, vol. VII, p. 337. 305 Fichte, 1 971, vol. VII, p. 337. ili

mais secreta do homem e que constituía a fonte da sua criatividade, dos seus sentimentos mais profundos, da sua individualidade, da sua comunhão com os outros membros do Volk".306 Para corroborar com maior força e maior clareza esta visão, surge um termo novo, Vo/k<;thum (a "comunidade popular"), cujo significado é esclareci­ do por F. L. Jalm (que por primeiro recorre a ele) da seguinte maneira: O que há de comum 11um povo, a sua essência íntima, o seu sentimento e a sua vida, a sua força de regeneração, a sua capacidade de reprodução. Por isso em todos os membros do povo há um comum (volksthümliches) pensamento e sentimento, amor e ódio, alegria e tristeza, sofrimento e atividade, sacrificio e prazer, esperança e nostalgia, pressentimento e fé. Desse modo, todo indiví­ duo do povo entra numa relação múltipla e multilateral com todos os outros numa comurudade unida, sem que a sua liberdade e autonomia seja anulada, mas ao contrário, exatamente assim, é reforçada ulteriormente. 307

Nunca realmente esquecida, a ideologia que preside à luta contra Napoleão 1 ganha nova vitalidade e atualidade à medida que avança o processo de re­ construção da unidade nacional alemã. Agora há as condições para fundar o novo Reich sobre bases realmente volksthümlich. Antes ainda da guerra con­ tra Napoleão III, falando da Grécia de Homero, mas com o olhar constante­ mente voltado para a Alemanha de Wagner, Nietzsche eleva um hino à "mara­ vilhosa capacidade do povo" (Volksseele) de "infundir na forma da personali­ dade as condições do costume e da fé" (HKP, p. 255). É neste contexto que é preciso colocar a produção da arte: "O pensamento de uma poesia popular (Volksdichtung) tem algo de inebriante; percebe-se o amplo, possante desen­ volvimento de um caráter popular (volksthümlich) com um sentido de bem­ estar artístico" (HKP, p. 258). Bem diferente e bem mais infeliz é, ao contrário, a poesia "que não cresceu no terreno dos sentimentos populares (volksthümliche Empjindungen), mas que remete a um criador não popular (unvolksthümlich) e viu a luz numa atmosfera não popular (unvolksthümlich), por exemplo, no estudo de um sábio" (HKP, p. 26 1). Depois da conclusão triunfal da guerra com a França, Nietzsche exprime a "esperança de uma cultura nacional ainda por vir", caracterizada pela "genuinidade e imediatez do sentimento (Empjindung) alemão", pela "unidade do sentimento popular" ( Volksempjinden), por um robusto e incontaminado "instinto do povo" (Jnstinct des Volkes) (HL, 4; 1, 277-8). É necessário, e 306 Mosse, 1 968, p. 13. 307 ln Martim, 1963, p. 339.

finalmente possível, sanar e superar as lacerações da modernidade: "Quanto mais a vontade é entristecida, tanto mais tudo se estilhaça na singularidade; quanto mais egoisticamente o indivíduo se desenvolve, tanto mais fraco é o organismo ao qual serve" (DW, l ; 1, 557-8). O Volksthum, a "comunidade popular" que é objeto de celebração não só não tem nada a ver com as massas populares, mas constitui a sua antítese. É pensado em contraposição não às elites do poder e da riqueza, mas ao que é estranho à alma nacional, a começar pelas ideologias revolucionárias e subver­ sivas importadas do estrangeiro e que procuram minar uma unidade coral que, ao contrário, é preciso guardar ciosamente. Não por acaso essa celebração vai junto com a condenação daqueles (os socialistas)308 que agitam a palavra de ordem da "fundação do Estado popular (Volksstaat) com base na razão, na cultura e na justiça" (Gerechtigkeit) (BA, 4; 1, 729); do mesmo modo que em O nascimento da tragédia a celebração da "comunidade popular ( Volksmenge) jovem e fresca, linguisticamente criativa" (GT, 6; 1, 50), vai acompanhando a polêmica contra a leitura da tragédia grega que vê no coro a "representação constitucional do povo" (Volksvertretung) (GT, 7; 1, 53). O nascimento da tragédia traduz em linguagem "dionisíaca" o ideal de uma comunidade orgânica nascido durante a luta contra o país do iluminismo e da revolução; superando as lacerações da modernidade, a nova Alemanha é chamada a seguir um Sonderweg que a conduzirá ou a reconduzirá nas pega­ das da antiga Grécia: "Todo período produtivo de cantos populares (Volkslieder) foi também impulsionado no modo mais forte por correntes dionisíacas, que devemos sempre considerar como fundamento e pressuposto do canto popu­ lar". Isto ainda vale para a Alemanha, como demonstra A corneta mágica do menino (Des Knaben Wunderhorn) (GT, 6; 1, 48), a coleção de cantos e poesias populares, organizada por eminentes personalidades do romantismo ale­ mão (Brentano, Arnim, os irmãos Grimm e Gõrres), ainda uma vez durante a luta contra a ocupação francesa e pela recuperação das raízes, da identidade, da alma da Alemanha. Este último objetivo continua a estar no centro das preocupações do jovem Nietzsche: Quem quer fundar e promover a cultura de um povo funde e promova esta unidade superior e colabore com a destruição da "culturama" (Gehildetheit) moderna em favor de uma verdadeira cultura, ouse refletir sobre como a saúde de um povo, perturbada pela história, pode ser restabelecida, sobre como ele pode encontrar os seus instintos, e com eles a sua honestidade (HL, 4; 1, 274-5). 308 "A social-democracia exige o Estado popular" ( Volksstaat): Stõcker,

1891 a, p. 13.

Neste momento Nietzsche olha para a Grécia corno para um modelo tam­ bém de comunidade intimamente unida e fundida. Mesmo caracterizado por um esplêndido florescimento da arte e da civilização, o Renascimento está, porém, bem longe de suscitar um sentimento de entusiasmo. Um fragmento de primavera-verão de 1 875 o condena em termos ásperos, denunciando o seu "horrível" jeito unvolksthümlich, que é de alheiamento e separação com res­ peito ao povo (VIII, 69). O- mérito da arte de Wagner é deixar de lado "a linguagem da cultura de urna casta" e, por isso, superar "a diferença entre cultos e incultos". Desse modo, ele se distingue claramente de todos aqueles que, "no requinte e esterilidade da sua cultura, são decididamente não popula­ res" (unvolksthümlich). Deixando para trás aquela "representação do enigma não popular" (unvolksthümlich) que é o Fausto de Goethe, a arte de Wagner "põe-se em desacordo com toda a cultura do renascimento, que tinha até agora envolvido na sua luz e na sua sombra a nós, homens modernos" (WB, 1 0; 1, 502-3). Por isso a arte de Wagner tem importância decisiva, também no plano político, para a nova Alemanha nascida em Sedan e da derrota do país que, mais que qualquer outro, representa a decadência e o despedaçamento da civi­ lização moderna.

2. Gregos, cristãos, germanos e indoeuropeus Mas essa visão do II Reich corno recuperação coral germânica da grecidade originária é obrigada a confrontar-se ou a chocar-se com visões diversas e con­ trapostas. A constituição de um grande Estado nacional e as lutas e os movimen­ tos que o precedem e o preparam são em geral acompanhados pela elaboração de mitos genealógicos chamados a fundamentar a legitimidade, a grandeza e até a "missão". Não se trata de um fenômeno peculiar ou exclusivo da Alemanha, e não teria sentido histórico partir da ênfase na celebração do seu passado e do seu futuro para projetar imediatamente a sombra do III Reich. Vemos um debate e ternas ideológicos análogos desenvolverem-se na Itália do Risorgimento: se Gioberti busca as suas origens remotas nos míticos pelasgos, outros, mais frequentemen­ te, evocam os antigos romanos e o "elmo de Cipião". A ideia de "missão" tam­ bém não é estranha às correntes mais democráticas que, com Mazzini, chamam de Terceira Roma, a Roma do povo, que tornará o lugar daquela dos papas e dos imperadores. Enfim, não faltam aqueles que colocam o acento em primeiro lugar na herança cristão-católica, elaborando um terna ideológico e um mito genealógico em clara contradição com a referência à Roma pagã, imperial e perseguidora do cristianismo.

Se o catolicismo permaneceu à margem do Risorgimento italiano, as Igrejas protestantes foram bem mais ativas em 1 8 1 3 e 1 870, durante a luta contra Napoleão 1 e Napoleão III. Portanto o dilema se apresenta na Alemanha com agudeza: é preciso referir-se a Armínio ou a Lutero? Kleist dedica ao protago­ nista da resistência contra Varo e os romanos um drama, e o próprio Fichte reserva notável atenção e grande respeito. Por um lado, a luta contra a França descristianizada pela revolução e secularizada pelo desenvolvimento urbano e industrial tende a assumir tons declaradamente religiosos e cristãos: "o soldado [alemão] deve ser cristão" - admoesta Arndt - o qual para a ocasião compõe um Catecismo para os combatentes, que tem o ritmo dos versículos bíblicos.30') Também por ocasião do combate contra Napoleão III a "teologia alemã da guerra" - como foi definida - convoca à luta contra o país da "irreligiosidade" e da "imoralidade'', em defesa da "retidão alemã" e da "veracidade cristã".310 É um tema ideológico sobre o qual Marx ironiza: "E assim, no fim aparecia o verdadeiro caráter da guerra ordenada pela Providência como castigo da Fran­ ça ateia e corrupta pela mão da piedosa e moral Alemanha". 311 Imediatamente depois da constituição do II Reich, coincidindo com o de O nascimento da tragédia, uma personalidade prestigiosa como Constantin Frantz dirige um apelo apaixonado a seus concidadãos para que não percam ou abandonem as tradi­ ções da "piedosa nação alemã".312 O autor aqui citado nos leva para perto de Wagner, que muitas vezes faz referência a ele com grande entusiasmo. Por outro lado, mais tarde, Cosima celebrará de modo explícito na música do seu ilustre consorte uma "profissão de fé artística cristão-germânica".313 Eis, por­ tanto, um primeiro mito genealógico, o do cristão-germânico. Ele encontra a sua expressão mais acabada numa balada de Emanuel Geibel, o qual imagina que um alemão esteja de guarda aos pés da cruz de Cristo no Gólgota.314 Neste mito não conseguem, todavia, reconhecer-se os ambientes teutômanos mais exaltados e mais obsessivamente empenhados na recupera­ ção de uma germanicidade autêntica e pura, não contaminada nem pelas ideias iluministas e revolucionárias que irromperam a seguir aos exércitos de Luís XIV e de Napoleão, nem pelo cristianismo introduzido, sempre com a força das armas, por Carlos Magno, nem pela cultura latina imposta pelas legiões da Roma Imperial. Delineia-se, assim, o mito genealógico puramente germânico. 309 Cf Losurdo, 1997 a, cap. II, 12. 3 1 º Hanuner, 1971, pp. 53 e 184. 3 1 1 Marx-Engels, 1955, vol. XVII, p. 360. 31 2 Frantz, 1 970, p. 2. 313 In Zelinsky, 1983, p. 8. 3 1 4 Faulhaber, 1934, p. 123.

E é neste quadro que é preciso situar a polêmica de Friedrich Schlegel contra aqueles que veem o triunfo do cristianismo na Alemanha como uma derrota da "religião patriótica" e têm saudade da "teologia dos antigos germanos".315 Na maioria das vezes, porém, a ideologia que preside a guerra contra a França busca reunificar o mito genealógico cristão-germânico e aquele pura­ mente germânico, celebrando Armínio e Lutero como os protagonistas de uma resistência nacional contra UJlla Roma (e uma latinidade) eterna e eternamente corrupta, que toma corpo, enfim, em Napoleão 1 e Napoleão III. O cristianis­ mo-protestantismo tende, assim, a configurar-se como uma espécie de religião nacional alemã. Presente já em Arndt, que chama o soldado cristão a travar uma "grande e santa guerra alemã" em nome de um "Deus alemão",316 esta dialética adquire contornos claros num autor como Lagarde, o qual teoriza ex­ plicitamente uma "religião alemã", uma "religião nacional alemã" sobre funda­ mentos mais ou menos cristãos.317 Nesse debate irrompem poderosamente os indoeuropeus. São os anos em que começa a difundir-se a mitologia "ariana". Vimos Schopenhauer sublinhar a unidade não só lingüística, mas também cultural, do tronco ')afético'', ou seja, indoeuropeu, que exclui os judeus (e, às vezes, o que há de judaico no cristianis­ mo), enquanto abraça gregos e germanos. Estão assim lançadas as bases do . mito genealógico ariano-germânico, ou seja, ariano-grego-germânico. Uma vez reconstruído em grandes linhas o debate ideológico e mitológico que precede e acompanha a fundação do II Reich, podemos agora analisar o modo como Nietzsche se situa neles. Nos seus primeiros anos de Basileia ele parecia, às vezes, perceber o fascínio ou influência do mito genealógico cris­ tão-germânico, como aparece pela referência de O nascimento da tragédia à Reforma e aos corais protestantes. Particularmente significativa é uma confe­ rência Sobre o faturo das nossas escolas: "o autêntico espírito alemão [ ... ] nos fala, assim, maravilhosamente da íntima essência da Reforma alemã, da música alemã, da filosofia alemã" (BA, 3 ; 1, 7 1 0).

3.

Nietzsche e o mito genealógico grego-germânico

No entanto, trata-se de um fascínio de breve duração e que desde o início é neutralizado pela dupla crítica ao cristianismo, aquela já conhecida, que ele 315 Cf. Losurdo, 1 997 a, cap. 1, 7. 3 16 Cf. Losurdo, 1997 a, cap. II, 12. 3 1 7 Lagarde, 1937, pp. 282 e 1 13.

compara com a antiguidade clássica, e aquela que faz referência aos alemães. Estimulado pelo clima de entusiasmo patriótico ou de chauvinismo, também o jovem Nietzsche parece estar em busca de uma religião nacional, e por isso olha com suspeita para aquela singular "religião não nacional" que é o cristia­ nismo (VII, 1 28). Alguns anos mais tarde, entre o fim de 1 876 e o início de 1 877, o filósofo anota: Os alemães, aos quais Tácito, o maior admirador da saúde deles, atribui solidez e robustez extraordinárias, foram não só feridos pela inoculação da civilização romana, mas quase sangrados: costumes, religião, liberdade, língua foram tira­ dos deles na medida do possível; não pereceram, mas com suas relações sentimentais com a música, demonstraram ser uma nação profundamente so­ fredora. Nenhum povo tem tantas lacerações quantas têm os alemães.

É verdade que logo a seguir o fragmento acrescenta que "exatamente por isso eles estão mais bem predispostos a toda espécie de liberdade do espírito" (VIII, 364-5). É verdade que, ainda na véspera de Humano, demasiado hu­ mano, Nietzsche parece às vezes identificar-se com a Germânia de Tácito. As Sentenças e opiniões diversas confirmam que a "inoculação", agora não da cultura romana, mas do cristianismo, "de povos bárbaros, jovens e frescos" constituiu uma espécie de "veneno" e provocou um "enfraquecimento funda­ mental" dele. Sim, "transplantar para a alma heróica, pueril e animalesca do antigo alemão, por exemplo, a doutrina do pecado e da condenação, não signi­ fica outra coisa senão envenená-la" (VM, 224). A introdução do cristianismo, esta religião radicalmente estranha à germanicidade, cujo "monoteísmo" limita gravemente a "explicação poética do mundo", significou uma catástrofe: Os nossos deuses nacionais e os nossos sentimentos a respeito passaram por uma substituição de recém-nascido: dedicamos a este último todos aque­ les sentimentos.

O fim da religião acontece quando fizeram desaparecer os deuses nacio­ nais. Isso trouxe à arte uma terrível tribulação. Foi enorme o trabalho da essên­ cia alemã para sacudir o jugo estrangeiro e antinacional, mas ela conseguiu. É a respiração da Í ndia que permanece; ela de fato é semelhante a nós (VII, 99-100).

Com esta última observação, somos remetidos ao mito genealógico germânico-ariano. O nascimento da tragédia não é insensível a seu encanto, como demonstra a preferência dada por ele mais à versão ariana do que à semita do pecado original. Contudo, em Nietzsche o olhar se volta em primeiro

lugar à Hélade ou o mundo greco-romano no seu conjunto. A conferência sobre Homero de 1 869 já esclarece que se trata de destacar e colocar em posição eminente a "chamada antiguidade 'clássica'" em relação à "série de antiguida­ des" (HKP, p. 249); os "ideais da antiguidade", que é preciso saber reatualizar na luta contra a modernidade, são exatamente os ideais da antiguidade clássica (HKP, p. 252), com seus "modelos nunca mais alcançados" {HKP, p. 258). A catástrofe do mundo modt;rno - sublinha a terceira Inatual - reside exatamen­ te no fato de que a "antiguidade clássica se tornou uma antiguidade qualquer e não age mais como clássica e como modelo" (SE, 8; 1, 424). Agora se compreende a dura polêmica contra aqueles que pretendem "ter encontrado nos bravos indogermanos uma forma de religião mais pura do que a religião politeísta dos gregos". Acredita-se até ter-se atingido desse modo uma forma mais originária. No entanto, se esquece um fato essencial: "O caminho que busca os primórdios conduz sempre à barbárie". Não tem sentido contra­ por às devastações do iluminismo e da civilização povos que estão do lado de cá da civilização propriamente dita: é preciso não perder de vista o fato de que o "ódio pelo saber" não toma menos bárbaro do que o "incontrolado impulso cognoscitivo" (PHG, 1 ; 1, 807). Quer dizer, ao "iluminismo" de Sócrates e da civilização alexandrino-romana não se pode contrapor a rudeza de Armínio. Por outro lado - observa um fragmento sempre desses anos - "ao budista falta a arte" (VII, 1 04), aquela arte que representa o fruto mais belo da civilização e o principal título de glória da grecidade. No que diz respeito, porém, ao cristianismo, mesmo se às vezes pode ser útil ou pode ser eficazmente debatido na luta contra a ulterior subversão que ameaça a civilização, em última análise ele desempenha uma função positiva só na medida em que, mesmo "contra a sua vontade", acaba "tomando imortal o ' mundo' antigo", transmitindo algo da herança greco-romana a "povos com civilização degenerada e velha", que não sofrem grave dano e que até recebem um "bálsamo" para a sua senilidade (VM, 224). É um ponto de vista que permanecerá firme até no curso da sua evolução sucessiva:

"Pretende-se voltar atrás, através dos Padres da Igreja, até os gregos escreverá Nietzsche de novo em agosto-setembro de 1 885; aprecia-se tam­ bém o fim da antiguidade, o cristianismo, como uma via de acesso à antiguida­ de, como um bom pedaço do mundo antigo, como um cintilante mosaico de conceitos e juízos de valor antigo" (XI, 679). Portanto, não há espaço para o mito genealógico cristão-germânico nem para urna versão do mito genealógico ariano-germânico que, pulando a Grécia e a antiguidade clássica em geral, pretenda ligar diretamente Armínio aos

antiquíssimos conquistadores da Índia. Em relação aos antigos germanos, se tam­ bém são, às vezes, contrapostos enquanto natureza sadia e incontaminada à antinatureza representada pelo cristianismo, todavia, por causa de seu modesto desenvolvimento cultural, não podem constituir um ponto de referência privilegi­ ado e, muito menos, alternativo com respeito à antiguidade clássica e, sobretudo, à grecidade. Também neste caso, como já para os indogermanos, Nietzsche teria podido dizer: "Falta a arte". Portanto, resta apenas o mito genealógico grego­ germânico, ou seja, ariano-grego-germânico. Não apenas Ésquilo, também Heráclito parece reviver em Wagner: o seu "poderoso intelecto sinfônico [ . . . ] gera continuamente a concórdia da guerra" e pelo "redemoinho dos contrastes"; a música de Wagner "é, no seu conjunto, uma imagem do mundo, assim como este foi concebido pelo grande filósofo de Éfeso como uma harmonia que a luta produz por si, como a unidade da justiça e da inimizade" (WB, 9; 1, 494). Há, porém em Nietzsche, desde o começo, uma oscilação entre apelo à Grécia e apelo ao mundo greco-romano. Se, com o olhar voltado para a França, O nascimento da tragédia assume uma posição univocamente grega e intransi­ gentemente anti-romana, Sobre o futuro das nossas escolas apresenta um qua­ dro mais variado. Certamente, é forte e convicta, como sabemos, a afirmação da ligação entre grecidade trágica e germanicidade reencontrada, autêntica. Por outro lado, porém, ao contrapor a antiguidade clássica à devastação moderna, as conferências de Basileia acabam tributando algum reconhecimento também a Roma. É assim sublinhada "a extraordinária seriedade com que o grego e o ro­ mano consideravam e tratavam sua língua, desde os anos da adolescência" (BA, 2; 1, 682). É preciso, sobretudo, não perder de vista o fato que "enveredar para a cultura clássica" significa, em primeiro lugar, "não trocar os gregos e os romanos com os outros povos, com os povos bárbaros"; exatamente por isso "o grego e o latim não poderão nunca ser línguas a ser postas ao lado de outras línguas" (BA, 3 ; 1, 704). Durante a posterior evolução de Nietzsche, a dicotomia Grécia-Roma, que desempenha um papel tão importante em O nascimento da tragédia, desa­ parecerá para deixar lugar exclusivamente à antítese que opõe antiguidade clás­ sica, por um lado, e modernidade (e tradição judeu-cristã), por outro. Permanece firme um ponto: se também não podem de algum modo ser confundidos com a decadente e corrupta civilização românica, que gerou o iluminismo e a incessante subversão e revolução (acusada de insensibilidade à beleza artística e de vandalismo cego), alemães e indoeuropeus estão, de qual­ quer modo, aquém da esplêndida civilização produzida pela antiguidade clássi­ ca e, de modo totalmente particular, pela Grécia. Não há dúvida: o mito genealógico grego-germânico (e, depois, greco-romano-germânico) assume em Nietzsche uma clareza e uina ênfase particulares.

4. Imitação da França e abdicação que a Alemanha faz da sua missão Esse mito, vivido com extraordinária intensidade, não pode certamente contentar-se com o triunfo militar da Alemanha. Não, ao II Reich, tomado potência hegemônica da Europa continental, impõe-se uma nova tarefa, mais ambiciosa e mais árdua: O alemão poderá parecer digno de honra e portador de salvação diante das outras nações, se tiver demonstrado que é temível e que, no entanto, com a tensão de suas energias artísticas e culturais mais altas e mais nobres quer fazer esquecer de que foi temível (MO; 1, 896).

Diante do "tribunal da justiça eterna" o Estado grego pode apresentar-se "orgulhoso e tranquilo'', seguro de encontrar a sua justificação. A carga de violência e de sofrimento que ele implica se dissipa imediatamente diante da "esplêndida mulher florescente", a esplêndida civilização, que o Estado grego "conduz pela mão". Sim, por esta Helena ele travou aquela guerra: qual juiz de barba branca poderia condená-lo? (CV, 3 ; 1, 772). Mas a qual Helena pode fazer referência o II Reich para conferir legitimidade às guerras que precede­ ram ao �eu nascimento e ao poderoso aparato militar de que agora se cerca? Infelizmente, Sedan não significou de modo algum o começo de uma nova, grande temporada cultural e artística. Aconteceu até o contrário: Várias coisas mudaram e se deslocaram na Alemanha desde a última guerra com a França, e é evidente que voltaram para casa com alguns novos dese­ jos em relação à cultura alemã. Para muitos, aquela guerra foi a primeira viagem a uma região do mundo mais elegante; e agora o vencedor aparece como magnânimo, na sua desenvoltura, não desprezando aprender com o vencido um pouco de cultura! Especialmente o artesanato artístico procura sempre competir com o vizinho, mais culto; a casa alemã deve ser decorada de modo que se pareça com a casa francesa; até a língua alemã deve assimilar o "bom gosto", mediante uma academia fundada sobre o modelo francês, e liquidar a perigosa influência que sobre ela exerceu Goethe, como recente­ mente sentenciou o acadêmico berlinense Dubois-Reymond (SE, 6; 1 , 390).

Aqui parece repetir-se, em parte ao contrário, a vicissitude descrita por Horácio no seu tempo. Agora não é mais a Grecia capta que conquista no plano cultural Roma, mas é a Roma capta, representada por aqueles "novos romanos", que são os franceses, a arrastar no plano inclinado da civilização a Grécia rediviva que deveria ser a Alemanha. A desilusão é grande, e com a

desilusão se inicia a polêmica contra aqueles que estão contentes ou entusias­ mados com os resultados já conseguidos. O primeiro a ser apontado é Strauss. Este parece pensar que a preeminência militar coincide com a cultural, esque­ cendo que "uma grande vitória é um grande perigo" e perdendo de vista o fato de que o triunfo de Sedan pode transformar-se "na derrota, até na extirpação do espírito alemão em favor do 'Reich alemão"' (DS, l ; 1, 1 5 9-60). São declarações que mttitas vezes se aduzem em apoio à leitura da pri­ meira Inatual como uma polêmica contra o chauvinismo. Mas é verdade que já nesse momento Nietzsche se exprime sobre o II Reich com uma desenvoltu­ ra e uma severidade totalmente conhecida dos nacional-liberais do tempo, mas isto é apenas um lado da moeda. O outro é constituído pelo desapontamento pela malograda "vitória da cultura alemã'', que também era lícito esperar. Na realidade, "a cultura francesa continua a existir como antes, e nós dependemos dela como antes" (DS, 1 ; 1, 1 60). Nesse momento, e até à virada "iluminista", é Nietzsche quem censura a Strauss, e ao partido nacional-liberal, pelo esquecimento da germanicidade au­ têntica e da missão que cabe a ela: Assalta-me muitas vezes a suspeita de que hoje o alemão queira violentamente subtrair-se àqueles antigos (alt) deveres que o seu maravilhoso talento e a peculiar gravidade e profundidade da sua natureza lhe impõem. Ele preferiria fazer malabarismos, macaquear, aprender as maneiras e as artes pelas quais a vida se toma divertida. Mas o maior insulto ao espírito alemão (deutscher Geist) é tratá-lo como se fosse de cera e se pudesse, um belo dia, empastá-lo de elegância. E se, infelizmente, é verdade que uma boa parte dos alemães se deixa de boa vontade amassar e modelar desse modo, contra esse fato é preciso repetir tantas vezes até ser ouvido: junto de vós aquele antigo caráter alemão (a/te deutsche Art) não tem mais lugar, que certamente é duro, áspero e resis­ tente, mas que é o material mais precioso, sobre o qual apenas aos maiores plasmadores é lícito trabalhar, porque só eles merecem (SE, 6; 1, 391 ).

Quanto mais claramente se projeta a sombra da modernidade sobre o II Reich, tanto mais dura se torna a condição daquele que pretende permanecer fiel à natureza mais profunda e mais verdadeira da germanicidade: "Ofende-o e o faz sofrer o prazer arraigado pelo que é falso e não autêntico, pelo que é mal imitado, pela tradução em mau alemão das boas coisas estrangeiras" (SE, 6; 1, 393). Portanto, se também não tem sentido desprezar o que é francês, não é preciso igualmente esquecer por um momento sequer que são bem diferentes o percursos e a tarefa da Alemanha. Infelizmente, "a última guerra e o con­ fronto pessoal com os franceses não parecem ter provocado aspirações mais ili

altas" da imitação servil da civilização francesa: o país vencedor toma do ven­ cido "as artes e as amabilidades (Artigkeiten) com que a vida é embelezada, inclusive a inventiva dos mestres de dança e dos tapeceiros" (SE, 6; 1, 39 1 ). A partir da conclusão da guerra, uma palavra de ordem parece triunfar no país vencedor: '"devemos aprender com os franceses', mas o quê? 'A elegância! "'. E assim "a elegância de Renan" é aquela à qual em vão Strauss aspira (VII, 804). Mas é só um exemplo: "Já foi �ncontrado até o cientista alemão elegante; agora é de se esperar que tudo isso, que ainda não queria realmente adaptar-se ·àquela lei da elegância - a música, a tragédia e a filosofia alemãs - já seja posto de lado como não alemão" (SE, 6; 1, 390-1). "A 'elegância' francês-judaica", denunciada logo depois da Comuna de Paris, agora faz escola também na Alemanha. É uma traição contra a qual já prevenira a "alma rude e um pouco severa de Schopenhauer", o qual alertara "não tanto a ter saudade quanto a detestar a agilidade e a graça amável dos bons escritores franceses" (SE, 2; 1, 347). Concluindo, Nietzsche sintetiza assim as sua polêmica: "Sinto que aquela cultu­ ra alemã, em cujo futuro se tem fé - a cultura da riqueza, da polidez e da imitação afétada - é o exato e hostil oposto da cultura alemã em que tenho fé" (SE, 6; 1, 392). O nascimento da tragédia e os escritos contemporâneos se preocuparam em sublinhar que os gregos não eram "aqueles homens práticos e · falsamente serenos, prosaicos e pedantes como os imagina o douto filisteu dos nossos dias" (PHG, 1 ; 1, 805). Por desdita, é exatamente por esta estrada que a nova Alemanha parece ter enveredado. Mesmo em condições novas e carac­ terizadas por dificuldades imprevistas, o mito genealógico greco-germânico con­ tinua a inspirar poderosamente o filólogo-filósofo. A distância dos acontecimentos do II Reich não marca uma ruptura com o mito da superior e trágica "essência alemã'', tanto é que a primeira Inatual sente a necessidade, com o olhar voltado para as autoridades políticas, de pre­ venir contra o perigo constituído por Strauss e pelos ambientes próximos dele. A tendência representada por eles compromete a autonomia e a sobrevivência do "espírito alemão" e - acrescenta Nietzsche - "não sei se depois se poderá fazer algo com o corpo alemão que permanecer!" Já agora, "pode-se ficar maravilhado" porque aquela tendência "tem impedido tão pouco esses requisi­ tos militares necessários para um grande sucesso". Talvez porque essa tendên­ cia ')ulgou mais vantajoso para si mostrar-se desta vez serviçal". Destaquei com itálico uma expressão que visa·claramente lançar uma sombra de suspei­ ta. Uma coisa é certa - conclui Nietzsche a esse respeito - se ela for "deixada crescer e vicejar", a tendência ao praticismo e à remoção da missão cultural da nova Alemanha acabará se tomando perigosa também no plano da existência política e da força militar (DS, l ; 1, 160). 1 52

É preciso reagir com decisão. A terceira Inatual cita e subscreve o dito de Wagner: "O alemão é intratável e desajeitado quando quer fazer-se passar por rebuscado; mas é sublime e superior a todos quando pega fogo". Segue depois um comentário igualmente significativo: "Os elegantes têm todos os motivos para estar em guarda contra este fogo alemão, pois de outro modo um belo dia poderiam ser devorados por ele, com todos os seus bonecos e simula­ cros de cera" (SE, 6; 1, 3 9 1 -2}. Ao contrário da Grécia, da qual deveria mesmo ter sido o herdeiro, o II Reich não "conduz pela mão" nenhuma Helena, mas a invocação desta esplêndida figura não é em Nietzsche, pelo menos por enquan­ to, a colocação em discussão da potência militar que, bem ou mal, derrotou o país da revolução; assim como a áspera crítica dos desenvolvimentos políticos verificados na nova Alemanha não é de modo algum a renúncia, pelo menos neste momento, da ideia de missão que ela é chamada a encarnar.

5. Conflito social e recuperação nacional-liberal da velha fé Portanto, no choque com Strauss não se enfrentam posição pan-europeia, por um lado, e angústia alemã, por outro, mas duas visões contrapostas da germanicidade; e é indubitavelmente a de Nietzsche que se torna mais enfáti­ ca, como aparece com clareza pelo apaixonado apelo a guardar zelosamente a autenticidade e a originalidade da essência alemã. Exatamente isto explica a ranhura na relação com o II Reich, cuja mediocridade está agora aos olhos de todos. Onde está a anelada cultura nacional e vo/ksthümlich, que seja ao mes­ mo tempo a guardiã da germanicidade autêntica e a retomada da grecidade trágica? Desvanecem cada vez mais as esperanças de que o triunfo militar relance a luta contra a civilização e a modernidade: "Toma-se cada vez mais duvidoso que seja possível dar à coragem alemã essa nova direção e, depois da guerra, cada dia mais improvável; pois vejo cada um convencido de que não há qualquer necessidade de uma luta e de tal coragem" (DS, 1 ; 1, 1 6 1). Strauss, ao contrário, sente-se à vontade na nova realidade política, surgida do sucesso do exército prussiano, exatamente pelo fato de que ela não é cha­ mada a refazer o mundo e a inverter o curso da história. O advento da modernidade é saudado com simpatia ou entusiasmo. O mito e a velha fé desa­ pareceram ou estão se exaurindo. Nem por isso a humanidade será engolida pelo vazio da desolação. O momento da edificação e da elevação com respeito à cotidianidade é agora constituído não mais pela evasão e pela aflição para com um mundo ultra-terreno, mas pela fruição das maiores produções culturais e artísticas da humanidade; nesse sentido, podemos dizer que o espírito absolu-

to de memória hegeliana substitui a tradicional edificação religiosa. Travando uma polêmica que acaba ferindo objetivamente Nietzsche, Strauss sublinha que não tem sentido contrapor a arte e o otium à visão vulgar e utilitarista da vida. Sem o "estímulo da atividade laborativa" (Erwerbstrieb) e o consequente aumento da riqueza social, não haveria otium, e "sem otium não p oderia haver nem ciência nem arte".318 Inútil e tediosa se revela a saudade do passado; vale a pena prosseguir com coragem e confiança pela estrada nova da "visão do mundo moderna e científica", destinada a tornar-se, não obstante todas as difi­ culdades iniciais, "a estrada mundial do futuro".319 Tais posições se chocam com a desconfiança ou a hostilidade aberta, além de Nietzsche, também dos ambientes nacional-liberais. Como explicar a reação destes últimos? Segundo a análise desenvolvida por Engels no final do século XVIII, o horror suscitado pela revolta operária de junho de 1 848 e pela Comuna de Paris leva a burguesia europeia a tomar distância das formas mais radicais de crítica da tradição religiosa e até a mostrar, em relação a esta, uma deferência afetada: Um depois do outro os espíritos fortes se deram ares compungidos, falaram com respeito da Igreja, dos dogmas sagrados e até se conformaram, quando não puderam evitar. A burguesia francesa fez jejum às sextas-feiras e os burgueses alemães, suando, ouviram em suas poltronas na igreja os intenni­ náveis sennões protestantes.

Tudo na tentativa de conter com "meios morais", e portanto, em primeiro lugar, com a religião, o ascenso ameaçador do movimento operário.32º Esta explicação é persuasiva? Vejamos em que termos Treitschke polemiza com Strauss. Ele poderá até ser um "teólogo agudo", mas não tem ideia alguma da "essência da religião", não entende que esta tem suas raízes num "impulso inato e indestrutível da nossa alma". Sobretudo, perde de vista a questão deci­ siva: "Toda crítica teológica é nula diante dos deveres práticos do pastor de alma, que deve consolar os afadigados e os aflitos".321 Haym se exprime em termos análogos: ignorando as "potências obscuras do sentimento", o expoente da esquerda hegeliana não tem a necessária "tolerância diante da fé milagreira, fabulativa e supersticiosa da multidão".322 Além disso - insiste Treitschke falta claramente o bon ton a Strauss: ''Nas distintas classes houve um acordo 3 18 Strauss, 1 872, p. 64. 3 1 9 Strauss, 1872, pp. 373-4. 320 ln Marx-Engels, 1 955, vol. XXII, p. 3 1 O. 32 1 Treitschke, 1981, vol. IV, pp. 489-90. 322 Haym, 186 1 , p. 309; sobre a atribuição da recensão a Haym, cf. Westphal, 1964, p. 322.

tácito a não tocar nunca em certas questões religiosas de importância particu­ lar". Sim, pode haver - admite o historiador -certa "insinceridade" em tal atitu­ de; por outro lado, os desacordos sobre a religião deixam a boca amarga, ao passo que agora todos os "homens livres" concordam em reconhecer que as "verdades religiosas são verdades do sentimento", não suscetíveis a refutação no plano racional. 323 Agora se compreende bem a reação geral de aborrecimento ou de hostilida­ de nos confrontos de Strauss. É verdade que, com o olho voltado para a Comuna de Paris, ele parece querer amortecer os tons da polêmica: ''Não é nossa inten­ ção destruir qualquer Igreja, dado que sabemos que para inumeráveis pessoas uma Igreja é ainda uma necessidade [ . . .]. Não quis e não quero estragar nenhu­ ma alegria, nenhuma fé". Sobretudo agora que a nova onda de desordens revolu­ cionárias revelou os "horrores" de que é capaz o "tumor socialista",324 talvez seja bom que as massas continuem a estar presas à "velha fé". Por outro lado, porém, Strauss claramente repele o compromisso sugerido pelos nacional-libe­ rais. Com uma linguagem inclusive aguda considera-o improponível: "a vida intei­ ra e todas as aspirações dos povos civis do nosso tempo se fundam numa visão do mundo, que é diametralmente oposta à visão do mundo de Jesus".325 Toman­ do nota da "inevitável dissolução do antigo"326 e, mesmo procedendo gradual­ mente e com todas as cautelas do caso, trata-se de difundir também entre as massas populares a "moderna visão do mundo, o resultado penosamente conse­ guido da prolongada pesquisa natural e histórica".327 A separação entre leigos e iniciados está destinada a ser arrastada pela evolução histórica moderna. Aquele que quisesse aferrar-se a ela, mesmo se quiser conferir-lhe uma forma mais leiga que no catolicismo, são implicitamente acusados de inconsequência ou de reti­ cência: "Se quisermos falar como homens honestos e sinceros, devemos confes­ sar que não somos mais cristãos". 328 A velha e a nova fé quebra, pois, um tabu, cujo significado político e social é depois esclarecido pela polêmica que Treitschke trava sempre contra Feuerbach. Este, nesse meio-tempo, para conclusão de sua evolução, aderiu à social-demo­ cracia, ou seja, àquele partido que, aos olhos do historiador de algum modo oficial da Alemanha guilhermina, comete o erro de desenvolver uma "atividade profissi­ onal de sacrilégio", além, naturalmente, do "açulamento" das massas.329 É uma 323 Treitschke, 1886, pp. 25-6. 324 Strauss, 1872, pp. 8-10 e 277. 325 Strauss, 1872, p. 75. 326 Strauss, 1872, p. 8. 327 Strauss, 1872, p. 10. 328 Strauss, 1872, p. 94.

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obra de subversão legitimada pela filosofia de Feuerbach: para ele "toda a histó­ ria maravilhosa da Igreja, que tantos séculos encheu de espírito e de vida, era apenas uma horrível doença, e dado que nenhum homem está em condições de viver sem fé, o ateu radical é apenas alguém que crê no Estado, no homem verdadeiro, que deve alcançar a sua perfeição na forma da república".330 Mas é exatamente nos termos aqui asperamente criticados que se exprime o autor de A velha e a nova fe, o qual, assumindo neste caso tons bastante radicais, se per­ gunta "para que deve posteriormente servir uma associação particular como a Igreja, ao lado do Estado, da escola, da consciência, da arte, dos quais todos nós fazemos parte".331 Sim, ao contrário de Feuerbach, Strauss não faz profissão de fé republicana; mas a desvalorização da dimensão religiosa em proveito daquela mundana e política não teria aplanado a estrada a republicanos e socialistas?

6. O jovem Nietzsche, a luta contra a "mundanização " e a defesa da "velha fé " Ao intervir na polêmica contra Strauss, Nietzsche assume posições não diferentes daquelas dos nacional-liberais. Já nos anos de Pforta ele exprime uma clara e forte preocupação política: "Grandes perturbações são iminentes, uma vez que a massa entendeu que todo o cristianismo se fundamenta em hipóteses" (FG, p. 433). O nascimento da tragédia continua a falar com pro­ fundo respeito do cristianismo. De qualquer maneira, isto é claramente preferí­ vel à visão da grecidade e do paganismo cara a Heine, que encontra algum ponto de apoio em certas manifestações do mundo helênico: Foi esta ilusão da "serenidade grega" que tanto indignou as naturezas pro­ fundas e formidáveis dos primeiros quatro séculos do cristianismo: aquela fuga feminina diante da seriedade e do terror, aquela vil satisfação do prazer fácil pareceu-lhes não só desprezível, mas também como o verdadeiro senti­ mento anticristão (GT, 1 1 ; 1, 78) .

. Pelo menos na polêmica contra o "prazer fácil", O nascimento da tragé­ dia faz suas as preocupações cristãs. Heine não tinha indicado o pressuposto do comunismo na ritualização da visão otimista do mundo por ele atribuída aos gregos, que serenamente e sem reservas reconheciam e buscavam satisfação 329 Treitschke,

1878, p. 9.

330 Treitschke, 1981, vol. IV, p. 487. 33 1 Strauss, 1872, p. 7.

na vida terrena? Não é muito diferente, porém, a visão do mundo desenvolvida por Strauss, ainda que este último não pareça estar plenamente consciente das implicações políticas do seu discurso. Quando Nietzsche e os nacional-liberais condenam tão durainente o autor da Velha e nova fe, talvez saibam ou intuam algo do eco empático que a sua crítica do cristianismo suscitou no âmbito do movimento operário. Junto com os te;\.10s de Feuerbach, também ,A vida de Jesus circula "entre os proletários" e até neste ou naquele "clube comunista"; e a leitura de tais escritos de crítica da teologia se mistura com a leitura do manifesto em que Proudhon denuncia a propriedade como furto,332 em confirmação do fato, já evidenciado por Heine, de que apagar a esperança da consolação celeste produz como sua "consequência natural" a difusão do comunismo. Por outro lado, Nietzsche censurará explicita­ mente Strauss por retomar, ainda que submetendo-o a uma "ridícula e banal dilui­ ção", o "vigoroso dito" do proto-socialista ou anárquico francês (VII, 588). A velha e a nova fé é mais que nunca decisiva para bloquear qualquer caminho de fuga e de evasão do mundo terreno. Bem longe de ser "desprezí­ vel", o além se revela "como o verdadeiro campo de ação do homem, como o conjunto dos fins das suas aspirações". Sim, "uma parte dos operários" perma­ nece agora ligada "por costume" à velha fé, que entretanto é sempre "uma sombra" destinada a desaparecer.333 Vimos a "crítica do vale de lágrimas" em Marx (supra, cap. 1 § 9). É um tema bem presente também em Strauss. Não obstante os seus méritos em revalorizar o matrimônio e o trabalho, a Reforma apresenta um limite de fundo: "A terra tomou-se um vale de lágrimas, os olha­ res voltaram-se para o futuro esplendor celeste". Enquanto continua a ser um tema caro também a Lutero, a "divinização da dor" simbolizada pela cruz cristã se toma totalmente estranha para a "humanidade moderna, que goza da vida e da sua atividade".334 A nova fé chama o homem para "uma vida autenticamen­ te humana, isto é, ética e, portanto, feliz".335 A eticidade aqui invocada é a hegeliana e jovem-hegeliana, que vê na realização de uma comunidade política de ciloyens a superação do vale de lágrimas e da maldição do pecado original. Nesse sentido, Ruge, interrogando-se também sobre o futuro da religião, tinha contraposto ao obsoleto cristianismo a nova "religião da eticidade", que, aliás, é também a "religião do aquém".336 Se tais posições tinham encontrado amplo 332 Marx-Engels, 1955, vol. II, pp. 455 e 507. 333 Strauss, 1 872, p. 75 -6. 334 Strauss, 1872, pp. 82 e 93 . m Strauss, 1 872, p. 12. 336 Ruge, 1847-48, p. 246. 1 57

eco nos anos que precederam à revolução de 1 848, agora elas se tornam sus­ peitas e odiosas aos olhos dos nacional-liberais e do próprio Nietzsche. Este, quando estudante universitário, deve ter partilhado algo do conteúdo da carta de junho de 1 866 enviada a ele por Paul Deussen, segundo o qual A vida de Jesus escrita por Strauss não está em condições de explicar "a aparição mais enigmática da História" (B, 1, 3, p. 95). E algo o novo professor de filologia clássica deve ter partilhado da carta que, em setembro de l 872, lhe envia o amigo Rohde: este estabelece uma comparação entre a Berlim devastada pela civiliza­ ção e a "grande prostituta", como era Roma aos olhos dos primeiros cristãos. Pois, a sua fé, "por louca que pudesse ser", constituía, todavia, "algo de grande e edificante" (B, II, 4, p. 78). Quer dizer, mesmo representando uma ruinosa deca­ dência com respeito à antiguidade greco-romana, mesmo assim o cristianismo pode ainda constituir um dique, embora pouco firme e provisório, diante dos as­ pectos mais repugnantes e mais inquietantes da modernidade. De qualquer modo, na primeira Inatual, a defesa das razões da religião não é menos clara do que na costumeira publicidade nacional-liberal . Os "rai­ vosos ataques contra o cristianismo" (VII, 595) são repelidos com decisão: "Strauss, pondo à luz os mitos, iludiu-se em destruir o cristianismo. Mas a es­ sência da religião consiste exatamente na liberdade e na força produtora de mitos" (VII, 587). Não há dúvida, o autor da A velha e a nova fé é surdo às "forças eternizantes da arte e da religião" (HL, 10; 1, 330). Infelizmente, "es­ queceu o lado melhor do cristianismo, ou seja, os grandes eremitas e os santos, em suma, o seu aspecto genial"; ele "considera o cristianismo, a arte, sempre do modo mais restrito, trivial, democrático, e depois refuta" (VII, 587-8). Con­ cluindo, indiscutivelmente é a condenação da "verdadeira descrença" da qual Strauss dá prova (VII, 504). Compreende-se agora o interesse empático e até o entusiasmo que a pri­ meira Inatual provoca em certos ambientes religiosos. Com efeito, nenhum crente teria podido evocar de modo mais angustiado as consequências catas­ tróficas do "triste crepúsculo ateu" do materialismo do século XVII à maneira de Holbach: "O chão parece coberto de cinzas, todos os astros parecem escu­ recidos; toda árvore morta, todo campo devastado lhe grita: tudo é estéril e perdido! Aqui não haverá mais primavera!" (DS, 7; 1, 200). Em tons igualmente aflitos, a terceira Inatual descreve as consequências do processo de secularização do mundo moderno: As águas da religião estão baixando e deixam para trás pântanos e lamaçais; as nações se dividem de novo do modo mais hostil e desejam dilacerar-se. As ciências, cultivadas sem nenhuma medida e no mais cego /aisser faire, despedaçam e dissolvem tudo o que era firmemente crido, e os estratos

cultos e os estados civis foram arrastados por uma economia do dinheiro gigantesca e desprezível. Nunca o mundo foi mais mundo, nunca foi mais pobre de amor e de bondade [... ]. Tudo serve à próxima barbárie, inclusive a arte e a ciência modernas (SE, 4; 1, 366).

A "completa mundanização" (vo/lige Verwe/tlichung) é sinônimo de "su­ bordinação da cultura, considerada como meio, ao lucro e à felicidade terrena grosseiramente entendida" (Vfi, 243). Volta o tema central de O nascimento da tragédia . Tanto mais facilmente a busca da felicidade terrena impele os escravos à revolta, pelo fato de que, desmitizada e dessacralizada, a ordem existente não está em condições de opor uma resistência de qualquer tipo ao assalto dos projetos de transformação ou destruição. A "visão leiga" (Laientum) da arte e da vida e o "sereno otimismo do homem teórico" ligado a ela (GT, 19; 1, 1 24) estimulam a esperança de que, mediante a política, seja possível mudar o mundo e levar o indivíduo a sentir-se satisfeito com sua existência mundana. Que ilusão miserável: Toda filosofia que crê que um acontecimento político afasta ou resolve o problema da existência é uma brincadeira de filosofia, uma pseudo-filosofia (Spass- und Aflerphilosophie). Já muitas vezes, desde que o mundo existe, foram fundados Estados; é uma velha comédia. Como poderia uma inovação política bastar para tornar os homens, de uma vez para sempre, habitantes satisfeitos da terra? (SE, 4; 1, 365).

Por miserável que seja, porém, esta ilusão não deixa de ter efeitos ruinosos. "A filosofia mundanizou-se" (verweltlicht) anuncia Marx confiantemente em 1 843 , chamando-a a comprometer-se ativamente na luta pela derrubada do Anti­ go Regime.337 Exatamente por isto, no lado oposto, "a idolatria da mundanidade" toma-se o alvo da polêmica de Kierkegaard.338 Ainda em 1 8 8 1 , Nietzsche con­ tinua a colocar "loucura política", agitação revolucionária e "socialismo" na conta da "mundanização" ( Werweltlichung), ou seja, da "fé no mundo com exclusão da ideia de conceitos como 'além' e 'mundo oculto"' (IX, 504). Certamente, porém, nos anos do O nascimento da tragédia e das Considerações inatuais, os tons são diferentes. Ao processo em ato de "mundanização" (e massificação e subversão) não se hesita em contrapor o cristianismo: ele "é certamente uma das manifestações mais puras daquele impulso para a civilização e, exatamente por isso, à sempre renovada geração do santo" (SE, 6; 1, 389). Compreende-se agora a polêmica contra aqueles que "perderam o último resto não só de um -

337 Marx-Engels, 1 955, vol. 1, p. 344. 338 Kierkegaard, 1948, vol. II, p. l .

sentir filosófico, mas também religioso" (SE, 4; 1, 365) e a condenação de uma filosofia das universidades nociva também para as crises que ela corre o risco de provocar nos ')ovens teólogos" (SE, 8; 1, 423). A orientação dos ') ovens teólogos" nos coloca diante de um problema de caráter mais geral : "As classes cultas não são mais faróis ou refügios no meio de toda essa inquietação de mundanização ( Werwe/tlichung); elas mesmas se tomam cada dia mais inquietas, mais sem ideia e sém amor" (SE, 4; 1, 3 66). Agora conquistados pela ideologia da mundanização e da busca da felicidade terrena, os próprios intelectuais são instrumento de subversão. É preciso saber conter essa onda: "Uma classe de ensinantes elementares é, sem dúvida, um mal . A instrução das crianças é um dever dos pais e da comunidade; a tarefa princip al consiste em conservar a tradição" (VII, 3 85). Muito mais clara se torna agora a condenação a Strauss, protótipo do "mestre-escola" (VII, 5 8 8). Não é por acaso que ele é contraposto negativa­ mente a Renan, o qual, bem longe de assumir tons de crítica radical em relação ao cristianismo, parece empenhado numa espécie de apologética de novo tipo, capaz de dispensar a dogmática: "Que descaramento da parte de Strauss ofe­ recer ao povo alemão a sua vida de Jesus como pendant daquela de Renan, bem maior do que ele" (VII, 587).

7. "Mundanização " e crise dos mitos genealógicos Portanto, estimulada por preocupações político-sociais, está amplamente difundida no II Reich a tendência à recuperação do cristianismo, ou seja, da "velha fé". É o quadro traçado por Engels . Mas, este, deve ser completado. As devastações produzidas pelo racionalismo socrático e pelo crescimento do pro­ cesso de "mundanização" - observa O nascimento da tragédia vão contra a vida e a própria identidade de uma nação: -

Um povo - como, aliás, também um homem -vale só porque sabe imprimir nas suas vivências a marca do eterno: já que desse modo é como que desmundanizado (entwelt/icht) e mostra a sua inconsciente convicção íntima da relatividade não só do tempo, mas também do verdadeiro -ou seja, metafisico - significado do mundo. O contrário disso acontece quando um povo começa a conceber-se historicamente e a derrubar os baluartes míticos em redor de si: isso é acompanhado comumente por uma mundanização decidida (Verweltlichung), uma ruptura com a metafisica inconsciente da sua existência precedente, com todas as consequências éticas que se seguem (GT, 23; 1, 1 48).

O declínio do mito assinala o fim da grecidade trágica, mas poderia tam­ bém significar o desaparecimento das esperanças da nova Alemanha de assu­ mir a herança da grecidade trágica. É um motivo a mais para hostilizar toda forma de crítica radical da religião e de celebração da modernidade. Ao tomar claramente distância de uma visão radicalmente leiga da vida, os ambientes nacional-liberais, e o jovem Nietzsche com ele, têm os olhos voltados, além de para a questão social, também para a política internacional; sentem a necessi­ dade de legitimar a missão ou a primazia que eles atribuem à Alemanha. No debate sobre a identidade do II Reich, a intervenção de Strauss é importante, se caracteriza pela estranheza e pela distância crítica com respeito aos mitos genealógicos do tempo: "Para ele - observará mais tarde Nietzsche, em tom de áspera reprovação - a antiguidade clássica não existe" {VII, 5 9 1). Na realidade, em relação à Grécia, A velha e a nova fé sublinha que as duas "repúblicas", em virtude da escravidão que as caracterizava, eram na realidade "aristocracias exclusivas", felizmente superadas pelo desenvolvimento da modernidade. 339 Se há um período da antiguidade clássica que recebe a simpa­ tia de Strauss, é exatamente aquele odioso aos olhos do autor do O nascimento da tragédia. É na idade alexandrina, é com o "helenismo" que finalmente começa a afirmar-se a ideia da fraternidade entre todos os homens: os "mais nobres espíritos entre os gregos e os romanos" tendem a superar as angústias provinciais e nacionais para fundir-se no "Império universal romano", e nesta mesma direção se movem os judeus da diáspora, agora espalhados "em todos os países".340 É aqui que se pode ler o ato de nascimento do Ocidente: é na idade alexandrina que o monoteísmo hebraico, com o seu "deus tribal e nacio­ nal'', se encontra, se choca e se funde com o "deus universal" teorizado pelos gregos a partir da superação da "multidão dos deuses do Olimpo".341 Chegam assim a faltar os elementos constitutivos do mito genealógico greco-germânico. Em A velha e a nova fé também não há espaço para a celebração da Idade Média germânica, e da Idade Média em geral, submetida a uma crítica impiedosa de tipo iluminista. Menos ainda há espaço para a mito­ logia nibelúngica de Wagner, que nem sequer foi aceito no panteão da música alemã, à qual é dedicado o capítulo conclusivo do livro. É preciso acrescentar que Strauss se exprime com desenvoltura também sobre o protestantismo: a seus olhos, seria um mito a tese que quisesse fazer derivar da Reforma a rigo­ rosa análise filológica e histórica do texto sagrado, à qual agora não se pode 339 Strauss, 1 872, p. 267. 3 40 Strauss, 1872, pp. 83-5. 34 1 Strauss, 1 872, p. 106.

renunciar.342 Mais em geral, se teve o mérito de desencadear o ataque contra a Igreja Católica, Lutero permanece de qualquer modo aquém dos resultados mais avançados conseguidos pela modernidade; é parte integrante de uma tra­ dição, a medieval, que ele contribuiu também para pôr em crise. Ademais, com a radicalidade de seu laicismo e modernismo, Strauss inflige um duro golpe ao mito genealógico cristão-germânico, tomando também clara­ mente distância da difusa celebração de Lutero como herói nacional alemão. Na esteira de Hegel, a Reforma é lida como um momento essencial da história uni­ versal: explícita e declarada no catolicismo, a divisão entre iniciados e profanos, entre .hierarquia dispensadora do sagrado e detentora do poder, de um lado, e massa obrigada à obediência, do outro, continua a manifestar-se, ainda que em medida mais fraca, também no âmbito do protestantismo, antes de ser liquidada após o advento da modernidade e da moderna ideia de igualdade. 343 · Vimos o julgamento positivo que Strauss faz sobre o mundo helenista. Salta aos olhos a leitura empática do judaísmo com o evidenciamento da linha de continuidade que conduz até à pregação evangélica e com a refutação pos­ terior de toda tentativa de desjudaizar o cristianismo. E assim chegamos ao último ponto. Está totalmente ausente em Strauss o pathos ariano, que constitui o elemento comum aos diversos mitos genealógicos, o greco-germânico, o germânico e, às vezes, até o cristão-germânico . Convém, no entanto, notar que "todas as nossas nações europeias são povos mistos". 344 Certamente, as "na­ ções altamente desenvolvidas no plano ético"345 podem reivindicar uma supe­ rioridade com respeito ao mundo colonial, mas, para o resto, não tem sentido querer estabelecer uma hierarquia entre . "arianos" e "semitas". Na reconstru­ ção da "evolução das características morais", A velha e a nova fé faz referên­ cia indiferenciada a uns e a outros, antes parte, em primeiro lugar, do Decálogo de Moisés. 346 Os cantores das origens arianas do Ocidente são, de qualquer modo, chamados a observar que a Índia cara a eles é caracterizada por um "rígido sistema de casta", por uma odiosa "segregação de castas". 347 Mais em geral, a visão do mundo expressa por Strauss se revela em con­ tradição substancial com a teoria do Sonderweg ou da missão única da Alema­ nha. É verdade que não falta uma modesta concessão ao tema, largamente difundido na cultura e nas publicações do tempo e presente no próprio Nietzsche, ·

342 s.trauss, 1 872, pp. 90- 1 . 343 Strauss, 1872, p. 6. 344 Strauss, 1 872, p. 263. 345 Strauss, 1 872, p. 226. 346 Strauss, 1 872, p. 233. 347 Strauss, 1872, pp. 59-60.

da "seriedade" do povo alemão.348 Mas este mesmo tema é profundamente reinterpretado : trata-se agora da seriedade e da radicalidade com que a Alema­ nha soube desafiar a tradição teológica medieval, desempenhando um papel de primeiro plano na luta pela modernidade e o livre pensamento, para cuja afir­ mação contribuíram eficazmente também outros países europeus. Neste como em outros casos análogos, os méritos do povo alemão não são reivindicados de maneira exclttsivista. Mesmo se a Reforma desempenhou um papel de vanguarda na superação da "ascese" medieval, ela soube elevar-se a tal altura apenas tirando proveito do "modo de pensar da antiguidade presente no humanismo"349 Como o humanismo, também o iluminismo lembra um contexto europeu. Depois de ter começado na Inglaterra, o movimento dos "livres pensa­ dores" conhece um grande crescimento na França. Mas é a Alemanha que cons­ titui o auge deste processo. À ironia de Voltaire corresponde a "seriedade", talvez menos brilhante, mas ainda mais sistemática e premente, de Reimarus. E é so­ mente graças à obra deste último que todo o "sistema da fé cristã" se revela "falso e cheio de contradições", insustentável do ponto de vista tanto da razão como do "aperfeiçoamento ético da humanidade". Nesse sentido, "foi a Alema­ nha, não a França, o berço do racionalismo". 350 A nação alemã pode reivindicar um papel de primeira grandeza só na medida em que faz próprios e aprofunda ulteriormente os resultados da evolução histórica europeia. Ela pode até gloriar­ se de ter tido em Goethe o "precursor de Darwin" e em Kant o precursor de Laplace;351 mas, ainda uma vez, os progressos da ciência e da visão científica do mundo são colocados num quadro que não é estritamente nacional . Decididamente i nconsistentes aparecem agora os diversos mitos genealógicos que, em concorrência e em polêmica entre si, pretendem apadri­ nhar o Estado nacional nascido do triunfo de Sedan. Agora se compreende melhor a crítica que Nietzsche faz ao autor de A velha e a nova fé. "Ele finge ser um grande escritor popular (populãr): falso conceito da popularidade" (VII, 5 9 1 ) . À Popularitãt, sinônimo de difusão entre as massas da odiada modernidade e de agitação antiaristocrática, é implicitamente contraposta a Volksthümlichkeit, à qual compete a tarefa de dar de novo corpo e realidade coral na nação alemã à grecidade trágica. Strauss apela para os seus compatriotas a fim de que se reconheçam plena­ mente na modernidade. À condenação da Jetztzeit, que aproxima Schopenhauer, 348 Strauss, 1872, pp. 35 e 37 . 349 Strauss, 1 872, p. 255. 350 Strauss, 1 872, pp. 35-7. 35 1 Strauss, 1 872, pp. 1 82 e 1 84.

Nietzsche e Wagner, a chamada à reunião de "nós modernos" (Jnr Heutigen) faz eco polêmico em A velha e a novafé.352 Ao liquidar o manifesto laicista e

modernista de Strauss, Nietzsche, que também proclama a sua "inatualidade", está na realidade em consonância substancial com a cultura alemã de seu tempo. Os ambientes da ortodoxia protestante estão satisfeitos : "A 'Evangelische Kirchenzeitung' deve ter apreciado a minha Straussiade" (B, li, 3, p. 1 93), diz Nietzsche a Gersdorff, respoodendo à carta com a qual o amigo lhe tinha comu­ nicado, de Naumburg, que a primeira1natual encontrara "leitores diligentes, inte­ ressados e simpáticos" em certos ambientes protestantes e militares (B, II, 4, p. 362). No que diz respeito aos nacional-liberais, eles não podem perdoar a Strauss nem o radicalismo laicista, que expõe as massas à influência dos livres pensado­ res socialistizantes e ao contágio da subversão, nem o radicalismo modernista, que tira qualquer aura sagrada ou mesmo apenas poética dos antigos deuses da mitologia germânica, indoeuropeia ou grega, chamados pela cultura dominante a transfigurar a realidade e a "missão" do II Reich. Paradoxalmente, Strauss é mais "inatual'', e ele está bem consciente dis­ so. Considera-se expoente ou portavoz daquela "minoria pensante'', que está empenhada em aj ustar realmente as contas com a velha fé,353 não quer deixar­ se "arrastar pela corrente" e não hesita em enfrentar o desprezo e a raiva daqueles que "nadam com a corrente da cultura do tempo" . 354

m

Strauss, 1 872, p. 15. Strauss, 1872, p. 7. 354 Strauss, 1 872, pp. 276 e 178. m

5 Do " JUDAÍSMO " DE SócRATES AO " JUDAÍSMO " DE STRAUSS 1. Mitos genealógicos e judeufobia

M nham a fundação do II Reich apresentam uma característica comum:

esmo na sua radical diversidade, os mitos genealógicos que acompa­

estão em tensão mais ou menos forte e em polêmica mais ou menos declara­ da com o judaísmo . Os teutômanos, que celebram a missão cristã e moral da Alemanha, estão inclinados a desjudaizar o cristianismo a fim de transformá­ lo numa espécie de religião nacional germânica. No que diz respeito ao mito genealógico ariano, é de imediato evidente a oposição ao semitismo implícita nele; à grande comunidade dos povos indoeuropeus remete também a es­ plêndida civilização da antiga Grécia ou do mundo antigo no seu conjunto, a qual não pode certamente ser confundida com o atraso ou a barbárie da Judeia, asiática e rebelde em comparação seja com a Grécia ou com Roma. Exatamente por causa da tendência antijudaica ou judeófoba que eles parti­ lham, o mito genealógico ariano-germânico e ariano-grego-germânico podem bem ser combinados com o mito genealógico germânico-cristão: basta negar ou pôr em dúvida - como faz, por exemplo, Wagner - a pertença de Jesus ao povo judeu.355 É mais um motivo, do ponto de vista· dos cultivadores desses diversos mitos, para olhar com profunda desconfiança e hostilidade para a plataforma histórica e ideológica elaborada por Strauss. Vimos que nele não há traço do pathos ariano (e antijudaico). Pode-se dizer algo a mais. Estamos na presença de um autor que, já ao reconstruir A vida de Jesus, faz um� leitura empática do judaísmo: bem longe de querer desjudaizar o cristianismo, como, ao contrário, Schopenhauer e Wagner fazem, ele evidencia a continuidade entre o Antigo e o Novo Testamento. Pelo menos inicialmente, "Jesus permaneceu fiel à lei pá­ tria", e suas declarações de fidelidade não são explicáveis como simples "aco­ modação". Ele até pareceu "compartilhar a aversão de seus conterrâneos em relação aos pagãos". Em todo caso, não pensava numa "subversão da antiga constituição religiosa do seu povo" nem pretendia transcender o âmbito da sua 355 Wagner, 1 9 10 n, p. 232.

comunidade nacional, como ocorre particularmente em Mateus, "o autor judaizante do primeiro Evangelho". É preciso acrescentar que agora, "depois do primeiro Pentecostes", os próprios apóstolos "seguiam a lei judaica". Em confirmação de tudo isso Strauss remete repetidamente a Os fragmentos do Anônimo de Wolfenbüttel, publicados por Lessing, o autor rotulado como ju­ deu por opção ou como judeu tout court pelos ambientes j udeófobos e antissemitas.356 Quando depois, após a publicação do primeiro volume de A vida de Jesus, Strauss é pintado pelos zelotas da ortodoxia cristã como uma espécie de Judas redivivo, ele não hesita em recordar a "orgulhosa lembrança" da vivência de Lessing, no seu tempo acusado, enquanto editor dos Fragmen­ tos, de ter sido lautamente pago pela "comunidade judaica de Amsterdã".357 Em continuidade com A vida de Jesus se move A velha e a nova fé, que parece, também ela, empenhada em refutar alguns temas antijudaicos ou judeófobos bast�te difundidos na cultura alemã do tempo. Wagner, e já antes Schopenhauer, censuraram a surdez do judaísmo diante do sofrimento dos ani­ mais, com frequência e com gosto imolados em honra a Javé; mas Strauss responde que os sacrificios animais representam um progresso em relação aos humanos da tradição religiosa anterior, ao passo que se pode verificar um re­ gressão assustadora no tema cristão do sacrificio do Filho de Deus .358 Para aqueles que estavam em busca de uma religião nacional germânica, era preciso depurar o cristianismo de qualquer elemento de judaísmo, também em conside­ ração do particularismo e do exclusivismo que caracterizaram este último; mas Strauss observa que, antes ainda que em Jesus, o tema da "fraternidade entre todos os homens" pode ser lido já no rabino Hillel . 359 No entanto, no que diz respeito à polêmica desencadeada por Nietzsche, os pontos essenciais são outros. Se O nascimento da tragédia, em relação à ver­ são semita, privilegia a versão ariana do pecado original, A velha e a novafé, ao comparar leitura hebraica e leitura cristã do relato bíblico, chega a um resultado que vai na direção oposta. A primeira visa apenas "explicar porque os homens são tão miseráveis, tão infelizes", a segunda, ao contrário, quer "explicar porque os homens são tão malvados, tão pecadores". Só agora, no âmbito da religião que triunfou no Ocidente e entre os povos arianos, a miséria e a infelicidade dos homens, historicamente condicionadas, encontram uma consagração moral e te­ ológica e recebem o selo da eternidade; desse modo, o dogma cristão do pecado Js6 Strauss,

1835-36, vol. 1, pp. 496-504. Strauss, 1835-36, vol. II, p. VII. Jss Strauss, 1872, p. 27. Js 9 Strauss, 1872, p. 83. m

original sanciona a perpétua "condenação de todo o gênero humano".360 Ade­ mais, fundado como está sobre a anulação do princípio da responsabilidade indi­ vidual, ele condena às penas eternas do inferno também a descendência mais remota e "crianças inocentes" só porque não foram batiz.adas. Tudo isto repugna profundamente "ao mesmo tempo a razão e o sentimento de justiça". 361 Com o triunfo do cristianismo, a fuga ao mundo e ao corpo se torna obses­ siva. Não por acaso, junto com os judeus, também os cristãos judaizantes creem na "ressurreição da carne"; mas este traço de "materialismo" desaparece na sucessiva evolução da Igreja, com a dominância dos "espiritualistas", os quais veem o Paraíso como um lugar no qual só uma alma clara e definitivamente separada do corpo conhece a bem-aventurança. 362 Um "traço visionário e negador do mundo" atravessa em profundidade o cristianismo, bem como o budismo. Pelo menos no que diz respeito à afirmação das razões do corpo e da vida mundana, o Antigo Testamento se revela claramente superior em relação ao Novo. Ao tema do cristão do vale de lágrimas Strauss contrapõe o "otimismo judeu e pagão".363 Do ponto de vista de Wagner e Nietzsche, neste momento unidos numa asso­ ciação que parece indestrutível, se o otimismo pagão é espúrio, é porque se trata de uma invenção ou projeção da modernidade; autêntico é o otimismo da religiãojudai­ ca, e isto constitui a sua marca de vulgaridade e infâmia. Chegamos assim ao ponto crucial. O autor de A velha e a nova fo não se limita a conferir uma conotação positiva à categoria de "otimismo" e à categoria de "otimismo judeu". Evidencia criticamente o gesto aristocrático no qual desemboca a profissão de fé pessimista de Schopenhauer: "Para ele o otimismo é, em todo caso, o ponto de vista da bana­ lidade e da trivialidade, ao passo que todos os espíritos mais profundos e distintos (distinguirt) como ele seguem o ponto de vista do pessimismo".364 Strauss não está errado em surpreender uma contradição, que hoje diría­ mos performativa, inserida na atitude daquele que se põe a trabalhar com gran­ de empenho e profusão de energias a fim de ganhar também os outros para a tese de que tudo é vão. Há mais satisfação (e prazer narcisístico) no gesto de & distinção com que faz profissão de pessimismo do que no otimismo tão furiosa,­ -. mente denunciado. Ao argumentar mais ou menos nestes termos, Strauss tem por trás a lição e a ferina observação de Hegel: "Há muitos homens que são infelizes (unglückselig), isto é, são bem-aventurados (selig) na sua infelicichl3<.o Strauss, 361 Strauss,

1 872, p. 23. 1 872, pp. 23-4. m Strauss, 1 872, pp. 32 - 3 . 3 63 Strauss, 1 872, pp. 6 1 -2. 364 Strauss, 1872, p. 145.

de (Unglück); estes têm necessidade da infelicidade, estão descontentes com a felicidade e criticam o mais que podem"; em virtude dessa hipocondria, "vã" se torna "toda objetividade", mas o sujeito "se alegra depois ainda em si mesmo apenas dessa vaidade".365 A reação de Nietzsche é tão violenta também por­ que o gesto aristocrático de Schopenhauer campeão do pessimismo é igual­ mente o gesto de seus anos juvenis. O que Strauss não leva I]tuito em consideração é que o tratamento do tema do pessimismo, da seriedade, da visão trágica da vida, constitui o gesto aristocrá­ tico de distinção não só das personalidades singulares, mas da Alemanha no seu conjunto, em contraposição sobretudo à França. Menos ainda tem presente o fato de que, num caso e no outro, tal gesto de distinção tem como alvo privilegia­ do o "otimismo judaico" tranquilamente celebrado por A velha e a nova fe. Mas essa celebração não é suspeita? Depois de ter rotulado Renan de judeu, em razão, como sabemos, do seu "otimismo", Wagner prossegue afir­ mando que se trata de um otimismo "totalmente digno de Strauss". Sempre aos olhos do musicista, Renan "não pode senão ser judeu", dado que toda a sua reconstrução histórica desemboca em última análise na "celebração do judaís­ mo". 366 É um argumento que claramente pode ser aplicado também para o autor de A vida de Jesus, ao qual, a julgar por uma nota de diário do verão de 1 877, Wagner parece atribuir uma origem exatamente judia. 367

2. Strauss, o judaísmo e a ameaça à língua e à identidade alemã Nos apontamentos preparatórios da primeira Inatual, encontramos uma anotação a respeito de Strauss sobre a qual vale a pena refletir: "Alguém me disse uma vez que sois judeu e, enquanto tal, não totalmente senhor da língua alemã" (VII, 5 89). Vimos que no jovem Nietzsche a dicotomia grecidade trági­ ca/modernidade, ou seja, pessimismo/otimismo tende a coincidir não só com a dicotomia Alemanha/França, mas também com a dicotomia alemão/judeu ou ariano/semita. Com a sua crítica do pessimismo e a sua explícita adesão ao "otimismo judaico", Strauss trai inquietantes afinidades eletivas; mas estas afi­ nidades são apenas eletivas? Para compreender plenamente a insinuação, é preciso ter presente que entre os judeus alemães são frequentes os sobreno­ mes que designam aves. Era o caso, por exemplo, de outro discípulo de Hegel, 1 997 a, cap. X, r(. 1 976-82, vol. nJ. 879. 1 977, vol. II, p. 141.

365 Cf. Losurdo, 366 C. Wagner, 367 C. Wagner,

ou seja, Gans ( "ganso"). Valia isso também para Strauss, o "avestruz", a "besta rara" sobre a qual também Ecce homo ironizará (EH, As considerações inatuais 2), o autor que, ademais, no seu nome, David, remete explicitamente para uma figura central da história da religião hebraica? No momento em que a polêmica contra Wagner se tomar mais áspera, Nietzsche recorrerá a uma insinuação semelhante: o nome do seu padrasto (e talvez na realidade pai naturaij não é Geyer (abutre)? Pois bem, "um abutre já é quase uma águia" (Ein Geyer ist beinahe schon ein Adler): quer dizer, trata-se de dois sobrenomes que traem a ascendência judia. Portanto, uma pergunta se impõe: "Wagner é alemão?" (WA, anotação ao Pós-escrito).368 Ou nas suas veias corre sangue da estirpe por ele considerada irremediavel­ mente estranha e hostil àquela germanicidade da qual queria tomar-se paladi­ no? Com base em alguns fragmentos maldosos, a dúvida parece ser mais que justificada: "Que Wagner seja semita?" (VIII, 5 00). Ao insinuar que o mau alemão de Strauss remeteria à sua judaica distân­ cia do povo que o acolhe, o jovem Nietzsche toca num tema que desempenha um papel importante no debate sobre o antissemitismo dos anos seguintes, mas que já nesse momento está no centro da campanha antijudaica de Wagner. Este, ao apelar para a defesa da língua alemã contra as contaminações que, deturpando-a, ameaçam a sua pureza, beleza e identidade, assim liquida Meyerbeer: "como judeu, ele não tinha uma língua materna que crescesse indissoluvelmente ligada ao mais íntimo de seu ser"; por isso, "a sua indiferença em relação ao espírito de qualquer língua".369 Muito além de Meyerbeer (que, ao contrário de muitos correligionários seus, rejeita a conversão até porque, graças ao seu patrimônio, não tem necessidade do cartão de visita do batismo para passar a fazer parte da sociedade boa),370 a campanha de Wagner vai contra outras personalidades que, mesmo professan­ do-se cristãs ou alemãs, são, no entanto, suspeitas de estarem ligadas, por afini­ dade natural ou eletiva, ao mundo judeu. É o caso de Eduard Devrient, homem de teatro e autor de um livro de memórias sobre Félix Mendelssolm-Bartholdy, o grande musicista de origem hebraica. Este texto é objeto de uma crítica feroz que se concentra quase exclusivamente no aspecto lingüístico e gramatical : é um "estilo &em dignidade"; encontram-se "descuidos e deformações no uso da língua alemã", ou antes um "estropiamento da língua alemã", que exige uma resposta dura.37 1 Não pode ser tolerado este "alemão de trabalhador braçal" (Handlanger=

368 Cí

Poliakov, 1 974-1990, vol. III, pp. 493-4. 369 Wagner, 1 9 10 e, pp. 293-4. 37º Poliakov, 1 974-1 990, vol. III, pp. 3 1 1 -2.

(-

deutsch) ou "alemão de carroceiros" (Kutscherdeutsch). Para ser mais preciso, ao reconstruir o seu encontro com o ')ovem judeu" Mendelssohn e ao escrever o seu livro de memórias, Devrient recorre a um "alemão de judeus" (Judendeutsch),372 os quais, como sabemos, falam sempre como estrangeiros a língua do país em que vivem. Wagner conclui tocando uma campainha de alarme: a desnaturação da "nossa língua alemã" põe em perigo a identidade da Alemanha e do seu povo. São bens irrem.mciáveis "pátria e língua materna: ai daqueles que se tomam órfãos delas". 373 A gravidade do perigo pede uma vigilância em todo campo. Ao republicar em 1869 o seu ensaio sobre Judaísmo na música, Wagner acrescenta algu­ mas páginas venenosas acerca de "um escritor de origem judia, cheio de talen­ to e de espírito, que parece quase ter crescido dentro da peculiar vida popular ( Volksleben) alemã" e que, no entanto, não teve a coragem de separar-se da campanha e difamação e de ódio, desencadeada pela comunidade judaica in­ ternacional, segundo Wagner, contra ele. Portanto, também neste caso, a liga­ ção com a Alemanha não se tomou, segundo provam os fatos, decisiva.374 A referência é a Berthold Auerbach: intervindo em sua defesa, Laube (expoente da Jovem Alemanha) observa que ele é, na realidade, "um alemão apaixona­ do"; a sua personalidade evidencia quanto é insustentável a tese daqueles que "querem excluir os judeus da nossa comunidade nacional".375 Leiamos agora a primeira Inatual: Lembro-me de ter lido um apelo de Berthold Auerbach "ao povo alemão" no qual toda expressão era artificial e falsa de modo não alemão e que, no conjun­ to, assemelhava-se a um mosaico sem alma de palavras com sintaxe internaci­ onal; e para não falar do desavergonhado e emporcalhado alemão, com o qual Eduard Devrient celebrou a memória de Mendelsohn (DS, 1 1 ; 1, 222).

É clara a continuidade com respeito à campanha desencadeada por Wagner e que encontra eco numa carta de Cosima a Nietzsche, na qual Auerbach, apesar de sua composição em homenagem aos que tombaram pela causa da Alemanha, é considerado estranho à "essência alemã" (B, II, 2, p. 240). E como Cosima no 371 Wagner, 1910 d, p. 227. 372 Wagner, 1 9 10 d, pp. 229, 23 1 e 238. 373 Wagner, 1 9 1 O p, p. 272. 374 Wagner, 1 9 1 0 e, pp. 258-9. 375 Rose, 1 992, p. 43 . Auerbach é o destinatário da carta 2 setembro 1 84 1 na qual Moses Hess relata em termos entusiásticos o seu encontro com Marx, "o meu ídolo" e o "único verdadeiro filósofo atualmente vivo": c( Poliakov, 1 974-1 990, vol. III, p. 468, nota 97.

seu diário,376 também Nietzsche nos seus apontamentos exprime o seu desprezo por Laube (VII, 504), culpado por ter tomado a defesa de Auerbach. Ao relatar a declaração já vista de Wagner a propósito de Meyerbeer (pri­ vado, enquanto judeu, de uma língua materna), um historiador do antissemitismo sublinha a funesta sorte e vitalidade do slogan na base do qual "quando um judeu fala em alemão, mente".377 Como vimos, de mentira e alemão "mentiroso" fala de modo explícito Nietzsche,,que neste momento parece apoiar plenamente a campanha do "Mestre" - assim ele continua a apostrofá-lo na correspondência contra os judeus alemães ou, mais exatamente, contra os judeus que fingem ser alemães. Num caderno de apontamentos podemos ler: Onde Heine e Hegel agiram simultaneamente, como por exemplo em Auerbach (embora não diretamente), e onde, além disso, por razões nacionais entra na língua alemã uma estranheza natural, surge então um jargão, que se torna repugnante em toda palavra e em toda expressão (VII, 598). ***

A "sintaxe internacional" e o estrago da língua alemã são uma indicação para captar a estranheza "nacional" e "natural" daqueles que não se responsa­ bilizam . Como Wagner com relação a Devrient, assim Nietzsche com relação a Strauss procede a uma listagem picueta das impropriedades de língua e de estilo, dos erros de sintaxe, dos lugares em que "o advérbio· está colocado erra­ do", a "construção é falsa" ou em que o autor não hesita "em trocar as prepo­ sições" (OS, 1 2 ; 1, pp. 229, 235 e 230); de todos os casos em que a língua alemã sofreu, de qualquer modo, uma desnaturação intolerável. Nos dois textos aqui comparados, estamos na presença de uma listagem que constitui uma acusa­ ção também no plano político e até étnico. Nietzsche aprendeu tão bem a lição de Wagner que, mais tarde, não hesita em aplicá-la contra ele. Na quarta Inatual declara que, exatamente por causa do seu grande amor pela língua alemã, "Wagner sofreu também mais do que qual­ quer outro alemão com a sua degeneração e com o seu enfraquecimento, isto é, com as muitas perdas e mutilações das formas'', etc. (WB, 9, 1, 486). Depois da ruptura, porém, no momento em que porá em dúvida a origem alemã do ex­ mestre e sublinhará assim mais a sua "afinidade do que a diversidade com respei­ to ao elemento judaico" (IX, 597), para confirmar esta insinuação Nietzsche fará intervir também a análise lingüística: não é lícito "passar em silêncio que o próprio 376 Rose, 1 992, p. 20 1 , nota 12. 377 Poliakov, 1 974-1 990, vol. III, p. 503. l1l

estilo de Wagner está afetado por todas aquelas pústulas e excrescências" (FW, 99), que também ele pretende denunciar no judeu Devrient. Mas voltemos à requisitória que a primeira Inatual faz contra Strauss: Quem pecou contra a língua alemã, profanou o mistério de toda a nossa gennanicidade; só ela salvou, como por um encanto metafisico, a si mesma, e consigo o espírito alemão, através de toda a mistura e a mudança das naciona­ lidades e dos costumes. Álém disso, só ela garante este espírito para o futuro, se ela mesma não perecerá pelas mãos malvadas do presente (DS, 12; 1, 228).

A versão preparatória deste trecho da primeira Inatual é talvez ainda mais clara. Convém citá-la por extenso: O costume alemão, a vida social alemã, as administrações e os organismos .representativos alemães, tudo tem um ar estrangeiro e parece uma imitação sem talento, que se esquece completamente que é uma imitação: não há originalidade que derive do esquecimento. Nesta situação de crise me atenho à língua alemã que, na verdade, é a única coisa que hoje conseguiu salvar-se através de toda a nústura de nacionalidades e da mudança dos tempos e dos costumes [ ... ] . E por este motivo devemos colocar os mais severos guardas para vigiar esta língua unificante, que garante a nossa gennanicidade futura (VII, 583-3).

Portanto, "a mistura e a mudança das nacionalidades e dos costumes", de que fala o te,..10 entregue para impressão, são entendidas como "a mistura de naciona­ lidades e a mudança de tempos e de costumes". No curso da sua história atormen­ tada, o povo alemão conseguiu conservar fundamentalmente pura a sua língua, não obstante a irrupção de indivíduos e grupos étnicos estranhos a ele. A identidade do país se deve sobretudo à língua, e aqueles que a maculam se tomam culpados de uma espécie de atentado contra a unidade e a identidade da Alemanha. Surge um pathos da germanicidade ainda mais exaltado que no Nasci­ mento da tragédia . Só que agora desapareceram não poucas das esperanças anteriormente alimentadas . Certamente, a essência alemã continua a ser cele··brada, contudo, tal celebração não está mais ligada ao presente, mas a um futuro sempre mais problemático: "A essência alemã não existe ainda, ela deve nascer ainda; num dia ou noutro ela deverá finalmente ser gerada, para que se tome, sobretudo, visível e honesta diante de si mesma. Mas todo nascimento é doloroso e violento" (VII, 687). O campo de batalha principal para a conquista da essência alemã parece, neste momento, ser constittiído pela língua. Em tal contexto é que estão inseridas as repetidas e martelantes acusações contra o "domador da língua Strauss" (DS, 12; 1, 24 1), este "paquiderme estilístico" (DS, 12; 1, 235). E como Wagner troveja

contra o "alemão de trabalhador braçal" e de "carroceiros", assim Nietzsche de­ nuncia o ') argão da ralé''.

(Lumpen-Jargon)

(DS,

12; 1, 235 e 230). O grande

musicista constroi a sua requisitória com um crescendo que culmina na acusação a Devrient de não ter o "sentido

(Sinn) das regras mais elementares da língua" ale­

mã378 e de recorrer, exatamente por isso, a um "alemão de judeus". Analogamente,

12; 1, 236) se caracteriza pela "falta de (Mangel an Sprachgefahl) (DS, 12; 1, 229).

para Nietzsche o "alemão straussiano" (DS, sentido da língua"

A mesma insinuação sobre a presumida origemjudaica de Strauss, embo­ ra não formulada com a clareza dos apontamentos preparatórios, acaba surgin­ do também no texto entregue para impressão graças a uma série de alusões malévolas, que pintam o autor da A

velha e a nova Jé recorrendo amplamente

aos estereótipos da imprensa judiófoba e antissemita. Eis, então, o apego ao mundo do dinheiro e da especulação e a surdez aos autênticos valores espiritu­ ais : Strauss "gosta de se exprimir de maneira tão vulgarmente mercantil em coisas tão pouco vulgares" (DS,

12; 1, 233), "atormenta-se para tirar as suas

comparações" da "Bolsa", além "da ferrovia, do telégrafo, da máquina a va­ por" (DS,

1 1 ; 1, 223). Estas declarações revelam todo o seu significado quando

comparadas com aquelas proferidas alguns anos depois por Treitschke durante a campanha desencadeada por ele contra o judaísmo alemão: ele "tenta intro­ duzir na literatura o clamor publicitário do mundo dos negócios e, no sacrário da nossa língua, o jargão bárbaro da Bolsa".379 Na caracterização que Nietzsche faz de Strauss vêm depois a sovinice e a trapaça. Estamos diante de um autor que não hesita em perpetrar "uma ignomi­ niosa violência" em prejuízo da língua alemã para "poupar ou usurpar uma frase" (DS,

1 2; 1, 23 1). E depois volt.a o parasitismo: "O filisteu straussiano habita nas

obras de nossos grandes poetas e musicistas como um ninho de vermes que

6; 1, 1 88). Enfim, a hipocrisia e o servilismo: Strauss adota a atitude de patriota fervo­

vivem destruindo, que admiram devorando, que adoram digerindo" (DS,

roso, mas, na realidade, mais que uma adesão sincera e a partir do seio da comu­ nidade nacional para a causa da Alemanha, assistimos nele a "reverências ser­

6; 1, 1 9 1). Não velha e a nova fé faz parte de uma "gentalha de porcalhões" (Sudler-Gesindel) (DS, 12; 1, 23 1 ) ou de sujos "escrevinhadores" (Tintenklexer) (DS, 12; 1, 233). Pois não é Wagner que subli­ vis"

(Rückenkrümmungen)

diante das condições alemãs (DS,

falta também o toque relativo à sujeira: o autor da A

nha o "aspecto extremamente nojento" que é próprio dos j udeus em geral?380

378 Wagner, 1 910 d, p. 238. 379 Treitschke, 1 965 e, p. 85. 380 Wagner, 1982, p. 3 1 O.

Enfim. Strauss olha para Lessing como para um modelo. Esta ambição é desmedida e ridícula (DS, 9-10; 1, 2 1 6-7). Resta o fato de que também o mode­ lo é discutível: estamos diante de um autor que argumenta de uma "maneira cavilosa, exageradamente movimentada e, se é permitido dizer, bastante não alemã" (SE, 2; 1, 347-8) . Além de Strauss, tampouco Lessing parece estar protegido da suspeita de estraneidade à germanicidade autêntica.

3. "Internacional judaica " e "Internacional estética " Não se deve perder de vista o fato de que a judiofobia desempenha um papel importante nos autores lidos com paixão nestes anos por Nietzsche (Schopenhauer, Wagner, Lagarde) e está bem presente também na correspon­ dência com os interlocutores mais assíduos. Em 1 0 de julho de 1 874, reagindo a três cartas, numa das quais se dirigia a ele como "o bom e caríssimo amigo" (B, II, 3 , p. 237), Gersdorff responde a Nietzsche desejando que passe um período feliz e salutar de férias nos montes e nos bosques, "onde o ar é puro, o chamado ozônio, e nenhum judeu, portanto numa pensão, para dizer com Lagarde, imune a judeus" (judainfrei) (B, II, 4, p. 5 1 2). Mesmo sem entrar diretamente no mérito de tais considerações, o destinatário desta carta responde por sua vez manifestando a sua alegria, tanto maior pelo fato de poder constatar "um idên­ tico estado de ânimo" (B, II, 3, p. 246). A expressão de Gersdorff utilizada lembra um texto381 que, ao aparecer, suscita imediatamente o interesse simpático de Nietzsche, o qual, mesmo sem se identificar com ele, aconselha calorosamente a sua leitura a Rohde, anunci­ ando também o envio de uma cópia a Cosima Wagner (B, II, 3, p. 1 2 1 e 145). A reação desta última é particularmente significativa. No esforço de desjudaizar o cristianismo e de aplanar o caminho para uma "religião nacional alemã", Lagarde concentra a sua crítica sobre Paulo. Eis a objeção de Cosima: "Não entendo bem os seus ataques a Paulo em contraposição aos jerosolomitanos, que também eram três vezes mais judeus que o próprio Paulo" (B, II, 4, p. 452). De qualquer modo, o judaísmo é sinônimo de contaminação, trata-se apenas de identificar o seu veículo principal. A ênfase dos mitos genealógicos, que patrocinam o II Reich e pretendem salvaguardar a autenticidade e a pureza da Alemanha, não contribui certamente para aliviar a carga de judiofobia que vimos circular no grupo dos amigos e interlocutores de Nietzsche. Numa carta dirigida a ele, Romundt previne contra o �8 1

Lagarde, 1937, p. 68.

"mau-olhado judeu" (Judenpech), ao qual a gente se expõe ao entrar em relação com pessoas daquela raça (B, II, 4, p. 85). Também para Gersdorff é bastante ingrata a relação com "um povo totalmente privado do pudor" (B, II, 4, p. 234). É supérfluo deter-se nas declarações ou nos desabafos de Wagner. Basta dizer que, na presença de uma "fisionomia" judia, num salão onde uma "vene­ nosa serpente judia" está à espreita com sua "mordida", Gersdorff acha opor­ tuno evitar qualquer discurso sobre o musicista (B, II, 4, pp. 234-5): o fervor ou ódio antijudeu do musicista era por demais conhecido. Mas é preciso ter pre­ sente que neste momento Nietzsche cultiva a ideia da "organização de uma associação wagneriana suíça" (B, II, 3, p . 1 20). E é a estes ambientes culturais e políticos que Cosima faz alusão quando fala do "grande entusiasmo" suscita­ do pelo livro contra Strauss "no Reich alemão" (B, II, 4, p. 209). Entre os leitores mais fortemente simpáticos pela primeira Inatual deve ser incluído Hans von Bülow, que em 29 de agosto de 1 873 escreve assim a Nietzsche: Recebi ontem a vossa excelente filípica contra o filisteu David e a li atenta­ mente até o fim com verdadeiro prazer [ ... ] A vossa descrição do filisteu culto, do mecenas da cultura sem o estilo é um autêntico, viril discurso-ação, digno do autor do Nascimento da tragédia. Écr[asez] l 'lnt[ernationale] deveria escrever um Voltaire dos nossos dias. A internacional estética é para nós outros um adversário bem mais odioso do que aquela dos bandidos negros ou vennelhos {B, II, 4, p. 288).

Strauss já fala de Internacional "vennelha'', do movimento operário e soci­ alista, e "negra", da Igreja católica.382 Agora é acrescentada uma terceira. Esta remete claramente e de modo direto ao judaísmo. Dela faz parte "o filisteu David" que, definido assim, revela de modo inequívoco a sua verdadeira identidade. Cer­ tamente não é isolada a denúncia da "Internacional judaica". É Lagarde383 quem usa de modo explícito esta categoria, pois talvez prefira falar de "Internacional cinzenta" (graue Internationale), com referência às eminências judias cinzen­ tas que, na sombra, controlam e manobram os centros de poder.384 Nas publica­ ções do tempo volta também a expressão "Internacional 'dourada"', com óbvia alusão à riqueza e finanças judias .385 Então por que, na carta de congratulações a Nietzsche, se fala, ao contrário, de "Internacional estética"?

382 Strauss, 1 872, pp. 264-5. 383 Lagarde, 1 937, p. 295. 384 Lagarde, 1 937, p. 338s. 385 ln Cobet, 1 973, p. 1 7 1 .

Quem se exprime assim é o primeiro marido de Cosima. Permanecendo em boas relações com a ex-mulher, ele certamente não ignora as denúncias de Richard Wagner sobre o grande poder mercantil do ')udaísmo na música". Verificou-se uma situaÇão desventurada que "conduziu no nosso tempo também o gosto públi­ co da arte nas mãos comerciais dos judeus"; "o sagrado e sofrido suor do gênio de dois milênios" tornou-se o "tráfico de mercadorias artísticas" judias. Neste sentido se pode falar de ')adaização da arte moderna'',386 ou seja - para dizer desta vez com Hans von Bülow - de "Internacional estética" que controla, sufo­ ca e vulgariza a arte, o juízo estético e o gosto do público. Desta infeliz Internacional é membro eminente, por afinidade natural ou eletiva, também o autor da A velha e a nova fé. Sobre isto também não há dúvida em Nietzsche, que fala constantemente dele, seja na primeira Inatual, seja nos apontamentos que a preparam, como "David Strauss'', omitindo o se­ gundo nome de batismo, Friedrich, que poderia ocultar a presumida origem judaica do alvo da feroz crítica. É o "descarado otimismo de filisteu" do autor da A velha e a nova fe (DS, 6; 1, 1 9 1 ) que o torna particularmente repulsivo. Sabemos já pelo Nascimento da tragédia que, totalmente estranho à essência alemã, o otimismo remete a um mundo com o qual a autenticidade germânica acaba em antítese e em luta. Agora estamos diante de uma profissão de fé não apenas ao otimismo, mas a um "otimismo descarado (schamlos)"; portanto, ela se caracteriza também por aquela total falta de senso de pudor que, segundo Gersdorff, constitui a marca do judaísmo. Compreende-se, pois, que Strauss liquide como evanescente e insustentável a perspectiva cristã de uma vida ultraterrena: "O céu do seguidor da nova fé deve ser naturalmente um céu na terra" (DS, 4; 1, 1 78): vem à mente o fragmento já citado no qual Nietzsche se propõe a "atacar a desprezível frase judia, a qual fala do céu na terra" (supra, cap. 3 § 1). Este é um tema crítico caro também a Wagner, o qual observa a propósito do aparente fervor religioso do judeu: Na verdade ele não tem religião nenhuma, mas apenas a fé em certas promes­ sas do seu deus que de modo algum remetem, como em toda religião verda­ deira, a uma vida ultratemporal colocada além desta sua vida real, mas limi­ tam exatamente a esta presente vida terrena.387

Nietzsche, por sua vez, faz ironia sobre o "novo caminho cômodo e agra­ dável para o paraíso straussiano" (DS, 3; 1, 1 76) e sobre o "grosseiro realismo" de Strauss (DS, 6; 1, 1 90): ''No fundo, portanto, a nova religião não é uma nova 386 Wagner, 1 9 1 O b, p. 68. 387 Wagner, 1 9 1 O, p. 271 .

fé, mas coincide com a ciência moderna e, como tal, não é absolutamente uma religião" (DS, 9; 1, 2 1 1). De modo análogo argumentará mais tarde Dühring, segundo o qual o autor da A velha e a nova fé "parece judeu não só no seu prenome'', mas também na sua tentativa de dissolver a "fé religiosa" numa "mescla" de "vulgar ciência natural e edificação".388 Até aqui a requisitória de Nietzsche é clara e explícita, mas, de modo ines­ perado, o texto prossegue assil)l: "Se, contudo, Strauss sustenta que há uma reli­ gião, os motivos disso se encontram fora da ciência moderna" (DS, 9; 1, 2 1 1). A quais outros temas Nietzsche faz referência? Pode-se pensar numa linguagem alusiva: é uma característica que traz à memória o final de Sócrates e a tragé­ dia, que evoca o perigo representado pela "imprensa judaica", e o trecho do Nascimento da tragédia empenhado em denunciar os "pérfidos anões". Continuemos a ler a primeira Inatual e a sua polêmica contra o filisteísmo de Strauss. "Como é possível que um tipo como o do filisteu culto tenha podido nascer (entstehen) e, se nasceu (falis er entstand), tenha podido crescer até alcançar a potência de um supremo juiz sobre todos os problemas de cultura alemães?" (DS, 2; 1, 1 67). De novo estamos diante de expressões surpreenden­ tes que, com seu ritmo alusivo, tomam o discurso obscuro em vez de esclarecê­ lo. Qual é o sentido da primeira pergunta? Ela parece sugerir que, bem longe de ser algo recente, a figura do filisteu culto remete a um passado bastante remoto. Depois de ter recebido Sócrates e a tragédia, Romundt observa, numa carta endereçada a Nietzsche, que na sua conferência o socratismo é uma espécie de "doença eterna" (B, II, 2, p. 176). Esta ewige Krankheit toma agora a forma do filisteísmo e as duas configurações remetem ao judaísmo. Agora está mais claro o sentido da segunda pergunta: com base em quais processos esta figura de velha data que é o filisteu culto conseguiu acumular tal poder que possa ditar leis no campo artístico? Faz eco aqui a denúncia que acabamos de ver em Wagner, segundo o qual o judaísmo controla "o gosto público da arte". Mas Nietzsche continua a insistir com suas perguntas, todas mais ou menos alusivas: como é possível que alcancem uma posição de domí­ nio apenas aqueles que só em virtude de um delírio podem pretender "possuir" algo que lhes é fundamentalmente estranho, ou seja, "a genuína, originária cul­ tura alemã"? (DS, 2; 1, 1 67). As "figuras grandes e heroicas" produzidas por ela, diante da miséria do presente, parecem dirigir à nação alemã uma pergunta cheia de censura: "Há um chão [ . . . ] que seja tão puro, tão intacto, de santidade tão virginal sobre o qual e sobre nenhum outro o espírito alemão possa construir a sua casa?" (DS, 2; 1, 1 67). Na primeira Inatual é obsessiva a preocupação '88 Dühring, 1 897, p. 16.

1 77

pela perda da pureza, pela contaminação sofrida não só pelo "espírito", mas também pelo "solo" alemão. NaAlemanha, um abismo separa a realidade da "crença satisfeita, antes triunfante" de possuir já uma "verdadeira cultura", capaz de moldar de modo unitário e coerente toda a vida nacional. Clamorosa e à vista de todos deveria ser o contraste, e no entanto é como se uma proibição confusa, mas tanto mais

eficaz, impedisse de tomar consciência: "Como é possível isso? Que força é tão poderosa que possa presérever um tal 'não deve'? Que espécie

(Gattung)

de

homens chegou a dominar na Alemanha para poder vetar sentimentos tão fortes e simples ou, de qualquer modo, impedir a sua expressão?" (DS,

2; 1, 1 64-5).

Para exercer realmente o poder, para ser hegemônico na Alemanha, pelo menos no que diz respeito ao discurso público sobre a arte e a cultura, mais do que um tipo humano no sentido meramente psicológico do termo, parece ser uma

Gattung, uma espécie ou talvez uma estirpe bem determinada. As analogias são transparentes com a denúncia wagneriana do enorme poder judeu. Mas Nietzsche responde assim espécie

à pergunta formulada por ele: "Quero chamar este poder, esta (Gattung) de. homens pelo nome - são os filisteus cultos" (DS, 2; 1, 164-

5). Seria, pois, vão buscar neste trecho uma alusão ainda que vaga ao judaísmo?

4. "Culturama " e judaísmo Entretanto, é preciso notar que o que caracteriza o filisteu é uma "culturama"

(Gebildetheit) superficial e postiça

(DS,

1 e 8; 1, 1 60 e 205). Aparece aqui uma

categoria que desempenha um papel importante na polêmica de Wagner contra o judaísmo na música e na cultura em geral. Estranho ao povo alemão, relutante em realizar o "duro e real trabalho" próprio daqueles que crescem "desde baixo" e incapaz de desenvolver a cultura própria a partir de uma ligação orgânica com um povo determinado, o judeu se impõe desde fora e do alto. Para conseguir este resultado, se o banqueiro entra com o seu capital, o musicista ou judeu em geral entra com sua

Gebildetheit,

o

intelectual

o seu capital de erudição e de no­

ções.389 Nietzsche, por sua vez, acusa o "mau uso" da cultura e "egoísmo dos homens de negócios", para os quais a cultura é, em última análise, sinônimo não só de lucro e de pensamento calculador, mas também de "felicidade terrena".

O

alvo continua a ser o judaísmo, julgado segundo os estereótipos que já conhece­ mos e considerado com a cautela recomendada por Cosima Wagner. Isto é con­ firmado posteriormente pela observação segundo a qual estes homens de negóci389 Wagner,

1 9 10 g, p. 3 1 3.

os afirmam que ''existe uma natural e necessária aliança entre 'inteligência e posse', entre 'riqueza e cultura"' (SE, 6; 1, 387-8). A identidade de tais persona­ gens será esclarecida de uma vez para sempre por um fragmento de alguns anos mais tarde: ..Aristocracia do espírito é um mote favorito dos judeus" (infra, cap. 1 O § 4). No âmbito da visão do mundo assim recomendada, "espírito" e "cultura" estão apenas em função da ascensão social e da acumulação do capital. Numa carta de pouco depois da publicação da primeira Inatual, Nietsche exprime todo o seu desprezo pela "irrequieta plebe judia da cultura" (unruhige Bildungs-Juden­ Põbel) (B, II, 3, p. 1 94-5). Seja financeiro ou "cultural", tal capital não tem de qualquer modo nenhu­ ma relação íntima com a vida do sujeito e a sua espiritualidade mais profunda. No entanto - Wagner dá livre vazão à sua indignação - "esta culturama vazia se arroga um julgamento sobre o espírito e o significado da nossa esplêndida música".390 Nietzsche não está menos escandalizado com a pretensão de Strauss de erigir-se juiz da realidade desconhecida e estranha a ele. Infelizmente, "ele se permite fazer publicamente o sinal da cruz diante dos produtos maiores e mais puros do gênio germânico, como se tivesse visto alguma coisa obscena e ímpia (DS, 5 ; 1, 1 87). Segundo Wagner, a "culturama" (Gebildetheit) judaica é caracterizada pelo nivelamento, pelo apego a "uma bela e tranquila clareza", pela desconfiança em relação a tudo aquilo que na arte e na cultura não tem "caráter inócuo". O capital judeu, seja intelectual ou propriamente financeiro, de qualquer modo olha apenas o conforto e, portanto, liquida como "excessos e exageros" tudo "o que é extre­ mo, divino e demoníaco".391 É exatamente desse modo que, aos olhos de Nietzsche, se posiciona Strauss. Quando topa com o autor do O mundo como vontade e representação, ele "pragueja, fala absurdos, blasfêmias, intãmias, diz diretamen­ te que Schopenhauer não tinha a cabeça no lugar" (DS, 6; 1, 1 89). Em última análise, Gebildetheit faz parte de um grupo de termos e de neologismos que, já desde as guerras contra Napoleão, surgem durante a polê­ mica contra o intelectual subversivo e apátrida, frequentemente e de boa von­ tade identificado com o intelectual judeu, contra uma cultura rotulada como desenraizada e desenraizadora. A propósito disso Treitschke e Bismarck falam de "intelectualismo" ( Üb erbildung) (supra, cap. 2 § 1). Mas aparecem, neste ou naquele autor ou até em dicionários, Verbildung e Verbildetheit. É uma pseudo-cultura hostil às "potências da vida", ou seja, nas palavras de Dühring, que tem em mente explicitamente os judeus, estranha aos "instintos originários, 390 Wagner, 39 1 Wagner,

1 9 10 g, p. 3 14. 1 9 1 0 g, p. 3 14.

sadios do povo".392 Portadores desse desvio são ou os "chamados intelectuais" (sogennante Gebildeten) ou os "intelectuais degenerados" dos quais f�lam respectivamente Treitschke e Dühring, e sempre com uma carga de hostilidade mais ou menos explícita em relação aos judeus. 393 Em Wagner a categoria de Gebildetheit é sinônimo deAfterbildung, ou seja, de uma cultura macaqueadora e postiça, de erudição rasa e imitativa, sem sopro vital.394 Estranho à língua, à ·vida, à cultura e à arte do povo com o qual passou a morar, "nesta língua, nésta arte o judeu pode apenas imitar a linguagem (nachsprechen), imitar a arte" (nachkünsteln)395 e isto só pode produzir Afterbildung. Também esta última categoria aparece em Nietzsche, que condena aquela cultura falsa e postiça junto com as Afterschulen, as escolas ou as pseudo­ escolas chamadas a transmiti-la (VII, 268 ) . Neste contexto aparece numa luz nova a A.fierphilologie censurada por Rohde a Wilamowitz, não por acaso acusado, como sabemos, como autor judaizante, incapaz de compreender seja a visão germânica trágica da vida, seja a criatividade e originalidade de que O nascimento da tragédia dá mostra. Numa carta de outubro de 1 872, depois de ter expresso a sua alegria pela ocorrida liquidação de Wilamowitz como defensor de uma Afterphi/o/ogie, Gersdorff contrapõe à profundidade das reflexões de Wagner sobre a música e sobre a arte em geral a superficialidade dos modernos expoentes de uma estética macaqueadora (modeme Afteréisthetiker), empenhados em difa­ mar ou isolar o grande musicista com a cumplicidade até dos ambientes jornalísticos ')udaico-reformados e nacional-liberais" (B, II, 4, pp. 107-8). Voltando atrás, topamos com a dura crítica que Schopenhauer faz à "sabe­ doria macaqueadora hegeliana" (Afterweisheit). 396 É interessante notar que esta denúncia aparece num escrito que faz a ligação de temas de fundo da filosofia de Hegel com o judaísmo (infra, cap. 6 § 2). Por outro lado, também em Nietzsche a condenação da Afterkultur (VII, 805) e da Spass- und Afterphilosophie, que são a cultura e a filosofia inferior e postiça própria dos apologetas da modernidade (SE, 4; 1, 365), não deixa de ter relação com a polêmica antijudaica que atravessa em profundidade os escritos do período juvenil.

392 ln Cobet, 1 973, p. 1 1 1 e 29; Dühring, 1 88 1 b, pp. 45, 65 e 87. 393 ln Cobet, 1973, p. 204 ; Dühring, 1881 b, p. 3. 394 Wagner 1 9 1 0 g , p. 3 1 4. 395 Wagner 1 9 1 0 b, p. 7 1 .

396 Schopenhauer,

1 976-82 e, vol. IV, p. 179.

5. Filisteísmo e judaísmo Ao querer remover o que há de grande e de inquietante da arte, da cultura e da vida, a culturama - observa Wagner - se encontra "em sábio acordo com o filisteu do nosso tempo".397 Portanto, também a categoria central da primeira Inatual já está presente no musicista, onde ela ressoa muitos tons judeófobos . Ainda antes, Schopenhauer fala com desprezo dos apóstolos daquele "dema­ gogo judeu" que é Jesus (supra, cap. 1 § 1 1 ) bem como dos "doze filisteus de Jerusalém".398 Por outro lado, na Europa da segunda metade do século XIX, a polêmica contra a visão mercantil da vida, que presidiria o processo de vulgari­ zação e de massificação em curso, considera conjuntamente 'judeus e filisteus", uns e outros inimigos tanto do guerreiro como do artista. 399 Como Nietzsche se coloca neste conte:\.1o? Enquanto denuncia o "socratismo" da "imprensajudaica", a conferência de Basileia muitas vezes citada observa que o herói da tragédia euripídea, poderosamente influenciada por Sócrates, é um "dialético", embebido de uma cultura "otimista desde o profundo do seu ser", e um "arauto.da banalidade e do filisteísmo (Philisterei) moral" (ST; 1, 546-7). O filisteísmo está estreitamente ligado com o socratismo e o otimismo, e ambos remetem ao judaísmo. Para assinalar a "morte da tragédia" e o triunfo de uma visão do mundo que tem como ideal a "existência de filisteu" (Philisterdasein) (VII, 40). Leiamos agora um apontamento "contra David Strauss" de dois anos de­ pois: "A impotência filisteia (philistros) de uma cultura (Bildung). Resignação e serenidade artificial. Não tem sensibilidade (gefühllos) pelo que é alemão" (VII, 586). Além de otimismo (ou de "serenidade artificial") e de "resignação" (ou seja, de acomodação à civilização moderna que celebra os seus triunfos sobretudo na França), o filisteísmo tende a ser sinônimo Cle estranheza à germanicidade. Somos reconduzidos mais uma vez à polêmica antijudaica, tan­ to mais porque o principal canal de difusão dessa Bildung filisteia é represen­ tado por ')ornais" e "revistas" (DS, 1 1 ; 1, 222), pela imprensa onde se faz sentir mais forte que nunca a presença do judaísmo. É clara a consonância com Wagner, segundo o qual, o que aproxima culturama, filisteísmo e judaísmo é a busca de uma "serenidade clara, transpa­ rente" que, ao satisfazer-se de modo "chato" com a existência, não se deixa de modo algum perturbar pelo "que de sério e terrível" há nela.400 Não é muito 397 Wagner, 1 9 10 g, p. 3 14. 398 Schopenhauer, 1 97 1 , p. 44. 399 Mayer, 1 982, pP. 269 e 273. 400 Wagner, 1 9 10 g, Pp. 3 14-5. ili

diferente a censura que Nietzsche faz a Strauss: ele "se comporta como o mais orgulhoso vadio da felicidade ( Glück), como se a existência não fosse uma coisa terrível e preocupante" (DS, 8; 1, 202). Mas é Rohde quem dissipa qualquer dúvida sobre o componente antijudeu da crítica do filisteísmo. Depois de ter feito a ligação, como sabemos, entre o autor da dura crítica do Nascimento da tragédia com a repelente civilização e opulência judaica de Berlim, ele o rotula sucessivamente, numa carta de 1 de novembro de 1 872, como "filisteu estúpido" (gaffender Philister) (B, II, 4, p. 1 15). Por outro lado, o nexo entre judaísmo e filisteísmo é confirmado pela história que age por trás desta última categoria. A primeira Inatual nos diz: "Como se sabe, a palavra filisteu é tomada da vida estudantil" (DS, 2; 1, 1 65 ). Somos reme­ tidos ao período da luta contra a ocupação napoleônica: difundem-se sociedades secretas patrióticas, que excluem do seu seio seja os "filisteus'', seja os judeus, mesmo se batizados, uns e outros acusados ou suspeitos de querer acomodar-se à situação vivendo tranquilamente ou por cumplicidade ideológica e política com os ocupantes, por causa de uma comum visão da vida banáusica e surda a qual­ quer ideal . '"Judeus, franceses e filisteus ' valiam então como representantes do iluminismo" e pela sua intrínseca chateza: a observação é de Arendt, que faz referência em particular a Brentano, «>1 um autor que Nietzsche conhece e apre­ cia (IX, 600). Nos anos da primeira juventude, ele leu também Menzel (infra, cap . 28 § 2), o qual também articula a sua acusação contra o "liberal filisteu", ou seja, o "filisteu satisfeito e seguro de si" (selbstgerecht); olhou com indiferença e até com simpatia para a "ocupação estrangeira" do exército proveniente de Além­ Reno; embebido de "iluminismo cosmopolita", está empenhado na "imitação do liberalismo francês"; "em nome da cultura (Bildung), tem ódio a tudo o que é cristão e alemão", "serve a ídolos estrangeiros e se inclina diante de falsos profe­ tas". São claras as suas ligações não só com a "maçonaria'', mas também com o judaísmo: não é por acaso que se inspira no "pequeno judeu Heine". Uma das encarnações dessa figura repugnante é por Menzel identificada em Strauss. 402 Na luta para sacudir de suas costas o jugo militar napoleônico desempe­ nharam um papel importante as Burschenschaften, as associações e corporações estudantis. Segundo Brentano, enquanto mergulhado na "busca do eterno, da ciência ou de Deus", enquanto "adorador da ideia", o "estudante" é a antítese mais radical do "filisteu" fechado, como um caracol, na concha da sua banalidade cotidiana. É a antítese entre Burschenthum e Philisterthum.403 4º1 Atendt, 1 988, pp. .129-130. 4º2 Menzel, 1 869, pp. 240-7. 403 Losurdo, 1 997 a, cap. VIII, l.

Vimos uma das conferências Sobre o faturo das nossas escolas empenhar­ se na celebração da Burschenschaft; agora a primeira Inatual' faz um acerto de contas com Strauss, "um verdadeiro filisteu de alma restrita e endurecida." (DS, 1 O; 1, 2 1 6). Junto com os judeus, a polêmica antifilisteia leva em conside­ ração a massa considerada rude e vulgar.404 Mas também Strauss pertence de algum modo à massa, faz parte, segundo Nietzsche, da "classe dos operários da cultura" (gelehrter Arbeiterstand) (DS, 8; 1, 205); é um "filisteu culto". Mais tarde, ao lançar um olhar retrospectivo à primeira Inatual, Nietzsche escreverá: "O termo filisteu culto (Bildungsphi/ister) passou diretamente do meu escrito para a língua" (EH, Considerações inatuais, 2). Na realidade, ele já é utilizado, três anos antes, por RudolfHaym, no curso da sua reconstrução da polêmica dos românticos e de Tieck em particular contra a trivialidade e banausicidade dos intelectuais iluministas .405 Mas Nietzsche parece ignorar este precedente e se pode agora presumir que tenha cunhado o termo de modo autônomo. Por trás dele age em primeiro lugar Wagner, no qual a figura do ')udeu culto"406 tende a coincidir com a já vista do "filisteu do nosso tempo". Por outro lado, a ironia do ')udeu culto''. é um lugar-comum da polêmicajudiófoba ou antissemita. 407 Afetado aos olhos de Wagner de filisteísmo, der gebildete Jude, que procura desesperadamente diferenciar-se dos "seus companheiros de fé de condição inferior" e sobre os quais mais claramente está impressa a marca da vulgaridade,408 se · torna em Nietzsche der gebildete Philister (DS, 2; 1, 1 66 e DS, 8; 1, 208) ou, mais frequentemente, der Bildungsphi/ister, o "filisteu culto'', que em vão exibe a sua superioridade cultural com respeito à massa, da qual é, ao contrário, parte integrante. É, todavia, indubitável a permanência dos tons judeófobos. A campanha contra o filisteísmo parece configurar-se, na primeira Inatual, como uma luta de libertação nacional: Se fosse possível suscitar aquela coragem impassível e tenaz que o Alemão contrapõe ao patético e repentino ímpeto Francês, contra o inimigo interno, contra aquela "culturama" (Gebildetheit) sumamente equívoca e em todo caso antinacional, que na Alemanha é hoje chamada, com perigoso equívoco, de 404 Losurdo, 1 997 a, cap. VIII, 1. 405 Cf. Rickert, 1 920, p. 58-9, nota 2; por outro lado, contra os filisteus cultos (gebildete Phi/ister), empenhados em embelezar a realidade do capitalismo, polemiza já em 1 867 a primeira edição do Capital: cf. Marx, 1 983, p. 1 76, nota 33. 406 Wagner, 1 9 1 O b, p. 73. 407 Cf. Boehlich, 1 965, p. 97. 408 Wagner, 1 9 10 b, p. 73.

cultura (Kultur), nem todas as esperanças de chegar a uma verdadeira e genuína educação alemã, o oposto daquela culturama, estariam perdidas (OS, 1 ; 1, 160-1 ). A triunfal vitória de Sedan não concluiu a luta "pelo espírito alemão" (DS, l ; 1, 1 62). O elemento estranho do qual libertar-se para conquistar ou recon­ quistar a autenticidade é sem dúvida o judaísmo. A primeira Inatual se coloca numa linha de continuidade com O nascimento da tragédia, que chamava a Alemanha a sacudir das cóstas o peso dos "pérfidos anões". Estamos diante de uma preocupação que acompanha constantemente o jovem Nietzsche, isto é, aquilo que precede a virada "iluminista". Um aponta­ mento do outono de 1 869 diz: "um dos inimigos judeus de Richard Wagner lhe tinha anunciado por carta a vinda de um novo germanismo, o germanismo judai­ co" (VII, 25). É uma perspectiva que, ainda quatro anos depois, angustia o autor da primeira Inatual. Ele continua a sentir a influência e o fascínio de Wagner e não por acaso, sempre em 1 873, o vimos redigir um Apelo aos alemães que chama a nação a recuperar a sua originalidade e autenticidade alemã: "O povo precisa, agora mais do que nunca, ser purificado e consagrado pelo encanto subli­ me da autêntica arte alemã" e precisa do "drama popular" (volksthümlich) (MD; 1, 893-6). Aqui ressoa de novo o chamado ao Volksthum, em relação ao qual os judeus não só são estranhos, mas constituem um elemento de contaminação. Como o próprio Nietzsche reconhece, trata-se de um apelo a "favor de Bayreutlm (B, II, 3, p. 165), isto é, a favor de uma iniciativa e de um círculo caracterizados, para além do amor pela música, por um programa político que se choca com resistências e dificuldades". ''Nós' wagnerianos" - sublinha Rohde ­ somos obrigados a travar uma luta que talvez pareça desesperada (B, II, 4, p. 78). É uma luta da qual Nietsche sente que participa plenamente, ele que já estava irritado por ter sido colocado por um jornal entre os "lacaios letrados de Wagner", e tinha expresso a sua satisfação em ver também o amigo Rohde enfileirar-se ao seu lado (B, II, 3, p. 72). A quarta Inatual também quer ser uma clara tomada de posição em apoio não só do grande musicista, mas também da "festa bayreuthiana", do "acontecimento bayreuthiano", de um e:\..1raordinário "feito como o bayreuthiano"; sim, é preciso saber olhar com "olho grande" para o "acontecimento de Bayreuth'', sem se deixar confundir pela "lanterna bastante pouco mágica dos nossos brilhantes jornalistas" (WB, l ; 1, 432-4), daquela im­ prensa um pouco "socrática", um pouco ')udia", que continua a ser um alvo constante a partir do período de gestação do Nascimento da tragédia.

6. Judiofobia, antissemitismo e excesso teórico e artístico em Nietzsche e Wagner Devemos agora liquidar os escritos do período pré-"iluminista" como uma série de libelos antissemitas? Não há dúvida que a cultura alemã é lida aqui com as lentes judiófobas de Wagner. Isto não resulta apenas dos juízos expres­ sos sobre Meyerbeer ou Strauss, ou Heine. É exatamente este último que subli­ nha a ligação entre Meyerbeer e a "jovem, generosa, cosmopolita (weltfrei) Alemanha de uma nova geração",40') quer dizer, com aquela Jovem Alemanha que os ambientes judeófobos ou antissemitas definiam frequentemente como a Jovem Palestina.410 Além desse ou daquele expoente, o primeiro Nietzsche condena a Jovem Alemanha e a condena com uma linguagem sobre a qual convém refletir: estamos na presença de uma "arte literária degenerada"; o seu expoente talvez mais significativo, que é Gutzkow, é "um intelectual dege­ nerado" (entarteter Bildungsmensch) (BA, 5 ; 1, 746-7). Ademais, o primeiro Nietzsche ventila não poucos dos motivos que alimentaram em seguida a polê­ mica do antissemitismo. No entanto, quando ela inicia a partir de um artigo de Treitschke, de novembro de 1 879, que previne contra o perigo representado na Alemanha por um judaísmo influente e refratário à assimilação, o filósofo já rompeu com as suas posições precedentes. Mas é sobre os escritos do período juvenil que agora versa o discurso. São libelos antissemitas? No entanto, do antissemitismo racial propriamente dito, cujas práticas de exclusão e opressão não permitem saída exatamente porque são naturalisticamente motivadas, convém distinguir tanto a judiofobia (uma atitude de insuperável hostilidade diante da tradição cultural e religiosa judaica, que estimula uma carga discriminatória, mais ou menos radical, no plano políti­ co e/ou social) como o antijudaísmo (uma atitude crítica que, todavia, não colo­ ca em discussão a igualdade civil e política).411 O judaísmo criticado pelo Nas­ cimento da tragédia não é definido em termos raciais . Na carta já citada de 1 870, que ironiza os "nossos 'judeus"', saltam aos olhos as aspas colocadas por Nietzsche, o qual, ao se dirigir ao amigo Gersdorff, acrescenta: "Sabes como este conceito é extenso". Para permanecer sempre no mesmo círculo, vimos Rohde dirigir-se em primeiro lugar aos "circuncisos no espírito". Portanto, nes­ te caso, como confirma também a sucessiva evolução do filósofo, convém falar mais de judiofobia do que de antissemitismo; ou talvez, mais exatamente, de 409 Heine,

1 969-78, vol. III, p. 339. 1 974-1 990, vol. III, p. 464. 411 Cf. Losurdo, 1999. 4 1 º Poliakov,

antijudaísmo que ultrapassa ajudiofobia, recusando-se talvez a reconhecer aos judeus alemães a plena igualdade civil e política (supra, cap. 3 § 6). Wagner, porém, desde o início se coloca no terreno da judiofobia. É verda­ de, por alguns versos o seu pamphlet se apresenta como uma espécie de inver­ são da jactância de Disraeli, o estadista inglês de origem judaica, que reivindica para a raça 'judaica" uma esmagadora hegemonia no plano musical (infra, cap. 1 8 § 1 ) . Mas depois de ter atacado o judaísmo enquanto tal, a polêmica de Wagner parece reivindicar a desemancipação dos judeus alemães, como resulta da ironia sobre "igualdade de direitos" e sobre a "emancipação dos judeus", este "princípio abstrato" ventilado por um "liberalismo" fundamentalmente estranho ao povo. 412 Está clara, portanto, a judiofobia e ela está sempre a ponto de passar para o antissemitismo propriamente dito. Sim, Wagner distingue entre 'judaísmo" pro­ priamente dito e 'judaísmo na música", entendido no sentido espiritual e idealtípico e por ele visado.413 No entanto, o movimento de "repugnância" (Abneigung) ou de '·repulsão" ( Widerwillen) em relação à "essência judaica'', "brota da intimida­ de mais profunda", é "natural", "instintivo", "espontâneo" (unwillkürlich) e não se pode conter. É uma reação sentimental e talvez até fisiológica, que é percebi­ da, sim, por indivíduos, mas tem também uma dimensão coral; trata-se de uma "repugnância popular" (volksthümlich) da qual participam aqueles mesmos, embora digam que querem a emancipação dos judeus.414 Toma-se evidente o forte componente naturalista e étnico dessa judiofobia. Por um lado, Wagner exprime um assimilacionismo violento que intima os judeus ao "auto-aniquilamen­ to" cultural;41 5 por outro lado, ele mesmo coloca em dúvida a possibilidade de uma real integração e fusão, como se vê pela observação segundo a qual a equi­ paração entre judeus e alemães na Alemanha faz pensar naquela que no México permite que os negros se passem por brancos, ou adquiram os mesmos direitos dos brancos, depois de ter tentado preencher de maneira desajeitada um formu­ lário burocrático.416 Numa conversa de abril de 1 873 o musicista se declara contrário aos matrimônios mistos, com o argumento que nesse caso "o louro sangue alemão" acabaria sofrendo o efeito "corrosivo" do sangue j udeu.417 Nietzsche está presente a esta conversa, e se poderia dizer que o distanciamento de sua anterior judiofobia se toma tanto mais nítida quanto mais 4 12 Wagner, 1 9 1 0 b, p. 67. 413 Wagner, 1 9 1 0 b, p. 84. 4 1 4 Wagner, 1 9 1 O b, pp. 66-7 e 76. 415 Wagner, 1 9 1 0 b, p. 85. 4 16 Wagner, 1 9 10 p, p. 265. 417 C. Wagner, 1976-82, vol. 1, p. 667.

claramente emerge a rudeza naturalista da judiofobia, do antissemitismo subs­ tancial de Wagner. É preciso acrescentar que o antijudaísmo ou a judiofobia do jovem professor de filologia desempenha um papel significativo na denúncia da modernidade, mas através de uma série de filtros. Neste sentido pode ter agido positivamente o convite de Cosima à cautela lingüística: longe de ficar confina­ da ao nível verbal, a autocensura estimulou uma espécie de sublimação e de transcendência da imediatez, no sentido de que a análise impiedosa da modernidade se autonomizou em certa medida com respeito aos temas judeófobos que a acompanham. Por exemplo, não há dúvida que a crítica de uma cultura reduzida a jornalismo massificado se nutre de temas judeófobos; no entanto, continua firme o fascínio e o frescor de uma análise da modernidade como "uma sociedade homogênea que parece ter jurado apoderar-se das horas de lazer e de digestão do homem moderno, ou seja, dos seus 'momentos cultu­ rais', e aturdi-lo ainda com o papel impresso" (DS, l ; 1, 1 6 1 ). É provável que antijudaísmo e judiofobia tenham um papel também na crítica da pressa e da inquietação do intelectual moderno. Repetidamente Wagner se refere ao "espírito judeu azafamado e i rrequieto",418 à "costumeira inquietação dos judeus",419 à "precipitação" que em Eduard Devrient está em plena consonância com o seu alemão horrível. 420 Contudo, nem por isso deixa de ser instrutiva em Nietzsche a denúncia do intelectual reduzido pela pressa e pela agitação a "operário exaurido" e, portanto, sem qualquer criticidade: "Estranhamente não vem à mente dos nossos sábios sequer o problema mais imediato: para que serve o seu trabalho, o seu frenesi, a sua dolorosa agitação" (DS, 8; 1, 202-3). Algumas análises revelam uma excedência não só em relação à judiofobia, mas também com respeito às intenções declaradamente reacionárias do autor. Algo análogo pode ser dito também a propósito de Wagner: a mesmíssima relação que existe entre os seus escritos de prosa, por um lado, e suas obras musicais, por outro, existe em Nietzsche entre as cartas e os cadernos de apon­ tamento, por um lado, e O nascimento da tragédia, as conferências Sobre o .fitturo das nossas escolas e a primeira Inatual, por outro lado.

418

Wagner, 1 9 10 e, p. 256.

4 1 9 Wagner, 1982, p. 237.

420

Wagner, 1 9 1 O d, p. 226.

Segunda parte Nietzs che no seu temp o . Quatro abordagens sucessivas n a crítica da revolução Infame profanação de uma palavra bem intencionada, "/;bera/;smo ". (VII, 355) Não somos absolutamente ''liberais ", não trabalhamos para o "pro­ gresso " [ . } Meditamos sobre a necessidade de uma nova ordem, tam­ bém de uma nova escravatura - pois cada consolidação e elevação do tipo ''homem '·' está estreitamente ligada a um novo gênero de escravismo. (FW, 377) .

.

O meu terrível "antidemocratismo " (B, III, 3, p. 58) .

A expressão "radicalismo aristocrático ", da qual o senhor se serve, é excelente. Seja dito sem o.fender ninguém, é a palavra mais inteligente que, na minha opinião, li até agora. (B, Ili, 5, p. 206)

Não podemos ser senão revolucionários. (EH, Por que sou tão inteligente, 5)

6 Ü " REBELDE SOLITÁRIO" ROMPE COM A TRADIÇÃO E A " COMUNIDADE POPULAR" 1 . O "iluminismo popular " da Prússia como traição do "autênti­ co espírito alemão " os primeiros anos da década de 1 870, nenhuma nuvem parece preocu­

Npar o horizonte de esperanças aberto por Sedan. Bem longe de ser dei­

xada para um futuro remoto e problemático, a sua realização pode ser lida ou identificada já nas "vísceras do presente"; portanto, não é arriscado "prome­ ter uma futura vitória a uma tendência cultural já existente" e decididamente promissora. Certamente é preciso não subestimar os obstáculos e as resis­ tências. Todavia - prossegue Nietzsche - essa tendência à regeneração trá­ gica e helênica da Alemanha "vencerá, como penso com plena confiança, pois tem do seu lado o maior e mais poderoso aliado, a natureza" (BA, Intro­ dução ; 1, 645-6). O "desencorajamento" diante da vulgaridade do p resente não tem nenhum sentido: "A época de tudo isso acabou, os seus dias estão contados" (BA, 2; 1, 673 ). No entanto, exatamente a Prússia, o Estado hegemônico do II Reich, nos coloca na presença de um espetáculo que suscita bastante depressa in­ terrogações inqui etantes : "Por que o Estado precisa daquele número exorbitante de escolas e de ensinantes ? Qual a finalidade desta instrução popular e deste iluminismo popular ( Volksbildung und Volksaz�fklarung) tão amplamente difundidos?" (BA, 3 ; 1, 7 1 O) . Assiste-se a uma insensata multiplicação das escolas superiores. Subordinada como está à profissão, ou melhor, à "suposta profissão" (BA, 1 ; 1, 663), a cultura configura-se como um instrumento de mobilidade e de promoção social : por isso, a corrida à instrn­ ção e ao título de estudo . É um fenômeno que acomete também o Exército: o desejo de subir na carrei­ ra e hierarquia militar contribui para provocar ··a completa saturação de todos os liceus prnssianos e a necessidade premente e contínua de novas escolas" (BA, 3 : 1, 707). Certamente, a difusão da instrução toma possível também uma ampliação e uma mell10r qualificação dos quadros militares. Eis que agora a Prússia "causa admiração no e"-1erior por causa sua organização escolar"; sim, "outros Estados admiram, consideram com ponderação e cá e lá imitam" tal organização (BA, 3 ; 1,

708-9); mas isto apenas confirma a sua periculosidade. Também a minúscula ilha do "gênio militar" (supra, cap. 2 § 6) corre o risco de ficar submersa pela maré da modernidade. Com efeito, Smith põe em evidência o nexo que há entre moderniza­ ção (também militar) e difusão da instrução. Um analfabeto não pode ser um bom soldado; também é incapaz de compreender os seus "grandes e vastos interesses'', e por isso não está em condições de "defender o seu país em guerra".421 É um motivo a mais - segundo o grande economista inglês - para que o Estado interve­ nha ativamente para promover a difusão da instrução em nível elementar.422 Preso ao ideal antigo do "gênio militar", Nietzsche, ao contrário, passa para uma crítica não mais do militarismo, mas do processo de massificação (e de certo modo de democratização) que acomete também a vida militar. Também neste nível se faz sentir a tendência ruinosa a difundir a instrução a fim de poder dispor do "maior número possível de funcionários inteligentes" (VII, 243). Além da realidade da vulgarização geral, uma ameaça ainda mais grave apa­ rece no horizonte. Se tudo vem depender, ou se pensa que venha depender, dos resultados escolares conseguidos, "nenhum privilégio" pode ser mais justificado (VII, 243). Em vez de ser desarmado, o conflito acaba sendo exacerbado por uma visão da cultura como instrumento para conseguir a ascensão social e o bem-estar: "Surge o grande, ou mefüor, enorme perigo de que a massa salte o degrau interme­ diário e se lance diretamente sobre esta felicidade terrena. É a chamada hoje 'questão soc�l"' (BA, l ; 1, 668). Reaparece inquietante o espectro, evocado por O nasci­ mento da tragédia, da revolta servil, da sublevação dos·escravos impacientes com a "ii�ustiça" que eles pensam sofrer por causa da privação da felicidade terrena. Em conclusão, "a instrução geral (allgemeine Bildung) é apenas um está­ gio preparatório do comunismo". Aceitando ou sofrendo esse "verdadeiro dogma" que é a "instrução geral", o II Reich e a Prússia em particular promovem ou engrossam um movimento que visa sepultar as "grandes individualidades", cha­ madas agora a ·'enfileirar-se com todos", para promover apenas "servidores da massa" ou, mais propriamente, "servidores de um partido" (o processo de massificação dava mais um impulso ao partido socialista) (VII, 243-4). Verifica-se assim uma espécie de encenação . Bem longe de representar a promessa de regeneração trágica da Europa, agora o II Reich parece encarnar o ''socratismo científico" e o "iluminismo popular". Ele assume agora "um sig­ nificado universalmente ameaçador e perigoso para o autêntico espírito ale­ mão" (BA, 3; 1, 707). Voltemos à pergunta inicial de Nietzsche: por que a Pn'.1ssia, junto com uma expansão tão insensata do sistema escolar, promove 42 1 422

Smith, 1 98 1 , p. 782 (livro V, cap. 1, parte III, art. 2). Smith, 1 98 1 , pp. 787-8 (livro V, cap. 1, parte III, art. 2).

uma visão tão perigosa da cultura? Infelizmente, impõe-se uma resposta que deixa sempre menos espaço à dúvida: Porque o genuíno (echt) espírito alemão é odiado, porque se teme a natu­ reza aristocrática da verdadeira cultura, porque propagando e alimentando as pretensões culturais da multidão (Vie/en) quer-se estimular os grandes indiví­ duos a buscar um exílio voluntário, porque se busca evitar a severa e dura disciplina dos grandes guias, levando a massa a crer que encontrará sozinha o caminho, guiada pelo Estado, verdadeira estrela polar. Aqui está um fenômeno novo ! O Estado como estrela polar da cultura! (BA, 3 ; 1, 7 1 0). Por trás desta desconfiança e hostilidade nas comparações da Prússia há uma longa tradição, que frequentemente viu naquele país a encarnação do iluminismo: em nenhuma outra parte do mundo - trovejava Gentz pelo fim de 1 803 as ideias francesas encontraram tantos adeptos como na Prússia. E, três anos depois, Friedrich Schlegel acentuava que "nenhum governo alemão" é tão semelhante ao francês como o prussiano. Enchia de horror uma burocracia rotu­ lada por Adam Müller de covil de ')acobinos do alto" que grassavam "particular­ mente nas administrações estatais (Staatsadministrationen) alemãs"! Ainda pouco depois da revolução de 1 848, o próprio Bismarck denunciava a "tendência de uma grande parte da burocracia prussiana ao nivelamento e à centralização" e até à "democracia vermelha" de maneira que o funcionário público acabava desmascarando-se como o "Régio Prussiano Jacobino da Corte".423 Na esteira dessa tradição se colocam a desilusão e o ressentimento de Nietzsche para com a política realmente adotada pela Alemanha nascida de Sedan. Centrada como está, ou como parece, num Reichstag eleito por sufrágio univer­ sal (masculino) e comprometida como está na difusão em massa da instrução, ela não constitui uma alternativa para a modernidade nem no plano político, nem no cultural. Pelo contrário, não se poderia imaginar abdicação mais completa e mais vergonhosa para a missão de luta contra a civilização e de barreira contra a subversão. É a derrota do "autêntico espírito alemão" que agora "arrasta a sua existência isolado, esmiuçado e degenerado" (BA, 4; 1, 725). -

2. O mito genealógico germânico e a condenação de Hegel O nume tutelar da difusão capilar da instrução, da multiplicação dos institutos escolares, da reduplicação dos esforços para poder dispor em todo nível do maior número possível de funcionários inteligentes, é Hegel: entre os seus discípulos se 423 Cf Losurdo, 1 997 a, cap. V, 1-2 e XIV, 4.

destaca Lassale, que não por acaso tomou posição explícita em favor do comunis­ mo (VII, 243): O ajuste de contas com a Prússia do "ilumàúsmo popular" e do "socratismo científico" é o ajuste de contas também com Hegel. Sobre o faturo das nossas escolas condena com força a categoria hegeliana de. eticidade, ou seja, a visão do Estado como "organismo ético absolutamente realizado" (BA, 3; 1, 7 1 1 ): este "conceito exagerado de Estado" (VII, 4 1 2) e essa "apoteose do Estado" estão em contradição irremediável com o "autêntico espírito alemão" (BA, 3; 1, 708-1 O). O duro juízo crítico está em plena consonância com a orientação clara­ mente predominante nos ambientes nacional-liberais alemães do tempo: nos confrontos de Hegel se pode provar apenas "desconfiança'', "aversão'', "re­ pugnância", tanto mais porque, após a experiência exaltadora da vitória contra a França e da fundação do II Reich - observa Haym numa revista, "Grenzboten", conhecida por Nietzsche - "apreendemos o verdadeiro significado do univer­ sal, do qual não queremos ver sacrificado o individual como acontece no siste­ ma hegeliano".424 Aqui, o alvo da polêmica é, em primeiro lugar, a categoria hegeliana da eticidade, considerada estranha - também segundo Dilthey - ao espírito germânico:425 nela se percebe o eco do ideal rousseauiano e jacobino do citoyen e da reivindicação da intervenção do poder político na esfera eco­ nômico-social, que atravessam em profundidade e caracterizam de maneira ruinosa a tradição política e cultural da França. É por isso que Treitschke intui uma dupla oposição: de um lado os "conceitos de liberdade dos alemães, que colocam constantemente o acento no direito absoluto da personalidade'', do outro o pathos hegeliano da eticidade; de um lado o "povo individualista" como é o povo alemão, do outro o povo francês, cuja "doença hereditária" é repre­ sentada pela "onipotência previdencial do Estado". 426 As intervenções de Treitschke, Haym e Dilthey supracitadas são respecti­ vamente dos anos 1 860, de 1870 e de 1 872; referem-se, pois, ao período de formação de Nietzsche e de gestação e definitiva elaboração de O nascimento da tragédia e das conferências Sobre o faturo das nossas escolas. Mas tam­ bém parece remeter ao mundo espiritual de seu autor ainda mais diretamente tudo o que Haym tinha escrito, no final dos anos 1 850, por ocasião da sua conde­ nação sem apelação da filosofia hegeliana e, sobretudo, da categoria de eticidade: Não eram as mais nobres e as mais justas concepções políticas as que cres­ ceram no terreno da Revolução Francesa. Elas estão em contradição com o

424 Haym, 1927, p. 484. 425 Dilthey, 1 9 14-36, p. 7 1 . 426 Treitschke, 1886, p. 6; Treitschke, 1865, pp. 208-9; mais tarde, Treitschke ( l897-98, vol. 1, p. 32) denunciará a "divinização do Estado".

princípio germânico-protestante da liberdade. E estão em contradição com o ideal helênico do belo acordo entre o que é natural e o que é espiritual. 427 Ao ciclo revolucionário francês, e à sua pretensão de edificar uma comu­ nidade política capaz de realizar a felicidade terrena para todos, ojovem Nietzsche opõe também, além da grecidade relida em perspectiva trágica, a Alemanha, que entre seus méritos inclui o de ser o país da Reforma, de Lutero e dos corais protestantes. A guerra franco-prussiana coincide com o centésimo aniversário do nas­ cimento de Hegel. A derrota do país admirado por ele é também a ocasião de a Alemanha autêntica expulsar o filósofo. Nietzsche faz referência explícita à data. Depois de ter descrito, numa carta ao amigo Gersdorff, de 7 de novembro de 1 870, o entusiasmo suscitado nele por Burckhardt, acrescenta: "Na lição de hoje ele tratou da filosofia da história de Hegel de um modo certamente digno do jubileu" (B, II, l , p. 1 5 5-6) . Não há dúvida sobre o fato de que o estadismo censurado em Hegel seja estranho à germanicidade. Mas é apenas à França e à tradição revolucionária francesa que ele se refere? Vimos a relação entre "apoteose do Estado", oti­ mismo e judaísmo instituído por Schopenhauer, que, nas suas conversas priva­ das acentua a esse respeito: "Que os judeus sejam malditos ! Eles são ainda p i o re s que os hege l ianos ! "428 Por outro lado, quando nos Pare rga e Paralipomena junta no seu desprezo "sinagogas e salas da faculdade de filo­ sofia'',429 é claro que Schopenhauer tem presente também, ou principalmente, a influência há muito tempo exercida na Alemanha pelo filósofo por ele odiado acima de tudo. Além do estadismo e do otimismo ligado a ele, toma-se suspeita também a legitimação que a filosofia hegeliana confere à modernidade . Judaísmo e modernidade são uma só coisa em Wagner, o qual não se cansa de bradar contra os ') udeus liberal-modemos"430 e contra a "vitória do moderno mundo judaico".431 Para citar outro autor acompanhado com atenção pelo Nietzsche desses anos, Lagarde afirma que foi o povo judeu que, mais do que qualquer outro, identificou-se com a "cultura modema".432 A filosofia hegeliana parece remeter ao judaísmo também por outra razão: ao sancionar a legitimidade do ·

427 Haym, 1 974, p. 262; para o quadro geral aqui delineado, cf Losurdo, 1997 a, cap. XIII , 1 . 428 Schopenhauer, 1971, p. 33 1. 429 Schopenhauer, 1976-82 c, vol. V, p. 443. 430 Wagner, 1910 m, p. 60. 431 Wagner, 1910 m, p. 58. 432 Lagarde, 1 937, p. 365.

moderno e da.Jetztzeit, ela exprime, segundo Schopenhauer, "o filisteísmo mais raso" e até a "apoteose do filisteísmo". 433 Por outro lado, já durante a resistên­ cia antinapoleônica, Hegel se tomara o "filisteu" por excelência aos olhos dos autores e movimentos não privados de acentos j udeófobos. 434 Nos ambientes influenciados pela teutomania e animados pelo pathos da germanicidade, a afinidade, pelo menos eletiva, de Hegel com o judaísmo pare­ ce estar fora de discussão. C.om a sua elevação do Estado a "fim em si" e com a sua tese segundo a qual o homem consegue "realidade espiritual [ . . . ] só me­ diante o Estado", Hegel - observa Lagarde - revela-se estranho à "essência alemã" de suscitar as dúvidas mais inquietantes. Olhou com admiração para Napoleão e, por sua vez, p ôde gozar da p roteção dos "apóstatas" da germanicidade; sobretudo, entre os seus discípulos mais famosos inclui um Eduard Gans, o qual - é clara a alusão à sua origem judia - "não podia compreender nada da estirpe (Art) alemã".435 Nietzsche não chega a esse ponto. No entanto, é significativo o fato que, nos seus anos juvenis, ele não se limita a condenar Hegel por causa da sua "visão otimista banal do mundo" (VII, 595), mas o colocará entre as "desgra­ ças da cultura alemã em formação" e o aproxima repetidamente de Heine, neste momento talvez o mais conhecido dos discípulos de origem j udaica do grande filósofo (VII, 504, 595, 598 e 600- 1). Portanto, é sintomática a caracte­ rização do poeta: ele "destroi o senso da cor artística unitária e ama o casaco arlequinesco, com a mais viva variação de cores [ . . . ], domina como um virtuo­ so todos os tipos de estilo, mas apenas para misturá-los confusamente" (VII, 595). Pelo menos no plano cultural, é evidente a natureza apátrida de Heine, incapaz de aderir seriamente a qualquer conteúdo, estranho como é ao povo e ao país em que vive. É neste sentido que Treitschke fala de "talento formal vi rtuosístico", mas "sem alma", e identifica nisso um elemento essencial da "irrupção do judaísmo", felizmente de breve duração, na literatura alemã.436 Por outro lado, vimos Nietzsche sublinhar o ruinoso efeito exercido por Heine e Hegel sobre autores que já por "razões nacionais", enquanto judeus, se reve­ lam estranhos à "língua alemã" (supra, cap. 5 § 2); pode-se dizer que "os hegelianos e a sua descendência estropiada" são " os mais "celerados de todos os corruptores alemães" (DS, 1 2; 1, 228). Talvez uma alusão à origem judaica de Lassalle possa ser lida na observação pela qual, alimentando o descontenta433 Schopenhauer, 1 976-82 e, vol. IV, p. 2 1 3, p. 190 e p. 1 83. 434 Losurdo, 1997 a, cap. VIII, 1. 435 Lagarde, 1937, pp. 376-7. 436 Treitschke, 1 98 1 , vol. III, pp. 7 1 1 e 7 14.

mento das massas populares e estimulando-as a adiantar novas pretensões, o discípulo de Hegel pensa que seja antes o "rico" e não o "pobre" que merece "o seio de Abraão" (VII, 243). Ataca-se diretamente a Strauss, a sombra da suspeita de afinidade (neste caso apenas eletiva) com o j udaísmo atinge tam­ bém o seu mestre, ou ex-mestre. Em todo caso, também para o Nietzsche desses anos, Hegel e a sua escola se tornam estranhos à essência alemã, defi­ nida com fo rtes acentos antij udaicos e judeófobos. Posteriormente é confirmado por um outro aspecto da polêmica ideológica e política daqueles anos. A condenação da "dialética judaica", dos "dialéticos judeus" e de seu intelectualismo corruptor e subversivo desempenha um papel importante no curso da campanha desencadeada contra o judaísmo alemão. 437 A dialética reconduz obviamente a Hegel. Treitschke atribui a Heine um "cortante intelecto judeu que se desenvolveu na escola de Hegel".438 De modo análogo, Dühring censura o poeta por se ter formado na "má filosofia abstrusa" de Hegel, a qual faz pensar um pouco na "sofistica" cara à intelectualidade judaica; por outro lado, quem propaga o socialismo na Alemanha são os "circuncidados à maneira dos judeus", que envergam "hábitos hegelianos consumados".439 Wagner, por sua vez, não apenas condena o "j argão j udaico" (dialektisches .Judenjargon),440 mas também sublinha que, no âmbito da "agitação judaica" desencadeada contra ele, 441 quem lança o ataque mais insidioso é o "conhecedor da dialética hegeliana", o qual se esforça por camuflar "de modo engraçado" a sua "ascendência judia" e, de modo igualmente "engraçado" e "elegante", con­ fere "uma forma dialética", ou seja, um "colorido dialético" aos lugares comuns do seu discurso. 442 O que une estreitamente hegelismo e j udaísmo é o intelectualismo artificioso que distorce a realidade e os sentimentos naturais. Ainda que de modo mediato e por assim dizer sublimado, estes temas ressoam também em Nietzsche: a dialética socrática (e hegeliana) é s inônimo de otimismo Gudaizante), e é particularmente cara ao "homem teórico", cuja "serenidade" e cujo "sereno otimismo" se encontram à vontade num mundo permeado de cultura judaica como é o mundo alexandrino (GT, 1 7 e 1 9; 1, 1 1 5 e 1 24 ). Por causa do seu racionalismo árido, irremediavelmente surdo ao "mito", o "homem teórico" é não só estranho ao "povo", mas constitui a sua "antítese" (WB , 9; 1, 485). Surge de novo a antítese entre germanicidade, de um lado, e 437 In Boehlich, 1965, pp. 105, 1 1 3, 122 e 167. 438 Treitschke, 198 1 , vol. III, p. 71 1. 439 ln Cobet, 1973, pp. 1 19, 8 1 e 65. 440 Wagner, 1 9 1 0 e, p. 255. 44 1 Wagner, 1 9 1 0 e, pp. 249 e 254. 442 Wagner, 1 9 10 e, p. 243. 197

socratismo (judaísmo), do outro. Mas não se deve esquecer que Sócrates é apenas "o protótipo e o arquétipo" do homem teórico (GT, 1 8; 1, 1 1 6) e que essa figura continua a viver em Hegel e na sua escola e em todos aqueles que não compreendem ou se opõem à visão trágica do mundo. Aos olhos do amigo Gersdorff, "homem teórico" é Wilamowitz que, com a sua "dialética ao modo de Lessing" e com o seu ataque a O nascimento da tragédia, passou agora a fazer parte do "judaísmo lit_erário berlinense" (B, II, 4, pp. 9-1 O).

3.

Deslegitimação do moderno e diagnose da "doença histórica "

É desanimador o quadro apresentado pela Prússia do "iluminismo popu­ lar", da instrução geral e da eticidade hegeliana. Contudo, dada a radical estraneidade destes fenômenos ao autêntico espírito alemão, ainda há espaço para a esperança. Apesar de tudo, poderia ser a "natureza" a garantir, antes ou depois, a regeneração trágica e helênica da Alemanha. Com efeito, não faltam as declarações confiantes. As "intenções eternamente iguais da natureza" e a sua "ordem sagrada" estão para retomar os seus direitos e para fazer valer de novo a "lei necessária da natureza", isto é, a "restrição da cultura a poucas pessoas"; ou melhor, para ser mais precisos, a "um número extremamente pequeno de pessoas", como exclusão, portanto, da enorme maioria da humani­ dade nascida, como sabemos, para "servir" e "obedecer" (BA, Introdução; 1, 647 e BA, 3, 1, 697-8). A desforra da natureza e do seu aristocratismo intrínse­ co coincidirá com a vitória de tendências "verdadeiramente alemãs e especial­ mente grávidas de futuro" (BA, Introdução; 1, 647). Porém, bem longe de dissolver-se, a artificiosa e antinatural engenharia soci­ al democrática (com o seu séquito de alucinações como a "dignidade do homem" e a "dignidade do trabalho"), essa visão de mundo a ntielênica e antigermânica consegue cada vez mais impor-se no próprio país saído ou renascido para nova vida na onda da luta contra as ideias de 1789. Não há mais nada que possa garantir a derrota da modernidade, a qual tem do seu lado, senão a natureza, pelo menos dois mil anos de história, que correm o risco de configurar-se como uma segunda natureza.

É evidente o abismo que separ� agora Nietzsche da escola de Burke, daqueles que, em contraposição às perturbações revolucionárias, celebram o curso plácido e tranquilo da tradição. Uma comparação com Taine pode ser úti l. Na esteira do estadista inglês, e em polêmica com o iluminismo, o historia­ dor francês descreve com ternura o Antigo Regime, fundado no "costume

imemorial", que ao mesmo tempo consagra a transmissão hereditária de uma propriedade e o papel do cristianismo na sociedade. "O que legítima esta reli­ gião? Antes de tudo, uma tradição de dezoito séculos, a série imensa dos teste­ munhos passados e concordantes, a fé contínua das sessenta gerações prece­ dentes".443 Mas é exatamente este longo período histórico, segundo o princípio do cristianismo e da modernidade, que Nietzsche quer colocar de novo em discussão. É que, ao visar a.os autores empenhados em celebrar o moderno e demonstrar a irreversibilidade, a segunda Inatual acaba golpeando também o tipo de argumentação caro a Taine (e a Burke): O que podem significar dois milênios (ou, em outros termos, o lapso de tempo de 34 vidas humanas sucessivas, calculadas em 60 anos cada uma), para que seja possível falar do i nício de um tal tempo ainda de ')uventude" e do fim já de "velhice" da humanidade? (HL, 8; 1, 303-4).

O tradicionalismo pode ser bom para os preguiçosos defensores do bom tempo antigo, mas não para aqueles que pretendem pôr de novo em discussão mais de dois milênios de história, reatualizando e repropondo para o futuro um passado que só os conformistas e os servis podem considerar desaparecido de uma vez para sempre. Por outro lado, a liquidação aqui invocada da modernidade não pode certamente ser pensada com um esquema banalmente evolutivo, mesmo que sej a uma evolução regressiva. Ao contrário, ·um corte radical se impõe: produzindo "algo completamente novo" com respeito ao presente do,1 1 Reich, Wagner "indigna todos aqueles que juram sobre a gradualidade de todo desen­ volvimento bem como sobre uma espécie de lei moral" (WB, l ; 1, 43 3). Na real idade, a ação artística do grande musicista, que faz a tragédia grega reviver depois de um interminável silêncio, pode ser um modelo ou um estímulo para a ação política. Bem longe de significar um abandono à evasão e a uma consumição impotente, a reinvocação da encantadora realidade da Grécia antiga chama a atenção para uma possibilidade ainda presente e por isso olha para o futuro: "Aquela obra de arte do futuro não é absolutamente uma esplêndida, mas ilusó­ ria miragem ; o que nós esperamos do futuro já foi um tempo realidade, num passado que está mais de dois mil anos longe de nós" (GMD; 1, 53 2). A derrota do país da revolução e da civilização parece criar uma situação nova e favorável : "Para nós ainda é lícito esperar um despertar da antiguidade helênica como nossos pais nunca sonharam" - escreve de Basileia em 14 de julho de 1 87 1 o muito jovem professor a Richard Meister, presidente da Socie­ dade Filológica de Lípsia. O estudo sério da antiguidade clássica não tem nada 443 Taine, 1 899, vol. II, p. 3 (= Taine, 1986, pp. 373-4).

a ver com a erudição morta: ''Não creias que devamos nos contentar com pastagens consumidas e áridas, como se fôssemos gado magro" (B, II, 1 , p. 2 1 O). Não - acentua um fragmento do mesmo período - "se a filologia não quer ser um mísero oficio ou uma hipocrisia, não é possível continuar a viver com ela no velho ambiente". Uma virada se impõe: "Os filósofos gregos nos servem de modelo" (VII, 1 55). É a Grécia no seu conj unto que pode e deve servir como fonte de inspiração: a sua antiga articulação em "castas" pode funcionar como "serviço maiêutico para o nascimento do gênio" e, portanto, para o cumprimento de uma "tarefa suprema e dificil" (VII, 4 1 3). Mas, para conferir credibilidade a um projeto tão ambicioso como o de Nietzsche, não basta denunciar a natureza "servil" intrínseca dos "apologetas da história" (HL, 8 ; 1, 3 1 0), e o caráter irremediavelmente "filisteu", isto é, vulgar e plebeu, da razão à qual eles se referem. É necessário problematizar ou desconstruir as categorias de história e de razão: o filósofo é bem consciente disso, depois de ter reduzido a "chamada história universal" a uma "soberba metáfora" (supra, cap. 1 § 1 9), visa agora a "religião da potência historiográfica" (HL, 8; 1, 3 09). Impõe-se o ajuste de contas com "a enorme necessidade histó­ rica da cultura moderna" que, em nome da razão e da história, chama para a acomodação com o presente e para a sua legitimação (GT, 23; 1, 1 45-6). É necessário acabar com o "excesso de história" (HL, 8 ; 1, 305), ou melhor com a "cultura histórica" enquanto tal (HL, 8 ; 1, 303), com um "senso histórico [que] toma passivos e retrospectivos os seus servidores'', reduzindo-os a "epígonos" (HL, 8; 1 305 e 307). É preciso curar-se desta devastadora "doença histórica" (HL, 1 O; 1, 3 29), que inocula no homem a persuasão letal segundo a qual seria vão e insensato ir atrás de novas e grandes perspectivas que visam pôr radical­ mente em discussão o presente. Em consequência do fornecimento deste "ópio" (WB, 3; I; 445), j unto com a audácia do pensamento e do projeto, desaparece também o estímulo à ação e, em última análise, à vida. "A cultura histórica também é realmente uma espécie de canície inata, e aqueles que levam em si a sua marca desde a inf'ancia devem chegar à crença instintiva da velhice da humanidade" (HL, 8; 1, 303). Contaminado pela "doença histórica", o homem moderno nasce velho e se vê obrigado desde o início a levar uma existência senil e sem perspectivas; "todo novo cultivo, todo experimento ousado, todo desejo livre [ . . . ], todo vôo no desconhecido" (HL, 8; 1, 304) desapareceram. O fato é que "o senso histórico, quando domina incontrolado e traz todas as suas consequências, erradica o futuro" (HL, 7; 1, 295). O futuro para o qual se olha é a recuperação da antigui­ dade clássica, que em vão os modernos pretendem considerar morta e enterra­ da em nome de dois milênios de história.

4. Da crítica "cristã " dafilosofia da história à critica da filosofia

da história como cristianismo secularizado Frente a esse ajuste de contas tão radical com a modernidade, como pare­ cem medíocres os propósitos e as perspectivas de Strauss, também ele crítico da revolução. No entanto, ele se contenta com bem pouca coisa: "Algum dese­ jo piedoso, anulação do sufrágio universal, a manutenção da pena de morte, a limitação do direito de greve e a introdução de Nathan e de Hermann e Dorotea nas escolas elementares". O fato é que para ele "tudo o que é dado vale [ . . . ] mais ou menos como racional" (VII, 5 96-7). Claramente, reconhecer e contrastar "a irracionalidade da natureza desta época", apagando "a deformidade da atual natureza humana" (SE, 7; 1 , 407), reagir com força ao "costume moderno prejudicial" (GMD; 1, 5 1 8), tomar cons­ ciência do fato de que "todo o nosso mundo moderno não tem absolutamente um aspecto tão sólido e durável que possa profetizar uma existência eterna também para o seu conceito de cultura" (SE, 6; 1, 40 1 ); em suma, não é possí­ vel colocar de novo radicalmente em discussão o bimilenar ciclo histórico inici­ ado com Sócrates sem acertar as contras com a tese hegeliana da racionalidade do real e do processo histórico. A condenação dessa tese é um topos no âmbito da cultura conservadora e reacionária do século XIX. Ela certamente não podia reconhecer-se na afir­ mação de Hegel segundo o qual "a história universal é um p roduto da eterna razão e a razão determinou as suas grandes revoluções". Com base nesta visão - objetava um eminente expoente do conservadorismo como Stahl - "o tempo moderno seria decididamente superior à Idade Média". Ou então - ob­ servava outro crítico -, se estaria obrigado a inclinar-se também diante da "predileção unilateral pelos chamados interesses materiais", própria do "espí­ rito do tempo", e até diante do sansimonismo (e do socialismo).444 Mais do que com a deslegitimação da Idade Média, Nietzsche está obvia­ mente preocupado com a deslegitimação da Grécia para a qual olha como um modelo. A tese da racionalidade do real - afirmam já as conferências Sobre o futuro de nossas escolas está empenhada em transfigurar uma modernidade odiosa e repelente, em "transformar o que é maximamente irracional na ' razão' e em apresentar como branco o que é maximamente negro" (BA, 5; 1, 742). É verdade, o mundo moderno é o resultado de um longo processo histórico, remo­ veu todos os obstáculos que bloqueavam ou diminuíam o seu ascenso ou afirma­ ção, contudo "a grandeza não pode depender do sucesso" (HL, 9; 1, 3 2 1 ); só uma -

444 Cf Losurdo, 1 997 a, cap. VIII, 3.

alma servil pode abandonar-se à "admiração nua do sucesso" e à "idolatria do fato acabado" (HL, 8; 1, 309). Mais tarde, Nietzsche escreverá que "o sucesso sempre foi o maior mentiroso" (NW; O psicólogo toma a palavra, 1 ) . Em termos análogos, partindo ta�bém da desilusão para com as orienta­ ções democráticas e modernas atribuídas ao II Reich, Lagarde lamenta o fato que "o Zeus do Panteão moderno é o sucesso".445 Preocupado, porém, sobre­ tudo com o avanço do proçesso de secularização e com a virada "pagã" da Alemanha, que liquida assim as suas piedosas tradições cristãs, achatando-se numa modernidade vulgar e repugnante, Frantz observa amargamente que os nacional-liberais substituíram a "justificação mediante a fé" pela ')ustificação mediante o sucesso".446 Nietzsche, de qualquer modo, parece dialogar critica­ mente com ele quando escreve que na tendência a elevar "o Estado a objetivo supremo da humanidade" se deve ver "uma recaída não mais no paganismo, mas na idiotice" (SE, 4; 1, 365). Pelo menos por um instante, a segunda Inatual também não hesita em referir-se ao cristianismo na polêmica contra a filosofia hegeliana da história: Os seguidores do cristianismo mais puros e mais verazes sempre colocaram em dúvida e impediram, mais do que promoveram, o seu sucesso mundano, a sua chamada "potência histórica"; eles costumavam de fato colocar-se fora do mundo e não se preocupavam com o "processo da ideia cristã"; por essa razão eles, além do mais, pcnnaneceram em sua maioria desconhecidos pela história e não nomeados. Em tennos cristãos: o diabo é verdadeiramente quem rege o mundo e é o senhor dos acontecimentos e do progresso (HL, 9; 1, 3 2 1 ).

É um trecho que parece fazer eco a Burckhardt: "A doutrina cristã ensina que o príncipe deste mundo é Satã. Não há nada mais anticristão que atribuir à virtude um domínio duradouro, uma recompensa divina material na terra".447 Infelizmente - observa a segunda Inatual - a modernidade, "o nosso tempo", pavoneando-se como "o último dos possíveis", se considera "autorizado a ter sobre todo o passado aquele juízo universal, que a fé cristã de modo algum espe­ rava do homem, mas do 'filho do homem"' (HL, 8; 1, 304). Outras vezes, contra a "idolatria do fato acabado" Nietzsche não hesita em invocar, em vez do cristia­ nismo, a ''moral", a qual exige que se nade "contra a corrente da história", tendo sempre bem presente a distinção entre ser e dever ser (HL, 8 ; 1, 3 1 0-1).

445 Lagardc,

1937, p. 363. 1970, p. 46. 447 Burckhardt, 1978 a, p. 1 9 1 .

446 Frantz,

Como explicar a referência à moral por parte de um autor cuja filosofia se prepara para tomar-se sinônimo de imoralismo? O alvo polêmico é constituído por uma visão política ou de filosofia da história, a qual, esquecendo-se que diante dos raros gênios, bem poucos "têm o direito de viver (Recht zu /eben)'', pretende legitimar filosoficamente a democrática anulação dos "direitos do gê­ nio" que se consuma no mundo moderno. Pelo contrário, segundo o j ovem Nietzsche, "que muitos vivam e que poucos [gênios] não vivam mais, não é senão uma brutal verdade, ou seja, uma irremediável estupidez, um desajeitado "é exatamente assim ("es ist einma/ so"), ao contrário do imperativo moral "não deveria ser assim" ("es sol/te nicht so sein"). Sim, contrário à "moral!" (HL, 8 ; I, 3 1 0- 1 ). É clara a continuidade do tema que evoca o cristianismo e a moral, um e outra invocados em polêmica contra uma filosofia da história que desejaria consagrar o mundo nascido da revolução. Mas eis que de repente topamos com uma tese totalmente diversa, tese pela qual a legitimação do moderno e a afim1ação da sua irrevogabilidade seriam em última análise "uma teodiceia cristã camuflada" (WB, 3; I, 445). Exatamente ao se referir à teodiceia, Ranke criticara a ideia de progresso: daria prova de "injustiça" um Deus que favore­ cesse uma geração em prejuízo de outra, que progrediu menos e é menos afor­ tunada. Na realidade, ·'cada época está em relação imediata com Deus, e o seu valor não reside naquilo que brota dela, mas na sua própria existência, na sua peculiaridade";448 de geração em geração, o homem é chamado a enfrentar os mesmíssimos problemas existenciais, a viver uma existência marcada pela finitude, pela dor e pela morte. Nietzsche tem expressões de estima nas com­ parações do grande historiador (infra, cap. 28 § 2), mas, dando uma virada com respeito a ele, começa criticando a filosofia da história que legitima a modernidade e a revolução não mais em nome do cristianismo, mas, ao contrá­ rio, à medida que é incapaz de l ibertar-se da tradição religiosa anterior. Estarí­ amos diante de uma versão superficialmente secularizada da "concepção cris­ tão-teológica, herdada da Idade Média", que vê no advento do cristianismo a pl enitude dos tempos e por isso considera fundamentalmente concluído o pro­ cesso histórico. ''Neste sentido, vivemos ainda na Idade Média, a história ainda é sempre uma teologia camuflada" (HL, 8 ; I, 304-5). Assistimos a um novo e fascinante capítulo da luta ideológica que se de­ senvolve sobretudo a partir de 1 789 e que conhece o seu centro na Alemanha. Polemizando contra os teóricos da reação e voltando contra eles os argumen­ tos e os temas teológicos aos quais eles recorriam, Hegel os acusa de "ateísmo 4��

Ranke, 1 980, p. 7.

do mundo ético": a denúncia em bloco do mundo moderno acaba negando a presença do divino nos acontecimentos humanos, pelo que o mundo ético-polí­ tico aparece como "gottverlassen", 449 irremediavelmente abandonado por Deus e por isso incapaz de encarnar autênticos valores espirituais. Pelo contrário, a segunda Inatual volta contra os seguidores da revolução a ideologia por eles professada: a despeito de suas poses rebeldes ou iconoclastas, acabam afeta­ dos pela mesma visão teológica do mundo que pretendem contestar e liquidar.

S.

Filosofia da história, modernidade e massificação

No entanto, apesar da reviravolta verificada no tipo de argumentação à qual Nietzsche recorre, fica claro o alvo que ele quer atingir. Com e na modernidade acabou triunfando "aquele gênero de história que considera os grandes instintos de massa como aquilo que na história é importante e principal, e diz respeito a todos os grandes homens apenas como a expressão mais clara, por assim dizer, como as bolhas que se tomam visíveis sobre as ondas" (HL, 9; 1, 320). Agora se tomou habitual "escrever a história do ponto de vista das massas e buscar nela as leis que possam ser deduzidas das necessidades dessa massa; ou seja, as leis do movimento das camadas inferiores de barro e de argila da sociedade". Neste modo a filosofia da história altera a ordem natural, a aristocracia natural: Só por três motivos me parece que as massas merecem um olhar: antes de ludo, como cópias evanescentes dos grandes homens, feitas sobre papel ruim e com chapas gastas, depois como obstáculo contra os grandes e, enfim, como instrumentos dos grandes; quanto ao resto, é assunto do diabo e da estatística (HL, 9; 1, 3 1 9-20).

Certamente, esta verdade soa inatual . Mas dobrar-se à "potência da his­ tória" significa inclinar-se "de maneira chinesamente mecânica [ . . . ] a qualquer potência, seja ela um governo ou uma opinião pública ou uma maioria numéri­ ca" (HL, 8 ; 1, 309). É particularmente significativo o advérbio usado, chinesenha.ft: nos anos seguintes, os chineses se tomaram aos olhos do filóso­ fo o símbolo do operário humilde, serviçal e servil, do novo tipo de escravo e dos quais os senhores precisam. É claro: reconhecer o fato acabado da civiliza­ ção e da modernidade é uma atitude própria dos servos, não dos senhores . A tese da racionalidade do real e do processo histórico representa o mesmo culto da maioria numérica que se exprime na democracia e na crescente presença e 449 Hegel, 1 969-79, vol.

VII, p. 16.

pressão das massas e dos servos. Estes últimos, que já fazem sentir o seu peso numérico no plano mais propriamente político, acabam obtendo um precioso e inaceitável reconhecimento também no plano da filosofia da história graças a uma visão que exclui antecipadamente qualquer pretensão de recuar para aquém dos resultados do mundo moderno. É necessário superar a "doença histórica" a fim de que os "grandes indi­ víduos" que constituem "o vértice da pirâmide intelectual", as "naturezas mais remotas'', possam evitar o "tropel da história universal" (das Drãngen und Stoj3en der Weltgeschichte), ou atravessá-la "como um fantasma que passa através de um denso ajuntamento" (BA, 4; 1, 722-3). A filosofia da história e a própria ideia de história universal são sinônimo de massificação pelo fato de dissolverem o indivíduo genial numa massa amorfa, numa humanidade indistin­ ta, a qual se toma o sujeito do processo ou do progresso histórico. Nietzsche não se cansa de proclamar a sua inatualidade; no entanto, debate temas que estão bem presentes na cultura do tempo. Tome-se Ranke. O concei­ to de progresso não pode "ser aplicável às produções do gênio na arte, na poesia, na ciência, no Estado";450 sim, "na existência humana há muita coisa, e talvez seja isso o mais significativo, a que não é absolutamente possível aplicar o concei­ to de progresso" .451 Também nesse caso volta a ecoar o protesto contra a massificação implícita na ideia de progresso e na filosofia da história: O gênio, de fato, não depende do conceito de humanidade, ele tem uma relação imediata com o divino do qual deriva a sua origem. Uma manifesta­ ção individual seria desacreditada quando se quisesse prendê-la à sua épo­ ca; baseia-se sobre ela, mas não se resolve nela. 452

A ideia de progresso é o menosprezo da força criativa do gênio, que é agora ele mesmo submetido ao anonimato do processo histórico, um processo que, pela sua objetividade e irreversibilidade, não consente em subtrair-se à individualidade excepcional . O que há de gênio quando, baseado no progresso que ocorre de uma geração a outra, o mais vulgar dos homens, o anão, subindo nos ombros do gigante, é capaz de olhar ainda além do que o próprio gigante? Exprimindo preocupações semelhantes às de Ranke, também Lagarde censura a filosofia hegeliana do espírito e da história por desconhecer o valor da grande personalidade e, portanto, por estar toda atravessada por uma "vontade de massa" (Massenwillen).453 Mas, independentemente deste ou daquele autor, 450 Ranke, 1980, pp. 10-1. 45 1 Ranke, 1986, p. 232. 452 Ranke, 1986, p. 232. 453 Lagarde, 1 937, p. 376.

é a situação que se criou a seguir à experiência histórica da irresistibilidade, verdadeira ou aparente, da maré revolucionária que estimula, nos seus opositores, a sensação de dever travar uma luta contra a corrente. Numa enciclopédia, cuja publicação ocorre nos anos da formação de Nietzsche, Gentz parece em­ penhado em lutar "contra o vento e as correntes" e contra "o visionário entusi­ asmo revolucionário da época".454 Uma tal visão da vida e da história é percebida como momento essencial daquela massificação e vulgarização do mundo contemporâneo denunciado por tantas vozes autorizadas e aflitas. Pense-se, por exemplo, em Schopenhauer que, nos mesmos anos de Ranke, faz também uma crítica radical da ideia de progresso, ao qual contrapõe a imodificável realidade aristocrática da natureza, a qual, enquanto por um lado produz em ritmo frenético e superabundante como "produtos em série" os homens comuns, só com grande parcimônia, e em cir­ cunstâncias excepcionais, faz desabrochar a individualidade autêntica e genial (infi·a, cap . 2 1 § 3). Portanto, o erro da ideia de progresso, e de todo historicismo, é tomar comum e nivelar realidades tão diversas e contrastantes. Podemos agora compreender melhor Nietzsche que, desde o início, opõe os "direitos do gênio" e a "metafisica do gênio" à consciência histórica, assim como se tinha configurado na cultura europeia.

6. Filosofia da história, elitismo e volta do antropocentrismo Vimos que os direitos do homem proclamados pela Revolução Francesa são liquidados a parti r também da crítica do antropocentrismo que eles impli­ cam . Mas agora a celeb ração dos direitos do gênio desemboca num antropocentrismo bem mais enfático do que o criticado. Depois de ter descrito "a dor sem sentido" da vida animal, cujo espetáculo "suscita rebelião no mais profundo da alma", a terceira Inatual prossegue afirmando que "toda a nature­ za aspira ao homem": desse modo ela pode "redimi r-se da maldição da vida animal" e adquirir "um espelho sobre cujo fundo a vida não aparece mais insen­ sata, mas na sua significatividade metafisica". Mas de qual homem se trata? Noutras palavras : "Onde termina o animal, onde começa o homem? É só o homem que importa à natureza?" A maior parte da humanidade, na maior parte da sua existência, não supera propriamente "o horizonte do animal", "quer ape­ nas com maior consciência aquilo que o animal busca por impulso cego": neste estágio, "tudo é continuação da animalidade"; e, portanto, neste estágio, a natu454 Haym, 1854, p. 330, coluna a.

reza não encontra agora a sua justificação metafisica (SE, 5 ; 1, 377-78). "Os homens para os quais toda a natureza abre para si uma passagem para a sua redenção [ . . . ] são aqueles homens verdadeiros, aqueles que não são mais ani­ mais, os filósofos, artistas e santos; ao aparecerem e pelo seu aparecimento a natureza, que nunca dá saltos, dá o seu único pulo de alegria, porque pela pri­ meira vez sente que chegou à sua finalidade" (SE, 5 ; 1, 3 80). Os momentos da superação schopenhaueriana da vontade de viver são aqui recuperados como manifestações diversas da figura do gênio, só ela pode conferir sentido e signi­ ficado à vida. Referindo-se a Goethe, Nietzsche não hesita em reabilitar a causajinahs: 'Toda a natureza aspira e urge pela sua redenção por si mesma" para "o final, supremo devir homem" que é o gênio (SE, 5; 1, 3 82). Longe de arranhar esta visão, o encontro com o darwinismo parece reforçá-la mais: Como seria natural aplicar à sociedade e a seus fins um ensinamento que se pode e:\1rair da consideração de uma espécie animal e vegetal qualquer, ou seja, nela o que importa é apenas o exemplar individual superior, o mais insólito, mais potente, mais complicado, mais fecundo: como seria natural tudo isso se fantasias, inculcadas com a educação, quanto à finalidade da sociedade não opusessem uma resistência tenaz! É verdadeiramente fácil compreender que lá onde uma espécie (Art) atinge os seus limites e se trans­ forma numa espécie (Art) superior está o objetivo do seu desenvolvimento e não, portanto, na massa dos exemplares e no seu bem-estar, ou diretamente nos exemplares que, na ordem do tempo, são os últimos, mas exatamente nas existências aparentemente dispersas e casuais que cá e lá, em circunstâncias favoráveis, às vezes se realizam; igualmente fácil de compreender deveria ser também a exigência de que a humanidade, para que possa chegar à consciên­ cia do seu fim, deve procurar ou produzir aquelas condições favoráveis nas quais podem nascer aqueles grandes homens redentores (SE, 6; 1, 3 84).

A visão do mundo (e da filosofia da história) aqui teorizada deveria ser óbvia na ordem das coisas, mas é tenazmente negada, a partir de dois pontos de vista sensivelmente diferentes entre eles . De um lado estão aqueles (a referên­ cia é às correntes democrático-radicais e ao movimento socialista) segundo os quais "o fim último deveria ser encontrado na felicidade de todos ou da maior parte". Outros (são os nacionalistas e os partidos do Reich) pretendem, ao contrário, indicar esse fim "no desenvolvimento de grandes comunidades (grosser Gemeinwesen)" (SE, 6; 1, 3 84). Fique claro que aqui Nietzsche não está absolutamente rejeitando a ideia do sacrifício nem está criticando o holismo implícito em toda visão que exige o

sacrificio dos indivíduos concretos em nome de um fim ou de uma entidade considerados superiores . Pelo contrário, vimos exatamente a terceira Inatual elevar um hino àquela "poderosa comunidade" ( Gemeinsamkeit), em última análise o ordenamento cósmico, que visa produzir o gênio sem p reocupar-se com o fardo de dor que isso envolve (supra, cap. 1 § 1 4) . E também no trecho que se acabou de citar se reforça que se trata para sempre de escolher entre sacrifício e sacrifício. Do ponto de vista da filosofia da história que se coloca ao lado da modernidade, "parece insensato que o homem exista por um outro homem", mas sim que "por todos os outros ou pelo menos pelo maior número possível". Mas - objeta por sua vez Nietzsche, dirigindo-se diretamente ao indivíduo enquanto tal - o problema pode ser formulado assim: "De que modo a tua vida, a vida do indivíduo recebe o valor mais alto, o significado mais profun­ do? E de que modo ela é menos desperdiçada?" A resposta não se faz esperar: "Somente se viveres em proveito dos exemplares mais raros e preciosos, e não em proveito da maior parte, isto é, dos exemplares que, tomados individualmen­ te, são os mais sem valor" (SE, 6, 1, 3 84-5). É somente elevando-se a esta consciência que o jovem Nietzsche "se colo­ ca no círculo da cultura" e "toma partido por ela". Ele deve nutrir "a íntima convicção de encontrar, quase em toda parte, a natureza na sua miséria, enquan­ to ela se abre uma passagem em direção ao homem" (SE, 6, 1, 3 85). Mediante a "ação'', aquele que agora é um militante do partido da cultura e da civilização deve empenhar-se em fazer com que "o finalismo inconsciente da natureza'', o seu "impulso obscuro" se tome "vontade consciente" para conseguir aquele "altíssimo fim" que é "a geração do gênio" (SE, 6; 1, 3 86-7). Mas trabalhar para o gênio significa empenhar-se em lutar contra a sociedade massificada do mundo moderno. O grande mérito de Schopenhauer é descrito assim: Ele sabia que na terra se pode encontrar e alcançar algo bem mais alto e puro do que uma vida atual semelhante e que fazem uma grave afronta à existência todos aqueles que a conhecem e a julgam apenas segundo esta figura odiosa. Não, o próprio gênio é agora chamado para ver se ele, o fruto supremo da vida, pode acaso justificar a vida em geral; o homem magnífico e criador deve responder à pergunta: "Aprovas no mais profundo do coração esta existência? Ela te basta? Queres tu ser o seu defensor e o seu redentor? É preciso apenas um único e sincero 'sim! ' da tua boca, e a vida tão gravemente acusada será absolvida" (SE, 3; 1, 363).

Neste ponto a cosmodiceia, a justificação intr!nseca do cosmos, desembo­ ca na celebração do gênio: só a produção dessas individualidades excepcionais permite repelir as acusações à vida, que no curso da evolução sucessiva serão consideradas como expressão de niilismo.

Já chamada a legitimar a escravidão e a condenar como arbitrárias e intrinsecamente violentas as pretensões de colocá-Ia em discussão, faz-se ago­ ra intervir a dicotomia natural/artificial para afirmar o caráter natural da visão que afirma o direito supremo do gênio. Querer abolir a escravidão ou minar a absoluta preeminência do gênio é um ato de engenharia social arbitrária, à qual se contrapõe uma engenharia social de algum modo natural, que permite que o indivíduo privilegiado se comporte, em relação com as massas, como um escul­ tor diante de um material b ruto e sem valor em si: É com os seus gênios que o povo recebe o verdadeiro direito à existência, a sua justificação; certamente não é a massa que produz o indivíduo, antes ela opõe resistência a ele. A massa é um bloco de pedra dificil de desbastar: é necessário um trabalho enorme da parte dos indivíduos para tirar dele algo que tenha aparência humana (VII, 244 ).

Em relação à produção do gênio, a humanidade comum e a sua história ("o imenso movimento dos homens no grande deserto da vida, a sua fundação de cidades e Estados, as guerras que travou", etc.), tudo aquilo a que a filosofia hegeliana da história tinha procurado conferir sentido, é agora sem sentido in­ trínseco enquanto simples prolongamento do mundo animal (SE, 5, 1, 378). As­ sistimos, portanto, não à liquidação da filosofia da história enquanto tal, mas à substituição de uma filosofia da história tendencialmente democrática por uma filosofia da história intensamente aristocrática: "A humanidade deve atuar cons­ tantemente para gerar grandes homens individuais: esta e nenhuma outra é a sua tarefa" (S E, 6; 1, 3 83-4). Por um lado, a filosofia da história hegeliana, centrada na ideia de progresso, e agora tornada em instrumento de legitimação da democracia e do socialismo, é liquidada como "teologia camuflada"; por outro lado, com sua linguagem cheia de ecos teológicos e teleológicos Nietzsche não hesita em indicar na criação de algumas individualidades excepcionais a "redenção" da natureza e a causa final do processo natural e histórico.

7. Culto da tradição e pathos da ação contrarrevolucionária Sublinhar, em contraposição à hybris da razão, o papel do instinto e da sabedoria inconsciente, que se transmite silenciosamente de geração em gera­ ção, significa também celebrar, em contraposição à ruptura revolucionária, a tradição e uma atitude tendencialmente de reverência e de pielas frente aos institutos e relações consagrados pelos séculos. É a atitude invocada por Burke. Quando Novalis, grande admirador do Whig inglês, descreve em 1 799 o confli-

to que se realizava em nível europeu entre revolução e contrarrevolução, ca­ racteriza a primeira, entre outras coisas, pelo "gosto por aquilo que é novo e juvenil'', pelo "contato desenvolto entre todos os cidadãos" e o "orgulho dos p ri nc í p i o s u n i versalmente válidos para os homens (menschliche Allgemeingültigkeit), e caracteriza a segunda pela "veneração pelo passado, o apego à constituição histórica (geschichtliche Verfassung), o amor pelos monumentos dos antigo� e da antiga gloriosa nação" (Staatsfamilie).455 Mais tarde, Savigni aprecia em Walter Scott o "olhar amoroso" voltado à história e também aos "objetos históricos'',456 e também ele contrapõe os conceitos "pu­ ramente racionais" e com pretensão de "universalidade" ao "senso histórico" e à "história", chamados, um e outra, para a tarefa "sagrada" de opor-se à onda ruinosa, primeiro, do iluminismo e, depois, da Revolução Francesa. 457 Também a respeito disso não faltam em Nietzsche temas que, de modo direto ou mediato, lembram Burke. A magniloquência do estadista inglês é se­ guida de tons que, de modo mais pacato, mas tanto mais sedutor, cantam "o bem-estar da árvore pelas suas raízes, a felicidade de saber-se não totalmente arbitrário e fortuito, mas de crescer de um passado como herdeiros, flores e frutos e de ser de tal modo desculpados, ou melhor, justificados na própria existência" (HL, 3 ; 1, 266). Compreende-se agora a denúncia da leviandade e da violência jornalística com que é tratada a língua: é preciso não perder de vista que ela "é uma heran­ ça recebida dos antepassados e deve ser deixada aos descendentes, pela qual é preciso ter respeito como por algo sagrado e inestimável e inviolável" (DS, 1 2 ; 1, 235). Com atitude análoga é preciso aproximar-se das "nossas escolas"; elas "nos ligam com o passado do povo e constituem nos seus traços essenciais um legado tão sagrado e digno de honra" que resultam imediatamente inadmis­ síveis e infelizes as "numerosas mudanças, introduzidas pelo arbítrio da época presente" (BA, Introdução; 1, 645). O "mito pátrio", que O nascimento da tragédia contrapõe a uma cultura sem uma "sede estável e sagrada" (GT, 23; 1, 1 46), pode servir também para neutralizar o conflito social: Como poderia a lústória servir melhor à vida do que vinculando à sua pátria e ao seu pátrio costume também as estirpes e as populações menos favorecidas, tomando-as estáveis e evitando que vaguem por países estrangeiros em bus­ ca de condições melhores, e de lutar e competir (wetteifernd zu kampfen) por elas? Às vezes o que, por assim dizer, prende o indivíduo a esses companhei-

455 Novalis, 1978, p. 748.

456 ln Stoll, 1929, p. 279 (carta a Jacob Grimm de 24 dezembro 182 1). 457 Savigny, 1967, pp. 1 1 5-7.

ros e a esse ambiente, a �sse cansativo hábito e a essas vertentes sem vegeta­ ç."ío, parece ser a teimosia e a irracionalidade - mas é a irracionalidade mais salutar e benéfica para a coletividade (HL, 3, 1, 266). Nesse sentido, os temas caros a Burke são retomados com o olhar volta­ do, mais ainda que para a Revolução Francesa, para a "questão social" e para o movimento socialista. No entanto, por outro lado, a tradição de pensamento que parte do estadista inglês se revela inadequada e imprestável com respeito à tarefa enorme que Nietzsche agora se impõe. Trata-se de "libertar o homem moderno da maldição da modernidade" (BA, 4; 1, 7 1 3). Séculos, milênios de história devem ser rediscutidos. Não é assim que pode ser fundado o ativismo contrarrevolucionário, o qual é absolutamente necessário. A história cara a Burke e à escola histórica alemã é capaz exatamente só de conservar, não de gerar vida; por isso subestima sempre o que vem a ser, enquanto não tem para ele algum instinto divino [ .. ]. Portanto, ela [a história antiga] é obstáculo para a forte resolução (Entschluss) .

para o novo, paralisando quem age, o qual sempre, como agente, violará e deve violar toda piedade {HL, 3, 1, 268). Nesse ponto, o culto da tradição se revela não só inadequado, mas direta­ mente contraproducente e paralisante: "O fato de que algo se tenha tomado velho gera agora a pretensão de que deve ser imortal"; e isso poderia agarrar­ se a "um antigo costume dos pais, uma fé religiosa, um privilégio político here­ ditário" (HL, 3 , 1, 268-9). Os exemplos não são nem imaginários nem escolhi­ dos ao acaso. Depois da vitória conseguida na guerra contra a Áustria, no momento da constituição da Liga da Alemanha do Norte, a fim de conferir continuidade e união espacial aos seus territórios, a Prússia tinha procedido à anexação de alguns Estados alemães e à eliminação das pequenas dinastias locais : disso resultara uma clara violação do princípio de legitimidade e de "di­ reitos consagrados por tradições e ideias".458 Aderir à visão cara a Burke e à escola histórica teria significado jogar uma pesada sombra de suspeita sobre o II Reich, com o qual Nietzsche ainda se identifica. Por outro lado, ele saudara com entusiasmo, como sabemos, a vitória e a política prussiana de 1 8 66. E no que respeita à fé religiosa, já O nascimento da tragédia nutre nostalgia pela situação anterior ao advento do cristianismo. Enquanto deslegitima uma Alemanha que parece encarnar as esperanças do renascimento da grecidade trágica, a visão da história cara a Burke e à 458 Schieder, 1979, pp. 176-7. lli

escola histórica alemã corre o risco de consagrar e fossilizar uma situação intolerável aos olhos de Nietzsche: O sentido antiquário de um homem, de uma cidade ou de todo um povo sempre tem um campo de visão muito limitado [ ... ]. Aqui há sempre um perigo muito perto: no fim, tudo o que de antigo e passado entra em geral ainda no hori:z:onte é sempre aceito como igualmente venerável, enquanto tudo o que não se dirige coni veneração a esta antiguidade, ou seja, o novo e o que vem a ser, é rejeitado e contrariado.

Desse modo, a história antiquária não consegue o fim ao qual declara aspirar: "Quando o sentido histórico não conserva mais a vida, mas a mumifica, então árvore morre, de maneira não natural, secando pouco a pouco até à raiz - e acaba geralmente morrendo pela raiz" (HL, 3, 1, 267-8). Em todo caso, a visão antiquária da história se revela desajeitada e pesa­ da, claramente inferior em relação à visão da história cara aos revolucionários franceses, os quais - subl inhará mais tarde A gaia ciência - "se apoderaram da antiguidade romana" (FW, 83), e com essa operação, mesmo bastante dis­ cutível no plano do rigor fi lológico e historiográfico, trouxeram-lhe alimento e vigor. Inspirando-se num passado transfigurado e reinterpretado em função da luta contra o Antigo regime e venerado como monumento e aviso imorredouro para as gerações seguintes, os jacobinos conseguiram estimular no presente uma ação vigorosa, ainda que louca e criminosa: A história monumental engana com as analogias: com semelhanças seduto­ ras ela excita o corajoso à temeridade, o entusiasta ao fanatismo; e se depois se imagina essa história nas mãos e nas mentes dos egoístas dotados e dos patifes fanáticos, eis que reinos são destruídos, príncipes assassinados, !:,'llerras e revoluções desencadeadas (HL, 2; 1, 262-3).

Há, portanto, necessidade de uma visão da história que estimule à ação aqueles que pretendem rediscutir o longo e incessante ciclo revolucionário. Se a história antiga está em condições de promover só um tradicionalismo fraco, uma ação que queira opor-se ao uso revolucionário da história monumental não pode passar sem a contribuição da história crítica. Só ela pode levar a tomar consciência do fato que "a existência de algo, de um privilégio, de uma casta, de uma dinastia, por exemplo," se tomou injusta e merece, portanto, o fim: "então o seu passado é considerado criticamente, então se atacam com faca (Messer) as suas raízes, então se pisa cruelmente toda a piedade" (HL, 3 ; 1, 270). A essa altura fica evidente a diferença com relação ao tradicionalismo. Segundo Savigny, o sentido histórico tem uma "tarefa [ . . . ] sagrada", que é a de

prevenir severamente contra a tentação de manipular a realidade política exis­ tente com um "bisturi cirúrgico" (wundéirztliches Messer), que correria inevi­ tavelmente o risco de ferir também a "carne sadia".459 Significativamente, a imagem da "faca" ou "bisturi" volta no jovem Marx, o qual, porém, se serve dela para afirmar que a "crítica" não deve l imitar-se a ser um anatomisches Messer, ou seja, uma faca que serve para dissecar ana­ liticamente o real, mas deve constitui r ao mesmo tempo uma "arma" para mo­ dificar a realidade.460 O imobilismo tradicionalista é contestado por duas teori­ as da ação sens ivelmente diferentes, como fica logo evidente pelos esclareci­ mentos que Nietzsche se apressa a fazer. Cortar as raízes de instituições que agora se tomaram e são consideradas injustas significa pôr em discussão "o que foi adquirido e é inato há muito tempo". Todavia, não se pode fugir ao desafio. "Cá e lá a vitória sorri para ele", e então o novo "se toma um novo hábito, um novo instinto, uma segunda natureza", ou até uma "primeira nature­ za" (HL, 3; 1, 270). Para introduzir um novo "hábito" e uma nova "natureza" é de qualquer modo necessária uma ação enérgica. A luta contra a revolução não pode ser travada inclinando-se com reve­ rência diante de institutos consagrados pela tradição. Como os inimigos que pretende combater, também Nietzsche percebe agora a urgência da ação: "Pre­ cisamos da história, mas precisamos dela exatamente como o vagabundo vici­ ado nos jardins do saber" (HL, Prefácio; 1, 245). Além do saber histórico, a crítica ataca a figura do cientista puro enquanto tal : no seu mundo acolchoado, a "dor" é "algo inoportuno e incompreensível, e, portanto, no máximo, é, ainda uma vez, um problema". Sim, "a ciência vê em toda parte apenas problemas do conhecimento", mas contra esta atitude meramente teórica e contemplativa é p reciso acentuar que se deve desp rezar todo "saber frio, puro, sem consequências" (SE, 6; 1, 393-4), incapaz de transformar-se em ação.

8. O "homem de Schopenhauer " como antagonista do "homem de Rousseau " e da revolução Agora se compreendem as fortes reservas frente ao "homem de Goethe". Se este tem o mérito de não se deixar arrastar pela onda revolucionária, apre­ senta todavia um grave limite: "não é o homem ativo'', é um "contemplador insaciável"; pode facilmente se tomar um "filisteu". Estamos na presença de 459 Savigny, 1 967, pp. 1 1 5-7. 460 Marx-Engels, 1955, vol. 1, p. 380. 2 13

uma figura que tem bem pouca utilidade na luta contra a revolução: na melhor das hipóteses pode agir como "o corretivo e o calmante próprio daqueles peri­ gosos estímulos, dos quais está em poder o homem de Rousseau", este "catilinário" e esta "potência tão ameaçadora" (SE, 4; 1, 369-3 7 1 ), que inspira e promove as convulsões que devastam a Europa. Mas com "o homem de Goethe" não se pode contar para uma transformação da sociedade, para o cobiçado renascimento � grecidade trágica. Bem diferente é o "homem de Schopenhauer": também animado pela paixão do conhecimento, ele certamente não é um cultor da "ciência pura" (SE, 3; 352 e 3 60) . Está "bem longe da frieza e da desdenhosa neutralidade do chamado homem de ciência"; nunca perde de vista a relação entre saber e vida real ; está "sempre pronto a sacrificar a si mesmo como a primeira vítima da verdade conhecida"; não só dá mostras de "coragem'', mas toma também so­ bre si o peso e a responsabilidade de uma "vida heroica" (SE, 4; 1, 372-3). À primeira vista pode parecer estranho que, ao evocar a figura do homem da ação contrarrevolucionária, a terceira Inatual se inspire no teórico da no/untas como fim supremo a perseguir. Procuremos, porém, reconstruir o raciocínio de Nietzsche. A seus olhos, Schopenhauer, tendo passado pela escola de Kant e pela sua distinção entre essência e aparência, tem em primeiro lugar o mérito de ter problematizado a existência tornando mais dificil a satisfação do filisteu e a ime­ diata identificação com o presente. Dando prova de um "estimulante desprezo pelo seu tempo" (VII, 807) e sem deixar-se de modo algum seduzir pela "atuali­ dade", ele "até a primeira juventude recalcitrou diante daquela mãe falsa, vã e indigna, a sua época, e, quase expulsando-a de si, purificou e restabeleceu o seu ser e reencontrou a si mesmo na saúde e na pureza próprias dele" (SE, 3 ; 1, 3 62). Mas a grandeza, e sobretudo a robustez, de Schopenhauer surge com particular clareza do confronto com Kleist, envolvido também ele por aquela "nuvem de saudade", que é o sinal da seriedade e profundidade das almas nobres (SE, 3 ; 1, 354), "daqueles que não se sentem cidadãos do próprio tem­ po" (SE, 1 ; 1, 339) e rejeitam a adaptação a uma realidade medíocre ou repug­ nante . No entanto, no poeta, a tese kantiana da incognoscibilidade do em-si provoca "aquele desencorajamento e aquele desespero de toda a verdade", que depois o conduz ao suicídio (SE, 3 ; 1, 355). Schopenhauer, ao contrário, se aproveita da lição antifilisteia de Kant sem sucumbir ao risco mortal implícito na sua filosofia (SE, 3; 1, 354). Ele não permanece prisioneiro de uma "contem­ plação hipocondríaca e aborrecida" da real idade (SE, 3 ; 1, 354), e graças a isso se toma "o guia que conduz para fora da caverna do abatimento cético e da renúncia crítica, para o alto, em direção aos cumes da contemplação trágica" (SE, 3; 1, 356).

Tanto mais forte é o impulso à ação que brota desta filosofia pelo fato de que ''uma vida feliz é impossível" e que "o máximo que o homem pode alcançar é uma vida heroica", posta ao serviço de um grande fim (SE, 4; 1, 3 73). Aqui emerge uma figura de homem que, tendo se livrado de toda vã "esperança à felicidade terrena", rejeita desdenhosamente "todo amolecimento da existên­ cia" (VII, 794), antes não hesita em andar até o fundo: "com a sua coragem ele aniquila a sua felicidade terrena" (SE, 4; 1, 372-3). Este homem é chamado por Schopenhauer a "matar a própria vontade pessoal" (Eigenwillen) (SE, 4; 1, 3 7 1 ). Mas isto não significa absolutamente um apelo à inércia. Ao contrário, a renúncia ao apego obstinado e narcisista ao próprio eu permite que se dedique plenamente e com abandono ao grande fim a perseguir. Em conclusão, sem se deixar assustar ou enganar por causa da no/untas e da rejeição da política, a terceira Inatual lê Schopenhauer como o filósofo que, com a sua carga de dessacralização da modernidade, pode bem estimular urna resposta ativa e enérgi­ ca, politicamente eficaz, ao desafio da revolução. A sua coragem se manifesta já a nível do conhecimento. É "o gênio da veracidade heroica" (VII, 803). Desdenhando as meias medidas, e dando pro­ va de "virilidade inflexível e rude" (SE, 7; 1, 408), ele não hesita em pôr em discussão a organização existente no seu conjunto. Nesse sentido, "aquele que quisesse viver schopenhauerianamente assemelhar-se-ia provavelmente mais a um Mefistófeles do que a um Fausto", pelo menos "para os olhos fracos dos modernos, os quais na negação divisam sempre a marca da maldade" (SE, 4; 1, 37 1 -2). Empenhado duramente na luta contra uma subversão de longa data, no cumprimento uma tarefa imensa e ingrata, o homem de Schopenhauer deve ser ininúgo também dos homens que ama, das instituições de cujo seio saiu; não lhe é lícito poupar nem homens nem coisas, embora sofra com eles quando os fere; será menosprezado e por longo tempo será considerado como aliado de forças que ele detesta; segundo uma medida humana da sua visão, deverá ser injusto, apesar da aspiração àjustiça (SE, 4; 1, 372-3).

Nietzsche preocupa-se em prevenir contra as comparações superficiais. Alguns anos antes, Rosenkranz tinha criticado a "concepção mefistofélica" dos intérp retes em perspectiva revolucionária de Hegel, segundo os quais "tudo o que nasce é digno de morrer (alles was entsteht, werth ist zu Grunde zu gehen) e por isso seria melhor não nascer".461 Mais tarde Engels verá o resul­ tado último da dialética exatamente na afirmação segundo a qual "tudo o que existe é digno de morrer" (Alies was besteht, ist wert, daf3 es zugrunde 46 1 Roscnkranz, 1 862, vol. II, pp. 3 1 1 -2. 215

geht).462 Para o Schopenhauer lido por Nietzsche, ao contrário, o âmbito da negação parece ser mais limitado: "toda existência que pode ser negada, mere­ ce também ser negada" (SE, 4; 1, 372). Mas em outro lugar se atribui a Schopenhauer o mérito de ter ousado tomar consciência do fato de que no mundo moderno "nada mais merece ser poupado" e que "tudo está partido e podre" (VII, 803 -4). Portanto, o elemento.realmente discriminante é outro. É verdade, também no filósofo aqui indicado como modelo há "uma aspiração dissolvente, aniquiladora". Todavia, não obstante as analogias superficiais, ele não tem nada a ver com a subversão; é "o destruidor libertador no seu tempo" (VII, 803-4). Nietzsche começa a esclarecer que o homem, de cuja necessidade avisa, tam­ bém não deve retroceder diante das "decisões terríveis" de que o homem de Rousseau é capaz (infra, cap . 7 § 8). "É necessário que pelo menos uma vez sejamos verdadeiramente maus" (SE, 4; 1, 3 7 1 ) . A clara tomada de distância da terceira Inatual em relação ao "homem de Goethe" leva a pensar na análise crítica que a Fenomenologia do espírito desenvolve da "alma bela": Falta-lhe a força da exteriorização, a força de tomar-se coisa e de suportar o ser. A consciência vive na angústia de manchar com a ação e o realizar-se, o esplen­ dor da sua interioridade; e, para conservar a pureza do seu coração, evita o contato com a realidade [... ]. Na pureza ela se conserva boa porque não age.463

De modo análogo, aos olhos de Nietzsche o homem de Goethe tem este grave defeito: "odeia qualquer violência, qualquer salto, o que quer dizer: qual­ quer ação" (SE, 4; 1, 370). Ao contrário, bem longe de estar narcisisticamente apegado à própria pureza moral, "o homem heroico despreza o fato de estar bem ou mal, as suas virtudes e os seus vícios e, em geral, medir as coisas a partir de si mesmo" (SE, 4; 1, 375); desse modo, ele se choca com os filisteus para os quais "a conservação da sua mediocridade e balelas é um dever huma­ nitário" (SE, 4; 1, 3 7 1). Se, na crítica da "alma bela'', Hegel visa à legitimação da Revolução Francesa, na tomada de distância em relação ao "homem de Goethe" Nietzsche olha para a construção de uma alternativa combativa do "homem de Rousseau" e da revolução.

462 Marx-Engels, 1955, vol. XXI, p. 267. 463 Hegel, 1 969-79, vol. III, pp. 483 e 487.

9. Duas figuras de intelectuais: o "maltrapilho cheio de cuida­

dos " e o "rebelde solitário " Mas onde se pode esperar que o "homem de Schopenhauer" crie raízes? As conferências Sobre o futuro das nossas escolas tinham identificado na juventude do liceu a possível força de choque para a realização do desejado programa de recuperação radícalmente antimoderno e antidemocrático. Uma vez reconduzido ao seu significado e à sua vocação autêntica, o liceu devia "habituar o jovem a uma rígida obediência sob o domínio do gênio" (BA, 2 ; 1, 68 0), ensinaria e promoveria "obediência e hábito na disciplina do gênio" (BA, 4; 1, 730). Mas agora é necessário tomar nota da realidade da difusão da instru­ ção de da submissão do próprio liceu ao "iluminismo popular". Para quais am­ bientes se pode então olhar com esperança? Certamente não aos filósofos acadêmicos ou, mais em geral, aos funcio­ nários estatais, caros a Hegel, mas odiosos a Schopenhauer, ainda mais que a Nietzsche. Não é a "veracidade heroica" que inspira os sentimentos e os pen­ samentos dessa camada social : "A verdade está servida se estiver em condi­ ções de conseguir diretamente estipêndios e posições bem colocadas, ou pelo menos de cativar os favores daqueles que devem distribuir pães e honras" (SE, 6; 1, 398). Se também forem imunes ao carreirismo propriamente dito, esses burocratas estarão de qualquer modo inclinados a "reconhecer acima da ver­ dade algo superior, o Estado" (SE, 8; 1, 4 1 5), quer dizer, uma instituição que constitui o pilar da subversão moderna e do processo de massificação. O juízo de condenação não ataca só a Hegel : "Kant já estava r . . ] cheio de cuidados, submisso e, nas suas relações com o Estado, sem grandeza" (SE, 8; 1, 4 1 4). Além do servilismo e do temor, há a estreiteza de horizonte e a routine profis­ sional a caracterizar negativamente a figura do fi.mcionário estatal: o Estado "obriga aquele que o escolheu a morar numa determinada localidade, entre homens deter­ minados, para uma determinada atividade; eles devem instruir todo broto acadêmi­ co que quiser isso e a cada dia e em horas fixas" (SE, 8; 1, 4 1 6). Por outro lado, a inserção sem dificuldade e antes confortável no âmbito da divisão do trabalho pro­ voca o embotamento das capacidades e dos interesses intelectuais: "colecionado­ res" e "ilustradores" vários estão mais do que nunca atarefados, mas "aprendem e se dedicam a procurar num campo, só porque não pensam nunca que há outros campos". Bem longe de ser um título de mérito, "a sua diligência tem algo da enorme estupidez da força de gravidade". Se mergulham em pesquisas e leituras, é só para remover todo problema e todo esforço de interrogação. Enquanto o verdadeiro pensador não deseja nada além do ócio, o intelectual (Ge/ehrte) comum é avesso a ele. São os livros que o consolam, quer dizer, 2 17

ele escuta como alguém pensa outras coisas e desse modo se deixa distrair durante o longo dia (SE, 6; 1, 397).

Até aqui a polêmica de Nietzsche se configura com fascínio como a rei­ vindicação das razões da totalidade e da liberdade e da audácia da pesquisa intelectual . "Deixai os filósofos crescerem no estado selvagem, negai-lhes toda perspectiva de emprego e de inserção nas profissões burguesas" (SE, 8; 1, 422). Mas, ao mesmo tempo que condena os filósofos acadêmicos enquanto servis e submissos, Nietzsche dá um conselho ao poder político que parece ir numa direção diferente e oposta. "Dado que o Estado não tem pela universidade outro interesse senão educar através dela cidadãos fiéis e úteis, deveria preocu­ par-se em não colocar em perigo essa fidelidade, essa utilidade, exigindo dos jovens um exame de filosofia". O encontro com esta disciplina estimula 'jovens temerários e inquietos" a "conhecer livros proibidos" e a "criticar os seus mes­ tres" (SE, 8; 1, 423). Estamos na presença de um tema amplamente difundido na cultura conservadora ou liberal do tempo. Nietzsche faz seu o julgamento do "inglês desinibido" Bagehot, que exprime todo o seu desprezo por uma "filosofia dedutiva" feita de "princípios abstratos" e "abstrações" ruinosas (SE, 8; 1, 420). Portanto, o que constitui o fio condutor da terceira Inatual não é a dicotomia falta de preconceito/servilismo, ou seja, a dicotomia entre tensão para o todo/ idiotismo da profissão. Neste caso também não ajuda a contraposição entre antiguidade clássica e modernidade, mesmo se Nietzsche dá a entender: "hoje o Estado permite, pelo menos a um certo número de pessoas, viver da sua filosofia, e assim eles podem ganhar o seu pão; enquanto os antigos sábios da Grécia não recebiam ordenados" (SE, 8; 1, 4 1 3-4). Em linha de continuidade com os "antigos sábios" se coloca Schopenhauer, não oprimido por "nenhuma das vulgaridades próprias da miséria da vida" e, portanto, em condições de viver "segundo a sua máxima: vitam impendere vero" (SE, 7; 1, 4 1 1). Olhando bem, a oposição entre antigo e moderno se revela como a oposi­ ção entre duas diferentes figuras sociais da modernidade. De um lado está Schopenhauer, o qual pode gozar do "ar livre de uma grande casa comercial" (SE, 7; 1, 409), do outro o intelectual de profissão (Ge/ehrte). Este "por sua essência é infecundo - uma consequência da sua origem! " (SE, 6; 1, 399). O nascimento, a posição social pesa sobre ele como uma maldição. Estamos di­ ante de "um 'maltrap ilho cheio de cuidados' (rücksichtsvo/ler Lump) em bus­ ca de cargos e de honras, cauteloso e conciliador, adulador das pessoas influen­ tes e superiores" (SE, 7; 1, 4 1 1). A condenação do caráter abstrato e subversi­ vo dos intelectuais não proprietários é um tema recorrente da crítica da revolu­ ção; e é neste mesmo contexto que deve ser colocada a tomada de posição de Nietzsche. O escárnio do servilismo e do peso intelectual do filósofo-funcioná-

rio estatal não está em contradição com a denúncia da antiga carga de subver­ são implícita na cultura "abstrata" de jovens frequentemente sem raízes: são duas acusações principais no âmbito da mesma requisitória que tem em mente sempre a camada dos intelectuais de profissão, apegados ao trabalho e à ideo­ logia do trabalho e participes de modo mais ou menos ativo e mais ou menos consciente da subversão moderna. Mas o que se pode contrapor a tudo isso? Nietzsche se move ainda às apalpadelas. Ao "intelectual comum", de vez em quando, se opõe o "verdadeiro pensador", o "filalete" (VII, 803-4), o "gênio", ou seja, "o espírito livre", que "se compromete como gênio contra a fraqueza do seu tempo" (VII, 807). En­ fim, como logo veremos, o "rebelde solitário". Fica estabelecido um ponto. A esta figura, como quer que ela esteja configurada, é atribuída uma tarefa im­ portante e engrandecedora, que vai muito além do âmbito cultural: Tende cuidado diz Emerson - quando o grande Deus fizer chegar um pensador ao nosso planeta. Então tudo estará em perigo. É como se numa grande cidade eclodisse um incêndio, e ninguém soubesse com certeza como ele acabaria [ ... ] um novo grau de cultura subverteria e jogaria no chão todo o sistema das aspirações humanas (SE, 8; 1, 426). -

Ficam claras as formações em luta. Todos os que "são banidos" pela ideo­ logia dominante por causa de sua recusa a prostrar-se diante do "espírito do tempo" são chamados a opor-se à social democracia alemã e aos partidos da subversão moderna que, também na sua estrutura organizativa, levam impressa a marca da massificação. São "os rebeldes solitários ( Widerspanstigen und Einsamen) todos aqueles que olham para fins superiores e mais distantes", que não são os da carreira e do acomodamento ao presente (SE, 6; 1, 402). Em conclusão, "há três imagens do homem que a nossa época moderna construiu uma depois da outra". A primeira, aquela que inspira e promove as revoluções, é "a mais fogosa" e "pode contar com eficácia maior a nível popu­ lar" (popularste Wirkung). A essa paixão, capaz de inspirar um irresistível movimento de massa, a segunda imagem não pode certamente opor resistên­ cia, ''feita apenas para poucos, para aqueles que são naturezas contemplativas em grande estilo", e sem qualquer capacidade de influenciar a "multidão". É preciso procurar em outro lugar. Então vem a terceira imagem. Diferenciando­ se claramente dos "contemplativos", ela pretende incidir sobre a realidade, com­ prometendo-se com a ação; "apela para os homens mais ativos" (die thatigsten Menschen}, mas sem se misturar ou contaminar com a "multidão", e nisto se diferencia claramente também da primeira imagem (SE, 4 ; 1, 3 69). -

1 O. Schopenhauer, Wagner e a "consagração " pela "batalha " Não podem passar inobservadas a linguagem e o tom militantes de Nietzsche. Não é por acaso que, nos apontamentos privados, o próprio Burckhardt se torne objeto de dura crítica, sendo enumerado entre "as degenerações do homem de Schopenhauer" (VII, 795). Como Nietzsche tinha referido numa carta ao amigo Gersdorff, de alguns anos antes, o historiador de Basileia, du­ rante "passeios confidenciais", falava de Schopenhauer como do "nosso filóso­ fo"; mas em público se revelava p ropenso, "se não a falsificar a verdade, de qualquer modo a calá-la" (B, II, l , p. 1 55). Não tinha nenhum "heroísmo da veracidade"; faltava-lhe o essencial do "homem de Schopenhauer". É verdade que a terceira Inatual atribui como mérito do filósofo citado como modelo o fato de ter denunciado o furor politicus, mas tal polêmica é emi nentemente política, dado que alveja, como veremos (infra, cap. 9 § 2), a crescente democratização e massificação da sociedade. A fim de se opor e repelir essa tendência é preciso empenhar-se por um objetivo que entra no campo do "possível": a "derrocada do sistema educativo" (SE, 7; 1, 404). É necessário acabar com um sistema escolar e acadêmico em condições de pro­ duzir ou reproduzir "ou o intelectual ( Gelehrte), ou o funcionário estatal, ou o negociante, ou o filisteu culto, enfim, e no mais das vezes, uma mistura de tudo isto" (SE, 6; 1, 40 1). Trata-se de criar as condições para que ao intelectual moderno possa contrapor-se um intelectual de natureza bem diferente, o "gê­ nio" ou o "rebelde solitário". Por outro lado, para poder aspirar ao sucesso, a luta contra a modernidade e contra a subversão deve saber estender-se no tempo e não exaurir-se na ação de uma única personalidade excepcional. Sim, são enormes os méritos de Schopenhauer, mas a "continuação da sua obra exige a educação (Erziehung) de uma geração de filaletes" (VII, 803-4), ou antes, para voltar a ser precisos, de mais gerações: "uma geração antes ou depois deve começar a luta na qual a seguinte vencerá" (SE, 6; 1, 402). Agora começa a ficar mais claro o significado do título da terceira Inatual. Mas de que modo esta série de gerações "será educada" (erzogen) (VII, 804)? Eis a resposta: "Como eram educados os persas: a atirar com o arco e dizer a verdade" (VII, 795). Quer dizer, os filaletes, os "amigos verdadeiros" da filosofia, devem ser ao mesmo tempo guerreiros: "com a ação eles demons­ trarão que o amor pela verdade é algo terrível e violento" (SE, 8; 1, 42 7 ) Entre O nascimento da tragédia e as Considerações Inatuais verifica­ ram-se algumas mudanças importantes. A condenação anterior do homem teó­ rico tinha em mente a sua pretensão tanto de penetrar na realidade como de transforma-la; agora, porém, o tema "criticístico", persistente e até radicalizado .

ao extremo, se enlaça com um pathos apaixonado da ação. Compreende-se então o nítido distanciamento em relação a Kant. Anteriormente, em virtude de seu "criticismo", ele fora elevado ao panteão dos autores que p rometiam o renascimento trágico da Alemanha. Mas essa visão mais problemática e mais sofrida do saber, se por um lado tem o mérito de refutar o otimismo teórico e prático que preside a revolução, por outro lado tem o grave defeito de estimular a renúncia e o desespero, como demonstra o trágico caso de Kleist. Estamos na presença de uma filosofia que pode ser o veículo de "um ceticismo e relativismo corrosivo e esmiuçador" (SE, 3 ; 1, 355). O nascimento da tragé­ dia aproximava Kant de Schopenhauer, mas agora os dois autores são consi­ derados rigorosamente distintos já pela sua colocação social: pertencem a duas classes intelectuais que desempenham uma função política diferente e di reta­ mente antitética. E assim chegamos ao segundo ponto. O nascimento da tragédia identi­ ficava o início da trajetória ruinosa da modernidade e do Ocidente no "homem teórico" e no plebeu Sócrates, lido como o antepassado do phi/osophe do engagement revolucionário. Agora o "homem teórico'', alvo permanente da polêmica, continua a ser sinônimo de "maltrapilho" (SE, 7; 1, 4 1 1 ) e expressão de um cultura dissolvente e hostil à vida. Mas a essa subversão, que no plano social se apresenta com a cara da plebe e no plano cultural com as caracterís­ ticas de uma pavorosa '·abstração", começa a ser contraposto não mais o membro de uma comunidade "popular" respeitosa da sacralidade do mito e da tradição, mas uma figura decididamente mais moderna e mais belicosa, capaz de montar o tigre da modernidade tanto no plano do conhecimento, como no plano da ação. São os "gênios" ou, mais precisamente, os "rebeldes solitários": antes ainda que nos "modos de agir", o conflito com os intelectuais maltrapilhos já está nas "disposições de espírito'' . "Em todos os tempos os gênios e os intelec­ tuais (Gelehrte) brigaram": se estes últimos "querem matar, dissecar e enten­ der a natureza, os primeiros querem aumentar a natureza com nova natureza viva" (S E, 6; 1, 3 99-400). Certamente, esta operação de defesa e de aumento da vida exige, nas condições historicamente dadas, uma atitude de oposição frontal. O radicalis­ mo da negação parece associar a crítica e a ação revolucionária, bem como a metafisica e o contramovimento chamado a bloqueá-Ias e rechaçá-Ias . Mas é preciso não esquecer o essencial: "Há um modo de negar e de destruir que é exatamente a emancipação daquele veemente desejo de santificação e de sal­ vação que Schopenhauer por primeiro com a sua filosofia ensinou a nós, ho­ mens dessacralizados (entheiligt) e mundanizados" (verweltlicht) (SE, 4; 1, 372). São bastante significativos os termos aos quais recorre. Tendo ajustado

as contas com o iluminismo e com o processo de secularização da cultura e da sociedade, Schopenhauer representa uma alternativa para a revolução bem diferente do recurso à religião e ao tradicionalismo nostálgico e inerte. A outra divindade tutelar do movimento de luta contra a modernidade é, obviamente, Wagner. Em volta dele já se reúnem forças às quais convém pres­ tar atenção: são intelectuais independentes, frequentemente proprietários; nada têm a ver com a figura do "maltrapilho cheio de cuidados". Conhecemos o apelo de Nietzsche em "favor de Bayreuth" (supra, cap. 5 § 5). A quarta Inatual e os fragmentos contemporâneos esclarecem de modo inequívoco o seu significado político: Para nós, Bayreuth significa a consagração matinal no dia da batalha. Não se poderia cometer erro maior do que supor que só a arte nos interessa: como se ela devesse valer como um fá rmaco ou um n a rcótico (Hei/- und Betaubungsmittel), com o qual se possa elinúnar de si todas as outras misé­ rias da existência (WB, 4; 1, 45 1 ). Deve-se e pode-se partir da arte para um projeto bastante ambicioso, que abran­ ge a totalidade do real. Sobre seu terreno se pode fonnar a vanguarda do movi­ mento chamado a ser protagonista da revolução radical que se impõe: A arte se tornou agora tão poderosa no sangue de alguns homens que chega a determinar até a sua relação com o mundo circunstante. Agora em Bayreuth está ocorrendo uma revolução, a saber, a constituição de uma nova potência, que está bem longe de se considerar meramente estética (VIII, 248).

A "revolução" antimoderna e antidemocrática aqui auspiciada pode ape­ lar, como sabemos, não para os intelectuais inseridos na organização estatal, mas só para os "rebeldes solitários". Nietzsche está pronto a tirar todas as consequências também no plano pessoal. Ele parece perceber com dificuldade a própria pertença ao gmpo social que despreza profundamente. Ao criticar Kant como "cheio de cuidados" (rücksichtsvoll) em relação à autoridade, ao modo dos "maltrapilhos", Nietzsche acrescenta um inciso bastante significati­ vo: ·'como nós intelectuais (wir Gelehrte) costumamos ser" (SE, 8; 1, 4 1 4) . Dentro de alguns anos a doença ajudaria o filósofo a resolver o problema, afastando-o definitivamente do ensino universitário e obrigando-o a viver tam­ bém de renda, ainda que bastante modesta.

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7 Ü " REBELDE SOLITÁRIO " SE TORNA " ILUMINISTA" 1 . Os Grtinderjahre, o desencanto de Nietzsche e o desaparecimento

dos fantasmas da Grécia imos que, depois dos primeiros entusiasmos, começam a manifestar-se

Vem Nietzsche o desapontamento e, depois, uma desilusão cada vez mais

forte pela abdicação da Alemanha da tarefa de lutar contra a civilização mo­ derna e da missão trágica e helênica confiadas a ela. Num certo sentido, as dúvidas se entrelaçam desde o início com as expectativas mais enfáticas e mais irrealistas; mas por algum tempo, elas são neutralizadas ou refreadas pela esperança de uma mudança, pela expectativa de que em Berlim tendências políticas e culturais diferentes possam levar vantagem. Mas a real idade está a vista de todos: como revela em particular a multiplicação dos institutos escola­ res, é exatamente na Prússia e na Alemanha que o processo de massificação avança mais impetuosamente. A crise da plataforma política e teórica de O nascimento da tragédia se toma sempre mais grave até explodir. Em Humano . demasiado humano Nietzsche é forçado a reconhecer que é perda de tempo querer fazer diferenciações internas no panorama políti­ co alemão e europeu: no que respeita ao II Reich, nacional-liberais e socialistas acabam assemelhando-se (MA, 480); é preciso dolorosamente reconhecer que "o caráter demagógico e a intenção de influir nas massas são atualmente co­ muns a todos os partidos políticos" (MA, 438) e a todos os países da Europa. Mais tarde, percorrendo de novo retrospectivamente o caminho feito, Nietzsche escreverá: "'Não me deixei enganar pelo surgimento esplêndido do Império ale­ mão. Quando escrevi o meu Zaratustra, tomei como pano de fundo uma situ­ ação europeia, para a qual também na Alemanha reina a mesma agitação es­ pantosa e suja dos partidos que encontramos hoje na França" (XI, 425). Na realidade, esta tomada de consciência remete já a Humano, demasiado hu­ mano. A modernidade e a mass ificação não deixam alternativa, nem deixa tampouco a vulgaridade do desenvolvimento e da acumulação capitalista ante­ riormente denunciada por uma ampla opinião pública com o olhar voltado, so­ bretudo ou exclusivamente, para fora da Alemanha. Nietzsche olha aquela espécie de antro de ideias modernas e subvers ivas, que é agora, na sua opinião, o II Reich, com um desprezo e um ódio tanto mais

profundos quanto mais exaltadas tinham sido as esperanças antes colocadas na missão regeneradora do país saudado como a nova Grécia. Vêm à mente as considerações desenvolvidas por Marx a propósito da França nascida da revo­ lução: os seus protagonistas "realizaram, com costumes e frases romanas, o que era a tarefa do seu tempo, o desenvolvimento e a construção da sociedade burguesa moderna"; mas, "uma vez produzida a nova fonnação social", desa­ pareceram "os Brutos, os Gracos, os Publícola, os Tribunos, os Senadores e o próprio César". Todas as reminiscências antigas são irremediavelmente elimi­ nadas pela concretude densa da sociedade capitalista e pela nova teoria com­ prometida em exprimir a nova realidade. A burguesia, "totalmente absorvida pela produção da riqueza e pela luta pacífica da concorrência, não compreen­ deu mais que os espectros da idade romana tinham protegido o seu berço".464 Algo semelhante acontece aquém do Reno. O mito genealógico greco­ romano que, em concorrência com outros mitos, tinha estimulado a luta contra a França de Napoleão 1 e Napoleão I II, presidindo a fundação do II Reich, se revela embaraçoso uma vez cumprido o seu dever. Mesmo com ênfases dife­ rentes, Wagner e Nietzsche tinham aderido a ele com entusiasmo. Mas o pri­ meiro reage à nova situação autonomizando o tema propriamente gennânico e, depois, procedendo à celebração sempre mais enfática de um povo chamado a redescobrir as próprias origens e a própria pureza, em contraposição tanto ao judaísmo como à latinidade e, de modo mais geral, à visão do mundo moderno e mercantil . No segundo, porém, a crise do mito genealógico greco-gennânico implica um corte radical com respeito às convicções e esperanças do passado. Impõe não só uma releitura em profundidade da história moderna e até antiga, mas também um repensamento das categorias filosóficas e políticas utilizadas na leitura precedente.

2. Distanciamento da teutomania e ruptura com os nacional-li­ berais alemães Em Humano, demasiado humano não há qualquer traço das esperanças anterionnente postas de novo na autêntica cultura alemã e no autêntico espí­ rito alemão. As críticas, às vezes muito severas, que atacam a política interna­ cional, se colocam ao lado das críticas relativas à política interna. Longe de constituir uma defesa contra a subversão, a Alemanha a promove ativamente, nos países vizinhos e rivais, com base em cálculos chauvinistas mesquinhos, 464 Marx-Engels, 1 955, vol. VIII, p. 1 16.

que perdem totalmente de vista a questão principal. Mesmo sem citá-lo explici­ tamente, N ietzsche critica Bismarck pelo seu empenho desinibido e sem escrú­ pulos de enfraquecer e isolar a França. Ele procura estimular o catolicismo no país derrotado, mas pretende depois enfraquecê-lo, procura fazer dele "a casa e o asilo da Igreja católica'', de modo a evitar o perigo de uma aliança com a Rússia ortodoxa: a Igreja católica "preferiria muito mais aliar-se aos turcos" a se aliar com os cismáticos (MA, i:l53). A promoção de um "catolicismo artifici­ al" além do Reno (MA, 475) ridiculiza o pathos anticatólico e antiobscurantista que preside a Kulturkampf Sobre esse movimento Nietzsche tinha manifestado fortes reservas já al­ guns anos antes. Ele tinha admitido que pode acontecer que "em alguns países a angústia pela opressão religiosa seja tão generalizada e tão enraizado seja o medo das conseqüências desta opressão que todas as classes sociais se apro­ ximem com desejo ardente da instrução" (Bildung). É compreensível que o Estado favoreça tais tendências, mas ele não deve esquecer que se trata sem­ pre de um "remédio desesperado" (BA, 1 ; 1, 668-9). Recorrendo à difusão indiscriminada da instrução, que aos olhos de Nietzsche é sinônimo de massificação e até de comunismo, o remédio corria o risco de ser pior que o mal . Mas agora é a política internacional do I I Reich que lança luz nova e inquietante sobre a Kulturkampf, pois não hesita em promover o "ofuscamento de milhões de cérebros num outro Estado". O fato é que, graças à "catolicização da França" promovida por ele, Bismarck pode apresentar-se como o porta­ bandeira da luta contra o perigo ultramontano (MA, 453). Portanto, não estamos mais na p resença de um "remédio", mesmo "desesperado" para um mal real. Na realidade, o próprio mal é uma invenção, ou seja, o resultado de manobras desinibidas e cínicas. O estadista geralmente celebrado como grande líder se revela na realidade, já no título do aforismo aqui citado, Der Steuermann der Leidenschaften, "o timoneiro das paixões" e das paixões mais vulgares e me­ nos iluminadas, as chauvinistas e religiosas (MA, 453). Nem a falta de escn1pulos nem a falsidade de Bismarck ficam por aqui. Enquanto encoraja os ambientes clericais, por outro lado "favorece a forma republicana de governo no Estado vizinho, a désordre organisé, como diz Mérimée - pela única razão de que se supõe que ela torna o povo mais fraco, dividido e incapaz para a guerra" (MA, 453). Mas - observa Nietzsche num acréscimo depois apagado - "esta mentalidade poderá ser útil para a prosperi­ dade de um Estado: ela é hostil e nociva à prosperidade da civilização enquanto tal" (allgemeine Cultur) (XIV, 147) . As esperanças de regeneração grega e trágica da Alemanha e da Europa são agora definitivamente refutadas pelo impiedoso "maquiavelismo bismarckiano" e pela "sua chamada Realpolitik"

(FW, 357). Também sob este aspecto, o I I Reich é sinônimo de subversão e devastação. E tudo isto em nome de um chauvinismo cego, que agora se torna o alvo principal da polêmica de Nietzsche. Ele vê com angústia a permanência e o recrudescimento da tensão entre França e Alemanha. Em 1 8 75, Bismarck ti­ nha promovido uma campanha de imprensa que, ao falar de um presumido perigo francês, tinha feito a opinião pública e as chancelarias europeias temer o início de um novo conflito armado. "A guerra está à vista?" (/st Krieg in Sicht?) - era a pergunta já do título de um artigo num jornal de Berlim ("Post"), inspi­ rado pelo chanceler. Depois o "Times" de Londres falou de pânico montado artificialmente por uma presumida ameaça francesa num artigo com o título igualmente significativo: A French Scare .465 É uma ameaça na qual Nietzsche tampouco acredita, e três anos depois denuncia o "nacionalismo artificial" (MA, 475 ) juntamente com o "catolicismo artificial" já visto. Contudo, se também não se verificou o embate realmente apavorado e falsamente encenado, a situação não é absolutamente tranqüilizadora. A Euro­ pa terá o mesmo fim da Hélade? Alguns anos antes Nietzsche já tinha pensado no peso da conflitualidade interna na determinação da catástrofe da Grécia: "O ciúme sanguinário que uma cidade tinha da outra, um partido do outro, o desejo desenfreado e assassino daquelas pequenas guerras, o triunfo digno de um tigre sobre o cadáver de um inimigo vencido", em suma, o fato de os gregos não terem hesitado em "enfiar os dentes na própria carne", essa arena sem limites e sem senso da medida produziu uma esplêndida civilização, provocando por isso o seu fim precoce (CV, 3 ; 1, 77 1). Também a Europa se suicidará mediante a guerra civil? Como os gregos se banharam no sangue grego, também os europeus de hoje derramam sangue europeu [... ) . O grosseiro patriotismo dos romanos é - hoje quando se apresentam deveres absolutamente diferentes e mais elevados do que patria e honor - ou algo desonesto ou sinal de atraso (MA, 442).

Com a Grécia é agora comparada a Europa, da qual convém preservar a unidade e a paz, não mais a Alemanha, a qual evoca a sombra inquietante do exclusivismo e do frio cálculo realpolítico de Roma. É preciso não perder de vista o fato de que, mesmo voluntário durante a guerra franco-prussiana, no começo da elaboração dos planos de anexação da Alsácia-Lorena, Nietzsche tinha expresso o seu desapontamento e a sua condenação da "atual guerra alemã de conquista" {B, II, 1 , p. 1 64). 465 Eyck, 1976, pp. 207-8; cf. Rõhl, 1993, p. 275.

Vimos (supra, cap. 1 § 8) que, logo depois do trauma da Comuna de Paris, o filósofo tinha chamado a golpear a "cabeça da hidra internacional". Certamente, ela revelava a sua cara repelente e ameaçadora em primeiro lugar no país devastado por incessantes revoltas . No entanto, a batalha na ordem do dia - especificava-se naquela mesma carta - ia muito "além da luta entre as nações". Nessa perspectiva, só pode ser ruinosa a agitação chauvinista dos nacional-liberais alemães, a qúal, ameaçando fazer explodir de novo o conflito com vizinhos de Além-Reno e sangrar em lutas fratricidas a Europa e o que resta de aristocracia e classes dirigentes, corre o risco de tornar de novo atual o perigo constituído pela revolta servil. Estamos agora na ruptura com a ideologia do movimento nacional-liberal. Já durante a polêmica com Strauss, Nietzsche se tinha recusado a ler a guerra franco-prussiana em perspectiva de embate entre civilizações contrapostas (DS, l ; 1, 1 5 9-60). S im, nos anos de O nascimento da tragédia ele mesmo aderira a tal leitura, mas aduzindo uma variante importante. É verdade que, herdeira do helenismo trágico, a Alemanha representava a civilização autêntica contra a vulgar civilização neolatina; mas ela podia estar à altura da sua grande herança e da sua missão só sob a condição de repel ir com força de si a "presunção autóctone" (PHG, 1 ; 1, 807): Não há nada mais estulto que atribuir aos gregos uma cultura autóctone: eles, ao contrário, absotveram cada cultura que fosse viva em outros povos; eles chegaram tão longe exatamente porque souberam arremessar mais longe a lança, recolhendo-a lá onde um outro povo a tinha abandonado. Eles são dignos de admiração na arte de aprender frutuosamente: e como eles fizeram, assim devemos nós aprender com nossos vizinhos, olhando para a vida, não para um conhecimento erudito, e usando tudo o que se aprendeu como apoio com o qual se elevar mais alto do que os vizinhos (PHG, 1; 1, 806). Infelizmente, esse alerta filológico e político não surtiu qualquer efeito. Agora Nietzsche deseja o advento na Europa de relações radicalmente novas, sob a bandeira da cooperação e da unidade: "Contra esta meta atua hoje, cons­ ciente ou inconscientemente, o isolamento das nações devido ao fomento de inimizades nacionais, mas lentamente aquela mistura faz igualmente o seu caminho, não obstante as correntes contrárias temporárias". Em vez de colo­ car obstáculos a esse p rocesso com a agitação chauvinista, a Alemanha faria melhor favorecendo-o: "É preciso declarar-se francamente apenas bons euro­ peus e contribuir com a ação para a fusão das nações; os alemães podem colaborar com este empreendimento, com a sua velha e provada qualidade de ser intérpretes e mediadores dos povos" (MA, 475).

Mesmo na evidente ruptura com o movimento nacional-liberal, é preciso não perder de vista nessas declarações o sutil fio de continuidade que ainda o liga com a ideologia dos Freiheitskriege, à qual Nietzsche aderira anterior­ mente. Em 1 8 1 3 , ao contrapor os alemães aos romanos (na realidade aos fran­ ceses), Arndt tinha lançado um significativo apelo aos seus conterrâneos: "Sede diferentes dos romanos [ . . . ] que nunca quiseram estipular uma paz sem ganhos territoriais. Ao contrário, colocai a vossa grandeza na justiça e na modera­ ção�'. 466 Agora, levando a sério esta rejeição do expansionismo, Nietzsche o radicaliza até incluir nele a rejeição de qualquer forma de chauvinismo e de provincianismo exaltado; junto com a política do II Reich, ele denuncia também a angústia teutômana da cultura que presidira a resistência antinapoleônica. É uma angústia que se manifesta também no obstinado apego a uma pre­ sumida, autêntica moda alemã, que felizmente, a despeito de todos os avisos dos teutômanos, vai desaparecendo (WS,2 1 5). Para compreender adequada­ mente este ponto, é p reciso ter presente que, a partir da luta contra Napoleão 1, se difundira notavelmente na Alemanha a aspiração a diferenciar-se da França também no que respeita ao modo de vestir: daí a promoção, por exemplo, de um "costume nacional das mulheres alemãs" e em geral uma roupa caracterizada por uma simplicidade espartana e desdenhosa dos enfeites de um povo vaidoso e dissoluto como o francês . Essa aspiração tinha continuado a mostrar vitalida­ de no tempo, a julgar pelo menos pelo sarcasmo de Gans, Ruge, Heine, pela escola hegeliana em geral, a qual retomava um tema polêmico do Mestre, bas­ tante divertido para a pretensão dos teutômanos de tomar o lugar dos "costureiros" no trabalho de invenção da "roupa à moda alemã antiga" (altdeutsche Kleider) .467 Por outro lado, ainda em 1 872, o Frantz já citado polemiza contra aqueles que, contagiando-se pelos costumes parisienses, gos­ tariam de "cancelar a nossa antiga, simples germanicidade".468 E o próprio Wagner lamenta o fato de que a sugerir ou a ditar "à 'mulher alemã' como deve vestir-se" seja "o jornal parisiense da moda".469 Vestígios dessa ideologia se encontram até no primeiro Nietzsche. Em referência aos jovens alemães que se insurgiram contra Napoleão 1, a quinta conferência Sobre o futuro de nossas escolas celebra "a nobre simplicidade dos costumes" que "os caracterizava nos gestos e na roupa" (BA, 5 ; 1, 749) e que contrastava positivamente com o "luxo" e a "moda" perseguidos pela modernidade (VII , 243 ). As primeiras fortes dúvidas a propósito afloram já na 466 An1dt, 1 963 , p. 104. 467 Cf. Losurdo, 1997 a, cap. IX, 6. 4 68 Frantz, 1 970, p. 2 17. 4 69 Wagner, 1 9 10 f, p. 1 16.

segunda Inatual, que ironiza uma tendência bastante difundida na Alemanha: "Uma peça de roupa, tomada emprestada do exterior e imitada com a maior negligência possível, passa de repente entre os alemães como uma contribui­ ção para o costume alemão (deutsche Tracht) (HL, 4; 1, 276). Mas a partir de Humano, demasiado humano, os tons se tornam decididamente mais áspe­ ros ; a pretensão de distinguir-se no terreno da moda é ridicularizada como uma "vaidade nacional", além de uma afetação inútil, pelo fato de que "nunca houve uma roupagem que distinguisse o alemão enquanto alemão" (WS , 2 1 5). Nesse meio-tempo, as conversas confiantes em casa de Wagner sobre "a essência alemã" e sobre institutos escolares chamados a lhe dar nova vitalida­ de foram suplantadas pelas discussões e pelas confissões, caracterizadas por crescente "mau humor", sobre o desenrolar da situação do II Reich, do que mais tarde o amigo Overbeck dá testemunho. 470 Agora um ciclo se fechou, como revela de modo inequívoco a polêmica áspera nos confrontos do ex­ Mestre: "Que belo som tem a música ruim e as razões ruins quando se marcha contra um inimigo !" (M, 557).

3.

Crítica do chauvinismo e ponto de chegada "iluminista "

A crítica do chauvinismo e da teutomania estimula, no plano mais propria­ mente filosófico, uma tomada de posição a favor do iluminismo, que se apre­ senta como o único instrumento em condições de opor-se à política de obscu­ rantismo planificado pelo alto provocado por Bismarck e o estímulo e cegueira chauvinista que se difundem na Europa: "A ciência e o sentimento nacional estão em contradição [ . . . ]. Qualquer cultura superior só pode com prejuízo hoje deixar-se cercar por paliçadas nacionalistas" (VIII, 5 72). Uma variante, depois deixada de lado, do O viajante e a sua sombra aumenta a dose: "Pátria como sede da estupidez e da violência" (XIV, 1 97). A ruptura com os teutômanos é também a ruptura com o mito da simplici­ dade germânica ou com o culto do torrão: "Onde quer que vigorem ainda a ignorância, a porcaria e a superstição, onde os comércios são fracos, a agricul­ tura, mísera e o clero, poderoso, aí se encontram ainda os costumes nacio­ nais" (WS , 2 1 5). Há mais moral no desenvolvimento dos tráficos e do comér­ cio, que une os povos derrubando as fronteiras e liquidando a xenofobia, do que nos mandamentos cristãos ou no imperativo categórico kantiano: "Se com a palavra 'moral' se pensa na utilidade superior, nos fins ecumênicos, então no 47º Overbeck,

1 994-95 b, p. 269.

comércio está contida mais moralidade que numa vida vivida" segundo os pre­ ceitos de Jesus ou de Kant. O mandamento que exige o amor ao próximo não impediu que a história do cristianismo esteja "apinhada de violência e de sln­ gue" (VIII, 460- 1 ). E de novo ecoam acentos iluministas, seja na configuração da campanha como lugares do obscurantismo (religioso e nacional), seja na denúncia da carga de fanatismo e de intolerância própria do cristianismo. A Idade Média foi superada pelo humanismo e pelo renascimento antes ainda que pela filosofia das luzes. Nesse sentido, "a bandeira do iluminismo" leva "três nomes: Petrarca, Erasmo e Voltaire" (MA, 26), e traz também os nomes dos moralistas franceses, os quais "formam juntos um importante anel na grande corrente do Renascimento que ainda continua": em louvor dos seus textos se pode dizer que, se fossem "escritos em grego, eles teriam sido enten­ didos até pelos gregos" {WS, 2 1 4). No âmbito dessa história geral é preciso recolocar a história da Alemanha. Ela agora se encontra numa situação de desvantagem em relação à Itália e à França, ao mundo neolatino considerado nos anos de O nascimento da tragé­ dia; não representa mais a civilidade que se opõe à civilização, mas o campo, que se arrasta com dificuldade atrás da cidade. Junto com as paixões plebeias, o conflito cidade-campo desempenha um papel importante também na análise da Reforma. De um lado temos a "nórdica (nordische) força e teimosia" de Lutero, um camponês; do outro lado a esplêndida civilização urbana do Renascimento. Em síntese, a ''Reforma alemã" (deutsche Reformation) é Um enérgico protesto de espíritos atrasados, que ainda não se tinham saci­ ado com a visão medieval do mundo e que perceberam os sintomas da sua dissolução, a extraordinária superficialização e exteriorização da vida religio­ sa [ . . . ] . A grande tarefa do Renascimento não pôde ser levada a cabo; foi impedida pelo protesto da germanicidade, que ficou para trás, que na Idade Média tinha pelo menos tido o bom senso de atravessar a todo o momento os Alpes para a própria saúde (Hei/) (MA, 237).

À Reforma, essa "espécie de redobramento do espírito medieval, numa época em que este já não tinha a boa consciência ao seu lado" (FW, 35), à "Reforma alemã" se contrapõe o "Renascimento italiano", lido em perspectiva iluminista, ca­ racterizado como é pelo esforço de "libertação do pensamento", pelo "desprezo da autoridade", pelo "entusiasmo pela ciência e pelo passado científico dos homens" (MA, 23 7). No duro choque que se verifica, é na Alemanha campesina e medieval que é preciso determinar o centro da reação obscurantista: A Rcfonna de Lutero dá testemunho do fato de que, no seu século, todos os movimentos de liberdade do espírito ainda eram incertos, tenros e juvenis; a

ciência ainda não podia levantar a cabeça. Todo o Renascimento aparece como uma primavera precoce que é quase de novo sepultada sob a neve {MA, 26). Além de atraso, a Reforma é sinônimo de fanatismo e intolerância. Nietzsche lamenta que Lutero não tenha acabado na fogueira como Hus: "A,.. aurora do iluminismo talvez tivesse surgido um pouco antes e com uma luz mais bela do que podemos hoje imaginar" (MA, 237). Vimos a insistência sobre o caráter nórdico e germânico da Reforma. Como se vê, com respeito a O nascimento da tragédia, o juízo de valor foi completamente invertido. O fato de o cristianismo, pelo menos em certos as­ pectos, ter lançado raízes mais sólidas entre as "nações nórdicas" está em prejuízo destas últimas. Mas o catolicismo é superior em relação ao protestan­ tismo; difundiu-se particularmente no Sul da Europa e conserva ainda algo do "paganismo rel igioso" (VM, 97) . Ser germânico (ou nórdico) e protestante não é mais um título de mérito, não é mais sinônimo de visão séria e trágica da vida, mas da Idade Média cristã e bárbara. Não é só Lutero que deve ser superado. Celebrado em O nascimento da tragédia como momento essencial do renascimento do espírito dionisíaco na "música alemã" (GT, 1 9; I, 1 27), agora Bach passa por uma releitura radical : nele "ainda há cristianismo demasiado cru, germanismo demasiado cru e escolástica demasiado crua"; percebe-se ainda o peso da Idade Média (WS, 1 49).

4. A desconstrução do mito genealógico cristão-germânico "Cristianismo cru" e "germanismo cru" são dois elementos constitutivos do mito genealógico cristão-germânico, o qual alimenta a paixão chauvinista que está em ascensão na Alemanha. Para tal fim, mais do que nunca a análise de Nietzsche se revela desconsagradora. A seus olhos, os nacional-liberais exprimem uma ideo­ logia insustentável no plano histórico e duplamente hipócritas: são os teutômanos e "cristômanos" (VM, 92), isto é, falam com tom devoto e compungido ao mesmo tempo dos germanos e de Jesus Cristo (além de Lutero). "A nação se comporta como teutômana e cristômana" tendo em vista um duplo objetivo: "exige-se um germruúsmo por preocupação de política imperial", enfim trata-se de legitimar o papel mundial atribuído ao II Reich, "e um cristianismo por medo social", na espe­ rança de estimular uma resignação entre as massas populares (VM, 299). Mas o mito genealógico germânico-cristão está em clara contradição com a história real: Para afirmar que o homem germânico estaria prefigurado e predestinado para o cristianismo é preciso uma boa dose de descaramento. De fato, não só o contrário é verdadeiro, mas é inclusive evidente. Como poderia a invenção de dois lli

judeus eminentes, Jesus e Saulo, dos dois mais judeus entre os judeus que talvez jamais existiram, ser adaptada mais aos alemães que aos outros povos (IX, 80)? O cristianismo tem raízes judaicas e, com a sua "proximidade, perceptível por toda parte, do deserto", a religião judaica é bem diferente da germânica, que, ao contrário, lembra a "floresta selvagem" (IX, 80). Para se dar conta da insustentabilidade da construção mitológica que preside a política interna e in­ ternacional do II Reich, é suficiente uma consideração de caráter filológico: Os "alemães" : originariamente este termo significava "pagãos"; é assim que os godos, dep�s da conversão, chamavam a grande massa dos seus consanguíneos étnicos não batizados, tomando sugestão da tradução dos Setenta [ . . . ]. Poderia também ser que, depois, os alemães transformaram o seu antigo apelativo injurioso num apelativo honorífico, tomado-se o pri­ meiro povo não cristão da Europa (FW, 146).

Se os alemães têm uma missão, não é certamente a de representar e difundir uma religião que abraçaram tarde e com relutância tão acentuada que deixaram a marca no próprio termo que serve para designá-los. Sim, mais tarde pretenderam ser os intérpretes privilegiados da nova religião, porém o zelo do neófito faz brincadeira de mau gosto : "Eis o maior prodígio: aqueles que mais trabalharam para sustentar o cristianismo, para conservá-lo, foram exatamente os que mais o destruíram, - os alemães" (FW, 358). Lutero desencadeou a Reforma em nome da defesa da pureza do cristianismo originário, mas qual é o resultado real da sua ação? Ele entregou a cada um as Sagradas Escrituras a fim de que caíssem finalmente nas mãos dos filólogos, quer dizer, dos destruidores de qualquer fé que des­ cansa nos livros [. . ]. Ele restituiu ao sacerdote o comércio se)\1.1al com a mulher: mas três quartos da veneração da qual o povo é capaz, sobretudo a mulher do povo, tem a sua base na crença de que um homem excepcional nesse ponto será uma exceção também em outros pontos (FW, 358). .

O mito genealógico cristão-germânico gosta de indicar na Alemanha, pie­ dosa e temente de Deus e protagonista da Reforma, o baluarte providencial contra a onda destruidora proveniente da França dissoluta, iluminista e ateia; mas é exatamente Lutero que acaba pondo em movimento o processo de secu­ larização. Além de opor-se aos franceses (e outros latinos), cristômanos e teutômanos gostam de opor-se ao judaísmo. E de novo salta aos olhos o absurdo das suas construções ideológicas e mitológicas. Ignoram ou removem o terreno histórico no qual a religião professada por eles com tanto ardor lança raízes . Wagner não

se cansa de trovejar contra os j udeus : com eles, ele "não consegue ser justo nem sequer na sua maior empresa: foram os judeus que inventaram o cristia­ nismo" (FW, 99). Há um paradoxo até divertido: "O 'pecado' é um sentimento judeu e uma invenção j udaica, e considerando-se esse fundo de toda moralidade cristã, realmente o cristianismo visou 'judaizar' (verjüdeln) o mundo inteiro" (FW, 1 35). Quer dizer, com o seu zelo missionário cristão, os teutômanos se empenharam em difundir uma cultura e uma espiritualidade que, no entanto, afirmam desprezar! A provocação també"1 não para aqui . Ela ataca diretamente também o herói nacional da Alemanha, frequentemente celebrado como o protagonista de uma resistência heroica contra a prepotência imperial de Roma. Depois de ter observado que o judaísmo, cristianismo e islã são três criações do semitismo (a tese ou hipótese cara também a Wagner, do Jesus ariano ou de qualquer modo não judeu, é indiretamente ridicularizada), Nietzsche faz esta diferenciação in­ terna: "O artificio mais fino que o cristianismo mais preza, com respeito às outras religiões, é uma palavra: ele falou de amor. Tornou-se assim a religião lírica (enquanto nas outras duas criações o semitismo deu ao mundo religiões heroico-épicas)" (VM, 95 ). Sendo assim as coisas, agora é claro que "o melhor da alma de Lutero e dos seus afins" há de ser encontrado no "grande traço judeu-heroico" (VM, 1 7 1 ) . Quer dizer, o que inspirou a resistência da Reforma a Roma não foi tanto o cristianismo quanto a sua herança judaica. Enfim, Wagner, que é o ponto de referência dos partidos do mito genealógico cristão-germânico, toma de Schopenhauer o "ódio pelos judeus", mas dele toma também temas que nada têm a ver com o cristianismo: tanto no filósofo como no musicista, assistimos à "tentativa de conceber o cristianismo como um grão disperso do budismo e preparar para a Europa, com aproximação temporária de fórmulas e sentimentos católico-cristãos, uma era budista" (FW, 99) . Querendo-se abstrair do absurdo histórico e filológico do mito em questão, há de se acrescentar que os antigos gem1ai1os não podem certainente constituir um modelo. Não apenas há uma contradição de fundo entre o cristianismo, com a sua origem judaica, de um lado, e o germai1ismo, do outro; mas, na comparação destes dois elementos o que sai vitorioso é aquele odiado pelos teutômanos. Mes­ mo exprimindo uma ideologia inaceitável (o sentido do pecado, um etnocentrismo exaltado, etc.), os antigos hebreus revelam de qualquer modo um desenvolvimen­ to civil bem mais avai1çado que os antigos germanos: à "altíssima sutileza moral aguçada por uma inteligência de rabino" se contrapõe uma "inteligência bárbara" de gente que ainda se veste com pele de urso. No conjunto, "o homem germânico" é ·'indolente, mas belicoso e ávido de rapina"; ele "não foi além de uma medíocre, autêntica religião de pele-vermelha" e, "há apenas mil ai1os não tinha ainda per233


5. A releitura da histór�a da Alemanha: condenações e reabilitações Quanto mais radie� e mais explícita se toma a condenação do cristianis­ mo e da teutomania, tanto mais severo e impiedoso acaba se tomando o juízo sobre a Alemanha. A sombra de Lutero, do camponês que se levanta em última análise em defesa da Idade Média cristã e da nação oprimida pela Roma­ Babilônia (a cidade rotulada como dissoluta e paganizante), parece pesar sobre a história da Alemanha no seu conjunto. Indissoluvelmente ligado à galofobia, o fervor protestante e o culto do torrão e de uma simplicidade mítica dos costumes desempenham um papel essencial nas guerras antinapoleônicas, que agora, com uma inversão das posi­ ções com respeito ao passado, são objeto de irrisão. O ciclo que vai de 1 8 1 3 a 1 87 1 se conclui com a música de Wagner, que é profundamente atravessada pelo "gosto por tudo o que se referia à essência, antes à essência original ( Wesen und Urwesen) da pátria e da nação" e que "conduz a última campanha de guerra e de reação contra o espírito do iluminismo" (VM, 1 7 1 ). Com esta críti­ ca pungente, Nietzsche toma distância do seu passado próximo, quando tam­ bém ele tinha sido um apaixonado pela essência mais original possível da germanicidade, para libertar das incrustações latinas e judaicas estranhas a ela. Agora, porém, o filósofo observa polemicamente: é necessário corrigir "logo a questão teórica: o que é alemão?" - assim soa o título de um ensaio de Wagner471 - '"com a contrapergunta: 'o que é alemão agora? '" (VM, 323). À luz da consciência histórica, agora adquirida, os "deuses" e os "heróis", que animam as "lendas do antigo solo pátrio" (altheimische Sagen), caras ao mus icista e ao partido que gira cm torno dele, tornaram-se "estranhos" (fremdartig) à Alemanha moderna (VM, 1 7 1 ), referem-se a um mundo bas­ tante remoto que é absurdo querer desenterrar. Por outro lado, tendo desapare­ cido a aura de eternidade que as circundava, as diversas "essências" não po­ dem mais ser rigidamente contrapostas uma à outra: "Tese capital: as chama­ das diferenças nacionais são .habituais, diversos degraus de civilização, nos quais um povo se encontra primeiro, o outro depois" (XIV, 1 80). 47 1 Wagner,

1 9 1 0 1.

Vimos as conferências Sobre o faturo das nossas escolas celebrar con­ juntamente a filosofia e o "soldado alemão" (supra, cap. 1 § 5). Paradoxal­ mente, trata-se do estereótipo que, mesmo comjuízo de valor invertido, encon­ tramos naqueles que tinham olhado com pavor para a derrota da França. Pen­ semos em Carducci stJ ue, sempre com referência à guerra franco-prussiana, exclama: "Mas o ferro e o bronze estão na mão dos tiranos; ! e Kant aguça com sua Razão / Apura a fria agulha do fuzil prussiano".472 Agora se diria que, depois da condenação do chauvinismo do II Reich, a queda do "soldado" arras­ tou consigo também os grandes protagonistas da cultura alemã e a Alemanha como tal. Uma anotação do outono de 1 878 transcreve um mote fustigante retomado de Wieland: "Não consigo recordar que a palavra 'alemão' jamais tenha sido empregada em sentido honroso" (VIII, 572-3). Junto com as guerras antinapoleônicas, o duro juízo de condenação ata­ ca S chil ler. Fora o autor querido dos jovens dos Freiheitskriege e dos Burschenschaftler que se alimentavam das recordações daqueles anos e daquelas batalhas apaixonantes . Uns e outros viam prefigurado o seu sagra­ do compromisso contra Napoleão 1 e Napoleão III no solene juramento pro­ nunciado no Guilherme Tell: "Queremos ser livres como nossos pais [ . . . ] / não nos separe nenhuma emergência e nenhum perigo";473 ou se tinham identificado - como o próprio Nietzsche lembra - com a revolta dos Bando­ leiros contra os ·'tiranos" (BA, 4; 1 , 74 8). Schiller se tomara também o sím­ bolo do antifilisteísmo, o campeão da recusa de uma visão do mundo incapaz de compreender os "sonhos da juventude" e s inônimo - tinha declarado Schelling, citando Dom Carlos - de uma "sabedoria do pó" que "blasfema o entusiasmo filho do céu".4í4 Dessa leitura teutômana e antifilisteia o jovem Nietzsche participara p le­ namente, e para celebrar a "natureza germanicamente entendida" (não con­ fundir com a "natureza comum, empírica" e menos ainda com aquela cara ao Emílio de Rousseau), se referira ao Passeio de Schiller (VII, 3 02), ou seja, o ""grande Schiller" (BA, Introdução; 1, 646). Agora, porém, é pungente a ironia sobre o poeta e dramaturgo, o qual suscita o entusiasmo dos jovens só porque vem ao encontro de "seu gosto pela sonoridade das palavras morais (que pelos trinta anos de idade costuma sumir)" (VM, 1 70). É uma grandiloqüência que pesa bastante negativamente em cada caso sobre o pensamento e sobre a 471 Per il L'L\'V/11 Anniversario dei/a proclamazione dei/a Repubblica Francese, 1 7-20 (Carducci, 1 964, p. 96). 473 IVilhelm Te//, Ato II, cena II. 474 Schelling, 1856-6 1 , vol. XIII, p. 28; Dom Carlos, Ato IV, cena 2 1 .

vv.

prosa de Schiller: ele é "sob todo aspecto um modelo de como não é lícito encarar problemas científicos de estética e de moral" {WS, 1 23). A declamação moral é a prova da influência onipenetrante que, a séculos de distância, a Reforma e o cristianismo continuam a exercer. Sim, a cultura alemã se revela pobre e também fundamentalmente hipócrita se for compara­ da com o Renascimento italiano e com o iluminismo francês ! Bem considerado, Kant sublinhou os limffes d,a razão a fim de "abrir a estrada para a fé" e, portanto, deve ser colocado entre os "obscurantistas", é a expressão de um "obscurantismo extremamente refinado e perigoso, antes, do obscurantismo mais perigoso" (VM, 27). Neste sentido, é "um atentado semi-teológico contra Helvétius", "na Alemanha o mais difamado entre todos os moralistas e homens de valor" {WS , 2 1 6). É levado em consideração por Nietzsche o autor que introduz de novo pela janela dos postulados morais o conteúdo metafísico apa­ rentemente expulso pela porta da razão pura: infelizmente, Kant "foi enredado pelo imperativo categórico, e com ele no coração refez o caminho para trás perdendo-se em ' Deus', 'alma', ' imortal idade', como uma raposa que, tendo se perdido, volta para sua gaiola; embora tivesse sido a sua força e a sua sagacidade que tinham arrombado essa gaiola" (FW, 335). O acerto de contas por um lado com a judeofobia de Wagner e por outro lado com a recuperação da metafisica de Kant não pode não influir p rofunda­ mente sobre a imagem do filósofo anteriormente assumido e venerado como Mestre. É verdade, trata-se de uma dívida de gratidão a honrar: "O homem de Schopenhauer me impeliu à dúvida filosófica acerca de todas as coisas respei­ tadas, consideradas honrosas, até aquele momento defendidas [ . . . ]. Por essa via indireta cheguei até o cume onde sopram os ventos mais frescos" (VIII, 500). Além mesmo da teoria há o ensinamento que deriva de um autor que "viveu e morreu como voltairiano" (FW, 99). No entanto, este iluminismo se revela medroso e inconseqüente . Considerando bem, Schopenhauer era "ape­ nas um discípulo demasiado dócil do Mestre da ciência do seu tempo, todos os quais ovacionavam o romantismo e tinham abjurado ao espírito do iluminismo". Explica-se assim a tentativa de atribuir à religião um significado qualquer, "com respeito à inteligência da massa". Talvez se trate de um erro a ser colocado mais na conta do contexto histórico e cultural que de Schopenhauer: "Se ele tivesse nascido no nosso tempo, não teria absolutamente podido falar do sensus allegoricus da religião; teria certamente prestado homenagem à verdade, como costumava fazer", pronunciando-se de modo explícito pelo ateísmo (MA, 1 1 O). No entanto, apesar deste reconhecimento, é inequívoco o ajuste de contas com o ex-Mestre. Para o Nietzsche desembarcado no "iluminismo", não pode­ mos nos limitar a liquidar o credo, o conteúdo de fé da religião positiva. É

possível observar "como os espíritos livres menos atentos se escandalizam exa­ tamente só com os dogmas, mas conhecem muito bem o encanto do sentimento religioso"; agora surge "uma teologia estéril, pretensamente livre" (MA, 1 3 1 2). Mesmo formulada com referência explícita apenas a Schleiermacher, esta crítica acaba de algum modo atacando também o filósofo que se empenhara na descoberta das religiões orientais e na recuperação antipelagiana do cristianis­ mo. Então o seu na�o com Voltaire não deve levar ao engano: "A concepção inteira do mundo e o sentimento do homem medievais e cristãos puderam cele­ brar na doutrina de Schopenhauer, apesar da destruição já há muito tempo alcançada de todos os dogmas cristãos, uma ressurreição". É verdade, "muita ciência ecoa na sua doutrina, mas ela não a domina, e sim a velha e bem conhecida 'necessidade metafisica'" (MA, 26). Portanto, verifica-se uma inversão do juízo de valor também no que diz respei­ to ao termo "metafisica". Agora, Nietzsche olha para os anos passados como para um "período metafisico" felizmente superado pela sua evolução (infra, cap. 10 § 1). Não faz mais parte nem pretende mais fazer parte daqueles "metafisicas de raça nobre ou baixa" que são "os filósofos nebulosos e os escurecedores do mun­ do" (VM, l O). A Alemanha continua a ser o país metafisico por excelência, mas isto significa apenas o seu obscurantismo e o seu atraso irremediável. As duras críticas dirigidas a autores anteriormente celebrados andam jun­ to com algumas reabilitações significativas . É em particular o caso de Goethe. O nascimento da tragédia o tinha excluído do panteão dos autores chamados a dar de novo vida ao helenismo trágico em terra alemã. Foi de algum modo atacado pela polêmica contra a imagem serena e puramente apolínea da Hélade: ele também não conseguira "forçar a porta enfeitiçada que conduz à montanha encantada helênica", a "penetrar no núcleo da essência helênica e estabelecer uma ligação amorosa durável entre a cultura alemã e a cultura grega" (GT, 20; 1, 1 3 1 e 1 29). É uma crítica que continua a mostrar-se na terceira Inatual, que sublinha a inclinação ao fi listeísmo do "homem de Goethe" (supra, cap. 6 § 8). Agora, porém, a releitura radical da história da Alemanha lança uma luz completamente diversa sobre Goethe, o autor muitas vezes acusado de paganis­ mo e de indiferença ou de hostilidade em relação à resistência nacional antinapoleônica, e portanto estranho tanto à cristomania como à teutomania. Em 1 808- 1 809 Friedrich Schlegel tinha condenado o "espírito alemão" como estra­ nho e não sem analogia com Voltaire; na vertente oposta, Heine lhe tinha atribu­ ído o mérito de ter declarado guerra à "arte neoalemã cristão-patriótica" e de ter assim afugentado "os espectros da Idade Média".475 Nesse ponto, se toma de 475 Losurdo, 1997 a, cap. IV, 5.

algum modo obrigatório o encontro de Nietzsche com Goethe. Este pode ser colocado ao lado de Spinoza (VM, 408) e, portanto, se coloca numa altura sideral com respeito aos adeptos do mito genealógico germânico-cristão. Em todo caso, "Se se prescindir dos escritos de Goethe, e particularmente das conversações de Goethe com Eckermann, o melhor livro alemão que há", ou antes, "o ponto mais alto da humanidade alemã", "o que resta propriamente da literatura alemã em prosa, que mereça ser lida sempre e de novo?" (WS, 1 09 e VIII, 603). O conjunto de cõndenações (nitidamente dominantes) e de reabilitações não visam edificar um novo panteão da Alemanha (enquanto nação com uma missão peculiar e única) em substituição daquilo anteriormente erguido por O nascimento da tragédia. Agora as grandes personalidades da cultura alemã lembram mais a Europa que o seu país de origem: "Os alemães não sentiam necessidade de Goethe e por isso não sabem o que fazer dele" (WS, 1 07); "Goethe é, na história dos alemães, um incidente sem conseqüências" (WS, 1 25). A sua grandeza está exatamente no fato de pertencer "a um gênero de literatura supe­ rior às 'literaturas nacionais'" (WS, 1 25). Algo análogo pode ser dito de Lessing: ele "tem uma virtude genuinamente francesa e como escritor foi em geral o mais diligente em ir à escola dos franceses: sabe bem organizar e expor as suas coisas na vitrina" (WS, 1 03). Até a celebração dé Voltaire tem um significado polêmico nos confrontos dos teutômanos: trata-se - observam polemicamente naqueles anos os "PreuBische Jahrbücher" - do "primeiro e mais poderoso organizador da doutrina da preponderância providencial da França".476 Concluindo. Não é mais só a Alemanha, mas a Europa que é comparada com a Grécia; mas, na medida em que pode ser indicado um único país europeu como herdeiro em particular daquela esplêndida época, este país talvez seja a França. Os "livros europeus " por excelência são os de Montaigne, La Rochefoucauld, La Bruyere, Fontenelle, Vauvenargues e Chamfort: "erguem­ se acima da variação do gosto nacional " e são, portanto, eles que representam a continuidade com a Hélade e com a antiguidade clássica em geral (WS, 2 1 4).

6. A Europa, a Ásia e a Grécia (reinterpretada) O iluminismo se ergue também acima dos provincianismos e dos conflitos nacionais . É a época cultural e política que vê Voltaire falar da Europa como de "uma espécie de grande república, dividida em vários Estados"477 ou vê Vattel 476 Grimrn, 187 1, p. 5. 477 Voltaire, 1906, p. 10 (cap. II); sobre isto cf. Chabod, 1989, pp. 1 16-7.

definir a "Europa moderna como uma espécie de república, cujos membros, independentes mas l igados por interesse comum, se reúnem para manter a ordem e a liberdade".478 O pathos da Europa preside também a luta contra a França revolucionária, condenada por haver rompido a unidade da comunidade europeia com seus inauditos experimentos políticos. Referindo-se à l ição do grande jurista suíço, e transcrevendo e subscrevendo os seus trechos mais significativos, Burke de�ara-que os outros países europeus não podem perma­ necer indiferentes e ine rtes diante do crime. 479 O novo regime está "em con­ tradição com todo o teor da lei pública europeia"; e, portanto, "este mal no coração da Europa deve ser extirpado a partir do centro", de modo a evitar qualquer contágio. 480 Esta é também a opinião de Gentz, que proclama o direito da ·'república europeia" de intervir em cada Estado singular que a constitui.481 De Commonwealth ofEurope fala explicitamente lorde Castlereagh, colega e amigo de Mettemich, que junto com ele provê a sistematização política da Eu­ ropa que brotou da derrota de Napoleão e, em última análise, da Revolução Francesa. Esse é o modo de o próprio chanceler austríaco se comportar, o qual - como foi observado - "considera a Europa como uma pátria" e exprime também "um típico europeísmo de século XVIII", enunciando "preceitos total­ mente idênticos àqueles já formulados em pleno iluminismo". 482 É no sulco desta tradição, aquém da nation de revolucionária memória (infra, cap. 26 § 6), que é preciso colocar Nietzsche, o qual agora se sente obrigado a fazer uma pergunta fundamental: onde a Europa afunda as suas raízes? Inevitavelmente continua a ser o ponto de referência constituído pela Grécia, mas como a sua imagem mudou nesse meio-tempo! Bem longe de simbolizar a sabedoria mítica infelizmente dessacralizada e dissipada pelo iluminismo de Sócrates e pela modernidade, como acontece em O nascimento da tragédia, aquela civilização se impõe agora à atenção e ao respeito de todos à medida que representa o florescimento da primeira grande época das luzes: são os "gregos excepcionais que criaram a ciência". O seu título de glória reside nisto: "Quem conta sobre eles, conta a história mais heroica do espírito humano" (VM, 22 1). Estamos na presença de um fato paradoxal . É evidente a continuidade na celebração da Hélade, mas agora a motivação é bastante diferente e até oposta. 478 Vattel, 1 9 1 6, vol. II, pp. 39-40. 479 Burke, 1826, vol. VII, pp. 20 1 -2 1 5 e, particularmente na p. 2 1 1 (Burke transcreve os trechos de Vattel que considera mais significativos). 480 Burke, 1 826, vol. VII, pp. 99 e 1 14. 48 1 Gentz, 1 836- 1838, vol. II, p. 195. 482 Chabod, 1989, pp. 1 3 1 -2.

Em virtude dessa reinterpretação, cai também a antítese Grécia/Roma, embora Nietzsche talvez continue a olhar para a primeira com simpatia particu­ lar. A celebração do Renascimento como "a idade áurea deste milênio" (MA, 23 7) parece fazer alusão ao helenismo trágico como idade áurea do primeiro milênio antes de Cristo. Contra tal mundo, que não é mais o "despertar da antiguidade alexandrino-romana" antes desprezada como espúria (supra, cap. 1 § 9), mas a retomadali'"autêntica da antiguidade clássica no seu conjunto, há o grave mal do surgimentb da Reforma, a qual não é mais sinônimo do prelúdio da volta do helenismo trágico, mas de apego tardio à Idade Média. Mas não basta tomar consciência do fato que Lutero nada tem a ver com Dion ísio, como, ao contrário, O nascimento da tragédia p retendia. O repensamento deve desenvolver-se em profundidade muito maior; é a própria ideia do retomo ao helenismo dionisíaco que deve ser abandonada: "A civilização antiga tem a sua grandeza e a sua bondade atrás de si, e a educação histórica obriga a admitir que ela não poderá mais reflorescer; é preciso uma obtusidade insuportável ou um fanatismo igualmente insuportável para negar isso" (MA, 24). Sintomática da radicalidade da mudança que se verificou é a exceção agora tendencialmente positiva do termo "moderno", como resulta por exemplo do juízo crítico relativo a Bach, o qual tem o defeito de parar "no limiar da música europeia (moderna)", olhando "para trás dela em direção à Idade Média" (WS, 1 49). Portanto, não se trata de voltar à Grécia, mas de assumir a sua herança, que reside em primeiro lugar no logos, na capacidade de comunicar e argu­ mentar em termos racionais. Exatamente ao assimilar essa herança, a Europa adquiriu "o senso científico" que a distingue positivamente da Ásia (MA, 265). "Raz.ão e ciência, a mais alta força do homem": Goethe pelo menosjulga assim. O grande naturalista von Baer põe de novo a superioridade de todos os euro­ peus em confronto com os asiáticos na capacidade instilada nos primeiros de fornecer razões para aquilo em que creem, do que os segundos são completa­ mente incapazes. A Europa foi à escola do pensamento consequente e crítico, a Ásia não sabe ainda distinguir entre verdade e poesia e não percebe se suas convicções derivam de obseivação própria e do pensamento normal ou de fantasia. A raz.ão nas escolas faz da Europa a Europa: na Idade Média ela estava no caminho de tomar-se de novo um pedaço e um apêndice da Ásia ou seja, de perder o senso científico que devia aos gregos (MA, 265).

A dicotomia, própria do período "romântico'', entre cultura e civilização, que coincidia amplamente com a dicotomia germanicidade/latinidade (e judaís­ mo), é agora suplantada pela contraposição entre a Europa que se elevou ao nível da visão racional e científica do mundo e a Ásia privada de luzes:

A proeza de Homero de ter libertado os gregos da pompa asiática e da obscuridade e de ter conseguido no conjunto e no particular a clareza da arqui­ tetura [ . . . ]. Porque é grego o fato de tender para a luz por um crepúsculo por assim dizer inato [ . . . ]. A simplicidade, a maleabilidade e a obj etividade foram conquistadas pelo povo, não foram dadas - o perigo de uma recaída no asiatismo ameaça sempre os gregos , e de tempo em tempo ele realmente se abateu sobre eles como um rio obscuro e transbordante de emoções místicas, de elementar violência e obscuridade. 1'16s o vemos submergir, vemos a Europa como que varrida, inundada - pois a Europa era então bastante pequena - mas sempre voltam para a luz, como bons nadadores e mergulhadores que são eles, o povo de Odisseu (VM, 2 1 9). Nesse sentido não faltam os elementos de continuidade com respeito à fase "metafisica". A luta entre Grécia e Ásia continua a atravessar a história do Ocidente em profundidade . Em O nascimento da tragédia, o dionisíaco, que se refere ao Oriente, desempenha um papel positivo só na medida em que é mantido sob controle. Ele representa o momento de absorção da vontade individual, que, esquecendo-se de si mesma, aceita a carga terrível de sofri­ mentos em nome da produção da arte e da civilização. Enquanto Dionísio ate­ nua ou faz desaparecer a vontade do indivíduo chamado a sacrificar-se pela arte e pela civilização, Apolo impõe de algum modo a disciplina social e a hie­ rarquia, que estão no fundamento da civilização e do desenvolvimento das pou­ cas individualidades geniais. A função de controle exercida pelo apolíneo se configura agora como a função de controle exercida pela razão. Tudo isso remete ainda uma vez à Grécia e à Europa. A Grécia continua a ser um modelo: "Ao que era mau e perigoso, ao que era animalesco e retrógrado, bem como ao bárbaro, ao pré­ grego e ao asiático, que ainda viviam no fundo segundo a natureza grega, se dava uma abertura moderada e não se visava destruí-lo completamente". O que "é verdadeiramente pagão" (VM, 220), constitui a grandeza de uma cultu­ ra infelizmente destruída pelo cristianismo.

7. Iluminismo, judaísmo e unidade da Europa A desconstrução do mito genealógico germânico-cristão coloca a judeofobia em crise, pois ela é um elemento constitutivo do mito. Nesta direção leva tam­ bém o novo interesse pelo iluminismo. Aos olhos de seus adversários, o judaís­ mo encarna o pior daquela corrente de pensamento. A intelectualidade judaica - ironiza um autor antissemita - condena toda discriminação, verdadeira ou

presumida, como indigna do "século XVIII iluminado", de um século em que "o mundo é governado por espíritos Iivres".483 A intelectualidade judaica - brada Treitschke - leva avante a sua obra de dessacralização e ridicularização do cristianismo, agitando a bandeira exatamente da filosofia das Iuzes.484 Os escritos nietzscheanos do período "iluminista" são dos anos imediata­ mente seguintes à crise internacional de 1 875, no embalo da polêmica sobre o antissemitismo oficialmente_inaugurada por um violento artigo de Treitschke de novembro de 1 879, mb j á antecipada em alguns anos por algumas interven­ ções menores : seus autores, ao se interrogarem sobre a identidade da nova Alemanha, denunciam o papel das finanças judias na onda de especulações que se seguem à fundação do II Reich e ao início do processo de industrializa­ ção . O que inspira a campanha do historiador alemão são, em primeiro lugar, seu chauvinismo e suas preocupações nacionais e militares, num momento em que o reinício do conflito com a França está, ou parece estar, na ordem do dia. Pois bem, teria dado prova de plena lealdade patriótica um grupo étnico e reli­ gioso que custava a assimilar-se e que preferia, pelo menos em alguns expoen­ tes seus, continuar a considerar-se uma nação distinta e separada, e, além do mais, "eleita" por Deus?485 Por outro lado, a polêmica anticristã e a difusão de uma "cultura mista judeu-alemã"486 não constituíam mais de per si um grave perigo, à medida que prejudicavam a identidade cristã da Alemanha (e o mito genealógico ao qual ela entregava a legitimação das suas ambições imperiais)? Humano, demasiado humano acerta em cheio quando observa que "a questão judaica inteira" é o resultado do estilhaçamento da Europa em nações inimigas, e se torna mais aguda "quanto mais elas tomam a assumir uma atitude nacionalista" (MA, 475). Não é por acaso que, a partir da derrota de Sedan, judeofobia e antissemitismo recebem um poderoso impulso também na França. É um motivo a mais para acabar com os chauvinismos contrários, avançando na direção da fusão das diversas nações europeias (MA, 475). Para conseguir esse resultado, é necessário romper com o culto da tradição, do apego ao solo e ao particularismo, em última análise, com o tradicionalismo ao modo de Burke. Nesta ideologia se tinha inspirado, de algum modo, a polêmica do Nietzsche do período "romântico" contra o "homem abstrato europeu que imita tudo e de maneira ruim" (VII, 593). Agora, a perspectiva parece ser bem dife­ rente: "Com respeito ao futuro se nos abre, pela primeira vez na história, a imensa 483 Otto Glagau in Claussen, 1987, p. 99. 484 ln Boehlich, 1 965, p. 1 O. 485 ln Boehlich, 1 965, p. 38 e passim. 486 ln Boehlich, 1965, p. 8.

vista de metas humano-ecumênicas, que abrangem todo o mundo habitado" (VM, 1 79), embora deva se acrescentar que o ecumenismo aqui evocado não ultrapas­ sa, como veremos, os limites da Europa ou do Ocidente. Na verdade, também no momento em que mais fortemente se identificava com a Alemanha e com a "essência" alemã e com mais ênfase sublinhava a necess idade do "seio materno" com vistas ao pleno desenvolvimento do gênio, Nietzsche acrescentav ,que· o gênio, todavia, tem "apenas uma origem metafisica, uma pátria melafisica" (BA, 3 ; I, 699). É particularmente significa­ tivo o retrato que a terceira Inatual traça de Schopenhauer: quando rapaz, ele viajou "por muitos países estrangeiros". É o percurso obrigatório para "aquele que não deve aprender a conhecer os livros, mas os homens, e a venerar não um governo, mas a verdade". Com efeito, Schopenhauer "viveu na Inglaterra, na França e na Itália, bem como no seu país, e nutriu uma não pequena simpatia pelo espírito espanhol. No conjunto, não considerava uma honra ter nascido exatamente no meio dos alemães" (SE, 7; I, 408-9). No entanto, na terceira Inatual se notam também acentos diversos nos quais continua a ressoar o pathos da essência alemã. Com Humano, demasiado humano, porém, a pers­ pectiva europeia passa decididamente a predominar. Ao lamentar o papel de­ sempenhado pelos iluministas na derrubada do Antigo Regime, Taine observa que eles "destacam a diversidade, a contradição, o antagonismo dos costumes fundamentais que, cada um na sua casa, são todos igualmente consagrados pela tradição". 487 Mas, para o Nietzsche que despertou do sono "metafisico", é exatamente esse o grande mérito do iluminismo, o qual, portanto, é essencial também para a construção da nova identidade europeia: Quanto menos os homens estiverem ligados à tradição, tanto maior se torna a agitação íntima dos motivos, tanto maior ainda, correspondentemente, a inquietação, a mistura recíproca dos homens, a polifonia das aspirações. Para quem existe, ainda hoje, uma rígida obrigação de vincular a um lugar a si mes­ mo e aos próprios descendentes? (MA, 23). A precedente saudade pelo desaparecimento do "mito pátrio" é substituída pela celebração da mobilidade, das trocas, dos encontros, dos cruzamentos: O comércio e a indústria, a troca de livros e de cartas, a comunidade de toda a civilização (Cultur) superior, a rápida mudança de lugar e de país, a atual vida nômade de todos aqueles que não possuem terra - estas circunstâncias levam necessariamente por si mesmas a um enfraquecimento e no fim a uma destruição das nações, pelo menos das nações europeias; de modo que

487 Taine, 1 899, vol. II, p. 18 ( Taine, 1 986, p. 3 88). =

delas todas, depois dos contínuos cruzamentos, deverá nascer uma raça mista, a raça do homem europeu (MA, 475).

Nesse novo horizonte filosófico e político não há mais lugar para a conde­ nação dos judeus como apátridas e irremediavelmente cosmopolitas, um tema tradicional da polêmica antijudaica, bem presente tanto em O nascimento da tragédia dedicada a Wagner como num dos cinco "prefácios" enviados opor­ tunamente à compi nheira e consorte do musicista, isto é, em O O Estado grego (supra, cap. 3 § 4 e 6). Agora está claro que da nova figura de europeu a ser constrnída, o judeu constitui a encarnação ou a antecipação: ele não está ligado à terra, de cuja propriedade por tanto tempo foi excluído pela legislação dos Estados "cristãos"; não tem raízes, é nômade. As características tradicio­ nalmente atribuídas ao judeu pelas publicações judeófobas e antissemitas é retomada e subscrita, mas com uma reviravolta do juízo de valor, o que confere ao discurso um tom não só dessacratório, mas também decididamente provo­ cador em relação à ideologia dominante. Sim, é verdade, devido às suas contínuas peregrinações o judeu é obrigado a tomar-se poliglota. Neste sentido, ele não possui uma língua materna à qual está ligado por natureza e uma vez para sempre. Este é outro tema tradicionalmente ventilado por judeófobos e antissemitas; no rastro de Wagner, o próprio Nietzsche, como sabemos, recorrera a ele. Mas agora assistimos a um repensamento profundo: Os dois povos que produziram os maiores estilistas, os gregos e os france­ ses, não aprendiam língua estrangeira. Dado, porém, que as relações entre os homens estão destinadas a tornar-se sempre mais cosmopolitas e, por exemplo, um comerciante de Londres de respeito deve hoje fazer-se entender por escrito e oralmente em oito línguas, o aprendizado de muitas línguas é na verdade um mal necessário; mas, levado ao extremo, isso obriga a humanida­ de a encontrar um remédio: e em algum futuro distante haverá para todos, primeiro como língua do comércio, depois como língua das relações intelec­ tuais em geral, uma nova língua, tão certamente como um dia haverá a nave­ gação aérea (MA, 267).

As distâncias espaciais serão anuladas pelo desenvolvimento da técnica, as dificuldades de comunicação serão superadas, pelo menos no que respeita à elite europeia e ocidental, pelo surgimento de uma língua comum, Entretanto, os poliglotas desempenham uma função preciosa de mediação. Para promover a fusão dos povos europeus contribui não só a indústria moderna e a intensifica­ ção das trocas comerciais e culturais, mas também a "vida nômade" própria do mundo moderno e, em particular, daqueles que "não possuem terra" e por isso são principalmente inclinados à mobilidade. Em conclusão: "quando não se tra-

ta mais de conservar nações, mas de produzir uma raça mista europeia o máxi­ mo possível robusta, o judeu é um ingrediente tão idôneo e desejável como qualquer outro resíduo nacional" (MA, 4 75). Para desempenhar uma função positiva há, além dos judeus, outros resí­ duos nacionais, não bem detalhados aqui . Provavelmente, alude-se aos huguenotes, exilados na Alemanha pela França que revogara o édito de Nantes, a propósito dos quais Aurora se exprime com grande calor: "Uma mais bela união de espírito guerreiro \ trabalhador, do mais refinado costume e do rigor cristão, não existiu até hoje" (M, l 92). Também Treitschke faz referência aos huguenotes, mas para contrapô-los as judeus, os quais, ao contrário dos primei­ ros, não teriam compreendido a necessidade de "germanizar-se" e de integrar­ se profundamente na nova pátria.488 Para Nietzsche, porém, judeus e huguenotes são chamados a servir de ponte entre as diversas nações, em primeiro lugar entre França e Alemanha. Com a sua tomada de posição a favor da "raça mista europeia", Humano, demasiado humano parece antecipar um tema no centro do debate sobre o antissemitismo. Na sua História romana, Mommsen identifica no '� udaísmo" um "eficaz fermento do cosmopolitismo e da decomposição nacional". Treitschke se refere maliciosamente a esta tese como demonstração de como são plenamente justificadas as preocupações expressas por ele sobre o papel dos judeus.489 O historiador romano responde reinterpretando e atualizando a própria análise: como contribuíram para a fusão dos diversos povos do Império Romano, assim os judeus podem funcionar como "elemento de decomposição das linhagens" diferentes (germanos, eslavos, etc.) que passaram a fazer parte do II Reich, reforçando e não enfraquecendo a sua unidade.490 O Nietzsche "iluminista" vai ainda além, e indica no cosmopolitismo judeu um momento es­ sencial do processo de fusão dos povos europeus por ele auspiciado. Mas o judeu não representa apenas o futuro da Europa, nem encarna também a melhor herança, aquela tradição de pensamento crítico e de tolerân­ cia que parte da Grécia e da antiguidade clássica e que, atravessando de ma­ neira cansativa e perigosa uma era de fanatismo e de ódio teológicos, chega até à época das luzes: Nos tempos mais escuros da Idade Média, quando a camada de nuvens asiática tinha parado pesadamente sobre a Europa, foram livres pensadores (Freidenker), sábios e médicos judeus que seguraram alto a bandeira das

48� ln Boehlich, 1965, pp. 44-5. 489 ln Boehlich, 1 965, pp. 209-2 10. 490 ln Boehlich, 1 965, p. 2 17.

luzes e da independência espiritual, a custo da mais dura coação pessoal, e que defenderam a Europa contra a Ásia; não seria a nossa menor dívida de gratidão para com os seus esforços se no fim pudesse ainda triunfar uma interpretação do mundo mais natural, mais conforme à razão e em todo caso não mítica, e se o elo de civilização que hoje nos une com a cultura da antiguidade greco-romana não fosse quebrado (MA, 475). E de novo o discurso de Nietzsche não pode deixar de soar provocador tanto aos ouvidos de \tagner como da cultura dominante no seu conjunto. Não é só Lagarde que acha que o judeu não é um "estrangeiro" qualquer, mas é "semita" e, portanto, "asiático".491 Esta é a opinião também de Marr, aquele que, pelo final do século XVIII, se autodefine orgulhosamente como "patriarca do antissemitismo", dando conotação positiva a um termo cunhado talvez em ambiente j udeu com um significado obviamente crítico. 492 Enfim, aos olhos de Treitschke, os judeus relutantes ou hostis à assimilação plena são "orientais" incorrigíveis, e é por causa desta característica ou componente oriental que já na antiga Roma se manifesta o "ódio antijudaico dos ocidentais"493 e se revela o ''abismo entre essência ocidental e essência semítica".494 Para Nietzsche, porém, à medida que herda a razão e a ciência do mundo grego, é o judaísmo que representa a Europa e o Ocidente. Quem se refere ao Oriente é mais a religião da qual a Alemanha pretende ser a intérprete privile­ giada: "Se o cristianismo fez de tudo para orientalizar o Ocidente, em compen­ sação o judaísmo contribuiu essencialmente para reocidentalizá-lo sempre" (MA, 475). Também o ascetismo cristão é oriental: os judeus, porém, são "um povo que amava e ama a vida como os gregos" (M, 72). Verificou-se uma inversão radical de posição com respeito aos anos de O nascimento da tragédia, quan­ do ao "pessimismo" do helenismo e do cristianismo original se contrapunha o "otimismo" superficial e o arraigamento vulgar à terra próprios dos judeus ! Todavia, em Humano, demasiado humano topamos com um ponto que aparece em contradição gritante com a análise que acabamos de ver e que even­ tualmente parece colocar-se numa linha de continuidade com a judeofobia dos anos iniciais. O ')ovem judeu da Bolsa" é denunciado como "a invenção mais revoltante da raça humana em geral" (MA, 475). Aqui se pode ler uma alusão ao papel, real ou patologicamente aumentado pela ideologia dominante, desempe­ nhado pelas fmanças judaicas no tempo das especulações depois da fundação do 49 1 Lagarde, 1937, p. 292. 492 Cf Zinunennann, 1 986, pp. 89 e 168-9 nota 108 e Ferrari Zumbini, 200 1 , p. 2 1 5-6. 493 ln Boehlich, 1 965, pp. 1 2 e 37. 494 ln Boehlich, 1965, p. 1 2.

Reich, durante o impetuoso e desinibido desenvolvimento capitalista dos Gn·inderjahre (FW, 357). Estamos na presença de um tema recorrente da polê­ mica contra o judaísmo: "o seu centro é a Bolsa" e encarna "a arrogante cobiça" e a "podridão" daqueles anos .495 Como explicar o seu surgimento também no Nietzsche "iluminista"? É como se o filósofo, ao se distanciar dajudeofobia e do antissemitismo dominantes, quisesse pôr as mãos na frente: ele também não gos­ ta de uma figura tão repugna.Ate como a do especulador sem escrupulos. Ou, talvez, seja exatamente a partir da nova perspectiva pan-europeia que aparece inquietante o papel das finanças judias. Quando, na primavera de 1 875 , certos órgãos de imprensa (por trás dos quais se supõe não sem razão a presença do chanceler) difundem boatos alarmantes ou ameaçadores de uma iminente guerra com a França, Bismarck, convidado por Guilherme 1 para dar explicações, põe tudo na conta das manobras de Bolsa dos Rothschild.496 Se em OEstado grego tinha criticado duramente o cosmopolitismo e o pacifismo filisteu das fi­ nanças judias, agora Nietzsche, com uma inversão de posições, parece parcial­ mente fazer eco a essa acusação de sinal contrário. O que coloca obstáculos à fusão dos povos europeus é "antes de tudo o interesse de determinadas dinastias reinantes e depois o interesse de determinadas classes do comércio e da socieda­ de" (MA, 475). Ainda que em função subordinada, aqui são acusadas também as finanças judias, que estão comprometidas no comércio do dinheiro e que teriam tudo a lucrar com uma crise internacional e com a agudização da necessidade de todo Estado alimentar a máquina bélica. No entanto, a responsabilidade principal é das ambições e dos interesses dinásticos (a guerra franco-prussiana foi provocada com o surgimento de uma candidatura Hohenzollern para o trono espanhol). Em todo caso, "qualidade desagradável, até perigosa, tem toda nação, todo homem; é cruel pretender que o judeu deva ser exceção". Nenhuma justificação tem "o mau costume literário de conduzir os judeus ao matadouro como bodes expiatórios de todos os possíveis males públicos e internos" (MA, 475).

8.

Voltaire contra Rousseau: reinterpretação e reabilitação do iluminismo

Tendo deixado definitivamente para trás o mito da autenticidade germânica, Nietzsche chama o iluminismo a opor-se ao obscurantismo chauvinista, que en­ venena as relações entre países europeus, favorecendo a "hidra internacional". 495 Assim Otto Glagau in Claussen, 1 987, p. 106 e Treitschke, 1 965 a, p. 9. 496 Eyck, 1 976, p. 206.

Mas esta hidra não é, por sua vez, incentivada por uma filosofia que estimulou o ciclo ruinoso iniciado em 1 789? Vimos O Estado grego colocar "a visão liberal e otimista do mundo", portadora de catástrofes, na conta das "doutrinas do iluminismo francês e da Revolução Francesa" (supra, cap. 1 § 8). É tal aproximação que se toma agora problemática e insustentável. Trata-se de "purificar" o iluminismo da "substância revolucionária" de que Rousseau e a própria Revolução Francesa estão impregnados, tendo a Revolução se adornado dele à maneira de "auréola transfiguradora". É uma mi stificação a ser desmascarada: O iluminismo era no fundo profundamente estranho àquele ser e, agindo espontaneamente, teria prosseguido tranqüilo, como um esplendor de luz atra­ vés das nuvens, contente ao longo tempo para transformar só os indivíduos : de modo que só muito lentamente ele teria transformado também os costumes e as instituições dos povos. Mas agora, ligado a um ser violento e frio, o iluminismo se toma ele mesmo violento e frio. É necessário acabar com esta "mistura" indevida, de modo a "sufocar ao nascer, tomar como não acontecida a revolução" (WS, 22 1 ). Agora pode ser muito útil a referência a Voltaire: ele "foi um dos últimos homens que souberam reunir em si a máxima liberdade de espírito e um modo de pensar absolutamente revolucioná­ rio, sem ser incoerente e medroso". É a partir do esquecimento desse modelo que se desencadeiam a "febre da revolução" e a permanente "inquietação" do "espírito moderno" com o "seu ódio pela medida e pelo limite" (MA, 22 1 ) Neste sentido, Nietzsche não modificou o programa enunciado nos anos anteriores . Entretanto, a referência ao iluminismo certamente não deve ser sepa­ rada da prevenção dos perigos nele contidos, como demonstra a utilização, embo­ ra indevida, que a revolução não soube fazer. De qualquer modo, permanece o alvo da polêmica: é o "grande movimento revolucionário", que continua a inspi­ rar-se em Rousseau (WS, 22 1 ). É ele que é visado, como sabemos, por O nasci­ mento da tragédia, com um juízo de condenação plenamente confirmado nas Considerações Inatuais: "Em todo frêmito e terremoto socialista é sempre o homem de Rousseau que se move, como o velho Tífon sob o Etna"; daqui é "derivada uma força que impeliu e ainda impele para tempestuosas revoluções". Temos a ver com uma "potência ameaçadora" (SE, 4; 1, 369). Humano, dema­ siado humano não argumenta de modo diferente, pois mais uma vez identifica e rotula no autor caro aos jacobinos o ponto de referência daqueles que "com fogo e eloqüência incitam a uma derrubada de todas as instituições" (MA, 463). Junto com o acusado permaneceu imutável também o motivo da acusa­ ção. Conhecemos já a polêmica de O nascimento da tragédia contra o Emílio e o mito do homem bom. O homem de Rousseau - acentua a terceira Inatual "apela para a 'natureza santa'", mais uma vez transfigurada por um otimismo .

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ao mesmo tempo vazio e catastrófico, para motivar as suas "decisões terrí­ veis": graças a ela espera realizar um novo ordenamento político-social, no qual não haja mais lugar para as "castas pretensiosas", a "riqueza desapiedada" e as outras desgraças provocadas pelas instituições e pela "má educação" (SE, 4; 1, 3 69). E agora deixemos a palavra para Humano, demasiado humano: Rousseau "acreditava numa milagrosa bondade original , mas por assim dizer, enterrada pela natureza humana, e atribuía a culpa desse enterro às instituições da civilização na sociedade, no Estado e na educação"; portanto, a "derrubada de todas as instituições" é o pressuposto para erguer "o mais soberbo templo de bela humanidade". É dessa visão do homem e do mundo que nasceram "o espírito otimista da revolução" e o seu séquito de horrores (MA, 463). Mas, onde estão agora os elementos de novidade na evolução de Nietzsche? Olhando bem, a crença de Rousseau é uma "superstição" (Aberglaube); as suas teorias são "tolices apaixonadas" (leidenschaftliche Thorheiten), ou seja, tolices que se distinguem, negativamente, só pelo fervor ou pelo furor com que são anunciadas e proclamadas ao mundo . Quem se coloca sobre suas pegadas são "visionários (Phantasten) políticos e sociais": a teoria da revolução segui­ da por uns e outros é uma "loucura" (Wahn) (MA, 463). Ela é "fanática" (fanatisch), gera um movimento que arrasta consigo "tudo o que há de semilouco" (Halbverrücktes), de "particularmente sentimental (Sentimentales) e ébrio de si" (Sich-selbst-Berauschendes) no mundo (WS, 22 1 ). Estamos, pois, na presença daqueles fenômenos de superstição, credulidade popular e fanatismo contra os quais se exerceu a crítica do iluminismo. Por que então confundir Voltaire com Rousseau e assimilar o olhar lúcido e as luzes frias do primeiro à teoria-loucura da revolução, que partiu do segun­ do? Na realidade, com a sua "natureza moderada" e com "a sua tendência a organizar, purificar e reconstruir", Voltaire se toma o crítico mais lúcido e im­ placável do segundo. Mais do que de um mal-entendimento, ele é vítima de uma operação mistificadora: "foi durante muito tempo enxotado por ele o espí­ rito do iluminismo e do desenvolvimento progressivo" (fortschreitend), alheio aos transtornos, anunciados e provocados pelos visionários de um mundo radi­ calmente novo. Contra estes últimos é possível e necessário gritar Écrasez l 'infâme! (MA, 463), retomando o mote brandido por Voltaire contra o fanatis­ mo religioso propriamente dito. A palavra de ordem cara ao grande iluminista pode bem ser utilizada na luta tanto contra o cristianismo como contra o socia­ lismo, ambos caracterizados por uma fé supersticiosa, por um fanatismo moral e missionário, contra o que o iluminismo pode muito bem funcionar como antí­ doto, sendo que o iluminismo zomba também da beatice teutômana e luterana dos alemães nacional-liberais.

É uma atitude que pode ser aproximada à de Flaubert, o qual, nesses mesmos anos, sobre esse assunto, assim se exprime: Eis onde chegamos - ao clericalismo absoluto. Este é o resultado da bestia­ lidade democrática! Se a grande estrada indicada por Voltaire fosse continu­ ada, em vez de seguir com Jean-Jacques o neocatolicismo, o gótico e a fraternidade, não se teria chegado a este ponto. 497

Também Nietzsche passa a fazer uma dissecação da filosofia do século XVIII e nessa operação pode fazer uso da lição de Schopenhauer que, mesmo comprometido com uma áspera crítica da revolução, celebra Voltaire como um "grande homem" a ser colocado entre os "heróis e benfeitores que são orgulho da humanidade". 498 O Voltaire do Nietzsche iluminista é, portanto, muito diferen­ te daquele de Taine, segundo o qual o iluminista desconsagrador dirige "a armada filosófica" que participa da "grande expedição bélica" contra o Antigo Regi­ me. 499 Na vertente oposta, essa é também a opinião de Heine, para citar outro autor conhecido de Nietzsche. Dir-se-ia que, empenhado também ele a esmagar com seu espírito corrosivo o Antigo regime, que ainda resiste na Alemanha, o grande poeta e literato alemão quer sublinhar a eficácia política de tal atitude: Antes da Revolução [ ... ] o cristianismo tinha feito um pacto indissolúvel com o Ancien Régime. Este último não podia ser destruído enquanto o pri­ meiro continuasse a exercer sua influência sobre a massa. Voltaire deve ter feito ecoar a sua gargalhada cortante antes que Sansão [carrasco parisiense durante a revolução] pudesse vibrar o seu machado.500 O Voltaire caro a Humano, demasiado humano é, ao contrário, o filósofo segundo o qual "quand la populace se mêle de raisonner, tout est perdu" e que, portanto, pode inspirar a luta contra a democracia e a denúncia de uma época caracterizada por um penetrante "caráter demagógico" (MA, 438). Nietzsche que, como sabemos, logo depois da Comuna de Paris tinha chamado a esmagar a "ca­ beça da hidra internacionaf', recebe dois anos depois uma carta animada pelas mesmas preocupações. Contra o novo fanatismo, em lugar daquela clássica (Écrasez l 'infâme!) , precisaria lançar uma nova palavra de ordem : "Écr[asez] l 'lnt[ernationale} deveria escrever um Voltaire dos nossos dias" (B, II, 4, p. 288).

497 Flaubert, 1 9 12, p. 346 (carta a Júlio Duplan de 18 dezembro de 1867). 498 Schopenhauer, 1976-82 b, p. 749 e Schopenhauer, 1976-82 e, p. 336; mas as citações poderiam ser multiplicadas. 499 Taine, 1899, vol. II, p. 17 (= Taine, 1 986, p. 387). 500 Heine, 1 969-78, vol. III, p. 5 1 5.

Então, o novo Voltaire procede a uma crítica ferrenha ao fanatismo, às crenças cegas, à adesão exaltada a essa ideia: "A Idade Média é a época das paixões maiores [ . . . ] ; então, quando alguém se apaixonava, a intensidade do sentimento devia ser mais violenta, a paixão mais frenética, a queda mais pro­ funda que nunca" (WS, 222). O discurso versa sobre o período histórico consi­ derado por Voltaire propriamente dito. No entanto, o olhar se volta ao mesmo tempo para o movimento reyolucionário: não por acaso este aforismo segue imediatamente àquele que visa exatamente o movimento revolucionário. Dir-se-ia que, mais do que nas massas, o Nietzsche "iluminista" esteja empenhado em denunciar os sintomas de "superstição" e "insensatez" sobre­ tudo nos intelectuais revolucionários: As pessoas brilhantes (geistreiche Leute) podem aprender quanto quiserem com os resultados da ciência: na sua conversação e particularmente nas hipóteses nela contidas, se notará sempre que lhes falta o espírito científico; não têm aquela desconfiança instintiva para os desvios do pensamento que, após um longo exercício, lançou as suas raízes na alma de todo cientista. Basta que eles encontrem sobre uma coisa em geral uma hipótese qualquer, e logo se entusiasmam por elas e creem que com isso está tudo resolvido. Ter uma opinião significa para elas já se tornarem fanáticas por ela e, para o futuro, colocá-la no coração como uma convicção. Diante de uma coisa não explicada se animam pela primeira ideia que lhes vier à mente e que se asse­ melhe a uma explicação: daqui se seguem continuamente, especialmente no campo da política, os piores efeitos (MA, 635).

Mas o que é "a cega e míope 'convicção"' senão um nome diferente para a "fé"? (MA, 636). Por amor às suas convicções, os revolucionários estão prontos a suportar os mesmos sacrificios que os cristãos pela sua fé. O cristia­ nismo ostenta a sua "ideia ilícita pela qual 'tudo o que é fortemente crido é verdadeiro"'; na realidade, "mesmo que se suportem as torturas e a morte pela própria fé, não se demonstra de modo algum a verdade, mas apenas a intensi­ dade da fé naquilo que se considera verdadeiro" (VIII, 4 1 7). Pelo contrário, a intensidade da fé deveria gerar um movimento de suspeita nas pessoas lúcidas: "Jamais conheci uma pessoa com convicções que, por causa de tais convic­ ções , não suscitasse a minha ironia" (VIII, 5 04). A presunção de possuir a "verdade absoluta" estimulou funestamente "to­ dos os sectários e os ' ortodoxos' religiosos", inspirou "todas as cruéis cenas de perseguição dos hereges de toda espécie". Aqui são acusados todos os fiéis (desde o cristianismo até a democracia e o socialismo):

251

O pressuposto de todo fiel de qualquer tendência era de não poder ser refuta­ do; se as razões contrárias se mostravam muito fortes, restava-lhe sempre a possibilidade de difamar a razão em geral ou talvez diretamente hastear o credo quia absurdum est como bandeira do mais violento fanatismo (MA, 630).

Trata-se, pois, de denunciar a "loucura cega" daqueles que "deram o pró­ prio coração a um príncipe", ou "a uma ordem religiosa" ou "a uma mulher", ou então "a um partido". São grávidas de perigos e sinistras tanto a "devoção entusiástica" (a referência é em particular ao fanatismo religioso) como a "có­ lera" e a "vingança flamejante" (a referência é em particular ao fanatismo político revolucionário) (MA, 629). Se O nascimento da tragédia condena o iluminismo socrático, que tende a descobrir e denunciar a falta de racionalidade e a "potência da loucura" (Macht des Wahns) na sabedoria da tradição e em tudo o que ele não está em condições de compreender (supra, cap . 2 § 1 ), agora, pelo contrário, um frag­ mento do período "iluminista" declara que é preciso saber sorrir da "loucura ( Wahn) política como os contemporâneos sorriram da loucura ( Wahn) religiosa dos tempos passados" (IX, 504).

9. Nietzsche e o iluminismo antirrevolucionário Ao assemelhar o movimento revolucionário com um fenômeno de fanatis­ mo religioso, Nietzsche se aproveita de uma tradição consolidada antes dele. Leiamos a acusação desenvolvida por Gentz contra aqueles que, ocupados com a redenção da revolução, pretendem "dar início a uma nova cronologia para todo o gênero humano".501 "A ideia fixa de uma Igreja única portadora de salvação", colocada em marcha sobre o terreno específico da "religião", faz o seu aparecimento infeliz no campo da "política" por obra de revolucionários que prometem uma colossal "regeneração" em virtude da qual o mundo deve­ ria ser libertado do seu fardo de miséria para, em vez disso, fazer "liberdade e igualdade" reinarem imperturbadas. É "o sínodo despótico de Paris, apoiado no plano interno pelos seus tribunais da Inquisição e no plano externo por milhares de missionários voluntários, que leva avante a pretensão de ser o depositário único da salvação e da redenção do mundo". 502 Se Nietzsche previne, como vimos, contra a crença nas "verdades absolu­ tas" próprias do fanatismo religioso e político, ironiza Gentz, como sabemos, 501

Gentz, 1800, p. 120. 1836-8, vol. 1, pp. 15-7.

502 Gentz,

sobre o "sonho de uma onisciência" na qual se embalam os revolucionários, esta espécie de missionários que acreditam que são depositários de um saber sagrado e de uma missão sagrada. Para combater o "fanatismo político", bem como o ''fanatismo religioso" é chamado o lndifferentismus, ou seja, uma ati­ tude de afastamento crítico e cético em relação à verdade salvífica proclamada pelos profetas religiosos e políticos. 503 O conselheiro de Metternich não se cansa de chamar à luta contFa o ·'espírito visionário" dos protagonistas e segui­ dores da Revolução Francesa, contra a Schwarmerei política da qual eles são acometidos : é '·uma das doenças mais terríveis" que podem atingir um povo, e ela encontra a sua "i rmã gêmea" no "es p í rito visionário rel igioso" (Rehgionsschwiirmerei). 504 É uma espécie de contági o transmitido pelos "adoradores fanáticos da liberdade", as "cabeças visionárias".505 São temas que têm em si algo de voltairiano. É preciso não esquecer que há um movimento iluminista ou influenciado pela filosofia das luzes que, bem longe de saudar com simpatia a Revolução Francesa, participa ativamente da sua denúncia. É nesses mesmos ambientes culturais e políticos que brota a contraposição Voltaire-Rousseau. Na Alema­ nha, no início do século, aparece o livro de um imigrante francês comprometido em refutar a tese da linha de continuidade da filosofia das luzes com a revolu­ ção e o jacobinismo. Segundo Mounier - é ele o autor - se pode criticar Rousseau por ter fornecido argumentos ou sugestões aos jacobinos com seus "sonhos obscuros e quiméricos" ou com seu ideal de "democracia despótica ou absolu­ ta". 506 Mas nem Voltaire nem a autêntica filosofia iluminista podem ser suspei­ tos de cumplicidade ou de indulgência para com a "anarquia'', com os "bajuladores da multidão" ou, pior, com o "fanatismo da multidão". Os autênti­ cos philosophes nada têm a ver com as teorias e as práticas daqueles que se esganavam por causa das "polêmicas teológicas" mais ainda que políticas e que, na sua pretensão de difundir com as armas em punho suas doutrinas, seguiam em última análise o exemplo de Maomé.507 Com todas as críticas que podem dirigir uns aos outros, de qualquer modo é preciso não esquecer que Voltaire "arrasou a superstição e a intolerância" sob qualquer forma.508 Mas é sobretudo Mallet Du Pan (um patrício que fez parte do círculo dos am igos de Voltaire, de quem aprecia em particular as tiradas contra a 5º3 Gcntz, 1836-8, vol. II, p. 27. 504 Gentz, 1 83 6-8, vol. II, pp. 4 e 27. 505 Genlz, 1836-8, vol. II, pp. 29 e 52. 5º6 Mounicr, 1 80 1 , p. 1 9 c 1 1 9. 507 Mounier, 1 80 1 , pp. 1 26, 1 1 8-9 e 1 3 1 . sox Mouni cr 1 80 1 , p. 1 8. ,

canaille)5º9 que estabelece uma antítese entre os iluministas de orientação moderada e Rousseau, "o homem que tinha como inimiga a pluralidade dos filósofos de Paris" e que "se tornou o profeta da França revolucionária".510 Não perceberam isso aqueles que, condenando a revolução, assimilaram Rousseau aos philosophes. Que erro colossal! "Era preciso opor a eles este formidável desertor, em vez de colocá-lo sob a própria bandeira deles para depois combatê-lo com as capucinades".51 1 São palavras que bem poderiam exprimir a nova atitude de Nietzsche, o qual deixou de condenar em bloco a época filosófica e cultural que precede o estouro da Revolução Francesa, e de condená-la recorrendo, certamente não a capucinades, mas de qualquer modo a argumentos que sentem a influência do tradicionalismo. É ou se considera discípulo de Voltaire o conde de Rivarol, empenhado em contrapor os seus dessacralizadores bon mots ao fanatismo e às loucuras do populacho. Nas suas discussões Nietzsche, que o cita algumas vezes, tem uma atitude simpática, tanto mais porque se trata de um "virtuoso da palavra", segun­ do a definição de Saint-Beuve.512 Nietzsche pode ter deduzido outras informa­ ções sobre o iluminismo antirrevolucionário das obras dos historiadores da Revo­ lução Francesa, que desempenharam um papel importante na sua formação (infra, cap . 2 8 § 2). Enfim, de Mallet du Pa.n ele poderia ter lido em Taine a dura crítica dirigida ao Contrato social: esta obra "que dissolve a sociedade foi o Alcorão dos participantes do comício de 1 789, dos jacobinos de 1 790, dos republicanos de 1 79 1 e dos dementes mais atrozes".513 No entanto, ao retomar e subscrever esta condenação, o historiador francês a estende também à "filosofia do século xvm" no seu conjunto. Ela "assemelha-se a uma religião, ao puritanismo do século xvn, ao maometanismo do século vn " . As características comuns são evidentes: "O mesmo ímpeto de fé, de esperança e de entusiasmo, o mesmo espírito de propa­ ganda e de domínio, a mesma rigidez e intolerância, a mesma ambição de recriar o homem e de modelar toda a vida humana segundo um tipo preestabelecido". 514 Nietzsche, ao contrário, deixando para trás a atitude assumida em O nascimento da tragédia, se preocupa em distinguir claramente entre Rousseau de um lado e Voltaire e o iluminismo propriamente dito do outro. A evocação da filosofia das luzes em função antirrevolucionária é tanto mais fácil pelo fato de que a própria revolução às vezes assume uma linguagem 509 Gay, 1 99 1 , p. 259. ln Matteucci, 1 957, p. 37 1 . 511 ln Matteucci, 1 957, p. 129. 512 ln Mattcucci, 1957, p. 263. m Taine, 1899, vol. II, p. 1 8 1 (= Taine, 1986, pp. 549-550). 514 Taine, 1899, vol. 11, p. 2 (= Taine, 1986, p. 372). 51º

religiosa. A proclamação que, na onda da revolução de fevereiro de 1 848 abole a escravidão nas colônias, condena este instituto como estando em contradição com o "dogma republicano: Liberté, Ega/ité, Fraternité".515 Mais tarde, Marx cita um escritor francês estimado por ele, mas não comunista, pelo qual os comunardistas e os socialistas são "fanáticos" no sentido bom do termo. 516 Por outro lado, também em Renan se pode ler que o iluminismo e a Revolução Francesa elevaram a liberdade do indivíduo como "nova fé da humanidade" (e é uma tese que chama a atenção de Burckhardt).517 Então se compreende bem a atitude de Nietsche. Mas é preciso acres­ centar ou estabelecer detalhadamente que as suas tomadas de posição a favor do iluminismo estão longe de ser unívocas e incondicionadas. A Volhaujklarung condenada nas conferências de Basileia não é certamente reabilitada. E tam­ bém nisso se pode constatar a analogia com o iluminismo antirrevolucionário que, pela boca, por exemplo, de Mallet, declara: "as lumieres, ao se multiplica­ rem, se tomaram a arma tanto do mau como do justo".518 O aforismo ampla­ mente citado de Humano, demasiado humano, que declara que o iluminismo apoia a luta contra a revolução, não tem por acaso o título de A pericu/osidade do iluminismo, e é uma periculosidade que parece ser também mais o resulta­ do de uma dialética interna do que das manobras dos ideólogos e dos protago­ nistas da revolução. Pode-se bem denunciar o caráter instrumental da referên­ cia dos fanáticos da subversão a essa corrente de pensamento; continua verda­ deiro que, uma vez "ligado a um ser violento e rude, o iluminismo se toma também violento e rude" {WS, 22 1 ) . Nietzsche sublinha o caráter benefica­ mente ideológico da religião: ela neutraliza o conflito social à medida que "for­ nece uma atitude pacata de espera e de confiança na multidão", o que é tanto mais apreciável "em tempos de perda, de privação, de medo e de desconfian­ ça", ou seja, do surgimento de "carestias, crises financeiras, guerras" (MA, 472). Também, independentemente das situações de crise, "a religião cristã é muito útil, porque nela a obediência do servo (Servilittit) toma a semelhança de uma virtude cristã e é maravilhosamente embelezada" (MA, 1 1 5). Esta reco­ mendação ao servo da religião (e da obediência) é a confirmação da perma­ nente hostilidade em relação a qualquer "iluminismo popular". O iluminismo antirrevolucionário que se desenvolve entre França, Suíça francófona e Alemanha - não é por acaso que Gentz é de vez em quando definido 515 Wallon, 1 974 a, p. CLXV. 51 6 Marx-Engels, 1955, vol . XVII, p. 36 1 . 5 1 7 Burckhardt, 1978 b, p . 234. 51 8 ln Ma tteucci , 1957, p. 129.

como "um Mallet du Pan alemão"519 - por um lado distingue Voltaire de Rousseau e, por outro lado, condena conjuntamente o autor do Contrato social e o idealismo alemão. Mallet du Pan se exprime em termos bastante severos sobre "sábias mixór­ dias dos Doutores alemães", estes "filósofos inconvertíveis" cheios "de raiva dogmática".520 O Nietzsche "iluminista" também se junta à condenação de Kant e Rousseau, pois ambos ainda estão presos na rede do fanatismo e do teologismo. O tema do idealismo alemão como pendant teórico da Revolução Francesa, presente em Hegel, Fichte, Heine,521 aparece também, com um juízo de valor desta vez nega­ tivo, tanto em certos expoentes do ilwninismo antirrevolucionário como em Nietzsche. Em relação a este último, é clara a virada que se verifica nele. A prolongada batalha com a França tinha dado poderoso impulso à tendência a contrapor tradições nacionais reduzidas a estereótipos; e o próprio Nietzsche tinha partill1ado amplamente dela, configurando a dicotomia entre visão trágica da vida e otimismo vazio como o conflito entre duas essências irreconciliáveis, a germânica de um lado e a latina (infectada de judaísmo) do outro. A esse respeito já tinham surgido algumas dúvidas na terceira Inatual, que tinha lido no Fausto de Goethe "o reflexo mais alto e mais ousado do homem de Rousseau" (SE, 4; 1, 369-70). Mas sobretudo os escritos do periodo ''iluminista" chamam a atenção para a influência exercida pela cultura fran­ cesa, em particular por Rousseau, em terra alemã. O filósofo subversivo por excelên­ cia deixou um traço profundo não só em Kant, mas igualmente em Schiller e Beethoven {WS, 2 1 6), e, como vimos, no próprio Goethe. Não tem sentido a pretensão de consi­ derar estranha à Alemanha a doença revolucionária e moderna. Quem incorre nessa ingenuidade e esquece as múltiplas relações com a cultura do país de Além-Reno, porque está cego pela galofobia, é "só o 'rapaz alemão"' (der deutsche .lüngling) (WS, 2 1 6), isto é, o Bursche, o membro da Burschenschaft e mítico protagonista da resistência antinapoleônica. Bem di­ ferente fora o juízo formulado a tal propósito pelas conferências Sobre o futu­ ro das nossas escolas. A última, a modo de conclusão, tinha celebrado junto com a Burschenscha.fi no seu conjunto, o "rapaz" (.lüngling) empenhado na luta contra "a barbárie não alemã" (em primeiro lugar francesa) (supra, cap. l § 5). Agora é claro o distanciamento de tal ideologia. Não só a doença da subversão atacou também a cultura alemã, mas nesse caso a purificação do iluminismo das contaminações revolucionárias é mais difícil que nunca, por causa da presença decisiva de Kant, profundamente influenciado por Rousseau. 5 1 9 Baxa, 1 966, vol. I, p. 3 1 1 (o próprio Gentz relata isto numa carta a Adam Müller de 22 setembro de 1 807). 520 ln Matteucci, 1 957, p. 375. 52 1 Losurdo, 1997 a, cap. IV, 2.

1 O. O filósofo "andarilho " Nietzsche é bem consciente do corte ocorrido na sua própria evolução. Parece dirigir-se a Wagner, esforçando-se por compreender as razões e ao mesmo tempo solicitando-lhe não perder de vista as do ex-discípulo, um dos aforismos que concluem Aurora: O desgosto despedaça o coração daquele a quem cabe consumar a experiên­ cia do abandono em que foi deixada a sua ideia, a sua fé, principalmente por aqueles a quem mais se amava - isto faz parte da tragédia, da qual os espíri­ tos livres são protagonistas, e de que às vezes estão conscientes! Devem também por uma só vez descer até entre os mortos, como Odisseu, para aliviar a sua aflição e aquietar a sua ternura (M, 562).

O filósofo parece falar consigo mesmo quando observa: Não se deve ficar apegado a uma pessoa; mesmo que seja a mais amada toda pessoa é um cárcere e também um recanto. Não se deve ficar apegado a uma pátria: mesmo que seja a mais sofredora e a mais necessitada de ajuda ­ é já menos difícil separar o próprio coração de uma pátria vitoriosa (JGB, 41 ).

Desde o início o filólogo-filósofo se revela também um grande moralista, e como grande moralista zomba daqueles para quem a falta de problemas e de dúvidas é a demonstração do rigor e da irrefutabilidade das doutrinas deles: Tem-se um perfeito sinal da boa qualidade de uma teoria quando o seu autor por quarenta anos não concebe nenhuma desconfiança para com ela; mas eu sustento que não existiu ainda um filósofo que não tenha acabado olhando com desprezo - ou pelo menos com suspeita - para a filosofia que a sua juventude inventou (MA, 253).

É verdade - admite Nietzsche -, verificou-se uma virada no seu pensa­ mento, mas ela é realmente sinônimo de incoerência? "'Contradizes hoje o que ensinaste ontem' . - 'Mas ontem não é hoje"' (IX, 598). Não se trata só de uma vivência pessoal: "A serpente que não pode mudar de pele morre. O mesmo acontece aos espíritos aos quais se impede de mudar as suas ideias: deixam de ser espírito" (M, 5 73). Aos amigos que o convidam a voltar às origens e a escrever de novo "um livro nietzscheano",522 o filósofo parece responder: "Não tenho o talento de ser fiel e - o que é pior - nem tenho a vaidade de parecer tal" (VIII, 50 1). A "fidelidade" e jurar fidelidade não são um valor (MA, 629), 522 Ross, 1 984, p. 527.

como, ao contrário, pensavam os teutômanos, que faziam da Treue um elemen­ to fundamental da tabela das virtudes alemãs: Somos obrigados a permanecer fiéis aos nossos erros, mesmo quando com­ preendemos que com essa fidelidade causamos dano ao nosso eu superior? Não, não há nenhuma lei, nenhuma obrigação do gênero; devemos tomar­ nos traidores, cometer infidelidade, abandonar sempre de novo os nossos ideais (MA,629). ·

O ra, os aconteci mentos pessoais s ão a p rova da angú stia e do provincianismo da ideologia teutômana. Com a sua celebração acrítica da "fi­ delidade", ela se configura como um cárcere para o indivíduo, cujo processo de desenvolvimento e de maturação procura bloquear: Quem não passou por diversas convicções e pemianece apegado à fé nas qual se enredou pela primeira vez, é em todas as circunstâncias, exatamente por essa sua imutabilidade, um representante de civilização atrasada; [... ] é duro, irracio­ nal, teimoso, sem mansidão, um eterno suspeito, um irrefletido (MA, 632).

A metamorfose é uma lei geral, ou, pelo menos, é uma lei geral das soci­ edades mais avançadas, fundadas mais sobre a mobilidade do que sobre o apego supersticioso a ideologias que são transmitidas de geração em geração. Aos críticos da sua presumida incoerência e infidelidade, que na realidade ao argumentar assim demonstram não ter compreendido nada da sua natureza mais íntima, Nietzsche objeta: Somos trocados por outros - isto faz com que nós mesmos cresçamos, nos transformemos continuamente, façamos cair as velhas cascas, mudar de pele a cada primavera, tomar-nos sempre mais jovens, além de ficarmos mais altos, mais fortes, aprofundar nossas raízes com potência sempre maior na profundeza (FW, 37 1 ).

Eis que então Nietzsche se identifica com a figura do andarilho: "Quem também em certa medida atingiu a liberdade da razão não pode depois sentir-se na terra senão como um andarilho - não alguém que viaja diretamente para uma meta final, porque esta não existe". Ele "não poderá ligar o seu coração solidamente demais a alguma coisa particular: deve haver nele mesmo algo de errante (etwas Wanderndes), que encontre a sua alegria na mudança e na transitoriedade" (MA, 638). A figura do andarilho parece referir-se à figura do judeu errante, evocada em termos asperamente críticos por Wagner na conclusão de seu ensaio sobre o O judaísmo na música. O próprio Nietzsche, mais tarde, fala da "vida nômade", do

'judeu eterno'', ou seja, do judeu errante (JGB, 25 1 ; WA, 3) e Zaratustra é definido como um "andarilho" que poderia ser trocado por um 'judeu errante", não fosse pelo fato de que ele não é nem 'judeu" nem "eterno" (Za, IY, A sombra). A atitude "iluminista" agora assumida por Nietzsche é cada vez mais car­ regada de acentos de orgulho e de desafio nas comparações dos ambientes culturais e políticos, até dos amigos, com os quais se consuma a ruptura: "O destino nos confere o máximo sinal de honra, quando nos faz combater por certo tempo ao lado dos nossos adversários. Com isto estamos predestinados a uma grande vitória" (FW, 323). A essa altura, a reivindicação do direito à mu­ dança de opinião tende a configurar-se como um gesto de distinção: uma sofri­ da evolução espiritual é parte integrante do processo de formação do "homem do conhecimento" (FW, 296), é a inevitável Odisseia, ou antes a "trágica Prometeia de todo homem do conhecimento" (FW, 300). Sim, "saber suportar a contradição constitui um elevado sinal de cultura", é uma característica do "homem superior" (FW, 297), ou antes, do "homem de gênio" (WA, 3). Eis que o grande moralista tende a ceder o lugar ao teórico do elitismo; ou, melhor, as duas figuras se entrelaçam estreitamente. Verificou-se uma mudan­ ça com respeito aos anos de O nascimento da tragédia. Não há mais espaço para o gesto de distinção constituído pela celebração da "profundidade" da essência "germânica" contra o vazio otimismo latino e judeu. Agora, porém, Nietzsche zomba da "ostentação de profundidade germânica e das sutilezas cerebrais" que podem ser lidas em Kant e, em particular, na Crítica da razão pura (JGB, 1 1 ). Eventualmente, a distinção é buscada e descoberta na exce­ lência do homem europeu no seu conjunto. Uma mesma lei preside o desenvol­ vimento da civilização e dos indivíduos: o incessante devir constitui a grandeza e a permanente juventude da Europa, em contraposição com o "espírito da duração", para a imobilidade e a senescência de uma cultura como a chinesa (infra, cap. 9 § 5).

1 1 . Nietzsche na escola de Strauss A radicalidade da virada de Nietzsche não escapa aos contemporâneos, a começar por Wagner, o qual chama a atenção para a influência (funesta) exercida sobre o jovem filólogo-fi l ósofo, ainda em busca do seu caminho, por Rée e por Burckhardt.523 Não há dúvida que a relação de estima e amizade instaurada com o brilhante intelectual judeu tinha contribuído para pôr em crise 523 Ross, 1 984, pp. 522-3 ; Janz, 198 1 , vol. II, p. 99.

a judeofobia anterior. Considerações análogas valem também para o segundo encontro. A sua eficácia foi provavelmente além do que teriam pensado Richard e Cosima Wagner, os quais fazem referência sobretudo ao calor com que o historiador de Basileia se exprime sobre o Renascimento e ao "tom fanfarrão, friamente depreciativo" com que liquida a mitologia da Idade Média germânica. 524 Há mais . O quadro i_mpiedoso que Burckhardt traça do início do II Reich deve ter contribuído para ridicularizar, também aos olhos de Nietzsche, a pre­ tensão da nova Alemanha de erguer-se como paladino da luta contra a "civili­ zação" ou, de qualquer modo, representar uma alternativa com respeito à massificação e à vulgaridade moderna. Na realidade - observa o historiador de Basileia - assistimos ao "aumento ininterrupto, extraordinário do sentido do lucro", com as especulações e as fraudes ligadas a ele. "As chamadas 'melho­ res cabeças ' se dedicam ao comércio"; "a produção espiritual no campo da arte e da ciência deve fazer um grande esforço para não se degradar a simples ramo da economia da metrópole, para ser independente da publicidade e da caça do sensacional". Não parece haver mais espaço para a cultura autêntica: "Tudo deve tomar-se um simples business, como na América?"525 Além do quadro alemão, também a análise da situação que se criou na Europa no seu conjunto está agindo por trás de Humano, demasiado humano . "Sentido de potência e sentido democrático estão no mais das vezes interliga­ dos", observa Burckhardt,526 que revela assim a Nietzsche uma nova perspec­ tiva de leitura da política internacional de Bismarck e, além dela, das tendências de fundo da modernidade. O advento do sufrágio universal não tinha talvez acompanhado, estimulado e consagrado a construção do II Reich? E o aumen­ to do aparelho militar não andava lado a lado, como já tinham observado as conferências Sobre o futuro das nossas escolas, com o acesso de novas camadas à instrução e com perspectivas de mobilidade social, isto é, com a ulterior massificação e democratização da sociedade? Aliás, é muito provável que a influência tenha sido recíproca. Quando vemos Burckhardt sublinhar o "otimismo" próprio da Revolução Francesa e da sociedade industrial, ou seja, pôr em evidência a sombra sempre mais pesada que a "imprensa diária" lança sobre a cultura,527 somos levados a pensar nas denúncias angustiadas que faz o jovem colega do historiador de Basileia. 524 C. Wagner, 1976-82, vol. II, pp. 589 e 837. 5 2 5 Burckhardt, 1 978 a, pp. 148-9. 526 Burckhardt, 1978 a, p. 149. 527 Burckhardt, 1978 a, pp. 149-50.

Mas é só a Rée e a Burckhardt que é preciso fazer referência? Certa­ mente, é o próprio filósofo aqui investigado que sugere essa pista. Talvez este­ jamos na presença de uma remoção. Como se sabe, na sua primeira edição de 1 878, Humano, demasiado humano. Um livro para espíritos livres aprovei­ ta a ocasião do centenário da morte de Voltaire para prestar homenagem "a um dos maiores libertadores do espírito". No entanto, antes de se pôr a trabalhar na severa crítica de Strauss, Nietzsche apenas uma vez faz referência, genéri­ ca e polêmica, ao iluminista francês: "Voltaire recitou de modo tão patetica­ mente monótono também os seus poemas" (VII, 3 1 8). Não há dúvida de que a primeira verdadeira ocasião de encontro com o grande iluminista é constituída pela leitura de A velha e a nova fé . Topamos aqui com uma interpretação da filosofia das luzes que, enquanto ignora (ou contesta) a sua contribuição para a preparação ideológica da Revolução Francesa, põe em evidência e celebra o aspecto da luta contra o espírito ascético, visionário e intolerante da Idade Média. Certamente, avaliações negativas da carga antidogmática do iluminismo po­ dem ser lidas já em Schopenhauer. Este, no entanto, para levantar barreira à maré revolucionária não chama mais as luzes, mas um cristianismo desjudaizado e despelagianizado, cheio de temas ascéticos e, portanto, medievalizante de­ mais do ponto de vista do Nietzsche iluminista. De qualquer modo, é preciso não esquecer que, em O nascimento da tragédia, o homem de Voltaire e o homem de Rousseau parecem ser o mesmo: o socratismo se revela acometido de hybris no plano teórico e no plano prático, quer penetrar nos recessos mais secretos da realidade para poder radicalmente transformá-la e subvertê-la. O quadro já começa a mudar com a terceira Inatual; entrementes ocorreu o choque conflitivo com Strauss. Agora "o homem de Rousseau" parece assumir uma fisionomia peculiar, mas é significativo que este retrato seja traçado tendo sempre em vista o perigo da "revolução [ . . . ] atomística", o perigo representado pelo advento da "época dos átomos, do caos atomístico": chegou a faltar a força de coesão da Igreja que - sublinha Nietzsche - "na Idade Média" estava em condições de manter juntas "as forças hostis" (SE, 4; 1, 3 68-9). Dir-se-ia que a revolução atomística, da qual o homem de Voltaire é de algum modo protagonista, continua a ser o pressuposto de violen­ tas agitações com as quais está comprometido o homem de Rousseau. As duas figuras não se identificam mais, no entanto a ação violenta da segunda pressu­ põe sempre a crítica dissolvente da primeira. É só com Humano, demasiado humano que o homem de Voltaire se toma a antítese do homem de Rousseau, com uma atitude não diferente daque­ la de Strauss, o qual contrapõe o grande iluminista tanto à Idade Média como ao "bubão socialista". Mas há ainda outros temas ou estímulos que Nietzsche

deduz de A velha e a nova fé. Pode-se até perguntar se na própria escolha do título do livro, que marca a virada do filósofo, não está agindo a leitura de Strauss. Este observa que Reimarus "em todo o desenrolar da história bíblica não encontra nada de divino, mas tanto mais de humano (um so mehr Menschliches) no pior sentido do termo".528 O que chama a nossa atenção devem ser sobretudo os pontos de contato relativos à anál ise do cri�tianismo. Por enquanto é de se notar a sua origem oriental, bem mais clara e inquietante do que no judaísmo: basta pensar - ob­ serva Strauss - na Eucaristia, que lembra a "horrível metáfora oriental de be­ ber o sangue e de comer a carne de um homem". 529 "A doutrina cristã da conciliação", com base na qual as conseqüências catastróficas do pecado ori­ ginal são superadas graças ao sacrificio de Cristo, tem por trás a prática do bode expiatório" com a qual povos rudes achavam que aplacavam os seus deuses". 530 Já em Strauss o cristianismo é muito mais oriental do que o judaís­ mo, bem antes do que em Humano, demasiado humano . A velha e a nova fé parece também antecipar alguns temas fundamen­ tais da maturidade de Nietzsche. Aos olhos de Strauss, o socialismo se coloca numa linha de continuidade com relação ao cristianismo, uma religião toda pe­ netrada de malevolência e hostilidade em relação à "propriedade" e à riqueza enquanto tal . Com transparente referência à parábola de Lázaro e do rico Epulão, Strauss observa: "Nos Evangelhos, ao homem rico é reservado o inferno sim­ plesmente pelo fato de ter passado todos os seus dias de maneira esplêndida e entre prazeres ; de resto, não sabemos de nenhuma injustiça cometida por ele". 531 Por outro lado, exatamente porque está movida por um ódio de classe, a fé dos pobres, pelo menos nos anos da cristandade primitiva, não olha tanto para o "nosso atual além espiritualista", mas para algo mais concreto e material : é a ''espera do céu na terra". 532 Somos levados a pensar no Anticristo, que verá no juízo universal, destinado a punir os ricos e recompensar os pobres, uma espécie de revolução socialista adiada no tempo. A moral judeu-cristã, animada como está pelo ressentiment para com a riqueza e o poder - observará Nietzsche mais tarde -, de modo algum é politica­ mente inócua. Ela se revela mais como o instrumento de luta de uma plebe que vive numa sociedade "absurdamente impolítica"; embora recorra a uma lingua­ gem à primeira vista sideralmente distante com relação aos conflitos terrenos, 528 Strauss, 529 Strauss, m Strauss, 53 1 Strauss, 532 Strauss,

1872, p. 36. 1 872, p. 9 1 . 1 872, p . 27. 1872, p. 63. 1 872, p. 74.

Jesus deve ser considerado "um delinqüente político'', que nos nossos dias mere­ ceria o degredo na Sibéria reservado aos niilistas russos (infra, cap. 1 5 § 2). Para compreender a gênese do cristianismo - afirma já A velha e a nova fé - é preciso partir da situação dos judeus no âmbito do Império Romano, que pode ser comparada à situação "dos atuais poloneses sob a Rússia". Dadas as relações de força, não havia espaço nem para uma sublevação armada com alguma esperan­ ça de sucesso, nem para "a atividade pacífica do cidadão": a "barreira de todo caminho de saída mundana" conferia também "um ritmo visionário" a qualquer aspiração política.533 Todavia, a dimensão política do cristianismo aparece com clareza, e toda a sua carga de violência implícita, na própria "crença no diabo" e na condenação dos adversários ao inferno, e até dos inocentes aos quais a sorte negou a possibilidade do batismo e da salvação. 534 Também no que respeita ao grande tema do niilismo, não se pode deixar de lado a influência de Strauss. Não é tão importante o fato de que este recorra à categoria e ao termo em questão ainda antes que Nietzsche. Outro elemento, so­ bretudo, dá o que pensar: bem longe de ter uma função edificante de condenação do ateísmo, a acusação de "niilismo" não poupa absolutamente a religião dominante na Alemanha e no Ocidente, antes atinge, em primeiro lugar, o cristianismo, além do budismo. Um e outro convidam os homens de modo explícito a desprezar a vida e a totalidade do real, para perseguir "o nada, ou seja, o reino dos céus": o niilismo consiste exatamente na atitude "visionária de negação do mundo", de "rejeição de todo elemento terreno". 535 A definição desse mal obscuro leva claramente a pensar no Nietzsche dos anos seguintes, ao passo que os escritos do período pré-"iluminista" se caracterizam pelo valor negativo conferido à "mundanização", à qual é contra­ posta a "arte", mas também a "religião" (supra, cap. 4 § 6). Voltemos, porém, a Strauss. Marcada como está pelo cristianismo, a Idade Média é um período histórico caracterizado pelo "desprezo do mundo".536 Fa­ zendo próprio e depois enfatizando esse "pessimismo" budista e cristão, e perma­ necendo apegado à "velha visão do mundo cristão-religiosa",537 o próprio Schopenhauer se revela acometido de niilismo; e também dessa análise Nietzsche se aproveitará quando passar para o ajuste de contas com o ex-Mestre. A fuga do mundo tem algo de louco: A velha e a nova fé fala de "fé delirante" (Wahnglauben) com relação à crença dos primeiros cristãos na resm

Strauss, 1 872, p. 65-6. Strauss, 1 872, p. 22-4. m Strauss, 1 872, p. 6 1-2 e 74. 536 Strauss, 1 872, p. 8 1 . 537 Strauss, 1 872, p. 6 1 -2 e 147. m

surreição de Jesus, ao passo que o Lutero que condena o ascetismo monástico e as "mortificações inúteis da carne" revela "a humanidade mais sadia".538 Mais que nunca desdenhosa é a esse respeito a primeira Inatual: Strauss é tão vulgar e filisteu que condena corno "nociva e estéril" a filosofia de Schopenhauer e a sua no/untas (DS, 6; 1, 1 92) e descreve Jesus "como um fanático que na nossa época dificilmente escaparia do manicômio" (DS, 7; 1, 1 93). É uma crítica seme­ lhante à de Treitschke, também ele escandalizado, corno sabemos, pelo fato de ver a religião reduzida a urna espécie de "doença". Contudo, tais categoria e abordagem psicopatológica desempenharam um papel importante no diagnóstico do cristianismo feito por Nietzsche a partir do seu período "iluminista". Até no que diz respeito à análise e à história dos sentimentos morais, Nietzsche pode ter achado pontos úteis mais ainda em Strauss do que em Rée. Pode ter lido no livro impiedosamente criticado que a ideia de 'justiça" está em função do "crescimento do grupo", como ela é percebida e avaliada pelos "mem­ bros da horda" no seu conjunto. De modo que "no interior de cada tribo surgem gradualmente primeiro costumes, depois leis, enfim uma doutrina dos deveres éticos". 539 Longe, portanto, de ser ditada por normas transcendentes ou por um imperativo categórico a partir de fora do tempo e do espaço, a moral reme­ te à história e à pré-história do homem e também das "espécies animais supe­ riores": com elas é possível encontrar os "inícios do sentimento moral" e eles se manifestam "em ligação com os seus impulsos sociais". 540 Ao formular esta tese, A velha e a nova fé se refere a Darwin. A primei­ ra Inatual mostra desprezo pelas comparações do naturalista inglês e por seus seguidores em terra alemã, a começar por Strauss, a propósito do qual Nietzsche ironiza: "É tão tímido quando fala da fé, tão redonda e cheia se torna a sua boca quando é citado o maior benfeitor da novíssima humanidade, Darwin: então ele exige fé não só para o novo Messias, mas também para si, o novo apóstolo" (DS, 9; 1, 2 1 2). No entanto, como se pode ver, Humano, demasiado humano inicia evidenciando a ligação entre "filosofia histórica" e "ciências naturais", ou seja, inserindo a história do homem no âmbito da história da natureza, tirando assim proveito da lição de Darwin, aprendida mediante e graças a Strauss. Este último chama a atenção para as antecipações que a teoria evolucionista conheceu em terra alemã. De modo análogo procede A gaia ciência, fazendo referência não mais a Kant ou a Laplace, mas a Hegel, o qual "ousou ensinar que os conceitos de espécie de desenvolvem um a partir do Bs Strauss, 1 872, pp. 73 e 82. 539 Strauss,

1872, pp. 232-3. 540 Strauss, 1 872, p. 207.

outro"; nesse sentido, "sem Hegel não haveria Darwin" (FW, 357). A esse propósito se pode fazer uma consideração de caráter mais geral . Polemizando contra toda forma de chauvinismo e colocando-se de um ponto de vista euro­ peu, A velha e a nova ft sublinha que foram mais países que promoveram a visão racionalista e secularizada do mundo, em contraposição com a medieval. E agora vejamos de que modo, polemizando contra os teutômanos, Nietzsche lê Schopenhauer: "O ateísmo absoluto, honesto, é exatamente o pressuposto da sua problemática", mas, bem longe de constituir um exclusivo título de glória dos alemães, "a vitória do ateísmo científico é um acontecimento totalmente europeu, para o qual todas as estirpes devem dar a sua contribuição de mérito e de honra": aqui podemos saudar "uma vitória final e com dificuldade conquis­ tada pela consciência europeia" (FW, 357). Enfim, um problema. Como explicar a passagem, na queda do mundo antigo, do paganismo ao cristianismo, de uma religião ligada à terra e ao corpo para uma religião tão enfaticamente espiritualista e ascética? A primeira Inatual observa: Strauss não sabe explicar o impulso de negação terrivelmente sério e a tendên­ cia éi santificação ascética dos primeiros séculos do cristianismo a não ser com base numa saciedade anterionuente alcançada de prazer sexual de todo gêne­ ro, e de náusea e mal-estar assim provocados (DS, 6; 1, 1 93).

De modo análogo argumenta também Heine, neste momento incluído en­ tre os "incidentes na formação da cultura alemã" (VII, 5 04) e repetidamente aproximado a Strauss (VII, 600- 1 ) Pois em Heine podemos ler: .

Não pretendemos, todavia, negar aqui a utilidade passada, para a Europa, da concepção cristão-católica do mundo. Ela foi uma reação necessária, salutar para o monstmoso, colossal materialismo que se alastrara no Império Roma­ no e que começava a aniquilar tudo o que havia de esplendor espiritual no homem. Como as memórias lascivas do século passado constituíram, por assim dizer, as piecesjustificatives da Revolução Francesa; como o terror do Comité du saiu! pub/ic nos parece um remédio necessário quando lemos as confissões da alta sociedade francesa a partir da época da Regência: assim devemos também reconhecer a utilidade do espiritualismo ascético se lemos, por exemplo, Petrônio e Apuleio, cujos livros podem ser considerados as piecesjustificatives do cristianismo. No mundo romano de então a carne tinha um domínio tão incontestável que a disciplina cristã se apresentou como o remédio ex1remo contra ela. Depois do banquete de Trimalcião que­ ria-se a dieta de fome imposta pelo cristianismo.54 1 54 1 Heine, 1969-78, vol. III, pp. 362-3.

Convinha citar por extenso este trecho porque ele pode fornecer-nos a cha­ ve para compreender a aspereza da polêmica de Nietzsche. A seus ouvidos, a justificação parcial do cristianismo como reação espiritualista para a dissolução da aristocracia romana soa como uma justificação parcial do moralismo jacobino que se desenvolveu também na onda da luta contra a opulência libertina de uma nobreza em decadência. Veremos que também o tema da reação espiritualista representada pelo cristianistno aparecerá em Nietzsche. Mas com uma diferen­ ça fundamental, que emerge sobretudo da comparação com Heine. No poeta discípulo de Hegel, não obstante a condenação explícita de toda visão ascética e "nazarena" da vida, é sempre o Antigo Regime que faz má figura, seja o da Roma pagã e imperial, seja o varrido pela Revolução Francesa. Em Nietzsche acontece o contrário: por severo que possa ser o juízo crítico sobre a nobreza romana ou francesa, fica claro que elas são derrubadas por movimentos políticos e sociais que agravam e aceleram o processo de decadência (infra, cap. 30 § 1).

1 2. Biografia, psicologia e história na virada "iluminista " Portanto, ao reconstruir a evolução de Nietzsche, é preciso não descuidar dos seus encontros e das suas leituras, inclusive das leituras asperamente polê­ micas. Mas isso basta para explicar a virada? Da apostasia do seu ex-discípulo, e do seu modo até provocador de se comportar, Wagner não consegue conven­ cer-se, como aparece numa anotação de diário de Cosima datada de 2 1 de fevereiro de 1 8 80: "Podemos abandonar as predileções errôneas, como por exemplo a minha por Feuerbach, mas não podemos insultá-las". 542 Este desa­ pontamento coloca um problema real para o intérprete: como explicar a radicalidade da virada? Devemos pensar que houve um encontro ou uma leitu­ ra fulgurante? Um testemunho significativo (o de Malwida von Meysenbug) refere que Nietzsche teria entrado em contato, através de Rée, com os mora­ listas franceses, dos quais teria depois tirado o estilo aforístico. 543 Na realida­ de, já no Natal de 1 870, Nietzsche recebe de presente as obras completas de Montaigne, e as recebe de presente - ironia da sorte - exatamente de Wagner (B, II, 1 , p. 1 72), contra quem serão depois utilizadas . Estamos, portanto, na presença de uma leitura que age lentamente e longamente e que se entrelaça com numerosas outras, sobretudo com aquelas, talvez mais silenciosas e me-

542 C. Wagner, 1 976-82, vol. II, p. 494. 543 Meysenbug, 1 902, pp. 24-5.

nos aparentes, dos clássicos gregos e romanos . Portanto, não estamos na pre­ sença de uma fulguração súbita brotada de um encontro cultural ou pessoal. Tampouco a psicologia tem poder de fornecer a chave decisiva de expli­ cação da virada, como sugere sempre Wagner: "Só para se livrar de mim se entrega a qualquer banalidade". 544 Mesmo se o biógrafo parece pelo menos parcialmente valorizar esse tipo de abordagem,545 na realidade não vai muito longe. Na melhor das hipóteses pode contribuir para explicar algum ponto ou alusão polêmica e, mais em geral, a atitude de desafio com que, em geral, Nietzsche apresenta as suas novas teses, não mais o seu conteúdo. Não é mais válida a própria explicação polêmica que o ex-discípulo fornece da admiração ou veneração há muito percebida em relação ao ex-Mestre: os jo­ vens são "tão pouco cautelosos em se decidir por esta ou aquela coisa", o que os atrai "é a vista do fervor que circunda uma causa e por assim dizer o espetáculo do rastilho que queima - não já a causa em si mesma". Disso aproveitam-se "os mais hábeis sedutores": eles se abstêm de "dar um fundamento à sua causa'', ou de aduzir "razões", para apelar então para seu fervorjuvenil (FW, 38). É neste contex­ to que Nietzsche coloca a sua judeofobia anterior: "Perdoem-me se também eu, fazendo uma breve parada arriscada numa região muito insalubre, não for de modo algum poupado pela doença" (JGB, 25 1 ) . Na realidade, datam de muito antes do encontro com Wagner tanto a judeofobia como a teutomania: apesar de tudo, foi Cosima que aconselllou cautela com referência à questão judaica e a tentar, inutil­ mente, dissuadir ojovem professor de filologia clássica a abandonar o ensinamento para entrar voluntariamente nas fileiras do exército prussiano.546 Mais do que absolutizar esta ou aquela leitura, este ou aquele episódio da biografia, este ou aquele traço da psicologia, convém concentrar-se no modo de Nietzsche filosofar. Não podemos fugir da presença constante e do peso da história e da realidade política. Como podia ele permanecer indiferente diante daquela que a seus olllos aparece, não sem razão, como uma virada epocal? O país dos pensa­ dores e dos poetas está agora à frente do desenvolvimento capitalista; havia posado como o paladino da luta contra a revolução e agora a promove no país derrotado; havia se apresentado como o antídoto para a modernidade e agora, ao contrário, a exprime até o fundo e nos seus aspectos mais repugnantes, a caça ao dinheiro e o desenfreado ativismo industrial e mercantil, o sufrágio universal, a obrigação esco­ lar, o peso dos sindicatos e do movimento socialista. Se o Nietzsche "metafisico" est{t empenhado em fazer o balanço histórico e filosófico do ascenso da Prússia e Wagner, 1 976-82, vol. II, p. 5 1 7. 1 98 1 , vol. II, p. 99. 546 C. Wagner, 1 976-82, vol. 1, pp. 267-8. 544 C.

545 Janz,

do seu embate com o país da revolução e da Comuna, o "iluminista" deve ajustar as contas em primeiro lugar com a degeneração ou igualização do II Reich. Autores como Treitschke e como Wagner podem remover as esperanças anteriormente nutridas, satisfazer-se com o trimlfo político-militar e, de resto, fazer de conta que nada acontece, de modo a se tomar ou aspirar a tomar-se um o historiador oficial, o outro o musicista oficial da Alemanha imperial . O rigor filosófico e a henestidade intelectual fecharam a Nietzsche esse caminho. Alguns anos antes da guerra, Wagner tinha denunciado com tons magniloquentes a "civilização materialista", "o mais degradante materialismo", "a mais profunda depravação", a imoralidade, a dissolução da França. 547 Ain­ da no início da guerra, Treitschke tinha fo rmulado esse desejo, sempre em trans parente polêmica contra o inimigo além do Reno: "Possa o costume ale­ mão voltar de novo à antiga seriedade,

à antiga probidade, e possam as virtudes

da simplicidade doméstica, ainda vivas na massa do nosso povo, ganhar de novo respeito também nos círculos da aristocracia financeira". 548 Na medida em que as declamações galófobas têm um significado, podemos defini-lo assim, depurando-o da orgia dos julgamentos de valor que o acompanham e o submergem: tendo por trás o iluminismo e o processo de descristianização da Revo­ lução Francesa e sendo caracterizada pela clara hegemonia da cidade e da cultura urbana, a França é decididamente mais secularizada do que a Alemanha e apresenta costumes e modos de vida que romperam ou estão rompendo o culto do torrão e da

terra natal. Mas os Gn'inderjahre tiram toda credibilidade dessa contraposição. Agora, não é só Nietzsche que acha que não é mais lícito autoenganar-se. Bolsa e especula­ ção dominam de modo descarado e incontestável. Os protagonistas da triwual vitória militar se colocam com zelo redobrado nas pegadas da França derrotada. Ou antes, se pode dizer que, tendo alcançado mais tarde que outros países a meta do desenvol­ vimento capitalista, a Alemanha parece exibir uma vulgaridade e uma arrogância particulares.

É o comportamento típico doparvenu, que certamente não se distingue

nem pela "moralidade" nem pela "inteligência".549 Quem pronuncia uma condena­ ção tão dura é um autor até então penetrado de uma fé fervorosa na "missão interna­ cional e universal da nação alemã" e que agora é obrigado a constatar a sua pavorosa queda do cristianismo a um "novo paganismo".550 Não são diferentes a análise e a decepção que se manifestam em Nietzsche, a partir, porém, de um mito genealógico bem diverso e, aliás, ainda muito mais

547 Wagner, 1 9 10 i, pp. 30- 1 . 54 8 l n Fcnskc, 1 977, p. 426; sobre isto c f Losurdo, 1 997 a, cap. XIII, 12. 549 Frantz, 1970, pp. 2 16-7 e 22 1 . 55° Frantz, 1 970, p. 2 16, V e 22. Frantz e citado em sentido muito positivo por Wagner, 1910 l, p. 53 .

irrealista do que o mito cristão-germânico. Certas amargas análises críticas do capitalismo que se leem em Humano, demasiado humano e nos apontamen­ tos contemporâneos têm em vista exatamente os Gründerjahre . Aí se denun­ cia a "superstição do possuído" e a incapacidade conexa de "fazer uso do tempo livre''. Pior, "a riqueza é frequentemente o resultado de inferioridade esp iritual", e então ela só pode favorecer a "cobiça imoral dos outros", a dema­ gogia e a agitação social ista. Trata-se de um fenômeno que se tornou macrocospicamente evidente - Nietzsche se preocupa em destacar fazendo recurso ao negrito "depois da guerra" (VIII, 550- 1 ). Sem deixar-se desanimar pelos desdobramentos do II Reich, Treitschke pode continuar a prestar homenagem à "fidelidade alemã", à "religiosidade" e ao "senso de justiça" desse povo extraordinário ou único.551 Wagner não deixa por menos. Mas seu ex-discípulo não o segue nesse caminho do autoengano, pois está agora empenhado em ridicularizar o mito da "virtude alemã'', dos protagonistas da luta contra a França constantemente contraposta à devassi­ dão dos seus inimigos: "Então se acostumou a pretender que com a palavra 'alemão ' se compreendesse junto também a virtude; e até o dia de hoje não se desacostumou totalmente" (WS, 2 1 6). Ao contrário - acentua o título de outro aforismo - "a virtude não foi inventada pelos alemães" (VM, 298). E ainda: "No mau gosto dos alemães atuais se inclui o conjunto virtuoso de alemães, que tem contra si a história e deveria ter contra si o pudor" (XI, 498). Como sabemos, também Nietzsche tinha acreditado profundamente e apai­ xonadamente na absoluta peculiaridade e na missão regeneradora da cultura ale­ mã. Mas agora é incessante e inegável o processo de igualização, sob a bandeira da modernidade e do desenvolvimento capitalista. Wagner pode continuar a pro­ nunciar a sua profissão de fé na "regeneração" da "humanidade histórica" por obra da Alemanha.552 Na véspera da guerra, tinha chamado seu país a dispensar a "salvação" (Hei/)553 e confirma imperturbável esse tema durante anos, como se nada mudasse. Não menos enfático é Treitschke que, em 1 888, no momento em que Guilherme II sobe ao trono, celebra o "século alemão" e, retomando versos do já citado Emanuel Geibel, que agora se tomaram célebres no clima de chauvinismo generalizado, exprime o desejo de que o mundo possa recuperar a sua saúde graças ainda uma vez à "essência alemã". 554 O próprio Lagarde, -

55 1 In Fenske, 1 978, p. 4 1 6. 552 Wagner, 1 9 1 O o, p. 263. m Wagner, 1 9 10 i, p. 49. 554 ln Fenske, 1978, pp. 4 1 6-7: " Und esmag am deutschen Wesen /Einmal noch die Welt genesen/ '·.

mesmo desiludido com certos acontecimentos, continua a reivindicar para o seu país "uma missão para todas as nações da terra". 555 Também Nietzsche deve ter se ocupado de Geibel, seja quando era ainda um cantor apaixonado da "essência alemã" (XIV, 1 04), seja no momento da ruptura com a teutomania (B, II, 6/2, p. 907 e 95 7). Humano, demasiado humano responde à permanente agitação da ideia de missão dissecando impiedosamente a história e as ideologias da Alemanha. É insuperável o abismo que separa a realidade do II Reich dos mitos genealógicos que acompanharam a sua fundação. As mudanças ocorridas no plano político-social são um estímu­ lo poderoso para ir muito além das dúvidas e das incertezas que tinham come­ çado a manifestar-se bastante depressa. Trata-se agora de tomar plena consci­ ência da insustentabilidade da plataforma ideológica de O nascimento da tra­ gédia e das Considerações Inatuais, apelando ao mesmo tempo para Dionísio e para o teórico da negação da vontade de viver, para a antiguidade clássica e para Lutero, com a celebração da Alemanha como herdeira tanto do helenismo trágico como da Reforma, com a homenagem prestada ao Volksthum, mas também ao gesto elitista com o qual o Burschenschaftler rotulava os filisteus e a consciência comum; enfim, com a invocação de uma comunidade orgânica (o Volksthum) fundada, porém, na escravidão, à qual deve ser inevitavelmente submetida uma camada não só rebelde, mas constituída em última análise de bárbaros estranhos à civilização.

555 Lagarde, 1937, pp. 449-450.

8 Do " ILUMINISMO " ANTIRREVOLUCIONÁRIO AO ENCONTRO COM OS GRANDES MORALISTAS 1.

Suspeita dos sentimentos morais e deslegitimação do apelo à ''justiça social " imos O nascimento da tragédia evocar, a partir da Comuna de Paris, o

Vterrível perigo representado para a civilização por uma "camada bárbara

de escravos" que percebe a própria condição como uma "injustiça". Quem agita a bandeira da "justiça" - reforça uma conferência Sobre o futuro das nossas escolas são os defensores da revolução e do "Estado popular" (su­ pra, cap. 4 § 1 ) . Não escapa a Nietzsche que o movimento socialista do tempo se alimenta amplamente da reivindicação da "justiça" e do apelo à moral e à consciência moral. "Nenhuma lei injusta será admitida no código do novo mun­ do moral", assim sintetiza Weitling, de modo ingênuo e apaixonado, o seu pro­ grama político e ideal. 556 E "sonho da justiça" é o título do livro de um estudioso contemporâneo dedicado exatamente a esse significativo expoente do primeiro socialismo alemão. 557 Sim, "a propriedade é uma injustiça" - insiste um outro expoente do mesmo movimento, ou seja, Becker558 -, ou então é "um furto", para citar um autor mais conhecido, Proudhon.559 Evidente e declarado é o pathos moral desse discurso. Contra o "espírito mau" da organização existen­ te,560 Weitling chama à luta a Liga dos Justos ou da Justiça (Bund der Gerechten ou der Gerechtigkeit).561 É a organização política à qual Nietzsche faz alusão ao desenvolver a sua polêmica contra "os nossos anarquistas": "como são morais os seus discursos dedicados a persuadir! No fim chegam até a chamar a si mesmos de 'os bons e os justos' (die Guten und Gerechten)". Antes ainda dos anarquistas e dos socialistas, de modo análogo portou-se Rousseau, esta "tarântula moral": "até -

556 ln Bravo, 1973, p. 2 1 1 . 557 Joho, 1 958. 558 Becker, in Bravo, 1 973, p. 557. 559 Proudhon, 1967. 560 ln Bravo, 1 973, p. 206. 561 Bravo, 1 976, p. 293. 271

no fundo de sua alma havia o pensamento do fanatismo moral, do qual se sentia e se confessava executor um outro discípulo, ou seja, Robespierre'', compro­ metido, como proclama no seu discurso de 7 de junho de 1 794, a ''fonder sur la ferre l 'empire de la sagesse, de la justice et de la vertu" (M, Prefácio, 3). Essa análise é desenvolvida no Prefácio que N ietzsche sente necessidade de antepor a Aurora em 1 886, tornando explícita a dimensão política do discur­ so aqui contido. Mas ela �urge com clareza já no período "iluminista". Por que "agora é necessário que a observação moral ressurja"? E por que "a humani­ dade não pode mais ser poupada da cruel vista da mesa de dissecação p sicoló­ gica e dos seus bisturis e pinças"? A resposta não se faz esperar: "Porque aqui impera aquela ciência que pesquisa a origem e a história dos chamados senti­ mentos morais e que, com o seu avanço, deve colocar e resolver os complexos problemas sociológicos (sociologisch)" (MA, 37). De quais problemas se trata está claro por um ulterior aforismo que tem em vista o socialismo. Trata-se de um movimento político que "se prepara secretamente para dominar com o terror". Pois bem, qual é a sua estratégia? "Enfia como um prego na cabeça das massas semicultas a palavra 'justiça', para privá-las completamente da sua inteligência (após esse intelecto ter já sofrido muito por causa da semicultura)": desse modo amadurecem as condições para a violência e a insurreição {MA, 473). A análise crítica, no plano filosófico, histórico e psicológico, da consciên­ cia moral é chamada a fazer frente à tradição jacobino-socialista, a persistente ou incessante agitação revolucionária. Vimos Nietzsche denunciar, desde o seu início, as implicações subversivas do tema rousseauiano da bondade original do homem: esse alvo permanece claro também no período "iluminista". Se O nas­ cimento da tragédia refuta o otimismo racionalista recorrendo ao mito do peca­ do original em roupagem ariana ou semita, agora, para se opor a "uma certa fé cega na bondade da natureza humana" (MA, 36), intervém a pesquisa psicológi­ ca. Os "socialistas" se revelam "ridículos" com o "seu otimismo vazio do 'ho­ mem bom"' (XI, 245). Desmentem-nos clamorosamente aqueles que têm real familiaridade com a alma humana. "O resultado global de todos os moralistas" parece inequívoco: "o homem é mau, um animal predador" (XI, 3 6). Depois de se ter transformado de crítico do iluminismo e de defensor das razões do mito em "iluminista", agora o Nietzsche "iluminista" se torna um adversário implacável não só da religião ou pseudo-religião revolucionária, mas também dos enfáticos sentimentos morais. Nesses anos, ele parece seguir Taine de modo particularmente atento, como aparece da organização dos seus livros (B, II, 5 , pp. 307 e 355). Na reconstrução da preparação ideológica da Revolu­ ção Francesa, o grande historiador sublinha o papel importante que desempe­ nha aí o pathos moral de Rousseau: "Até aqui as instituições dominantes eram

acusadas apenas de serem incômodas e irracionais; agora são acusadas tam­ bém de serem injustas e corruptoras". O ataque ao Antigo Regime alcança assim um nível superior e muito mais perigoso: "a gente se indigna" (on s 'indigne), e este sentimento abre uma brecha para além dos salões até à multidão sofredora e rude, para a qual ninguém ainda se tinha voltado, cujo ressentimento surdo encontra pela primeira vez um intérprete". 562 Também Nietzsche exprime a sua preocupação com a difusão de "um sentimento de indignação" (Emporung) entre os "operários" europeus (VIII, 48 1 -2) e conde­ na, com referência em particular ao movimento revolucionário russo, "o anarquismo da indignação" (Entrüstungs-Anarchismus). É um tema no qual o filósofo continua a insistir até o fim: à "bela indignação" (schône Entrüstung) recorre "o socialista" quando "exige 'justiça ', 'direito', 'igualdade de direitos' " (XI II, 2 3 3 ), mas contagiar-se com a "estupidez d a indignação moral" (moralische Entrüstung) é "sinal infalível, num filósofo, do fato de que o sen­ tido filosófico do cômico sumiu" (JGB, 25). Os "instintos destruidores" das massas - prossegue Taine - encontram no pathos moral o seu "arauto" (héraut) .563 E Nietzsche, por sua vez, condena "os arautos (Herolde) das afecções simpáticas", comprometidos em pôr re­ médio à dor que descobrem ou imaginam por toda parte (M, 1 74). Infelizmente - prossegue o historiador francês - a denúncia moralizante do Antigo regime acaba criando raízes também nos salões, entre os nobres que se "acham frustrados na distribuição dos cargos e das graças", entre os "cortesãos, para quem sobram apenas as migalhas, ao passo que para os favoritos do peque­ no círculo íntimo são reservados todos os bocados maiores". Eis que "estes epicureus descontentes pouco devotos" se tomam "filântropos", começam tam­ bém eles a encher a boca com as "belas" e "grandes palavras de liberdade, justiça, bem-estar público, dignidade do homem". Mesmo continuando a fazer parte de uma classe privilegiada, por que negar-se esse prazer intelectual que parece não custar nada e que pode eventualmente conferir interesse para um dia muito atarefado?564 Ainda que mais sutil, a análise de Nietzsche não deixa de ter pontos de contato com esta que se acabou de ver. Tomemos um rebento degene­ rado e "falido" das classes abastadas: "infelizmente, por causa de alguma heran­ ça que recebeu, tem sido defraudado também do último consolo, a 'bênção do trabalho', o esquecimento de si na ' labuta diária"'. Pois bem, de que esse precisa para ostentar "uma aparência de superioridade" com respeito à sociedade e à 562 Taine, 1899, vol. II, p. 34-5 (= Taine, 1986, pp. 404-5). 563 Taine, 1899, vol. II, p. 35 (= Taine, 1 986, p. 405). 564 Taine, 1 899, vol. II, p. 132 (= Taine, 1 986, p. 501).

própria existência, das quais agora se sente rechaçado, e contra as quais quer consumar até o fundo a sua "vingança"? A resposta não é difícil: "Sempre se pode ter certeza da moralidade, das grandes palavras da moral, de alardear justi­ ça, sabedoria, santidade, virtude". Concluindo, "Onde credes que a moral encon­ tra os seus mais perigosos e insidiosos advogados?" (FW, 359). A pergunta é retórica, mas de qualquer modo Taine já tinha dado a respos­ ta, tendo sintetizado assim a situação da França na véspera do desmoronamen­ to do Antigo regime: "Jamáis se vira num salão um tal luxo de frases genéricas e de belas palavras".565 Por outro lado, ainda que com um juízo de valor dife­ rente e oposto, à mesma conclusão tinha chegado, ainda antes, um dos protago­ nistas da Revolução Francesa, ou seja, Sieyês, que tinha chamado a atenção para um fato à primeira vista bastante surpreendente: mais ainda que do Ter­ ceiro Estado, era das "duas primeiras ordens privilegiadas" que provinham "os mais importantes defensores da justiça e da humanidade".56(, É um fenômeno que se concluiu com a Revolução Francesa, ou está des­ tinado a repetir-se, de maneiras diferentes, com a temida ou ansiada, conforme os pontos de vista, nova onda de perturbações que parece surgir no horizonte? Um fragmento do verão de 1 878 nota com preocupação a difusão das "ideias socialistas" entre as "classes superiores" (VII, 522). Segundo o Manifesto do partido comunista, "como antes uma parte da nobreza passou para a burgue­ sia, assim agora uma parte da burguesia passa para o proletariado".567 A gaia ciência parece chegar a conclusões semelhantes: Se penso no desejo de fazer algo, que incessantemente agita e estimula milhões de jovens europeus, incapazes de suportar o tédio e a si mesmos compreendo que neles deve haver uma vontade de sofrer, voltada a obter do seu sofrimento uma provável razão para agir, para a ação. É necessário an­ gustiar-se! Daí a gritaria dos políticos, daí as muitas, falsas, fabuladas, exa­ geradas "condições de privação" de todas as classes possíveis e a cega propensão a crer nelas (FW, 56).

Segundo Marx, coloca-se ao lado da revolução socialista "uma parte dos ideólogos burgueses, aqueles que chegaram a compreender teoricamente o movimento histórico no seu conjunto".568 De modo análogo argumenta Sieyês, que explica assim a passagem para o Terceiro Estado de expoentes eminentes da nobreza e do clero: "As luzes da moral pública se manifestaram em primeiro 565 Taine, 1899, vol. II, p. 133 (= Taine, 1986, p. 502). 566 Sieyes, 1 985 b, pp. 1 43-4. 567 Marx-Engels, 1955, vol. IV, p. 47 1 . 568 Marx-Engels, 1955, vol. IV, pp. 471 -2.

lugar em homens que estão na melhor posição para compreender as grandes relações sociais".569 Nietzsche, porém, nega qualquer racionalidade ao fenômeno do alinha­ mento dos membros das classes superiores com o front da subversão: bem longe de representar as luzes, aqueles trânsfugas são vítimas de uma perturba­ ção emotiva. Estamos diante de "almas ávidas de tribulação"; "não sabem o que fazer de si mesmos - e por1sso pintam na parede a infelicidade dos outros" (FW, 56). Na falência individual desses desertores se enxerta o sábio apelo à compaixão lançado pelas classes subalternas : A "religião da compaixão" à qual gostariam de nos convencer - oh! como conhecemos esses histéricos homenzinhos e mulherzinhas, que hoje têm necessidade exatamente dessa religião, como de um véu e de um adorno ! Não somos humanitários; não ousariamos permitir-nos falar do nosso "amor pela humanidade", nenhum de nós é bastante comediante para isto. Ou seja, não somos sansimonistas bastante, nem franceses bastante (FW, 377).

Enquanto engrossa assustadoramente a onda subversiva, o apelo à indig­ nação moral - observa Taine - estimula a auto-satisfação daquele que recorre a ele: "o prazer pessoal não lhe basta; são-lhe necessárias também a paz da consciência e as efusões do coração''. A propósito disto, é revelador o hino que o Emílio eleva à consciência moral : "Consciência! Instinto divino, voz celeste e imortal, guia segura de um ser ignorante e limitado, mas inteligente e livre, juiz infalível do bem e do mal, que torna o homem semelhante a Deus, és tu que fazes a excelência da sua natureza". 570 O historiador francês põe em evidência o entrelaçamento, repugnante e devastador ao mesmo tempo, do pathos moral e narcisismo. É um ponto sobre o qual insiste, aumentando depois a dose, também Nietzsche: A compaixão é o sentimento mais agradável para aqueles que são escassa­ mente soberbos e que não têm uma expectativa de grandes conquistas: para eles a presa fácil - como é todo sofredor - é algo encantador. A compaixão é louvada como a virtude das mulheres de prazer (FW, 13).

Mais ainda que expressão de narcisismo, a exibição da compaixão é ofen­ siva e repugnante: Está na essência do sentimento de compaixão tirar do sofrimento dos outros aquilo que ele tem de propriamente pessoal: os nossos "benfeitores" são, 569 Sieyes, 1985 b, p. 1 44. 57º Taine, 1899, vol. II, p. 33 (= Taine, 1 986, pp. 403-4). 275

mais que nossos inimigos, aqueles que desprezam o nosso valor e a nossa vontade. Na maior parte dos atos de beneficência em favor dos desventura­ dos há algo - na frivolidade intelectual com que o compassivo faz a essa altura o papel do destino - que suscita desdém (FW, 338). Taine invoca "um crítico e um psicólogo" para que investiguem profunda­ mente a psicologia e a psicopatologia da revolução, a partir daquele "caso clínico singular" que é Rousseau. Este, "não obstante as extravagâncias, as más ações, os crimes cometidos, conservou até o fim uma sensibilidade delicada e profunda, a humanidade, a compaixão, o dom das lágrimas, a capacidade de amar, a paixão pela justiça, o sentimento religioso e o entusiasmo". 571 O fato é - observa por sua vez Burckhardt - que o que inspirava esse "plebeu" eram "mais sentimentos virtuosos que virtudes" reais; "o calor da sua alma era apenas aparente".572 O enigma Rousseau é de qualquer modo o enigma da revolução enquanto tal. A figura do "crítico" e "psicólogo" evocada por Taine parece tomar corpo em Nietzsche, o qual mais tarde, ao atribuir ao historiador francês o mérito de ter conseguido importantes resultados na leitura da história "dolorosa da alma moderna" (infra, cap . 28 § 2), sublinha a dificuldade da tarefa a enfrentar e cumprir. Trata-se, em primeiro lugar, de superar "uma enraizada aversão à análise das ações humanas, uma espécie de pudor diante da nudez da alma" (MA, 36). Para os que sonham com grandiosas transformações em nome da justiça é mais fácil abandonar-se à crença confortável na nobreza dos próprios sentimentos morais: "o espectador que não é guiado pelo espírito da ciência, mas ,também pelo amor à humanidade, amaldiçoa no fim uma arte que parece plantar nas almas dos homens o sentido do rebaixamento e da suspeita" (Verdachtigung) (MA, 3 6). O conflito político-social tende assim a configurar-se, no plano cultural, como o choque entre entusiasmo moral ingênuo e saber científico maduro. Superando as resistências e as dúvidas que procuram bloqueá-la e pôr-lhe obstá­ culo, a impiedosa dissecação psicológica é chamada a descobrir "o que é hu­ mano, demasiado humano" (MA, 37). Não basta liquidar o mito da "bondade original" do homem; é preciso saber identificar "o preto da natureza humana" (MA, 36) também no impulso moral e religioso a favor dos sofredores; até agora considerados sagrados e intocáveis, "todos os sentimentos superiores devem ser objeto de suspeita (verdachtig) para o homem da ciência" (M, 3 3). Também esta denúncia não é de modo algum genérica. Na sua luta contra a injustiça, Weitling faz apelo ao "espírito de benevolência, confiança e afeto, 571 Taine, 1899, vol. II, p. 3 0 (= Taine, 1986, p. 400).

572 Burckhardt, 1978 b, p. 398.

que invadirá toda a humanidade".573 Particularmente eloqüente é Lamennais, o qual acentua que a emancipação só pode impor-se sob duas condições: Uma abnegação completa, desinteressada pela causa comum, um sentimen­ to profundo da justiça, amada por si mesma. Sem isto cada um, sem pensar senão em si, se isola e apodrece no seu egoísmo; sem isto, o interesse pessoal, limitado e árido, totalmente incompatível com o espírito de sacrifi­ cio, sufoca no fundo da alma os movimentos generosos, as resoluções fir­ mes e santas, divide, diminui e impele para a ladeira das ambições brutais. 574 O protesto contra um sistema que assiste com indiferença ou frieza à carga de sofrimento que ele comporta, encontra aqui expressão, de modo até ingênuo, na celebração do calor dos sentimentos empáticos, dos impulsos cha­ mados a superar a barreira que divide os homens entre si. Engels zomba do "trivial e tolo sentimentalismo" dessa literatura, achando que pode conferir uma expressão mais madura ao protesto social. 575 Diferente é, obviamente, a atitu­ de de Nietzsche que, junto com o sentimentalismo, pretende liquidar também o movimento político-social que nele se exprime: "A economia da bondade é o sonho dos mais temerários utopistas" (MA, 48); "o sábio deve opor-se a esses desejos extravagantes da bondade não inteligente" (MA, 235).

2. Pressão plebeia, sentimentos morais e "iluminismo moral " O trabalho de dissecação vai particularmente contra dois sentimentos que ocupam um papel central no âmbito do discurso político proto-socialista, a com­ paixão e o sentimento de justiça, que surgem diante da polarização de opulência e pobreza. No tocante ao segundo, é preciso não se deixar enganar pelas se­ melhanças morais que ele assume. Considerando bem, a reivindicação da igual­ dade é apenas a má Eris de que fala Hesíodo, a qual adverte com incômodo e ressentimento contra "toda elevação de alguém acima da medida comum" e procura remediar mediante um achatamento geral por baixo {WS, 29). En­ quanto por um lado declara ser inspirado pelo amor de todos os homens e pelo desejo de felicidade universal, por outro lado o pedinte ou o subversivo acaba na realidade provando alegria pelas desventuras que deveriam tocar a um ex­ poente das classes superiores: "o dano que o outro sofre o toma igual a ele". À 573 ln Bravo, 1973, p. 2 1 1. 574 ln Bravo, 1 973, p. 377. 515 Marx-Engels, 1955, vol. XXII, p. 453.

medida que continua a dissecação psicológica, o amor à igualdade em nome da justiça se revela inveja, e esta, por sua vez toma o aspecto repugnante da Schadenfreude, da alegria que brota não tanto da afirmação de si quanto das desgraças do homem superior (WS, 27). Ao sentimento de inveja das classes subalternas nas comparações com as classes dominantes corresponde o sentimento de compaixão que estas últimas muitas vezes alimentam em ralação àqueles que sofrem uma sorte adversa. O Estado grego já tinha chanÍ. ado atenção para os efeitos desastrosos que pode­ riam ter "o grito da compaixão" e a conseqüente reivindicação de uma distri­ buição menos desigual e mais ')usta" da carga de dor e de sofrimento (supra, cap . 2 § 6). Mas agora o sentimento de compaixão é posto em discussão não tanto por motivos extrínsecos (a necessidade de salvar de qualquer maneira a civilização apesar dos custos que ela comporta) quanto por motivos intrínsecos. Nietzsche de novo afunda o seu bisturi. Entretanto, é preciso notar que "há casos em que a compaixão é mais forte do que o próprio sofrimento em si" (MA, 46). Veremos que há uma felicidade feita de "resignação", ou seja, se­ gundo a definição de Tocqueville, uma "felicidade vegetativa" (infra, cap. 13 § 3 ) . Disso não se apercebem as almas belas das classes superiores, que se deixam enternecer de modo doentio pelo espetáculo da miséria: Há homens que se tornam hipocondríacos por compaixão e cuidado para com outra pessoa; a espécie de compaixão que nasce daí não é outra coisa senão uma doença. De modo que há também uma hipocondria cristã, que ataca aque­ las pessoas solitárias, animadas de zelo religioso, que colocam continuamente diante dos seus olhos os sofrimentos e a morte de Cristo (MA, 47).

Nada está resolvido, perdeu-se apenas o contato com a realidade. A "com­ pai xão" é sinônimo de "duplicação da dor" (JGB, 30). Mas é sobretudo impor­ tante outro aspecto. Estamos na presença de um sentimento que, bem longe de ser natural e espontâneo, é estimulado de fora e nas classes superiores irrompe na onda de uma pressão que sobe de baixo: Viva-se em contato com doentes e pessoas espiritualmente oprimidas - e se pergunte então se o eloqüente lamentar-se e gemer, o pôr à mostra a infelici­ dade não teriam no fundo a finalidade de fazer doer aos presentes: a compai­ xão que depois estes manifestam, no entanto, é uma consolação para os fracos e os sofredores, enquanto estes reconhecem que ela tem pelo menos ainda um poder, não obstante toda a sua fraqueza: o poder de fazer doer. O infeliz obtém uma espécie de prazer desse sentimento de superioridade que o atestado de compaixão desperta na sua consciência; a sua vaidade se exalta; ele é ainda suficientemente importante para causar dor ao mundo.

Portanto, a sede de compaixão é uma sede de prazer de si, e, na verdade, às custas dos semelhantes; ela mostra o homem em toda a brutalidade do seu querido si-mesmo (MA, 50). Salta aos olhos o caráter eminentemente político da análise do sentimento tanto da inveja como da compaixão. Em ambos os casos se desenvolve uma iniciativa das classes subalternas, dos miseráveis que querem vencer a distân­ cia com respeito aos homens superiores ou arrastando-os com violência e atra­ indo-os para si, para nivelá-los a uma mesma condição de mediocridade e mes­ quinhez, ou então induzindo-os a se inclinarem, compassivamente, para baixo. Neste sentido, "na bainha dourada da compaixão se esconde às vezes o punhal da inveja" (VM, 377). Os dois sentimentos aqui analisados são expressões de um movimento e de um processo que tendem a apagar toda grandeza e a realizar um achatamento geral . Se não querem abdicar do seu papel, as classes dominantes não devem deixar-se contagiar pela compaixão : seguindo o conse­ lho de La Rochefoucauld, devem "deixá-la para as pessoas do povo" que "não são determinadas pela razão" (MA, 50). Compreende-se então o encontro de Nietzsche com os grandes moralistas franceses : há necessidade "daqueles que perscrutam os homens" (VM, 5). Mas, para legitimar ulteriormente aquela que mais tarde será definida como "uma es­ cola da suspeita" (Verdacht) (MA, Prefácio, 1 ), Nietzsche não hesita em cha­ mar assim o próprio cristianismo: "O cristianismo e La Rochefoucauld são úteis quando lançam a suspeita sobre os motivos das ações humanas: de fato, supor a injustiça radical de toda ação, de todo juízo, é decisivo para induzir o homem a libertar-se dos impulsos demasiado violentos da liberdade" (VIII, 3 1 9). No revolucionário, que à injustiça da sociedade contrapõe a excelência das próprias intenções morais, deve ser instilada uma dúvida salutar. Toda con­ tribuição nessa direção é positiva: "Em suma, quando se fala 'mal' do homem e não maldosamente -, o amante do conhecimento deverá prestar uma atenção sutil e escrupulosa, deverá estender o ouvido sobretudo lá onde se fala sem indignação" (Entrüstung) (JGB, 26). É preciso, portanto, demolir a ingênua confiança na nobreza dos senti­ mentos morais que levam a projetar a mudança do mundo. Contudo, essa obra de demolição não deve aplanar a estrada para a indignação moral, que pode configurar-se como arma dos revolucionários: "o homem indignado", de fato, pode afundar os dentes em "si mesmo", mas também na "sociedade" (JGB, 26). Em contraposição a tudo isso, é necessário promover um sereno "iluminismo moral" (FW, 5). E, ainda uma vez, para conseguir esse resultado a própria religião dominante no Ocidente pode contribuir: "Também o cristianismo tem dado uma grande contribuição para o iluminismo: ensinou a dúvida filosófica

moral [ . . . ] ; aniquilou em cada homem individual a fé na sua 'virtude"'. Certa­ mente, hoje se trata de ir além, aplicando "esta mesma dúvida filosófica tam­ bém a todos os estados e processos de caráter religioso, como pecado, arre­ pendimento, graça, santidade" (FW, 1 22). Parece que se verificou uma inversão em relação ao Nascimento da tra­ gédia e à dura condenação, contida nesse livro, do "iluminismo" de Sócrates. Agora Nietzsche parece identificar-se completamente com o filósofo grego ante­ riormente criticado: "Tal qual Sócrates sobre o homem sábio, assim eu sobre o homem moral" (VIII, 55 5), quer dizer, como Sócrates desmascara a falácia do saber, assim Nietzsche desmascara a falácia de pureza e nobreza moral . No entanto, os elementos de continuidade surgem com clareza. Se O nascimento da tragédia alvejava a hybris da razão, que tem a pretensão de pôr de novo "em ordem o mundo que está fora dos eixos" (supra, cap. 1 § 1 9), as obras do período "iluminista" estão igualmente empenhadas em deslegitimar a ação revolucioná­ ria, cujas raízes são agora identificadas na hybris da consciência moral . Se podem contar com o cristianismo, o "iluminismo moral" e a "suspeita" professada por ele incluem uma personalidade como Mazzini entre os seus "ad­ versários" (FW, 5). Isso vale com maior razão para Lutero. No choque com a Igreja católica, esta é que representa "o nobre ceticismo, aquele luxo de ceticis­ mo e tolerância que toda potência vitoriosa, segura de si, se concede" (FW, 358). Enquanto Lutero e Mazzini exprimem, de modo obviamente diferente, a fé no homem bom da revolução, e nisso de fato concordam com Rousseau (XIV, 2745), a "escola da suspeita" parece encontrar uma primeira vaga antecipação exa­ tamente na instituição milenar atacada pelo monge fanático: ''Na base de toda a Igreja de Roma está uma desconfiança (Argwohn) meridional pela natureza hu­ mana (FW, 350), ou antes "uma suspeita ( Verdacht) meridional em relação à natureza, ao homem e ao espírito" (FW, 35 8). Na vertente oposta: O protestantismo é uma revolta popular em favor do que é probo, simples, superficial (o Norte sempre foi mais bonachão e mais simplório do que o Sul); mas foi somente a Revolução Francesa que colocou completa e solenemente o cetro nas mãos do "homem bom" (da ovelha, do asno, do pato e de tudo o que é irremediavelmente simplório, barulhento e maduro para o manicômio das "ideias modernas") (FW, 350). Não só é político o conflito que contrapõe "iluminismo moral'', "escola da suspeita" e da desconfiança, ao entusiasmo moral e à fé no "homem bom", mas os sujeitos desse conflito político têm também uma clara conotação social: Em todos os problemas cruciais do poder, as qualidades de Lutero foram infelizmente sumárias, superficiais, imprudentes, sendo ele acima de tudo um

homem do povo ao qual faltava toda a herança da casta dominante, todo instinto de potência (FW, 358).

Na pregação do sacerdócio universal e na promoção deste desatinado igualitarismo encontrava expressão "o ódio abissal contra o 'homem superior ' e contra o domínio do 'homem superior ', como a Igreja o tinha concebido"; Lutero "realizou, portanto, exatamente no interior da organização social da Igreja, a mesma coisa que com tanfa intransigência tinha combatido com relação à organização civil - uma ' revolta de camponeses "' (FW, 3 5 8) . Pelo menos no nível religioso, Müntzer triunfa exatamente graças a Lutero.

3. O "santo " e o "mártir " revolucionário: altruísmo e narcisismo Compaixão e reivindicação da justiça fazem apelo ao altruísmo, pressu­ põem a realidade dos "estados altruístas". Estes, atentamente analisados, se revelam na realidade determinados pelo amor de si, ou seja, pelo amor de "algo de si" (MA, 57). Isto vale também para o "santo". Também a ele não é estra­ nho o "humano, demasiado humano" . Acontece que, "na falta de outros objetos ou porque de outro modo a coisa nunca teria êxito para ele'', certos homens "acabam tiranizando certas partes do próprio ser, por assim dizer seções ou graus de si mesmos"; é desse modo singular que experimentam "o sentido da potência" e matam a ''sede de domínio" (MA, 1 37 e 142). Certamente, o altruísmo, ou melhor, a fé no altruísmo pode tomar-se terrivel­ mente consequencial, sem recuar diante do sacrificio extremo, e por isso assumin­ do uma configuração que, aparentemente, não deixa mais espaço para a dúvida. Na realidade, a "suspeita" continua a ser lícita ou inevitável também neste caso: Até quando colocamos emjogo a nossa vida, como faz o mártir no interesse da sua igreja, isto é um sacrificio oferecido à nossa avidez de potência, ou seja, a fim de conservar o nosso sentimento de poder. Aquele que se sente "estar de posse da verdade", quantas posses não deixa perderem-se para salvar aquela que está usufruindo ! Jogará tudo fora para manter-se "em cima", quer dizer, acima dos outros que carecem da "verdade" ! (FW, 13).

Particulannente interessante é aquela espécie de parábola que, para tal propósito, Humano, demasiado humano, conta. É a história de um "mártir contra a sua vontade'', de um militante fiel ao partido até à morte: Dele se conseguia tudo, porque temia, mais do que a morte, a opinião ruim dos seus companheiros; era um lamentável espírito fraco. Eles sabiam disso

e, explorando a dita qualidade, fizeram dele um herói e, por fim, até um mártir. Embora o medroso homem intimamente sempre dissesse não, com os lábios dizia sempre sim, até o patíbulo, quando morreu pelas convicções do seu partido: a seu lado estava um dos seus velhos companheiros que, com o olhar e com a palavra o tiranizou de tal maneira, que ele verdadeiramente morreu da maneira mais comportada. Desde então é celebrado como mártir e grande caráter (MA, 7-3). Faz logo eco a essa celebração o contracanto irônico de Nietzsche: "rara­ mente se errará se as ações extremas forem atribuídas ao nada, as medíocres ao costume e as mesquinhas ao medo" (MA, 74). Se, num exame mais atento, a auréola dos mártires desaparece, decididamente ridículos aparecem os seus seguidores : "o discípulo de um mártir sofre mais que um mártir" (MA, 58 2). Mas há um fato preocupante, cheio de perigos para a sociedade: "Todo partido que sabe dar-se ares de mártir atrai para si o coração dos bons, con­ quistando desse modo ele mesmo o aspecto da bondade - para sua grande vantagem" (VM, 294). O pensamento corre para os revolucionários (e "niilistas") russos, esses novos "crentes" prontos até ao "martírio" (FW, 347), ou então para a social-democracia alemã, naqueles anos atingida por uma dura repres­ são e que, no entanto, resiste graças também à dedicação de seus militantes: sim - comenta Aurora atua a subordinação também da "opinião" ao partido e "ao serviço de uma tal moral está agora toda espécie de sacrificio, de ultra­ passagem de si mesmo e de martírio" (M, 1 83 ) . . É um sacrificio que parece projetar uma luz favorável também sobre o partido a favor do qual ele se verifica. E de novo ressoa o contracanto irônico de Nietzsche: "No fundo se pensa que, se alguém acreditou honestamente em alguma coisa e lutou e morreu pela sua fé, seria injusto demais que apenas um erro o tivesse animado". Bastaria dar uma olhada na história para tomar cons­ ciência do absurdo de tal atitude, e, no entanto, se teima em não querer "admitir que tudo aquilo que os homens defenderam nos séculos passados, com sacrifi­ cio de felicidade e de vida, era apenas um erro" (MA, 5 3). São os anos em que, a partir de pontos de vista diferentes, tanto Renan como Engels fazem uma comparação entre as "primeiras comunidades cris­ tãs" e as seções locais da Internacional operária (infra, cap . 1 5 § 3). A compa­ ração está presente também em Nietzsche, que se serve dela, porém, para "suspeitar" e deslegitimar a figura do "mártir" revolucionário junto com a do santo e do profeta religioso. No esforço de refutar em qualquer nível o mito das "chamadas ações altruístas" (MA, 37), Nietzsche submete à investigação também a relação eró­ tica: "Os homens sempre entenderam mal o amor - eles crêem que são altru-

ístas no amor" e não percebem o "forte antagonismo" que sopra no amor e no "matrimônio" como em qualquer outra realidade (IX, 579 e 558); surpreenden­ temente, não obstante a "selvagem avidez de posse" e a "injustiça" que o ca­ racterizam, o "amor sexual" foi transfigurado a tal ponto que se pretendeu tirar dele ·'o conceito de amor como contraposto ao egoísmo, ao passo que ele talvez seja exatamente a expressão mais descarada do próprio egoísmo". Vale a pena notar que também essa análi�e está inspirada por motivações políticas. De fato, o aforismo prossegue assim: "Evidentemente os despossuidos e os necessita­ dos em busca de posse (Nichtsbezitzende und Begehrende) eles sempre foram muitos - inventaram este uso verbal" (FW, 1 4). Eles gostam de agitar um trinômio que é um pouco a paráfrase daquele que presidiu a Revolução Francesa: "' Liberdade ', 'Justiça' e 'Amor ' ! ! ! " (XII, 4 1 9). Se do amante passarmos para o cientista e para o intelectual, o resultado não é diferente: "Também o instinto do conhecimento é um instinto superior de propriedade" (IX, 45 9). A essa altura, Nietzsche define assim a sua tarefa geral : "Descrever a história do sentimento do eu, e indicar como, também no altruísmo, o aspecto essencial é o 'querer possuir'" (IX, 450). Em conclusão, o egoísmo deve ser reconhecido como uma realidade inevitável: "Todo o concei­ to de 'ação altruísta' , numa análise mais rigorosa, desvanece no ar [ . . . ]. Como poderia o ego agir sem o ego?" (MA, 1 33 ) . Tanto o santo da religião como o mártir da revolução está pronto a reivin­ dicar a sua sinceridade e a sacrificar-se pela sua fé. E, certamente, "nenhuma potência pode sustentar-se se aqueles que a representam são apenas hipócri­ tas" (MA, 55). Um e o outro são sinceros, mas nem por isso são melhores do que o mentiroso consciente: "O visionário (Phantast) nega a verdade diante de si, o mentiroso apenas diante dos outros" (VM, 6). Num exame psicológico mais atento, a sinceridade do visionário religioso ou revolucionário se revela como uma mentira mais radical, e adquire essa sua radicalidade removendo sistematicamente toda dúvida e toda tentação de sinceridade real . Com respei­ to aos comuns "grandes enganadores", os "fundadores de religiões" diferem pelo fato de nunca saírem do "estado de engano de si mesmos"; se, apesar de tudo, a dúvida vem à mente deles, ela é imediatamente repelida e considerada como enganos e seduções do "adversário maligno" (MA, 52). Sim, "a sinceri­ dade é a grande tentadora de todos os fanáticos" (M, 5 1 1 ) . O "crítico" e o "psicólogo", invocados por Taine, agora põem a nu a alma visionária e religiosa enquanto tal e o pathos moral com que ela se enche e se compraz. -

4. A história, a ciência e a moral Os golpes que a dissecação psicológica inflige no prazer ingênuo ou narci­ sista dos sentimentos morais são também os "golpes de martelo do conheci­ mento histórico" (MA, 37). A reconstrução da gênese histórica se entrelaça com a reconstrução da gênese psicológica. Os discursos anteriores relativos ao "dano da história" parecem remotos . Agora é Humano, demasiado humano que indica a "falta de sentido histórico" como "o defeito hereditário" dos filóso­ fos e intelectuais do tempo (MA, 2). Verificou-se uma inversão das partes, mas o alvo continua a ser o mesmo: trata-se sempre de ferir a modernidade, resul­ tado de uma revolução e de um reviramento repugnante, e de colocar radical­ mente em discussão o "homem atual", do qual infel izmente "todos os filósofos têm o defeito comum de partir" (MA, 42) . Eles "não querem entender que o homem mudou e que também a faculdade de conhecer mudou". Na realidade, "tudo mudou; nada é eterno" (MA, 2). Isto vale em primeiro lugar para a moral e para os "sentimentos morais" que agora, submetidos à investigação histórica (MA, 35 seg.), perdem todo halo de absoluto: são também ridicularizadas as pretensões daqueles que contestam a organização social em nome da "justiça" e de normas éticas inapeláveis. Estes não aprenderam ainda a "virtude da mo­ déstia", que é a conseqüência necessária do "filosofar histórico" (MA, 2). Depois de Darwin, lido por Nietzsche neste período de tempo, dizer história significa também dizer história da natureza, a qual, por sua vez, remete à ciência: "a filosofia histórica [ ... ] não é mais absolutamente pensável separada das ciên­ cias naturais, e é o mais recente de todos os métodos filosóficos" (MA, 1 ) . A partir dessas novas aquisições, Kant s e torna decididamente obsoleto. Todo o seu criticismo visa somente conferir "inatacabilidade" ao seu "reino moral" fantomático, tornado invulnerável diante da razão, da qual preliminar e instrumentalmente são evidenciados (e dilatados) todos os limites: Diante da natureza e da história, diante da imoralidade fundamental da natu­ reza e da história, como todo bom alemão, dos tempos mais antigos até hoje, Kant era pessimista, acreditava na moral, não porque ela é demonstrada pela natureza e pela história, mas apesar do fato de ela ser constantemente desmentida pela natureza e pela história.

Nesse sentido, a atitude de Kant não é muito diferente daquela de Lutero. Ambos são surdos aos desmentidos da razão e da ciência. Ou antes, reagem a esses desmentidos arraigando-se mais na sua fé: "Credo quia absurdum est" (M, Prefácio, 3). Criticado pelo seu teologismo mal camuflado, Kant é ao mesmo tempo aproximado de Rousseau pelo seu "fanatismo moral" e

pelas implicações subversivas nele implícitas (M, Prefácio, 3). A Gaia ciên­ cia reforça: Os políticos revolucionários, socialistas, os pregadores de penitência com ou sem cristianismo [ . . . ]: todos eles discorrem sobre "deveres" e, na verda­ de, sempre de deveres com caráter incondicional - sem estes não teriam nenhum direito ao seu grande pathos: sabem muito bem disso! Assim se agarram às filosofias da moral que pregam um imperativo categórico qual­ quer ou então engolem uma boa dose de religião, como fez, por exemplo, Mazzini (FW, 5).

Já problematizada mediante a dissecação psicológica dos sentimentos di­ tos superiores, a moral é agora de novo posta em crise ao ser referida à natu­ reza e à ciência. Darwin abriu novas possibilidades para a crítica da ideologia revolucionária. A descoberta da evolução das espécies animais até o homem constitui uma confirmação ulterior do fato de que o homem enquanto tal não existe; o nominalismo antropológico, que em Verdade e mentira em sentido extramoral se desenvolve por assim dizer no plano sobretudo espacial (cada folha é diferente de cada outra), agora pode estender-se diacronicamente. A história da "evolução humana" permite refutar o ponto de vista comum a "to­ dos os filósofos": "Inadvertidamente 'o Homem ' se configura na sua mente como uma aeterna veritas, como uma entidade fixa em cada turbilhão, como uma medida certa das coisas". É a persistente incapacidade de emancipar-se da ··teologia'', a qual com efeito "se baseia no fato de que o homem dos últimos quatro milênios fala de si como de um homem eterno, ao qual tendem natural­ mente desde sua origem todas as coisas do mundo" (MA, 2). A crítica do antropocentrismo (e dos direitos do homem enquanto tal) agora é muito mais fácil: é possível descobrir e liquidar os pressupostos teleológicos e teológicos da teoria revolucionária. A reivindicação da felicidade para todos é feita em última análise em nome da j ustiça e da moral . Mas em que a moral difere da "astrologia"? "Esta pretende de fato que as estrelas do céu girem em tomo do destino do homem; o homem moral pressupõe igualmen­ te que aquilo que está essencialmente em seu coração deve também formar essência e coração das coisas" (MA, 4). A moral é uma forma de primitivismo: aos olhos do animista, é "uma infâmia contra Deus" o "mecanismo" que, na leitura da natureza, faz intervirem mais "leis" tisicas do que "atos morais de vontade e de arbítrio" (FW, 59). Devemos libertar-nos de uma vez para sempre de uma visão do mundo tão radicalmente estranha aos avanços da ciência: A filosofia separou-se da ciência quando se pôs a quest.:10: qua l é o conheci­ mento do mundo e da vida pelo qual o homem vive mais feliz? Isto aconteceu

nas escolas socráticas: mediante o ponto de vista da felicidade, as veias da pesquisa científica foram estranguladas, e faz-se isto ainda hoje {MA, 7).

Como se vê, o ponto de partida é o mesmo que em O nascimento da tragédia: é a ideia de felicidade, que agora pode ser refutada também no plano "científico'', mediante o evidenciamento da presunção antropocêntrica, da falta de fundamento e da inutilidade epistemológica do discurso relativo aos direitos do homem . A ciência do Nietzsche "iluminista" nada tem a ver com a ciência do positivismo ao modo de Comte, repleta da pretensão de resolvê'r finalmente de modo concreto e positivo os problemas da humanidade enfrentados, ao contrá­ rio, de modo caprichoso e metafisico pelas grandiloquentes proclamações re­ volucionárias dos direitos do homem. Nesta sua pretensão, o positivismo se revela também afetado de antropocentrismo enfático e, portanto, não é menos anticientífico, do ponto de vista de Nietzsche, do que o discurso revolucionário que pretende refutar. A referência à ciência e à natureza serve agora para liquidar e ridicularizar também a reivindicação da igualdade: ·

Se se compreendeu como nasceu o sentido de equidade e da justiça (Bil/igkeit und Gerechtigkeit), é preciso contradizer os socialistas, quando eles fazem da justiça (Gerechtigkeit) o seu princípio. No estado natural não vale a proposi­ ção: "O que é bom para um é justo também para o outro" (VIII, 482).

No tocante à ideia de igualdade, também ela está afetada de primitivismo e é expressão de uma visão do mundo agora insustentável: Desde o período dos organismos ilúeriores, o homem herdou a crença de que há coisas iguais (só a experiência forjada através da mais alta ciência contradiz esta proposição). A crença original de todo ser orgânico é, talvez, desde o início, de que todo o resto do mundo seja uno e imóvel (MA, 1 8).

5. Moral e revolução O papel atribuído à história no período "iluminista" nos faz assistir a uma nova mudança radical na evolução de Nietzsche: tínhamos visto a segunda Inatual contrapor a "moral" à filosofia hegeliana da história (supra, cap . 6 § 5), agora a "história dos sentimentos morais" demonstra que o difuso pathos moral, bem longe de referir a um imperativo categórico atemporal, é apenas a "moda moral de uma sociedade mercantil" (M, 1 74), ou seja, de uma sociedade

que, tendo desaprendido a guerra, é vilmente avessa à dureza do real . Há toda­ via um claro elemento de continuidade. Mesmo recorrendo a argumentações nem sempre compatíveis entre si, Nietzsche se empenha num trabalho coeren­ te de deslegitimação do movimento revolucionário, contestando primeiro os fi.m­ damentos que remetem à objetividade do processo histórico e à filosofia da história e contestando depois os fundamentos que fazem apelo aos sentimentos e às normas morais. Uma mesma abordagem preside à releitura do iluminismo e da consciência histórica: trata-se de arrancar um e outra do abraço mortal com a revolução e com a massificação. É nesse contexto que se coloca o encontro de Nietzsche com os grandes moralistas. À s vezes, disso se parte para mergulhar o filósofo num banho de inocência pol ítica, como se tivessem desaparecido completa e misteriosamente os interesses e as paixões políticos, embora evidentes e declarados nos escritos anteriores . Na realidade, a impiedosa análise crítica dos sentimentos morais caminha com o olhar constantemente voltado para o conflito social e para o perigo social ista. A evolução de N ietzsche revela uma coerência e consequencialidade internas. Se a segunda Inatual tem em mira a filosofia da história à qual faz apelo o movimento revolucionário, os textos do período iluminista submetem à crítica e à dissecação o apelo à morte lançado desde sempre por aquele movimento (ou por alguns setores dele). A utilização sábia dos moralistas pode contribuir para levar a cabo essa segunda operação. De pouca ajuda pode ser em tal contexto o Schopenhauer ao qual o filisteu moderno gosta de contrapor a figura do asceta e do santo: agora se trata exatamente de desmascarar os "mártires" e os "santos" do movimento socialista. De nada servem Burke e os seus seguidores em terra alemã: eles não se cansam de conclamar ao respeito à ordem constituída em nome da moral e da religião e de prevenir contra as conseqüências catastrófi­ cas da arrogância da razão. Agora temos a ver com agitadores, os quais, mais que à razão, apelam para o calor dos sentimentos, à indignação e às paixões morais. Para fazer oposição a eles, há um modo particularmente eficaz: "dizer algo frio e sarcástico contra aquele que se enfurece" (XIV, 1 28). Também não se trata de fazer intervir em primeiro lugar autores e textos empenhados em denunciar de modo direto e explícito a Revolução Francesa e a Comuna de Paris, ou seja, a proliferação dos institutos escolares e o advento do sufrágio universal. A lição deles continua a agir por trás; mas agora que o conflito político-social surpreendeu também uma esfera aparentemente remota com respeito a ele, é útil e até indispensável recorrer a autores e textos à primeira vista não políticos e que, no entanto, a um olhar mais atento, se reve­ lam os únicos realmente em condições de fornecer o acesso àquela esfera.

Para deslegitimar os pregadores da justiça social, as sutis e insidiosas análises críticas da vida moral se mostram mais úteis do que as acusações contra a Revolução Francesa e a subversão socialista. No conflito político-social que se desenvolve a nível europeu, os revoluci­ onários e os miseráveis gozam indubitavelmente da grande vantagem que lhes provém do apelo à moral. Está claro, portanto, o alvo a atingir mediante a dissecação psicológica dos seqtimentos morais. O encontro, problemático, com os grandes moralistas é tão pouco impolítico como é o encontro com a filologia clássica. Ao chamar a atenção não mais só para o presente ou para o passado próximo, mas para mais de dois milênios de história, a referência à antiguidade clássica deslegitima e toma drasticamente pequena a modernidade, fenômeno efêmero que só uma filosofia da história nivelada sobre a imediatez e de fôlego curto pode pretender transfigurar como a plenitudo temporum. O encontro com os grandes moralistas surte efeito análogo . Em lugar da profundidade do tempo histórico intervém agora a profundidade da consciência: uma vez atingi­ do este nível, fechado ao olhar do observador banal, parece ridícula a pretensão de absolutizar ou de levar a sério os nobres sentimentos morais que mal encres­ pam a superficie da consciência. A partir desse momento, a análise crítica dos sentimentos morais se entre­ laça indissoluvelmente com o discurso político. Vimos a definição de "tarântula moral" aplicada a Rousseau, mestre de Robespierre. E Zaratustra dedica à denúncia e ao desmascaramento das "tarântulas" uma pregação sua particu­ larmente vibrante. Comportando-se como "pregadoras da igualdade", elas agi­ tam a palavra de ordem da "justiça", mas na realidade incubam um desejo de "vingança" contra os melhores. Sim, são "entusiastas", mas quem as entusias­ ma não é o "coração", ou seja, os nobres sentimentos que mostram, mas a "inveja" ou a "vingança" (Za, II, Das tarântulas). Bastante significativos são dois fragmentos de abril-junho de 1 885. O pri­ meiro critica o "socialismo" pelo fato de referir-se, "de modo totalmente ingê­ nuo", aos valores supremos do "bem" (além da "verdade e beleza") ; analogamente se comporta o anarquismo, mesmo que "de modo mais brutal" (X l 480). O segundo fragmento acentua que "os bons" constituem o "pano de fundo do movimento socialista democrático" (XI, 487), ou seja do partido revo­ lucionário social-democrata alemão. Mais tarde, Crepúsculo dos ídolos ob­ servará que a feminista e socialista George Sand "tem a sua raiz em Rousseau'', dele tirou "a ambição de alimentar sentimentos nobres" (GD, Incursões de um inatual, 6) . Um e outra parecem entrar na categoria dos "piedosos que são felizes na sua compaixão" e, portanto "demasiado deles carecem de pudor" (Za, II, Dos compassivos). ,

Nietzsche visa de modo particular a "doutrina dos afetos simpáticos e da compaixão", que encontra expressão nos autores mais diversos (Mill, Comte, Schopenhauer), mas que conhece o seu registro de nascimento no ''tempo da Revolução Francesa" e que continua de qualquer modo a fazer eco ameaçadora­ merite em "todos os sistemas socialistas" (M, 132). A partir do período "iluminista", o filósofo não se cansa de acentuar a necessidade de desconfiar dos "chamados instintos 'desinteressados "', em _f)rimeiro lugar o presumido "amor do próximo" (EH, Por que sou tão sábio, 4). E a crítica da moral e do cristianismo continua a ser desenvolvida com o olhar constantemente voltado para o movimento revo­ lucionário, para os "niveladores" e para as palavras de ordem deles da "'paridade dos direitos"' e da "'compaixão (Mitgefühl) por todo sofredor'" (JGB, 44), ou seja, da "'participação na dor de todos aqueles que sofrem"' (XI, 478). Opor-se à "compaixão socialista" (socialistisches Mitleid) (JGB, 2 1 ) é um aspecto es­ sencial da luta contra a subversão. É um tema sobre o qual o filósofo insiste até o fim: "A compaixão cheira à plebe [ . . ] . Incluo a superação da compaixão entre as virtudes nobres" (EH, Por que sou tão sábio, 4). Pode-se e deve-se chegar a uma conclusão geral relativa à moral . Enquan­ to encoraja "o homem comum", ela "trata como inimigos aqueles que detêm o poder, os violentos, os 'senhores ' em geral" e os "dominadores" e a "sua vonta­ de de potência" (XII, 2 1 4); e, portanto, o subversivismo é "comum a toda moral e à revolução" (XIII, 444). Como a "teoria política" revolucionária, também a "linguagem da moral" exige '"direitos iguais para todos '" (WA, 7). De resto, ao entrelaçar crítica do movimento democrático e socialista e dissecação psicológica dos sentimentos morais, embora se revele o mais radical e profundo, Nietzsche não é o único. Vimos Taine e Burckhardt. Vejamos agora a Alemanha. Também em Paul Rée, o amigo e interlocutor privilegiado do período "iluminista", é possível constatar a ligação entre discurso político e análise dos sentimentos morais. O comunismo se tomaria plausível e estaria até ao alcance da mão apenas se reahnente cada um amasse o seu próximo; mas "o erro do comunista é considerar bons os homens, ao passo que eles são maus". 576 Falta­ lhes o senso da realidade: "'Não conhece os homens', então os considera bons". 577 Junto com o mito da bondade humana original é liquidado também aquele do altmísmo: "O benfeitor imagina que o beneficiário, entusiasmado com ele, excla­ me: ' Que maravilhoso um homem bom ' ; ao contrário, espalha lágrimas sobre a grandeza da própria bondade".578 O livrinho de Rée traz como inscrição um .

576 Rée, 1 877, p. 16. 577 Rée, 2000, p. 53, af 60. 578 Rée, 2000, p. 53.

mote tirado de Gobineau, citado e tornado próprio, como vimos, já por Schopenhauer: "O homem é o animal mau por excelência". Por outro lado, aos olhos do Nietzsche "iluminista", Schopenhauer pode ser recuperado somente na medida em que se revela "um verdadeiro gênio moralista", com o seu "grande conhecimento do humano e do demasiado humano" (VM, 33). O significado político do debate em curso sobre os sentimentos morais não escapa aos contemporâneos: "Em muitos clamores modernos por justiça ressoa uma nota de inveja e de rancor plebeus";579 é o caso de Brandes, ao se referir à análise de Nietzsche e subscrevê-la. Mais tarde, quando já cessou a vida consci­ ente do filósofo, e referindo-se a ele, um expoente do socialdarwinismo observa que democracia e socialismo, com o recurso à "tagarelice moral cristã" e à "em­ briaguez humanitária" se tomam a base da "consciência do direito moral" e as­ sim conseguem dar "um esplendor ético" às suas reivindicações. 580 Na vertente oposta, aos olhos de Mehring, Nietzsche comete o erro de elevar "a 'justiça' a 'princípio dos socialistas '", concentrando a sua atenção nas correntes utópicas e sentimentais e ignorando totalmente o "socialismo científico".581 Na realidade, a indignação moral não é certamente estranha ao discurso de Marx e Engels. De qualquer modo, certa ou errada, a intervenção crítica de Mehring confirma o caráter eminentemente político do alvo da polêmica do Nietzsche "moralista". No Século XX, referindo-se a Kant e à tradição do socialismo kantiano, Bloch escreverá que "socialismo é aquilo que inutilmente se procurou até agora sob o nome de moral".582 Dir-se-ia que Nietzsche tinha antecipado essa abordagem, aproximando, na sua dura condenação, discurso moral, socialismo e democracia.

6.

Ampliação do campo do conflito social e encontro com os mo­ ralistas: "boa consciência ", "encantamento " e "mau-olhado "

Para os críticos mais inteligentes da revolução, a explicação tradicional­ mente cara à imprensa reacionária, que coloca a revolução sob a responsabilida­ de de um punhado de conspiradores e celerados, além de ser fraca no plano historiográfico, é sobretudo inaceitável no plano político pelas suas implicações populistas e antielitistas, dado que objetivamente acaba celebrando a sanidade da nação no seu conjunto, em contraposição com a imoralidade de uma camada 579 Brandes, 1 995, p. 48. 580 Tille, 1 893, pp. 85 e 89 58 1 Mehring 196 1 a, vol. XIII, p. 169. 582 Bloch, 1 973, p. 640.

intelectual e política restrita. Na realidade - observa Mallet Du Pan - "foi a Nação quase inteira que abraçou a Revolução, que a abraçou com a estupidez de um iludido, com o delírio da loucura e com a cegueira do entusiasmo". Tratou-se, pelo menos por algum tempo, de uma "deplorável fascinação" coletiva. Muito além da força, a revolução soube desenvolver uma irresistível capacidade de sedução. A seu favor jogaram "todos os prestígios da opinião, a energia do entu­ siasmo, os encantos da pena e-da palavra, as paixões que têm o maior ímpeto no coração humano". A contra-revolução é então chamada a tirar proveito dessa lição: "Quando uma doutrina nova encantou os espíritos, é preciso cuidar de não opor só a força; pois nunca os canhões mataram os sentimentos".583 Pontos de contato com esta análise são apresentados pelas observações de um autor que nos reconduz às vizinhanças imediatas de Nietzsche. Burckhardt sublinha o papel desempenhado no processo revolucionário pelos "sentimentos virtuosos", pela "comoção" e pela "necessidade geral de emoções", que se espa­ lham rapidamente, dada a presença de uma "disposição geral ao contágio".584 A tomada de consciência da eficácia devastadora, por ocasião das gran­ des crises históricas, dos sentimentos, das paixões, das emoções de massa não podem não comportar uma revalorização da razão, como surge desta passa­ gem da Gaia ciência: "Em todo o seu pensamento, os gregos são indescritivelmente lógicos e simples: pelo menos pela longa duração da sua melhor época, não tiveram nojo disso, como ao contrário aconteceu com os franceses com tanta freqüência" (FW, 82). As diversas explosões revolucioná­ rias, que marcaram a história da França, são momentos de ofuscamento da razão, são momentos nos quais o país renega as suas melhores tradições de rigor racional e de amor pela clareza. Causa agora uma certa impressão ver Nietzsche condenar "o ódio de Wagner contra a ciência" (FW, 99) e contrapor ao musicista e ao seu partido "nós outros sedentos-de-razão" (FW, 3 1 9). Não tinham as conferências de Basileia feito uma dura condenação aos socialistas, culpados por reivindicar o "Estado popular" em nome não só da 'justiça", mas também da "razão (supra, cap . 4 § l )? Não há dúvida, mudou radicalmente o papel atribuído à razão, embora tenha permanecido imutável o alvo da crítica. Na medida em que pretende realmente combater os sentimentos e as paixões, que alimentaram na França movimentos de massa e de rua, o iluminismo antirrevolucionário não pode não se configurar, para usar a linguagem já vista de Nietzsche, como "iluminismo moral". É esse o lugar em que se coloca o encontro com os grandes moralistas. Não por acaso, Rivarol, crítico impiedoso 583 ln Matteucci, 1957, pp. 380 e 278-9.

584 Burckhardt,

1978 b, pp. 398 e 397.

da revolução, é aproximado a Fontenelle (VIII, 594) ou a Chamfort (XI, 20). Mas como explicar o fato de que este último tenha, ele mesmo, suportado o fascínio das palavras de ordem de 1789? Que um tal conhecedor dos homens e da multidão, como foi Chamfort, tenha corrido em ajuda exatamente desta última, sem ficar separado em filosófica renúncia e defesa, sei explicar apenas deste modo: havia nele um instinto maior do que a sua sabedoria e que nunca ficava satisfeito, o ódio contra toda noblesse de sangue (FW,95).

Um papel nefasto é desempenhado por "um instinto de vingança" plebeia "herdado nos anos da intància" pelo lado da mãe (FW, 95). Quando se deixa contagiar pela loucura revolucionária, um grande moralista deve ser também alvo de "suspeita" e submetido à dissecação psicológica. O interesse principal é pela crítica à revolução: a utilização da lição dos moralistas está subordinada à consecução desse objetivo. Fazendo apelo à justiça e comportando-se como intérpretes de uma ins­ tância moral superior, os revolucionários e os miseráveis chegam a conferir eficácia à sua luta pela igualdade e a homologação das leis; buscam e obtêm a "boa consciência" (gutes Gewissen) necessária "para o mau jogo que devem jogar" (MA, 473). O perigo mais grave para a sociedade provém exatamente daqueles que "têm fé na boa consciência do desinteresse" (MA, 454). Ao mes­ mo tempo, estimulando o sentimento da compaixão nas classes superiores, os revolucionários minam a sua capacidade de resistência, que não é mais ataca­ da pelo caruncho do remorso ou pelo menos do incômodo. É o "encanto" da moral: "desde os tempos antigos a moral é muito experiente em toda diabrura da arte do encantamento" (Bezauberung): "muitas vezes com um só olhar consegue paralisar a vontade crítica, até atraí-la com lisonjas de sua parte" (M, Prefácio, 3). A moral serve aos fracassados da vida para lançar uma espécie de '·mau-olhado" contra os bem sucedidos e é essa operação maléfica que se trata de fazer oposição e neutralizar (infra, cap . 29 § 4). A paixão política está, pois, longe de desaparecer: ao contrário, a lição dos moralistas pode ser posta a render para realizar uma ampliação decisiva do campo do conflito social, que agora é surpreendido em sentimentos, estados de espírito, atitudes até aquele momento cons ideradas politicamente neutras ou indiferentes. Compreende-se que Nietzsche olhe para trás em busca de precedentes nessa sua atitude. No entanto, ao se referir aos moralistas, há algum exagero. Se em Montaigne serve para demolir a boa consciência dos conquistadores, em Nietzsche o evidenciamento do negro da alma humana tem em mira a boa consciência do movimento revolucionário e socialista. Em Montaigne, a crítica

ao antropocentrismo está estreitamente entrelaçada com a denúncia do etnocentrismo da Europa da conquista e das guerras religiosas; em Nietzsche, ao contrário, aquela crítica está interligada com a denúncia da Europa da revo­ lução e da proclamação dos direitos do homem. Não é por acaso que os anos do encontro com grandes moralistas são os anos em que mais enfaticamente se manifesta neles a autoconsciência europeia. É preciso acrescentar que tam­ bém o antidogmatismo e o ceticismo desempenham nos dois casos uma função diferente; é só em Nietzsche que eles são univocamente representados como atitude de irrisão nos confrontos das aspirações ou dos sonhos de resgate das classes subalternas ou dos povos coloniais. Uma última consideração. O encontro com os grandes moralistas é ape­ nas um momento no curso de uma evolução que procede em ritmo apressado, pensando até o fundo mas queimando também rapidamente os diversos experi­ mentos intelectuais que marcam as diversas etapas . A genealogia histórico­ psicológica serve para desmantelar a visão moral do mundo e aplanar o cami­ nho para aquela que será depois definida como a "inocência do devir".

9 ENTRE NACIONAL-LIBERALISMO ALEMÃO E LIBERALISMO EUROPEU 1. Organismos representativos, sufrágio universal e partidocracia

A té agora nos concentramos na evolução filosófica de Nietzsche e deixa­ �os na sombra a evolução mais exatamente política. VImos a profissão de fé nacional-liberal de 1 866 (supra, cap. 1 § 6), mas que mudanças se verificam nos anos seguintes? À primeira vista, parece que se assiste a uma condenação do liberalismo. Na realidade, fala-se desta corrente cultural e política com um juízo de valor caracterizado por uma ambigüidade substancial . Como sabemos já por O &tado grego, a "visão liberal" alvejada é a que coincide com a visão "otimista do mundo", que deu fundamento à Revolução Francesa e ao ciclo de convulsões que começam a partir dela (supra, cap. 3 § 7). O julgamento critico ataca aqui, sobre­ tudo, a uma certa filosofia da história, a ideologia do progresso, que não pode não alimentar as ilusões e, portanto, as aspirações à mudança e a revolta dos escravos. É nesse sentido que Nietzsche polemiza contra aqueles que se dizem "liberais" são significativas as aspas usadas por ele no texto - que, no seu zelo democrático, acabam colocando-se a reboque dos "socialistas" e "comunistas" (CV, 3; 1, 767-8). Por outro lado, o esboço de prefácio - que ficou inédito - a O nascimento da tragédia, denuncia a "infame profanação de uma palavra bem intenciona­ da" do "liberalismo" corrente (VII, 355). Nietzsche parece aqui comportar-se como defensor do liberalismo autêntico, aquele que se mantém firme na visão trágica do mundo, sem se deixar levar pela impetuosa maré otimista. Não por acaso, ao polemizar contra os liberais do seu tempo, Nietzsche às vezes recor­ re, como logo veremos, às aspas para sublinhar o caráter espúrio daquele l ibe­ ralismo. Ou então fala com desprezo dos "chamados liberais" (sogenannte Liberalen), escandalizados pelo fato de Schopenhauer ter "deixado em heran­ ça o seu patrimônio aos parentes dos soldados prussianos que tombaram em 1 848 em defesa da manutenção da ordem". Na realidade, ao comportar-se desse modo, o grande filósofo tinha se revelado perfeitamente coerente com a autêntica inspiração liberal da sua filosofia: Do Estado, como é sabido, pensava que os seus únicos objetivos fossem fornecer a defesa do exterior, a defesa do interior e a defesa contra os defen-

sores [de mais Estado] e que, se lhe fossem atribuídos outros objetivos além do objetivo da defesa, podia facilmente pôr em perigo o verdadeiro objetivo (SE, 7; 1, 409).

Dissipados a angústia e o horror suscitados pela Comuna de Paris, com a consolidação da III República francesa, que agora pusera sob controle os "es­ cravos" em revolta, as posições de Nietzsche se aproximam ainda mais daque­ las do liberalismo europeu. ·Também a extensão do sufrágio e a democracia podem funcionar como instrumento de estabilização e de controle: Parece que a democratização da Europa é um elo na corrente daquelas enonnes di.\posições profiláticas, que constituem o pensamento da época moderna e pelas quais nos distinguimos da Idade Média. Só esta é a idade das construções ciclópicas! Segurança final dos fundamentos, a fim de que todo futuro possa ser construído sobre eles sem perigo! Impossibilidade para o futuro de que os campos da civilização sejam de novo destruídos de um dia para o outro por águas selvagens e insensatas da montanha ! Diques e baluartes contra os bárba­ ros, contra as epidenúas, contra a escravidão material e espiritual! (WS, 275).

O recurso à legitimação popular pode servir para banir o perigo de revol­ tas e guerras servis. De modo análogo argumenta nesse mesmo período de tempo um político francês de primeira categoria. Fazendo apelo à opinião públi­ ca moderada e conservadora para que apóie a Terceira República fundada sobre o sufrágio universal (masculino), Gambetta se exprime assim no outono de 1 8 77: "Como podeis não compreender que, se o sufrágio universal funciona na plenitude da sua soberania, a revolução não é mais possível, porque não pode mais ser tentada?" Ela não tem mais nenhuma legitimidade e nenhuma chance, "uma vez que a França falou" e falou com toda a autoridade que lhe deriva da maciça investidura de baixo. 585 O importante, porém, é - observa Nietzsche - que não se confundam meios e fins. A democracia não é um fim em si, e é provável ou desejável que também não o seja para aqueles que dizem que se inspiram nela: "Não se deve fazer pesar duramente demais para aqueles que trabalham para construir o presente o fato de que eles decretam em alta voz que o muro e a lata já são o objetivo e o fim último; pois que ninguém vê mais o jardineiro e as plantas frutíferas para as quais a lata existe" (WS, 275). Outras vezes, o filósofo se sente menos seguro sobre a eficácia do meio e propõe esse ou aquele remédio para uma situação percebida como intolerável : "É ridículo que uma sociedade de pessoas sem posse decrete a abolição do direito de 585 ln Hirsclunan, 1983, p. 1 24.

herança" (MA, 436). É uma fonnulação que traz à memória aquela fonnulação semelhante e de sinal contrário de Marx, segundo o qual a democracia burguesa atinge a sua plenitude somente "quando o sem-posse se tornou legislador do possuidor".586 No momento em que A questão judaica se exprime assim, as restrições censitárias estão em pleno vigor na França e na Inglaterra, e continu­ am neste último país ainda no momento em que é feita a declaração de Nietzsche. Este, contudo, prossegue assim: "[ . . . ] e não é menos ridículo que aqueles que não têm filhos trabalhem para a legislação prática de um país; eles não têm de fato lastro bastante no seu navio para poder velejar com segurança no oceano do futuro" (MA, 436). É um conceito acentuado num aforismo posterior: Se o homem não tem filhos, não tem pleno direito de intervir nas necessidades de um Estado. É preciso ter arriscado pessoalmente com os outros, nos filhos, aquilo que se tem de mais caro: só isso liga solidamente ao Estado; é preciso ter presente a felicidade dos próprios descendentes e, portanto, antes de tudo, ter descendentes, para tomar parte, de modo justo e natural, em todas as instituições e em todas as suas transfom1ações {MA, 455).

É verdade que numa variante depois abandonada se faz referência ao "panegírico" de Péricles (XIV, 1 4 7), presumivelmente o trecho em que o esta­ dista ateniense, a partir da guerra e das exigências de segurança da cidade, observa: "Não é possível que tomem medidas imparciais e justas aqueles que não correm do mesmo modo que os outros o perigo de sacrificar os próprios filhos".587 No entanto, mais do que o modelo da Grécia antiga, aqui agem as sugestões provenientes da realidade e do debate político contemporâneo. São os anos em que de um e de outro lado do Reno florescem as p ropostas de refonnas e de engenharia eleitorais. A favor de um privilegiamento dos homens casados e com prole se pronuncia, por exemplo, Renan,588 um autor que gosta de se colocar entre os "liberais ilustrados".589 Contra os perigos da democracia, Nietzsche sugere também a introdução de um sistema eleitoral em vários graus. É uma ideia cara já a Tocqueville. Este celebra a tal propósito o Senado estadunidense, o qual deve a sua excelência ao fato de não ser o resultado de uma eleição direta; sobretudo é uma ideia à qual, depois da Comuna de Paris, Renan se esforça por conferir nova atualidade. 590 5M6 Marx-Engels, 1955, vol. 1, p. 354. 587 A guerra do Peloponeso, II, 44 (Tucídides, 1989, vol. 1, p. 337). 588 Renan, 1 947, vol. 1, p. 387. 589 Renan, 1 947, vol. 1, p. 443. 590 Sobre Tocqueville, cf. Losurdo, 1993, cap. 1, 2; Renan, 1947, vol. 1, pp. 386-7.

Segundo Nietsche, se deveria partir de um círculo de "homens honestos e dig­ nos de confiança de um país, que ao mesmo tempo fossem mestres e especia­ listas em alguma matéria", para realizar depois "uma seleção mais restrita". Dentro do "corpo legislativo" assim constituído seriam habilitados a "decidir só os votos dos competentes mais especializados", de modo que "a lei fosse rigo­ rosamente o fruto da inteligência dos mais inteligentes" (VM, 3 1 8). Até aqui nos movemos ajnda num terreno bastante tradicional . Também na França não faltam aqueles que lutam para que seja sancionada a primazia do "homem instruído" e do "cientista" sobre o "cidadão sem inteligência e desprovi­ do de instrução"; por outro lado, ainda que através de um mecanismo eleitoral diferente, que confere um voto múltiplo aos mais cultos e aos mais responsáveis, também John Stuart Mill espera garantir o controle da inteligência e da compe­ tência sobre os organismos representativos .591 É um momento em que o próprio Nietzsche acaricia a ideia do voto plural, mesmo se agora não devessem ser os mais inteligentes a se beneficiar com ele, como no modelo caro ao liberal inglês, e sim os "pais que colocam no mundo muitos machos" (XIII, 495). Deixando de lado esta última eA.1ravagância, que lembra a obsessão pela "eugenia" que carac­ teriza particularmente os últimos anos do filósofo (infra, cap. 1 9 § 1 ), não estamos muito longe do mundo do liberalismo alemão e europeu. Mas o mesmo Nietzsche "iluminista" esclarece ulteriormente o seu pensa­ mento. Mais do que a amplitude do sufrágio ou do Parlamento, deve ser levada em consideração o que nos nossos dias se chamaria de partidocracia. Já nos aponta­ mentos e nas redações preparatórias das conferências Sobre o faturo das nossas escolas se exprime desgosto pela "multidão dos partidos" (XIY, 1 06). Mas agora esse desgosto e essa denúncia assumem uma conotação mais explicitamente polí­ tica: "Hoje votam os partidos"; são eles que violam o princípio da competência e "a fé na suprema utilidade da ciência e daqueles que sabem", transformando toda votação parlamentar muna "votação de partido". Portanto, "o nosso mote seja: 'Mais respeito por aquele que sabe! E abaixo todos os partidos '" (VM, 3 1 8) . Em tem1os ainda mais enérgicos se exprime a primeira redação deste aforismo: "Abolir os partidos no Parlamento. Quem não é competente se abstenha do voto. Compor­ ta-o a moralidade interior da verdade" (XIV, 1 80). Permanecendo firme a utilidade dos organismos representativos, trata-se de libertá-los de um abraço e de um con­ trole sufocantes. É um programa que Nietzsche considera em perfeita sintonia com o seu "iluminismo" e com a sua luta contra o fanatismo. Trata-se de tomar posição decidida contra uma instituição, o partido, que aspira a fazer de cada membro seu um "seguidor incondicionado" (VM, 305). 59 1 Huard, 199 1 , p. 108; Losurdo, 1 993, cap. 1, 6-7.

Como nos anos de O nascimento da tragédia, também agora o olhar continua a voltar-se para a social-democracia que, de modo diferente dos par­ tidos burgueses de opinião, por causa das perseguições sofridas e em virtude da sua ambição a uma transformação radical da sociedade, tende a configurar­ se como uma espécie de contra-Estado e, portanto, não pode não fazer apelo ao sentido de união, de disciplina e de solidariedade dos seus militantes. Também nisso NietzsGhe demonstra saber reconhecer e, muitas vezes, antecipar os humores do tempo . Mais tarde, Haym b radará contra a "partidocracia" (Parteiwesen), e sempre com o olhar voltado para um partido que, com o seu "incitamento das massas contra as classes possuidoras", repre­ senta uma "ameaça de destruição" para "qualquer ordenamento social". A fim de neutralizar a força da social-democracia, pode ser necessário dar um passo atrás com respeito ao sufrágio universal .592 Para Nietzsche, também, este não é algo irrevogável ; mas o fenômeno do abstencionismo eleitoral já exige ou implica a revogação. Estamos diante de uma contradição fundamental: o sufrá­ gio universal pode ser estendido a todos os cidadãos se nem todos os cidadãos estão de acordo? O sufrágio universal poderia ser legitimado apenas pela "una­ nimidade dos cidadãos"; basta, pois, o fenômeno da abstenção eleitoral para colocá-lo em crise {WS, 276). Haym exprime a sua tomada de posição ao evocar simpateticamente a figura do autor de um ensaio (O liberalismo alemão. Uma autocrítica),593 que conclama essa corrente cultural e política a se purificar de toda incrustação de­ mocrática e que, sobre tal base, consegue imediatamente um notável sucesso. Desenvolve-se assim um liberalismo marcado por uma dura polêmica contra aquela que Treitschke define desdenhosamente como as "ideias de 1 789".594 É neste terreno que Nietzsche se coloca. É preciso não esquecer que a sua declaração de adesão aos princípios do partido "liberal" e "liberal nacional" ocorre no mesmo ano que vê a publicação do ensaio de "autocrítica" do liberalismo. No tocante à desconfiança e à hostilidade nas comparações do sufrágio universal, nesse momento se deve ter presente que ele se firmou na França e na Alemanha, limitando-se à eleição do Reichstag, mas ainda não pôs o pé na Grã-Bretanha. Bismarck deu mostra de sabedoria e- de equilíbrio ao fazer um aumento tão grande do corpo eleitoral? Quem pergunta é também Strauss, que contrapõe ao II Reich o exemplo exatamente da Inglaterra liberal: "Para o direito de voto na eleição do Parlamento se realiza de tempo em tempo o censo, 592 Haym,

1 903 b, p. 627.

593 Baumgarten, 1974. 594 Treitschke, 1981, vol. 1, p. 1 1 8.

mas nenhum estadista inglês teria a ideia de querer aboli-lo totalmente". Estamos na presença de um país que tem o mérito de revelar-se insensível à demagogia democrática: rejeita sem hesitação, junto com à do sufrágio universal, a reivin­ dicação da abolição da pena de morte, que, porém, encontra um ouvido muito atento na Alemanha. 595 O Nietzsche "iluminista" também parece olhar com simpatia para o país clássico da tradição liberal, onde titulares dos direitos políticos são só os propri­ etários de uma casa. Mas a simpatia e a admiração parecem ser de caráter mais geral : "Hoje, sem dúvida, está na frente de todos os povos na filosofia, na ciência, na história, no campo das descobertas e da difusão da cultura"; apenas na Inglaterra é permitido ao "indivíduo um isolamento vitorioso e alegre com respeito às opiniões públicas" (VIII, 466). É nesse contexto que pode ser colo­ cada a recuperação parcial de Schopenhauer: é de se apreciar o "seu duro sentido dos fatos, a sua honesta vontade de coisas claras e racionais, que o fazem muitas vezes parecer tão inglês e tão pouco alemão" (FW, 99). E prova­ velmente a anglofi l ia desses anos age também na preferência concedida a Hume em relação a Kant, "prolixo" no seu modo de comunicar e dado a diluir "os seus pensamentos, talvez perfeitamente claros, de modo a torná-los pesados e obs­ curos" (VIII, 446). Além da Inglaterra, a simpatia parece voltar-se também para outro país clássico da tradição liberal, como surge da oposição entre a "sobriedade (Nüchternheit) anglo-americana na reorganização do Estado e da sociedade" e a "exaltação revolucionária ( Umsturz-Schwarmerei) francesa" (VM, 1 7 1 ) .

2. Do estadismo da polis grega ao socialismo: Nietzsche, Constant e Tocqueville Mas não é só pelas sugestões políticas imediatas e pela desconfiança ou hostilidade em relação ao sufrágio universal que o Nietzsche desses anos se revela próximo do pensamento liberal do tempo, empenhado em condenar o ideal jacobino de participação difundida ou unânime na vida pública. É um ideal que ressoa também do outro lado do Reno. Dando expressão ao clima de fervor e de entusiasmo difuso nos anos que precedem a revolução de 1 848, Heine celebra na política, com o interesse e a participação na vida pública que ela comporta, a "grande ciência da liberdade".596 De acordo com a terceira Inatual, porém, um 595 Strauss, 1 872, p. 286. 596 Heine, 1 969-78, vol. II, p. 657.

dos grandes méritos de Schopenhauer é ter denunciado o "faror politicus". Quem está curado desta doença "se absterá sabiamente de ler cada dia jornais ou de servir a um partido, embora não venha a hesitar um instante em estar no seu lugar num momento de real necessidade para a sua pátria". Em todo caso, como para Constant, também para Nietzsche a política é tarefa de uma classe restrita de pessoas: "São mal organizados todos os Estados nos quais devem ocupar-se de política outras pessoas além dos homens políticos, e merecem arru­ inar-se por causa dos muitos politiqueiros" (SE, 7; 1, 409). Mas os pontos de contato com os liberais franceses não ficam por aqui . É conhecida a acusação feita por eles nos confrontos à tradição rousseauiano­ jacobina: ela é culpada de ter confundido liberdade antiga (fundada na onipo­ tência do corpo social que absorve e engole o indivíduo no corpo social) e liberdade moderna (fundada na independência do individuo do corpo social). É neste debate que Nietzsche parece intervir, revelando certo conhecimento, di­ reto ou mediato, de Constant, cuja tese de fundo tem ampla ressonância em terra alemã em autores como Treitschke e Haym. 597 Pode parecer paradoxal que se busquem vestígios da polêmica contra a "liberdade antiga" num autor que faz uma acusação implacável na comparação com o moderno em nome da celebração e transfiguração em primeiro lugar da Hélade. No entanto, se rechaça a condenação da escravidão antiga, nem por isso Nietzsche assume a polis como modelo. Já no Século V a. C. - observa Burckhardt - se verifica na Grécia a chegada do "domínio das massas".598 Como para o historiador, tam­ bém para o filósofo a polis indica o momento em que "na Grécia a plebe se toma preponderante" (JGB, 49) . Ela é sinônimo de pretensão desatinada de todos os cidadãos a participar nas decisões políticas: "A história não conhece outro exemplo de um desencadeamento tão terrível do impulso político e de um sacrificio tão incondicionado de qualquer outro interesse em favor do instinto estatal" (CV, 3; 1, 77 1). A "famélica insaciabilidade da vida pública" (XIV, 1 06), que Nietzsche, com o olhar voltado para a democracia e o socialismo, denuncia no mundo moderno, tem um antecedente na polis grega: O amor quase religioso pelo rei canalizou-se, entre os gregos, para a polis, quando a monarquia acabou [ .. ]. A veneração pela polis e pelo Estado foi maior do que jamais fora antes pe lo príncipe. Os gregos são os loucos pelo falado da história antiga - na moderna são outros povos (WS, 232). .

597 Cf. Losurdo, l 997 a, cap. XIV, 2 e p. 626. 598 BtJrckhardt, 1978 a, p. l 20.

A antiguidade clássica e a Grécia como sinônimo de engolimento do indi­ víduo no corpo político é o tema caro a Constant, que depois encontra difusão muito grande também em terra alemã, enquanto a referência aos povos moder­ nos tem claramente em mente o país das incessantes convulsões revolucioná­ rias. Com efeito, ainda que num contexto diferente, em Humano, demasiado humano "gregos e franceses" são assemelhados (supra, cap. 7 § 7) . Nietzsche começa a lidar com esses temas já nas conferências de Basileia. Elas se colocam diante de um debate interessante que se trava a propósito da expansão do aparelho escolar e estatal na Prússia. Um interlocutor denuncia o surgimento "de uma organização digna da antiguidade, de uma onipotência do Estado conseguida apenas na antiguidade"; há o perigo de que triunfe uma visão que, como na antiguidade, considera "tal Estado como o ápice e a meta suprema da existência humana" (BA, 3; 1, 708). Por isso, intervém a essa altura um interlocutor mais autorizado - é "o filósofo" por excelência - que especifica que "o Estado antigo permaneceu muito distante exatamente dessa visão utilitária, que consiste em admitir a cultura só à medida que é diretamente úti l ao Estado" (BA, 3 ; 1, 708-9). Nietzsche parece aqui comprometido em duas frentes. Por um lado, empenha-se em precisar que a Prússia, odiosa a ele pela difusão capilar da instrução e dos institutos escolares (em função do refor­ ço do aparelho burocrático e militar), não tem nada a ver com a Grécia, pelo menos a Grécia autêntica. Por outro lado, preocupa-se em distinguir a Hélade da imagem projetada sobre ela pelos jacobinos e pela polêmica antijacobina (e anti-socialista) da cultura liberal europeia: O espírito profundo dos gregos nutria pelo Estado aquele forte sentimento quase escandaloso para o homem moderno - de admiração e de gratidão exatamente porque reconhecia que sem uma instituição semelhante para a emergência e a defesa (Noth und Schutzanstalt) não pode desenvolver-se nenhum germe de cultura e, ademais, reconhecia que toda a cultura grega itúmitável e única em todo o curso do tempo - cresceu tão viçosa exatamente sob a proteção cuidadosa e sábia das instituições políticas destinadas à emergência e à defesa (BA, 3; 1, 709).

Esse Estado limitado é infelizmente destruído pela polis, cuja imagem em Nietzsche não é muito diferente daquela própria da cultura liberal do tempo: A polis grega era, como toda força política organizadora, exclusiva e descon­ fiada em relação ao florescimento da formação intelectual, cujo poderoso impulso fundamental revelou-se só para ela como um empecilho e um obstá­ culo [. . . ]. Portanto, a formação intelectual desenvolveu-se apesar da polis [. . . ]. Contra isso não é preciso apelar para o panegírico de Péricles: porque

ele é só uma grande e otimista fantasia sobre a pretensa conexão necessária entre polis e cultura ateniense (MA, 474).

O texto do qual Humano, demasiado humano toma distância é aquele em que Péricles sublinha o papel central e a função fecunda do "conhecimen­ to" e do "cuidado dos assuntos públicos". Exatamente nisso consiste a primazia de Atenas: "Somos os únicos, de fato, a não considerar mais ocioso, mas inútil, quem não se interessa por elés". 599 O tema do panegírico de Péricles parece estar bem presente em Heine. Nos anos do Vormarz, quando surge no horizonte a revolução democrática, ele insiste no fato de que não há contradição entre desenvolvimento da arte e da cultura, de um lado, e participação e paixão política, do outro. Os exemplos de Atenas e Firenze demonstram-no. Os artistas "não levavam uma vida de arte egoísta e isolada, a alma ociosamente poetante hermeticamente fechada contra as grandes dores e as grandes alegrias da época [ ... ], não separavam a arte própria da política contingente, não trabalhavam imersos num mísero entusiasmo privado". 600 Aos olhos de Nietzsche, ao contrário, o caráter nivelador da polis encon­ tra a sua expressão mais acabada em Platão: o filósofo que queria banir a arte da sua cidade ideal e também "o socialista antigo, típico", não por acaso com­ prometido "com a corte do tirano siciliano". O fato é que o socialismo "aparece sempre na vizinhança de todos os excessivos aparatos de poder" (MA, 473). Topamos assim com outro dos argumentos clássicos do pensamento libe­ ral do tempo. Vimos já a quarta Inatual referir-se a Schopenhauer para subli­ nhar que o "verdadeiro objetivo" do Estado é bem limitado. Humano, demasi­ ado humano reforça: O Estado é uma instituição sábia para a proteção dos indivíduos uns contra os outros: se se exagerar em enobrecê-lo, o indivíduo acaba sendo enfraque­ cido, e até dissolvido - o fim original do Estado torna-se assim inútil no modo mais radical (MA, 235).

Na sua louca pretensão de resolver politicamente a questão social, o mo­ vimento democrático e socialista agita a palavra de ordem: "Quanto mais Esta­ do for possível". Pois bem, "logo irromperá, com força tanto maior, também o outro grito oposto: 'Quanto menos E stado for possível"' (MA, 473). Em virtude da dilatação patológica do aparelho estatal que ele promove, bem longe de representar uma novidade real, "o socialismo é o fantástico irmão 599A guerra do Peloponeso, II, 40 (Tucídides, 1989, vol 1, p. 329). .

600

Heine, 1 969-78, vol. III, p. 72.

menor do quase extinto despotismo, cuja herança quer apanhar", levando a "plenitude do poder estatal" a um nível ainda superior (MA, 473). Somos leva­ dos a pensar no Tocqueville de O Anügo Regime e a revolução e na l inha de continuidade aqui instituída pelo absolutismo monárquico até o jacobinismo e o socialismo, segundo o princípio do estatismo e do despotismo. Por outro lado, Nietzsche pode ter lido essa linha de continuidade em Taine, que, também, com uma referência desta vez explícita a Tocqueville, vê "a ditadura ilimitada do Estado" marcar sem solução de continuidade toda a história da França.601 Ou pode tê-la escutado de Burckhardt, que insiste repetidamente sobre este tema. 602 Por outro lado, é clara e nítida também em Gobineau a afirmação da linha de continuidade desde o absolutismo monárquico até o estadismo revolucionário e, sobretudo, jacobino. 603 Tocqueville sublinha também as afinidades e as cumplicidades secretas entre socialismo e bonapartismo. Humano, demasiado humano afirma que o socialismo "deseja (e em certas circunstâncias favorece) o Estado ditatorial cesário deste século (den casarischen Gewaltstaat dieses Jahrhunderts), porque [ . . . ] gostaria de se tornar o seu herdeiro" (MA, 473). De qualquer modo é clara a identificação do Nietzsche "iluminista" com o ponto de vista do movi­ mento liberal, do qual ele toma a linguagem e importantes categorias: com o seu projeto de ulterior dilatação do aparelho estatal, bem longe de representar o progresso, o socialismo demonstra nutrir "aspirações [ . . . ] no sentido reacioná­ rio mais profundo" (MA, 473). Para dizer com Tocqueville, estamos na presen­ ça de "doutrinas" que se pretendem "novas", mas são na realidade "bastante velhas". 604 Trata-se de um movimento - prossegue Humano, demasiado humano que visa "expressamente a aniquilação do indivíduo, que lhe parece um luxo injustificado da natureza e que deverá ser transformado pelo socialismo num órgão apropriado da comunidade" (Gemeinwesen) (MA, 473). Desapareceu agora o pathos da unânime comunidade volksthümlich, que caracterizava o período "romântico" de Nietzsche. O alvo polêmico continua a ser o incessante ciclo revolucionário que desembocou no socialismo. Mas este não é mais criti­ cado como estranho à essência e à comunidade popular germânica. Agora, ao contrário, é sublinhada a função benéfica da propriedade e da iniciativa indivi­ dual: se "se quer restituir a propriedade à comunidade (Gemeinde) e fazer do -

60 1 Taine, 1 899, vol. II, pp. 65-7 (= Taine, vol. II, pp. 435-7). 602 Burckhardt, 1 978 a, pp. 68 e passim. 603 Gobineau, 19 17, pp. 20- 1 . 604 Tocqueville, 1 864-7, vol. IX, p. 570.

indivíduo apenas o empreiteiro provisório, estraga-se a terra". É preciso não perder de vista um fato essencial : "o homem não se preocupa e não se sacrifica por tudo aquilo que possui apenas temporariamente e, em tal caso, se comporta como explorador, como predador e como esbanjador negligente" (WS, 285). É isto que o socialismo antigo e moderno teima em não querer compreen­ der: "A melodia utópica fundamental de Platão, que ainda hoje é cantada pelos socialistas, repousa num coqhecimento defeituoso do homem". De fato, quan­ do "diz que o egoísmo seria suprimido com a supressão da propriedade, pode­ se responder-lhe que, depois que o egoísmo fosse tirado do homem, em todo caso não sobrariam as quatro virtudes cardeais [ . . . ]. Sem vaidade e egoísmo, o que seriam então as virtudes humanas?" (WS, 285).

3. Realismo político e utopia antiquada Vimos que o interesse de Nietzsche pela política é tão forte que ele não desdenha prestar atenção ao fenômeno do abstencionismo e aos diversos pro­ jetos de engenharia eleitoral antidemocrática. É natural que a este "realismo" se ligue o utopismo singular de um filólogo Clássico que é ao mesmo tempo um filósofo ligado à antiguidade. Um exemplo é particularmente significativo. De­ pois de ter condenado como absurdo o gozo dos direitos políticos por parte daqueles que não têm descendentes, Nietzsche prossegue assim: Parece igualmente absurdo que aquele que escolheu como tarefa o conheci­ mento mais universal e a valorização de toda a existência, assuma tornar conta pessoalmente de urna fanúlia, da manutenção, da segurança, da prote­ ção de mulheres e filhos [ . . . ] . Por isso também eu afirmo que nas coisas da mais alta natureza filosófica todos os casados são suspeitos (MA, 436).

Aqui está claramente atuando, não a observação da realidade na Alema­ nha, ou na Europa, mas a leitura da República de Platão ! E esta leitura, e a imagem transfigurada da antiguidade clássica, desempenham uma função ain­ da mais nítida na terapia sugerida para resolver a questão social. Assim, ao condenar o utopismo socialista, Nietzsche recorre a temas amplamente difun­ didos na cultura liberal do tempo: A sã razão nos preserve de crer que a humanidade encontre um dia, seja quando for, organizações ideais definitivas, e que então a felicidade deva resplandecer com raio sempre igual, como o sol dos países tropicais, sobre os homens de tal modo organizados [... ]. Não urna idade de ouro, não um céu

limpo de nuvens é destinado a estas gerações futuras [ ... ]. Nem a bondade e a justiça sobre-humanas serão estendidas sobre os campos deste futuro como um arco-íris imóvel (WB, 1 1 ; 1, 506).

Não se trata de entrincheirar-se numa atitude de conservação cega. É necessário "agir com coragem mais intransigente para o melhoramento da parte do mundo reconhecida mutável" (WB, 3 ; 1, 445). Estamos na presen­ ça de uma posição mais flexível com respeito àquela enunciada por O nasci­ mento da tragédia, que vimos empenhado em demonstrar, contra o otimismo teórico e prático, que não é possível "mudar nada na existência eterna das coisas". Agora, porém, se reconhece a existência de uma área de mudança possível e necessária. Mas ela pode ser corretamente identificada e circunscri­ ta só depois de ter filosoficamente esclarecido "até que ponto as coisas têm natureza e forma invariável" (WB, 3 ; 1, 445), isto é, só depois de ter resolvido o trabalho ignorado ou negligenciado do utopismo revolucionário e socialista, que persegue a ilusão de uma palingenesia total. Não é diferente a atitude de Tocqueville, segundo o qual ao sonho socialis­ ta de eliminação das "misérias humanas" é preciso contrapor a clara visão e a reafirmação das leis e das estruturas sociais que "estão fora do alcance das revoluções" (infra, cap. 20 § 8). As reformas sociais necessárias não estão em contradição com uma política que precise de enérgica repressão. Isto vale para os liberais franceses605 bem como para Nietzsche. No que respeita em particular a este último, encontra­ mos considerações de modernidade penetrante e de grande ousadia política real : Dividem-se aqueles que propõem uma subversão da sociedade entre os que querem obter algo para si mesmos e aqueles que querem obter algo para os seus filhos e netos. Estes últimos são os mais perigosos; pois têm a fé e a boa consciência do desinteresse. Os outros podem ser contentados com pouco: a sociedade dominante é sempre rica e inteligente bastante para fazê-lo. O peri­ go começa assim que os objetivos se tomam impessoais (MA, 454).

Ou seja, enquanto os oportunistas e os carreiristas do movimento socialis­ ta podem ser corrompidos e até de alguma maneira cooptados pelos sistema e pelo poder existente, os que representam a ameaça maior são os elementos mais desinteressados, generosamente empenhados em construir o bloco de for­ ças suscetíveis de fazer a viravolta revolucionária, . Até aqui não estamos longe do patrimônio de ideias do l iberal ismo europeu. Mas de novo intervém a utopia ao modo antigo . Eis em que 605 Cf. Losurdo, 1 993, cap. II, 4.

termos Nietzsche se dirige idealmente às classes p rivilegiadas : "O único meio contra o socialismo que está em vosso poder é: não desafiá-lo, ou seja, viver vós mesmos com moderação e modéstia, impedir com todas as fo rças a exibição de qualquer suntuosidade e vir em aj uda do Estado, quando este aumenta sensivelmente os impostos de tudo o que é supér­ fluo e voluntário" (VM, 3 04) . A recordação das leis -suntuárias da antiguidade parece aqui estimular uma atitude favorável para uma espécie de imposição fiscal progressiva: assim, acaba sendo objetivamente posta de novo em discussão a palavra de ordem que convida a reduzir ao mínimo o Estado e a sua esfera de intervenção. O fato é que em Nietzsche ainda é forte e predominante a preocupa­ ção pelo socialismo, esta "doença do povo", esta "peste" ou então esta "sarna do coração", que "se difunde sempre mais rapidamente na massa". As classes privilegiadas deveriam estar prontas para fazer algum sacrificio a fim de evitar o perigo : "Não quereis este meio? Então - insiste o fi lósofo - vós, ricos burgueses, que vos chamais 'liberais', confes sai" que sois ani­ mados pela ânsia do "patrimônio", exatamente como os socialistas, os quais de tal atitude recebem novo impulso no seu empenho de atacar a p roprieda­ de alheia. Ao contrário, verifica-se o paradoxo pelo qual a "primeira sede e foco de incubação" do socialismo é exatamente aquela opulenta burguesia que declara querer debelá-lo (VM, 304). As classes dominantes não perce­ bem que promovem uma visão do mundo (toda segundo o princípio da acu­ mulação) da qual elas mesmas poderiam permanecer vítimas . É preciso, porém, aspirar a distinguir-se da massa, em primeiro lugar fugindo de "toda forma não pessoal de vida" enquanto "vulgar e desprezível" e, portanto, dando prova de "um novo grande desprezo, por exemp lo pelos ricos, pelos funcionários etc.", por todos aqueles que são contagiados pela mediocrida­ de e pelo espírito gregário {IX, 444) . Já um fragmento datado dos anos de O nascimento da tragédia, depois de ter posto o "socialismo" em conexão, entre outras coisas, com a "grosseria da alma", sugere esta regra: "Para um certo grau de riqueza o 'ostracismo"' (VII, 299) . E tendo sempre em mira o mesmo perigo, um fragmento do período "i luminista" reforça: "É absolutamente necessário que a inteligência superior dirija a riqueza" (IX, 472). Só assim se poderá conter ou evitar o perigo de subversão. Se, porém, devessem vulgarizar-se também "as classes superiores da sociedade, as fileiras socialistas estão no seu pleno direito quando procuram nivelar, também exteriormente, a si e a elas, dado que internamente, na mente e no coração, elas já estão niveladas entre si" (MA, 480).

Mais que as classes dominantes como tais, alvo da crítica é aqui uma riqueza que está se emancipando totalmente dos vínculos políticos e sociais: S ó quem tem espírito deveria ter propriedade; do contrário, a propriedade é um perigo público. O proprietário que não sabe fazer nenhum uso do tempo livre que a propriedade poderia pennitir-lhe procurará sempre adquirir outra propriedade: esta atividade será o seu divertimento, o seu estratagema na luta contra o tédio.

Uma riqueza desmedida pretende então "mascarar-se com cultura e arte" e consegue também, graças ao dinheiro, "comprar a máscara". Daí resultam conseqüências ruinosas, por causa da inveja e do ressentimento que tal espetá­ culo suscita "entre os pobres e os incultos": "A rudeza dourada e a histriônica afetação no presumido 'gozo da cultura' inspira nestes o pensamento de que 'tudo depende do dinheiro' - ao passo que certamente alguma coisa depende do dinheiro, mas muito mais depende do espírito" (VM, 3 1 O). Ao criticar a autonomização da riqueza, Nietzsche olha certamente para a antiguidade clássica, mas também para o Antigo regime derrubado pela revolu­ ção. A vulgaridade da nova classe é de fato contraposta à fineza da aristocra­ cia tradicional : O que os homens e as mulheres de sangue nobre mais consideram nos outros, e que lhes confere indubitável direito a uma valorização superior, são duas artes sempre mais aumentadas pela herança : a arte de saber comandar e a arte da obediência altiva. Agora em toda parte, onde comandar é coisa de todo dia (como no grande mundo do comércio e da indústria), fom1a-se algo semelhante úquelas estirpes "de sangue nobre" (MA, 440).

Infelizmente, agora ocorreu uma perda irreparável: às classes dominantes do mundo moderno "falta a nobre postura da obediência", que na velha nobreza era "uma herança de condições feudais e que no clima da nossa civilidade não crescerá mais" (MA, 440).

4. Nietzsche, o liberalismo europeu e a denúncia da crise da civi­

lização A virada ''iluminista" talvez comporte uma atenuação, mas não certamen­ te o desaparecimento da crítica ou da denúncia da modernidade. Devemos concluir que, pelo menos nesse ponto, Nietzsche se diferencia nitidamente com respeito ao liberalismo europeu? Não é assim. Tocqueville exprime a angústia

pelo aparecimento de uma "sociedade nivelada",606 ou seja, de uma "socieda­ de de abelhas e de castores", constituída "mais de animais sábios que de ho­ mens li vres e c i v i s " . 607 As exp ressões utilizadas levam a pensar em Schopenhauer, que também recorre à metáfora das "abelhas" e das "colmei­ as", 608 ou seja, sempre para permanecer próximo de Nietzsche, podemos ouvir Burckhardt, o qual fala também de "colmeias", além de "formigueiros".609 Mais tarde, Assim falou Zaratustra aumentará mais a dose, rotulando a sociedade moderna como sinônimo, além de "mixórdia plebeia" (Pobel-Mischmasch ) também de "fervilhar de formigas" (Ameisen-Kribbelkram) (Za, IV, Do ho­ mem superior, 3). É interessante notar que esta metáfora aparece também no âmbito da cultura democrática; mas esta não se serve dela para denunciar, com Heine, a atitude da aristocracia e da grande riqueza em geral, que olha com soberano desprezo para a massa dos pobres desesperados "como se fossem minúsculas formigas" (A meisen).61 º Mas concentremo-nos nos pontos de contato que a critica da modernidade apresenta em Nietzsche e na cultura liberal do seu tempo. Humano, demasia­ do humano previne sobre o fato de que o "Estado perfeito" sonhado pelos "socialistas" destruiria "o terreno do qual nasce o grande intelecto e em geral o indivíduo poderoso", deixando lugar apenas para "indivíduos enfraquecidos" (MA, 235). Infelizmente, trata-se de um processo já em ato. A opinião de John Stuart Mill também é esta: "A tendência geral do mundo é pelo predomínio da mediocridade". Pelo menos desse ponto de vista, a modernidade representa um momento de inegável decadência: ,

Na antiguidade, na Idade Média e, em medida decrescente, durante a longa transição do feudalismo para a sociedade hodierna, o indivíduo constituía um poder para si; e se tinha grandes talentos ou uma posição social elevada era um poder considerável. Hoje os indivíduo.s se perdem na multidão. Em política, dizer que a opinião pública governa é quase uma banalidade. O único poder que merece ser chamado assim é o das massas, e dos governos enquanto forem expressão das tendências e dos instintos das massas. 61 1

O liberal inglês apela para a autoridade de Wilhelm von Humboldt, um autor caro também a Nietzsche, para prevenir contra "o processo de assimila6º6 Tocqueville, 195 1 , vol. XII, p. 37. 6º7 Tocqueville, 1864-7, vol. IX, p . 544. 608 Schopenhauer, 1 976-82 c, vol. IV, p. 190. 609 Burckhardt, 1978 b, p. 388. 61º Heine, 1 969-78, vol. II, p. 542. 61 1 Mill, 1972, p. 123 (= Mill, 198 1, p. 96).

ção contínua" que caracteriza o mundo moderno, o qual, ao destruir "a liberda­ de e a variedade das situações", toma impossível o desenvolvimento de indivi­ dualidades fortes e originais. 61 2 Tocqueville, por sua vez, se lamenta: "vivemos num tempo e numa sociedade democrática na qual os indivíduos, mesmo os maiores, são bem pouca coisa". 61 3 Mill se congratula com esse diagnóstico que, no entanto, se general iza. Não há dúvida, "os franceses de hoje se asse­ melham muito mais àqueles também apenas da geração p recedente"; mas "um inglês poderia dizer o me;mo, e com razão muito maior".6 14 É verdade - reco­ nhece Tocqueville - "a Inglaterra tomou-se estéril como nós em grandes ho­ mens". 61 5 É um destino agora geral, do qual não se livra nem sequer o país admirado de modo particular por ele: Por que, quando a civilização se estende, os homens eminentes diminuem? Por que, quando os conhecimentos se tomam o apanágio de todos, os gran­ des talentos intelectuais se tornam mais raros? Por que, quando não há mais classes inferiores, também não há classes superiores? Por que, quando a inteligência do governo chega às massas, vêm a faltar os grandes gênios na direção da sociedade'? AAmérica nos põe com força estes problemas. Mas quem poderá resolvê-los?616

Com o advento da democracia, "a nação considerada no seu conjunto" se revela "menos brilhante, menos gloriosa, talvez até menos forte". 617 Além deste ou daquele aspecto singular, é a impressão de "mediocridade universal" que suscita espanto. 61 8 É Renan que se exprime assim e em sua análise apela para Burckhardt a fim de denunciar, por sua vez, a crescente "vulgarização" do mundo. 619 Tocqueville, por sua vez, fala de "pequenez uni­ versal". 620 Semelhante, ainda que mais poética, é a linguagem de Zaratustra: agora quem domina é a "gente pequenina" (Za, IV, Do homem superior, 3); "a terra ficou pequena" e "aproxima-se o tempo em que o homem não gerará mais estrelas"; é o tempo do "último homem que torna tudo pequeno", que é incapaz até de aspirar à grandeza e, portanto, é merecedor exclusivamente de 6 12 Mill, 1965 b, p. 225 (= Mill, 1976, p. 169). 61 3 Tocqueville, 195 1, vol. VIII, 2, p. 369. 61 4 Mill, 1972, p. 130 (= Mill, 198 1 , p. 104). 615 Tocqueville, 1 95 1 , vol. VIII, 3, p. 273. 616 Tocqueville, 195 1 , vol. V, l , p. 1 88. 617 Tocqueville, 195 1, vol. 1, 1 , p. 7 (DA, Introdução). 61 8 Renan, 1 947, vol. 1, p. 483. 6 19 Burckhardt, 1978 a, p. 1 43. 620 Tocqueville, 19 5 1 , vol. XII, pp. 3 1-2.

desprezo (Za, Prefácio de Zaratustra, 5). É a perseguição da "utilidade mo­ mentânea" que caracteriza o horizonte da modernidade (VII, 243). O ideal do "bem-estar para o maior número possível" parece conquistar sempre mais se­ guidores também fora do círculo dos "socialistas", que o debatem com particu­ lar insistência (MA, 235). Eis, porém, o retrato que Tocqueville traça da França saída da revolução de Julho e, em particular, de Luís Filipe: Não amava nem a leitura nem as artes, mas amava com paixão a indústria. A sua conversa [ ... ] procurava o deleite que se pode encontrar nos prazeres da inteligência, uma vez afastados os sentimentos delicados e elevados. A sua inteligência era notável, mas limitada e estorvada por um espírito que não nutria sentimentos altos e profundos. Iluminado, fino, flexível e tenaz; volta­ do somente para o útil. 62 1

Agora toda a "atividade humana" tem como única "paixão dominante" a "industrial". 622 E este é o ponto de vista também de Burckhardt, embora não se sentisse à vontade com o "industrialismo dominante". 623 O grande historiador constata, angustiado, o "incessante, extraordinário crescimento do sentido mer­ cantil". Os Estados Unidos anunciam e promovem o advento de um "mundo meramente mercantil"; e, infelizmente, o presente da América parece ser o futuro também da Europa. 624 Há um antídoto para a vulgarização que se alastra? Se Mill busca refúgio na genialidade artística (supra, cap. 2 § 5), Tocqueville observa melancolica­ mente que "no século em que vivemos" a "fome [. . . ] de grandeza" pode en­ contrar alimento apenas na leitura de Plutarco e na antiguidade clássica,625 com uma atitude que não é diferente daquela que Burckhardt e que, sobretudo, nos reconduz de novo a Nietzsche. Em contraposição à mediocridade e vulgaridade do mundo moderno, tam­ bém a religião pode ser benéfica. Isto é bastante explícito no caso de Tocqueville. Daí a sua saudade de um período histórico no qual os "prazeres materiais" não constituíam a única preocupação: não havia "só interesses, mas também cren­ ças". 626 O exemplo da América o demonstra: "As paixões, as necessidades, a educação, as circunstâncias, tudo parece de fato concorrer para impelir o habi62 1 Tocqueville, 1 95 1 , vol. XII, pp. 3 1-2. 622 ln Tocqueville, 195 1 , vol. III, 2, p. 101. 623 Burckhardt, 1978 b, p. 258. 624 Burckhardt, 1978 a, pp. 148-150. 625 Tocqueville, 1 95 1 , vol. XV, 1 , p. 97. 626 ln Tocqueville, 195 1 , vol. III, 2, p. 134.

ili

tante dos Estados Unidos para a terra. Apenas a religião o faz de vez em quando levantar o olhar passageiro e distraído para o céu". 627 Vimos que, durante a polêmica com Strauss, o próprio Nietzsche opõe a seriedade da problemática religiosa à grosseria da visão filisteia e mercantil da vida. Mesmo tomando nota de "certa sujeição do intelecto" implícita no "senti­ mento religioso", Humano, demasiado humano continua a reconhecer "os surpreendentes efeitos" que ele estende sobre a "produção do gênio". No en­ tanto, mesmo querendo omitir suas outras considerações, não tem sentido aban­ donar-se à saudade de um mundo irremediavelmente passado: o sentimento religioso "teve o seu tempo e fez muitas coisas bastante boas que não poderão mais ocorrer, porque só poderão ser produzidos graças a ele" (MA, 234). To­ davia, dir-se-ia que esta conclusão não é sem um sofrimento interno. Também Aurora, depois de ter sublinhado "a poderosa beleza e excelência dos príncipes da Igreja", se põe uma pergunta inquietante: tudo isso "também deveria ser sepultado com o fim das religiões? E nada de mais elevado se deixaria conse­ guir e sequer idear?" (M, 60).

5. A mediocridade do mundo moderno e o espectro da "chinesaria " europeia Contudo, o p rocesso de apequenamento e vulgarização do mundo avança de modo implacável : a "extrema mediocridade e chinesaria" pareceria destina­ da a triunfar também na Europa. Estejam ou não conscientes, aqueles que quisessem eliminar as dessemelhanças, as presumidas injustiças e os conflitos, a fim de edificar "o reino da justiça e da concórdia'', olham como modelo para um país colocado fora da Europa e do Ocidente e caracterizado pelo patológico estadismo e a irremediável putrescência (FW, 377). O tema da imobilidade da China está amplamente presente na cultura europeia do tempo. Pode ser en­ contrado também em Herzen, segundo o qual o grande país asiático "dorme num semper idem'', 628 mas está presente e vital sobretudo no pensamento liberal. Basta pensar na leitura e celebração que Tocqueville faz da primeira guerra do ópio: "Finalmente, portanto, a mobilidade da Europa se defronta com a imobilidade chinesa". 629 John Stuart Mill chega a uma conclusão análoga por ocasião da segunda guerra do ópio: os chineses "se tornaram estáticos, perma627 Tocqueville, 195 1 , vol. 1, 2, p. 43 (DA, livro II, parte l, cap. IX). 628 Herzen, 1 994, p. 203. 629 Tocqueville, 195 1 , vol. IV, 1, p. 58.

neceram assim por milhares de anos, e se conseguirem melhorar, deverá ser por obra de estrangeiros". 630 Enquanto o liberal inglês se exprime assim, está em andamento na China uma revolução, a de Taiping, gigantesca pelas forças em campo (os mortos são contados aos milhões) e de um notável radicalismo no plano ideológico: rom­ pendo com a tradição confuciana, ela toma do cristianismo a expectativa messiânica do novum da justiça e da emancipação; centenas de milhares de insurretos preferem suicidar-se a render-se. 631 Contribui de modo decisivo para sua derrota a intervenção da Grã-Bretanha, o país a partir do qual Mill denun­ cia o milenar imobilismo da China. Estamos, pois, na presença de uma imagem estereotipada. A ideologia tradicional do expansionismo colonial, a qual fazia referência à necessidade da difusão da civilização, mal se aplicava à China, ou seja, a um país de antiqüíssima civilização, bem anterior à europeia. Contudo ­ pareciam rebater os conquistadores e os seus ideólogos - ela estava agora mumificada e sem vida. Também em Nietzsche a imagem da China é a estereotipada dos anos da expansão colonial do Ocidente: "a vingança mais pérfida" é, obviamente, "a vin­ gança chinesa" (FW, 69) e a única "paixão" deste povo são "ópio, jogo, mulhe­ res" (IX, 454). Mas o ponto mais importante é outro: "a mentalidade chinesa" e "o monumento mais notável do espírito da duração" (IX, 541 ). Talvez um mínimo de atenção a mais é agora reservado às agitações e sublevações que na China continuam a manifestar-se e que frequentemente têm como alvo o expansionismo militar, econômico e religioso do Ocidente. No entanto, a julgar por um fragmen­ to, se trata apenas da "surda pressão de uma descarga libertadora insatisfeita" (IX, 453), de uma explosão que não surte efeitos e que não muda o quadro geral . Continua claro que na China o homem permaneceu "quase imutável por milêni­ os" (IX, 547). Mas exatamente esta múmia putrescente é o modelo dos revoluci­ onários ocidentais: "Não só os socialistas, mas também os estatólatras" gostari­ am de reduzir a Europa "a condições chinesas e a uma 'beatitude' chinesa", sobre o modelo de um país "no qual há muitos séculos desapareceu totalmente a insatisfação e a capacidade da transformação" (FW, 24). É um tema bem presente na cultura liberal da Europa do tempo. Mais que os socialistas, Tocqueville visa os "economistas" e iluministas protagonistas da preparação ideológica da Revolução Francesa. Ao perseguir os seus ideais de "igualdade absoluta", de "socialismo" e de "onipotência do Estado", eles olham cheios de admiração para a China: "Aquele governo imbecil e bárbaro, que um 63º Mill, 1972, p. 129 (= Mill, 198 1 , p. 103). 631 Chesneaux, 1974, vol. 1, p. 127. ili

punhado de europeus domina ao bel prazer, parece a eles o modelo mais perfei­ to a propor a todas as nações do mundo". 632 Segundo Nietzsche, junto com o socialismo, também a "filosofia positiva", com a sua obsessão por "eliminar a anarquia dos espíritos'', parece inspirar-se no país da imobilidade sem vida (IX, 453 ). Bastante semelhantes são os tons, embora seja mais vago o alvo interno da acusação que John Stuart Mill desen­ volve contra os chineses: Tiveram êxito além de toda expectativa naquilo para o qual tendem tão indus­ triosamente os filantropos ingleses - a formar um povo todo igual , cujos pensamentos e cujas ações são guiadas pelas mesmas máximas e normas: e aqui estão os resultados. O moderno domínio da opinião pública é, de forma desorganizada, o que o sistema educativo e político chinês é de forma orga­ nizada; e se a individualidade não conseguir fazer-se valer contra este jugo, a Europa, não obstante o seu nobre passado e o seu cristianismo proclama­ do, terá de tornar-se uma outra China. 633

Portanto, a superioridade do Ocidente é ao mesmo tempo a superioridade do cristianismo. Pareceria que nesse ponto deva ser nítida a distância com respeito a Nietzsche. Mas, pelo menos nesse caso, não é assim, a julgar pelo menos por um fragmento da primavera de 1 880: O cristianismo, graças às suas características judaicas, cmúeriu aos euro­ peus aquele desgosto judaico de si mesmos, a representação da inquietação interior como normalidade humana: daí a fuga dos europeus em relação a si mesmos, daí a sua inaudita atividade, eles metem cabeça e mãos em toda parte (IX, 89).

Certamente, junto com o cristianismo, uma função positiva trava na Euro­ pa também "a luta contra o cristianismo", assim como, em geral, "a anarquia das opiniões e a concorrência dos soberanos, dos povos e dos mercadores" (IX, 452). Mas todas essas contradições são sempre a herança do desassosse­ go intrínseco da alma judaica, que agora passa a fazer parte da identidade do Ocidente. A essa altura, a história da expansão colonial é a epopeia do "espírito europeu'', da sua "força", em primeiro lugar interior, da sua "curiosidade sem preconceitos e mobilidade refinada" (JGB, 1 88). Através do cristianismo, o Ocidente herdou dos judeus "aquela sublime moral acusadora" e "aquele feroz heroísmo que se manifesta tanto na dedicação ao seu Deus dos exércitos como 632 Tocqueville, 1 9 5 1 , II, 1, p. 2 1 3 (AR, livro III, cap. 3 ). m Mill, 1972, p. 1 29 ( Mill, 198 1 , p. 103). =

3 14

no desprezo para consigo mesmos" (IX, 89). É só graças a isto que "os euro­ peus" são "os primeiros homens e dominadores do globo terrestre" (IX, 23). Mas também Tocqueville age do mesmo modo. Depois de ter apresentado a guerra como o choque entre "mobilidade" europeia e "imobilidade chinesa", ele prossegue assim: É um grande acontecimento, sobretudo quando se pensa que ele é apenas a conseqüência, a últirÍ13 etapa de uma multidão de acontecimentos da mesma naturez.a que levam gradualmente a raça europeia para fora dos seus confins e submetem sucessivamente ao seu império ou à sua influência todas as outras raças [ . . ]; é a sujeição das quatro partes do mundo por obra da quinta. 634 .

Assistimos assim à marcha triunfal do p rincípio ocidental da mobilidade. Mas a China derrotada arrisca vencer espiritualmente a Europa conquistadora. Referindo-se exatamente a Tocqueville e à sua análise relativa ao desapareci­ mento das grandes personalidades, John Stuart Mill chega a esta conclusão: "A Europa está decididamente avançando para o ideal chinês de tomar todos os homens iguais". É um processo que parece que não deve parar: "Enquanto a vida não for reduzida quase completamente a um tipo uniforme, todo desvio dele acabará sendo considerado ímpio, imoral e até monstruoso e contra a natureza". 635 Também para Nietzsche, "os chineses consideram os grandes homens uma desgraça nacional"; aos seus olhos "os indivíduos são sinais da decadên­ cia"; são um elemento de perturbação e de contradição com respeito ao ideal da ·'duração eterna" (IX, 552). O que caracteriza, em contraposição com a China, a grandeza da Europa é aquela vivacidade e "suscetibilidade intelectual quase equivalente ao gênio e, em todo caso, é a mãe de todo gênio" (FW, 24). A tendência "não natural" a "eternizar o Estado", segundo o modelo chinês, provoca "a diminuição dos indivíduos e a esterilidade da totalidade'', enquanto, ao contrário, "a dissolução dos costumes, da sociedade é uma condição na qual o novo ovo ou mais ovos surjam - ovos (indivíduos) como germes de novas sociedades e unidades" (XI, 55 1 -2). Ou seja, para dizer com John Stuart Mill: "Até agora, o que poupou a Europa desta sorte? O que tomou as nações europeias um setor da humanidade que evolui e não fica estático? [ . . . ] Indivídu­ os, classes e nações foram extremamente diferentes uns dos outros".636 634 Tocqueville, 195 1 , vol. VI, 1, p. 58. 635 Mill, 1972, pp. 130- l (= Mill, 198 1 , pp. 1 04-5). 636 Mill, 1972, pp. 129-30 (= Mill, 198 1 , p. 103). ill

Para os dois autores aqui comparados, a massificação em ato é uma espécie de sinização. O que distingue Nietzsche é, em primeiro lugar, o seu radicalismo: À medida que a civilização progrediu, os sentidos dos homens - os olhos, os ouvidos - se tornaram mais fracos: por isso o medo diminuiu e o intelecto se refinou. Talvez, com o aumento da segurança, a fineza do intelecto não será mais necessária; e diminuirá, como na China! (IX, 452).

Mais ainda que diante de uma mudança histórica epocal, estamos diante de uma mudança que deve ser avaliada pelo antropólogo e pelo etólogo: o "chinês" é "o homem uniforme e fixo", que seguiu, portanto, a parábola da "maior parte das espécies animais", deixando de ser homem no sentido autêntico do termo; de fato, "o homem se transforma ainda - está em devir" (IX, 458). É uma loucura criminosa assumir como modelo a "escravidão intelectual" e a retração antropo­ lógica que há muito tempo caracterizaram a paisagem chinesa.

6. Judeus, povos coloniais e ralé.· inclusão e exclusão _ Da Europa aqui objeto de celebração fazem parte integrante os judeus e o judaísmo, que deram uma contribuição essencial para a construção da identida­ de da cultura que agora domina em nível mundial . Zombando da judiofobia, do antissemitismo e do culto da autenticidade germânica, o Nietzsche destes anos celebra as trocas, os encontros, as fusões entre as culturas e os povos. Mas esta é apenas uma face da moeda. Como acontece frequentemente, inclusão e exclusão se entrelaçam e se condicionam reciprocamente:

Aqui, onde os conceitos "moderno" e "europeu" estão quase equiparados, por Europa se entende um território muito mais extenso do que a Europa geográfica, esta pequena península da Ásia: faz particulannente parte dela a América, pois é exatamente filha da nossa civilização. Por outro lado, nem toda a Europa cabe no conceito de "Europa" civil; entram neste conceito apenas todos aqueles povos que têm um passado comum no helenismo, na romanidade, no judaísmo e no cristianismo (WS, 2 1 5). Portanto, mais do que Europa propriamente dita, objeto de celebração é o Ocidente, do qual a Rússia está excluída e no qual são incluídos com toda justiça os Estados Unidos. Agora não se fala mais do "tremendo perigo" representado pelo "azáfama político americano" (supra, cap. 1 § 8). A Alemanha não é mais oposta como país da autêntica civilização à civilização vulgar representada so­ bretudo pela França e pelos Estados Unidos . A unidade finalmente conseguida

entre Ocidente, com superação da barreira entre arianos e semitas e entre germanicidade e latinidade, toma ainda mais aguda a antítese com o mundo ex­ terno dos bárbaros. O pathos das luzes solda-se aqui com o pathos do Ocidente como lugar exclusivo das luzes e da civilização: "O grande resultado da humani­ dade até hoje é que não temos mais necessidade de ter continuamente medo dos animais ferozes, dos bárbaros, dos deuses nem dos nossos sonhos" (M, 5). Tendo-se atenuado o conflito entre as grandes potências na Europa e entre o Norte e o Sul dos Estados Unidos, agora a atenção se concentra toda sobre a expansão colonial e sobre a conquista do Far West. Aurora faz refe­ rência clara a este processo; por um lado, ela constata sem emoções particula­ res a tragédia dos peles-vermelhas ("os selvagens são hoje rapidamente arrui­ nados pela ·água de fogo ' e morrem"), por outro lado auspicia "entusiásticas expedições de colonizadores" (M, 50 e 206). A nova dicotomia (Ocidente/bárbaros), que se instala no lugar da velha, não permite cruzamentos e fusões entre conquistadores e conquistados . Nesse contexto, a categoria de "raças mistas" tem uma conotação univocamente ne­ gativa. Perto delas

devem encontrar-se sempre, ao lado da desam10nia de fomlas corporais (por exemplo, quando olho e boca não combinam entre eles), também desarmoni­ as de comportamentos e de juízos de valor (Livingstone ouviu dizer uma vez: "'Deus criou os homens brancos e negros, mas o diabo criou o mestiço"). Raças mistas constantemente são, ao mesmo tempo, também civilizações mistas, moralidades mistas: elas são em geral mais más, mais cruéis, mais irrequietas (M. 272). São os anos em que nos Estados Unidos, depois do fim da guerra da Secessão e do cancelamento da instituição da escravidão, os brancos impõem ou fortalecem a segregação e a proibição de miscegenation, ou seja, de conta­ minação sexual e matrimonial entre raças diferentes (infra, cap . 12 § 2) . Cos­ tumes, leis e ideologias análogas difundem-se nas colônias em seguida à con­ quista europeia. O Livingstone aqui citado é autor de um livro, significativa­ mente publicado em tradução alemã na cidade universitária de Nietzsche, no qual são contadas as viagens e as missões na África do Sul, 637 onde certamen­ te os bôeres não estão menos preocupados do que os brancos estadunidenses em preservar a sua pureza. Fique claro que esta pureza é entendida como separação de raças consi­ deradas heterogêneas e incompatíveis entre si, não em sentido absoluto. E este 637 Livingstone, 1858.

3 17

é o ponto de vista também de Nietzsche: "Provavelmente não existem raças puras, mas apenas raças que se tornaram puras, e mesmo estas são muito raras . Comumente se têm raças mistas (gekreuzte) [ . . . ] A pureza constitui o resultado último de inumeráveis adaptações, absorções e eliminações" (A uscheidungen) (M, 272). O olhar parece estar voltado para os Estados Unidos, onde processos de fusão entre grupos éticos diferentes (o melting pot) andam junto com a eliminação do� peles-vermelhas da face da terra e com a segrega­ ção dos negros. Neste sentido, a "pureza" e o forte senso de identidade da "raça", ou seja, do povo estadunidense, que está se formando, é o resultado tanto de "absorções", como de "eliminações". Mas como se coloca o problema no Velho Mundo? "A Europa deve dimi­ nuir a sua população em um quarto de seus habitantes" de modo que deixe de ser "superpovoada"; é preciso, pois, p romover emigrações e colonização (M, 206) . Mas isto não basta. O escoamento das escórias e dos refugos pode ser aumentado ou acelerado com medidas decididamente mais radicais, que não excluam a eliminação fisica (infra, cap . 1 9 § 3-6) . Se tudo isso devesse criar vazios, estes poderiam ser preenchidos recorrendo-se a imigrantes chineses habituados e chamados a ser "laboriosas formigas", isto é, a fornecer força de trabalho mais ou menos servil (M, 206). No conjunto, tais processos represen­ tam um "progresso para a pureza". Graças a eles, de fato, "a força presente numa raça se limita sempre mais a funções selecionadas singulares, enquanto anteriorn1e11te devia prover muitas coisas e frequentemente contraditórias" (M, 272). O objetivo que se visa é uma situação na qual a divisão entre as raças recip rocamente incompatíveis é ao mesmo tempo uma divisão internacional do trabalho, com base na qual os "bárbaros" deveriam ser obrigados "a prestar serviços" em vantagem dos povos que encarnam a civilização. Na Europa, os chineses deveriam desempenhar uma função semelhante àquela dos negros na América (infra, cap. 1 2 § 3). Essa divisão do trabalho e uma tal "limitação" poderão parecer "empobrecimento" e suscitar, no início, problemas. "Mas, en­ fim, quando o processo de limpeza (Reinigung) estiver completo, toda aquela força, que antes se exauria no conflito das qualidades desarmônicas, é posta à disposição do organismo inteiro, razão pela qual raças que se tornaram assim puras sempre foram as mais vigorosas e mais belas" (M, 272). Como é confirmado mais uma vez pelo exemplo da Hélade: "Os gregos nos fornecem o modelo de uma raça e de uma civilização que se tornou pura; e esperamos que seja factível mais uma vez também uma raça pura e uma civi­ lização pura europeias" (M, 272). Estamos na presença de uma sociedade na qual a férrea divisão do trabalho e a escravidão garantem o otium e a produção da arte e da civilização; por outro lado, a classe dominante é bastante capaz de

aumentar mediante oportunas cooptações. Não tem sentido a estreiteza de horizontes e o provincianismo próprios de teutômanos e antissemitas:

Se pensannos que os gregos, com as suas tribos exíguas, encontravam-se num território densamente povoado, dentro de uma raça de origem mongólica, na costa de um litoral de populações semíticas intercaladas por colônias trácias - então se entenderá como eles foram obrigados sobretudo a conservar e a produzir sempre de nóvo a sua superioridade qualitativa; assim eles exerceram o fascínio próprio sobre as massas. O sentimento de resistir sozinhos como seres superiores no meio dos inimigos há muito tempo mais numerosos obri­ gou-os a uma continua e extrema tensão intelectual (VIII, 327). A "raça pura" não é tanto um pressuposto quanto um resultado. Repelin­ do os persas, a Grécia soube assimilar os semitas, os quais não constituem um elemento de contaminação. É assim recuperado e subsumido sob a Europa e o Ocidente também o helenismo, anteriormente excluído igualmente pelo fato de representar o momento de contaminação entre helenismo e judaísmo. Também pelo que respeita à Europa, "raça mista" não está em contradição com "raça pura". A cooptação na classe dominante dos judeus assimilados, que frequen­ temente ocupam posições de prestígio na sociedade, acompanhada de medidas também drásticas de purificação da ralé e da superpopulação em geral, tudo isto é sinônimo não de contaminação, mas de passo decisivo para a frente na direção da pureza. Concluindo: O que é afinal a Europa? - Civilização grega acrescida de elementos trácios

e fenícios, helenismo e filelenismo dos romanos, o seu império cristão (o cristianismo portador de elementos antigos, desses elementos se desenvol­ vem. afinal, os germes científicos, o filelenismo se torna filosofia): até onde se crê na ciência, até lá vão as fronteiras da Europa (VIII, 566).

7. A unidade e a paz da Europa e o valor permanente da guerra A mesma dialética de inclusão e exclusão se manifesta também em rela­ ção com o problema da paz e da guerra. Se no Nietzsche dos anos imediata­ mente após o triunfo de Sedan a guerra é objeto de celebração indiscriminada, o quadro muda de modo sensível no período "iluminista". Com o olhar preocu­ pado voltado para além do Reno e para o destino da Europa em geral, Nietzsche procede a uma nítida condenação do debate chauvinista: "A existência de Esta­ dos singulares (os quais estão um contra o outro num constante bel/um omnium contra omnes) já é em si um obstáculo à cultura". Portanto, uma Realpolitik

fundada na incitação de rivalidades e ódios nacionais é "nociva à cultura uni­ versal" (XIV, 147). Contra tudo isso, Nietzsche auspicia e vê surgir no horizonte "uma feder:a­ ção europeia na qual cada povo, delimitado com base em oportunidades geo­ gráficas, possuirá a posição de um cantão e em particular os direitos deste". Afastadas as belicosas "recordações históricas", as "correções de fronteiras" que fossem necessárias não deveriam prejudicar a federação no seu conjunto. "Só então - conclui o aforismo - a política externa será inseparavelmente conjugada com a interna; enquanto hoje esta última corre ainda atrás da sua soberba dona, recolhendo em míseros balaios as espigas remanescentes da colheita anterior" (WS, 292). É transparente a alusão a Bismarck, criticado aqui pelo fato de querer subordinar tudo à perseguição da hegemonia na Euro­ pa. Tal fim visa também a multiplicação dos institutos escolares na Prússia: graças ao "golpe de mestre de ligar entre si escola e exército", toma-se mais fácil a mil itarização da nação (VM, 320). É nesse contexto que Nietzsche coloca a política de rearmamento do II Reich. Em teoria, ela deveria servir para garantir a segurança da Alemanha. Mas "q uantas gue rras de agre ssão não são feitas tendo em v i sta a autoconservação! " (VIII, 602). Esta motivação, que parece tão inocente, cons­ titui na realidade uma contribuição essencial para a preparação da guerra e até para a criminalização do inimigo. Invocar "o patrocínio daquela moral que apro­ va a legítima defesa" significa suspeitar que os países vizinhos e rivais nutrem sentimentos hostis e ambição de conquista, significa em última análise acusá­ los de "inumanidade". Poderia ser a Alemanha a tomar a iniciativa de quebrar esta espiral infernal, pois saiu vitoriosa e poderosa da guerra e, portanto, pode­ ria dermbar "a árvore das glórias guerreiras" sem minar a sua segurança e o seu prestígio:

Talvez chegue um grande dia em que um povo, reconhecido por guerras e vitórias e pela fonnação mais alta de ordem e de inteligência militar, e habitu­ ado a fazer por essas coisas os maiores sacrificios, exclamará voluntariamen­ te: ·'Nós quebramos a espada" - e destruirá todo o seu aparelho militar até os seus fundamentos (WS, 284). Parece, pois, escutar um apaixonado apelo pacifista. Mas não desaparece absolutamente o tema tradicional da celebração da guerra: A guerra como remédio. Aos povos que se tornam fracos e miseráveis se

pode aconselhar a guerra como remédio, isto é, no caso de eles quererem a todo custo continuar a viver: já que para a tísica dos povos também existe uma cura da brutalidade. Mas o eterno querer viver e não saber morrerjá é em

si um sintoma de senilidade do sentimento. Quanto mais plenamente e habil­ mente se vive, tanto mais depressa se está pronto a sacrificar a vida por um único sentimento bom. Um povo que vive e sente assim não tem necessida­ de de guerras (WS, 1 87). Como resolver esta contradição? Em nossa ajuda vem um aforismo de O andarilho e a sua sombra, que enuncia este programa significativo:

Atuar para que todo bem se torne bem comum e para que tudo seja livre para os livres; enfim, preparar aquele estado de coisas, hoje ainda tão longe, no qual os bons europeus tomem a peito a sua grande tarefa: a direção e a vigilância sobre toda a civilização da terra (WS, 87). Portanto, a condenação do chauvinismo nacional intraeuropeu vai lado a lado com a celebração da missão planetária de Europa e das guerras coloniais. Entre estes dois aspectos não há qualquer contradição:

A sabedoria criou o direito para pôr fim à guerra e ao desperdício inútil entre potências semelhantes. Mas a tudo isto também se pôs fim de modo igual­ mente definitivo, quando uma parte tornou-se decisivamente mais fraca do que a outra: então entra a sujeição e o direito cessa (WS, 26). É a situação que se criou entre a Europa (que compreende também os Estados Unidos da América) e o resto do mundo. A expansão colonial é tanto mais necessária pelo fato de que ajudaria a resolver a questão social na metró­ pole, cuja população excedente poderia encontrar uma válvula de escape nos territórios conquistados (M, 206). Mas Nietzsche tem presentes também outros tipos de conflito, como emer­ ge da advertência contra a Rússia, "as fauces estendidas da Ásia, que querem engolir a pequena Europa" (WS, 23 l ) Enfim, como veremos, o filósofo dá aten­ ção particular ao que define como as "guerras socialistas" (infra, cap. 1 1 § 7). .

10 Ü CANTOR DA " COMUNIDADE POPULAR" , O " REBELDE SOLITÁRIO ", O "ILUMINISTA" ANTI-REVOLUCIONÁRIO E O TEÓRICO DO "RADICALISMO ARISTOCRÁTICO" 1 . Da virada "iluminista " à virada imoralista ntes de entrarmos na análise da evolução posterior de Nietzsche, convém determo-nos no significado da passagem da primeira para a segunda eta­ pa. Ao reconstruir a história da luta ideológica contra a Revolução Francesa, um estudioso sintetizou "a diferença entre o iluminista Mallet e o p roto-român­ tico Burke" assim: enquanto o último "exalta, contra as excessivas ambições da razão, as profundidades da alma e os elementos irracionais da experiência'', o primeiro "vê o inimigo a ser combatido exatamente nas forças irracionais que dominam as multidões".638 A característica peculiar da evolução de Nietzsche reside no fato de que ele sonda os elementos de força e de fraqueza da primei­ ra posição para depois passar rapidamente para a segunda. Depois de ter subli­ nhado a tese, no fundo óbvia e "banal", segundo a qual "o amor de si fornece os motivos de todas as nossas ações", um fragmento datado do verão de 1 878 acrescenta: "por longo tempo eu nada soube (período metafisico)'', com a igno­ rância típica dos 'jovens fanáticos" (VIII, 556). Portanto, ao "período metafisico" segue-se aquele caracterizado pelo encontro com Voltaire e com os grandes moralistas e pelo "iluminismo moral" (supra, cap. 8 § 2). Assistimos assim a uma ruptura, no plano político, com a teutomania e a judeofobia, e, no plano filosófico, com uma plataforma ideológica ao modo de Burke. É o próprio Nietzsche quem chama atenção para este ponto. A recons­ trução que ele faz da evolução por trás do "espírito livre", ou melhor, do espírito que se tomou livre, tem um sabor claramente autobiográfico. Pode-se presumir que ele "teve o seu acontecimento decis ivo numa grande separação (Loslôsung) e que antes fora um espírito tão ligado (gebunden) que parecia acorrentado para sempre à sua coluna no seu canto". São os "homens de espé­ cie alta e eleita" que sentem com particular força "os deveres", que se tomam "laços" dos quais é bastante dificil libertar-se: "Aquela sujeição e delicadeza

A

638 Matteucci, 1 957, pp. 282-3. 323

diante de tudo o que é digno e venerado pela antiguidade, aquele reconheci­ mento pelo solo sobre o qual cresceram, pela mão que os guiou, para o santuá­ rio onde aprenderam a rezar" (MA, Prefácio, 3). Parece até de escutar Burke quando este, em polêmica contra a arrogân­ cia e a ação dissolvente da razão iluminista e revolucionária, celebra aquela comunidade superior, transmitida pela "sabedoria dos nossos antepassados",639 que une e funde numa unidade indissolúvel "o nosso Estado, os nossos lares, os nossos sepulcros e os nc1ssos altares".640 Sim, Nietzsche tinha aderido com todas as suas forças a esta ideologia, bastante difundida na cultura romântica alemã e depois bem presente também nos ambientes nacional-liberais . Depois se tinha separado dela de modo radical e repentino. Os amigos ou ex-amigos ficaram surpresos e, às vezes, indignados . A eles parece responder o filósofo, o qual descreve assim o desenvolvimento daqueles que por algum tempo per­ maneceram apaixonadamente ligados ao culto da própria terrra:

A grande separação chega de repente para semelhantes acorrentados, como um abalo de terremoto: ajovem alma é de repente sacudida, arrancada, extirpa­ da; ela mesma não compreende o que acontece [ ... ]. Uma curiosidade ardente, perigosa, de um mundo desconhecido serpeia flamejando em todos os seus sentidos; "Antes morrer que viver aqui", assim fala a voz imperiosa da sedu­ ção: e este "aqui", este "em casa" é tudo o que até então tinha amado! Intervém agora "um desejo rebelde, caprichoso, vulcanicamente impetuo­ so, de peregrinar, emigrar, resfriar-se, desencantar-se, gelar-se". Inicia uma "vagabundagem" que é como a travessia de um "deserto". Passaram os entu­ siasmos de um tempo, mas ainda não surgiram novos; agora são necessários "anos de experiências" (MA, Prefácio, 3 -4). Sob muitos aspectos, o período que é comumente definido como "iluminista" se apresenta como um "experimento", um entreato. Nietzsche parece ser cons­ ciente disso, às vezes, já no curso da travessia dessa fase de passagem: "Quan­ do as massas começam a enfurecer-se e a razão se obscurece, é bom, até que se esteja bem seguro da saúde da própria alma, abrigar-se debaixo de um portão e olhar como está o tempo" (VM, 303). Também este aforismo tem um sabor autobiográfico. A plataforma ideoló­ gica precedente, que parecia tão acabada, revelou-se insustentável. É neces­ sário elaborar outra, mas enquanto isso, não podemos limitar-nos a ser especta­ dores . Se já não existe a situação de crise aguda à qual O nascimento da m

640

Burke, 1 826, vol. III, p. 8 1 . Burke, 1 826, vol. V, pp. 79-80 (= Burke, 1963, p. 193). 3 24

tragédia faz referência, certamente não estão definitivamente banidos os peri­ gos postos em evidência - observa Nietzsche no final de 1 8 78 - por "esta década de guerras nacionais, de martírio ultramontano e de agitações socialis­ tas" (VM, 1 7 1 ). Aqui estão indicados os dois pontos de crise mais preocupantes: a crescente inquietação das classes populares na Alemanha e o conflito com a França, agravado pelo catolicismo extremista instrumentalmente alimentado, como sabemos, por Bismarck. Em ambos os casos encontramo-nos diante de movimentos caracterizados pela perturbação e pela excitação. Pois bem:

Não devemos nós, os homens mais intelectuais de uma época que claramen­ te se incendeia sempre mais, agarrar todos os meios possíveis de extinção e de resfriamento, para conservar, pelo menos nós, a nossa firmeza, tranqüili­ dade e moderação, e para poder assim servir, talvez, um dia, como o espelho e a autoconsciência desta época? (MA, 38). Como no passado, continua sendo condenada como irresponsável toda atitude de deserção, mas o empenho coincide nesse caso com o exercício de uma reflexão fria e pacat� e com o apelo a abster-se de entusiasmos fáceis. No momento das esperanças enfáticas suscitadas pela fundação do II Reich e pela perspectiva, que parecia concreta, do renascimento germânico do helenismo trágico, Nietzsche tinha expresso um pathos apaixonado da ação e tinha criti­ cado com força a consciência histórica que corria o risco de impedi-lo. Ao ruí rem as antigas certezas dissipa-se, momentaneamente, o pathos da ação. Por outro lado, após a estabilização da situação política na França e na Europa, veio a faltar a urgência da contraposição da ação contra-revolucionária à ação revolucionária; a suspeita e a deslegitimização desta última é o melhor modo para privá-la da sua boa consciência, obstaculá-la e neutralizá-la. O chamado que ressoa nos escritos do período "iluminista" não é para agir, mas, antes, para abster-se de agir de modo precipitado. Agora se compreende por que, olhando retrospectivamente, Nietzsche considere aquele período "iluminista" como um período de crise profunda: "No trigésimo sexto ano, a minha vitalidade desceu ao ponto mais baixo - vivia ainda, contudo não conseguia ver três passos à frente" (EH, Porque sou tão sábio, 1 ). Era "sentir-se exaustos, incrédulos, congelados bem no meio da juventude"; era um "deserto" (FW, Prefácio, 1 ). Portanto, é o próprio Nietzsche que evidencia o entrelaçamento de conti­ nuidade e desconfinuidade na sua evolução, distinguindo três etapas, a "metafisica", a iluminista e, enfim, a etapa que inicia com a conclusão da tra­ vessia do deserto. Na passagem da primeira para a segunda existem dúvidas . Quem o define é Humano, demasiado humano. No entanto, é preciso interro­ gar-se sobre a passagem da segunda etapa para a terceira. Lou Salomé o

325

indica na Gaia ciência .64 1 Estamos em 1 8 82. Ao publicá-la de novo cinco anos depois, com o acréscimo de um quinto livro, Nietzsche chama a atenção para um trecho que ele considera essencial : "'Incipit tragoedia' é escrito na conclusão a este livro perigosamente não perigoso" (FW, Prefácio, 1). O pará­ grafo que precede imediatamente o Epílogo da segunda edição esclarece: de­ pois de peregrinações, "naufrágios e desventuras", os "argonautas do ideal" vêem delinear-se diante doo seus olhos "uma terra ainda desconhecida, da qual ninguém ainda mediu com o olhar os limites, um além de todos os países e recantos do ideal existentes até hoje". C laramente, com este fecho A gaia ciência pretende indicar a passagem para uma fase nova. Sim, "o destino da alma tem a sua virada" (FW, 382). Como se segue também do título do aforismo (A grande saúde), a metá­ fora de travessia do deserto se enlaça com a metáfora da superação da doen­ ça, ou seja, da depressão: Gaia ciência: quer significar os saturnais de um espírito, que resistiu com paciência a uma longa pressão terrível [ . . . ], e que, de repente, é invadido pela esperança, pela esperança de salvação, pela embriaguez da convalescença [ . . . ]. Todo este livro não é senão uma festa depois de longa privação e desfalecimento, a exultação da energia que volta (FW, Prefácio, 1 ).

Aparece agora com maior clareza o quadro que Nietzsche traça da sua evolução. No que respeita à primeira fase, ela é caracterizada pelo "gosto do absoluto" e pela falta da "arte da nuance" que "são próprios da juventude". Na avaliação dos "homens e coisas" parece haver espaço apenas para "o espírito de veneração" (e aqui o pensamento corre ao fascínio exercido por Schopenhauer e Wagner), ou seja, pela "iracúndia" e pelo "desprezo" (JGB, 3 1 ). Neste segundo caso talvez se faça referência ao juízo mais crítico expres­ so pelo Nascimento da tragédia sobre Goethe ou à liquidação nela contida da arte helenístico-romana e de Roma em particular. Tanto mais tormentoso se configura agora o desencanto: A jovem alma, torturada por agudas desilusões, acaba por voltar-se descon­ fiada contra si mesma [ . . . ]. Com quanta impaciência se atom1enta, como se vinga pela sua longa auto-obcecação, como se tivesse sido uma cegueira volunt<íria ! Nessa transição castiga-se a si mesma, graças à desconfiança para com o sentimento próprio: tortura-se o entusiasmo próprio com a dúvi­ da (JGB, 3 1).

641 Andreas-Salomé,

1998, p. 144 (e Cf. p. 23).

Olhado retrospectivamente, o "iluminismo" é sinônimo de empobrecimen­ to, de perda de perspectiva. Por isso a superação dessa segunda fase é saudada com gritos de júbilo: "Não ! Acabaram a amargura e a paixão de quem se soltou violentamente, de quem deve estar disposto a fazer da sua incredulidade ainda uma fé, uma meta, até um martírio" (FW, 346) . À luz dessa nova consciência, o "iluminismo" se configura no nível mais superficial como árido e amargo desencanto, mas, a um olhar mais penetrante, como uma "fé" que ainda não se encontrou ou que não tem ainda a coragem de confessar-se a si mesma. Só após um longo sofrimento, "um novo objetivo" começa a tomar contornos pre­ cisos (FW, 3 82). Segue-se agora o momento "da fé novamente reavivada num amanhã e no dia depois, do súbito sentir e pressentir o futuro, com novas aven­ turas, novos mares abertos, metas ainda concedidas, ainda cridas" (FW, Prefá­ cio, 1 ) Portanto, a travessia do deserto e dos anos de doença e depressão significa também deixar para trás desencanto e "incredulidade", com a aproxi­ mação feliz e definitiva de uma nova "fé", ou seja, de uma "ciência alegre". A "suprema espécie de cura" acontecida no término da segunda etapa im­ plica ao mesmo tempo - observa Nietzsche - uma "volta a mim mesmo": é o fim do período de estranhamento com a volta ao si mesmo mais profundo e autêntico e nunca inteiramente perdido (EH, Humano, demasiado humano, 4). É só nes­ sa perspectiva que o período "iluminista" encontra a sua justificação. É assim que é preciso ler a dedicatória de Humano, demasiado humano: "Voltaire, ao con­ trário de todos os que escreveram depois dele, é, antes de tudo um grandseigneur do espírito: exatamente como eu também o sou. O nome de Voltaire num escrito meu era um verdadeiro progresso - para mim mesmo". Observada atentamente e vista em contraluz, "uma certa espiritualidade do gosto aristocrático" deixa transparecer "uma corrente mais passional" (EH, Humano, demasiado huma­ no, 1), aquela corrente refreada e reprimida no período "iluminista", mas que agora pode manifestar-se e desenvolver-se livremente. Exatamente por causa do atraso que sofreu e das provas que teve de en­ frentar para poder manifestar-se, a nova fé, que caracteriza a última fase da evolução de Nietzsche, se toma mais sólida e mais madura; assim como a "nova saúde" se revela "uma saúde mais vigorosa, mais esperta, mais tenaz, mais ale­ gre do que jamais foi até hoje qualquer saúde" (FW, 382). A essa altura, a evolu­ ção de Nietzsche é elevada a modelo. Voltando-se aos seguidores que espera conquistar, o filósofo assim os apostrofa: "Estais preparados? Deveis ter passado por todo grau de - ceticismo e ter-vos banhado com volúpia nas correntes gela­ das"; só então "será possível uma condição como nenhum utópico pôde imagi­ nar" (IX, 573). A travessia do deserto ou do "mar" (FW, 3 77), o "iluminismo", se toma uma espécie de rito de passagem necessário e benéfico. .

O mundo novo, que mal se entrevê, está ainda todo por descobrir, mas por enquanto N ietzsche coloca um ponto final : ele é "soberanamente rico de coi­ sas" não apenas "belas, desconhecidas, problemáticas", mas também, ao mes­ mo tempo, "terríveis e divinas". Então, "a tragédia começa" (FW, 3 82). Não há dúvida, estamos além do "iluminismo", e é significativo que a nova fase se abra agitando uma palavra de ordem, a da visão trágica da vida, que já carac­ terizava a fase "metafisic�". Por outro lado, esse novo ideal "que muito fre­ quentemente parecerá desumano" constitui a "paródia involuntária viva" da "solenidade" com que foram tradicionalmente proclamadas as regras da "mo­ ral". Portanto, como sabemos, "incipit tragoedia", mas também, ao mesmo tempo, "incipit parodia", a dessacralização radical e sem precedentes dos valores transmitidos e vigentes, agora todos envoltos por "grande suspeita" (FW, Prefácio, 1 e 3). Nesse sentido, algo é recuperado do "iluminismo" ante­ rior. Tendo já se mostrado no período "romântico", a visão trágica da vida, a "grande seriedade" (grosser Ernst), contraposta à "seriedade terra-a-terra (Erden-Ernst) que existia até hoje'', própria do filisteísmo moral (FW, 3 82), é reforçada, em forma mais madura, depois de ter passado pela dessacralização, pelo desencanto e pelo gelo das luzes e da "escola da suspeita".

2. Leis antissocialistas, "cristianismo prático " e "indecência " de Guilherme I O que acontece entre 1 879-80 (os anos mais nitidamente caracterizados pelo "iluminismo") e 1 882, o ano da publicação da Gaia ciência, ou seja, do teÀ1o em que, por declaração do seu autor, "o destino da alma tem a sua virada"? A evolução de Nietzsche não se passa no vazio ou num espaço asséptico, mas é clara e constantemente estimulada pelos desenvolvimentos da situação política na Alemanha e na Europa. A primeira fase se refere, por um lado, ao horror e ao espanto suscitados pela Comuna de Paris; por outro lado, aos entusiasmos e às esperanças alimentados pela fundação do II Reich. A segunda fase corresponde, por um lado, ao enfraquecimento e desaparecimento de tais esperanças, por ou­ tro lado, à progressiva estabilização da situação política a nível europeu, com a diminuição e com a sensível atenuação do perigo da revolta da "categoria bárba­ ra dos escravos". Publicados em 1 879-80, Opiniões e sentenças diversas e O andarilho e a sua sombra entram ainda com toda justiça no experimento "iluminista", e com razão Nietzsche os insere na segunda edição de Humano, demasiado humano, do qual são �e algum modo parte integrante. Mas em que contexto histórico e político é preciso colocar a fase pós-"iluminista"?

Convém procurar nos próprios textos de Nietzsche as referências aos conflitos e aos debates do tempo. Atrai particularmente a nossa atenção um aforismo da Gaia ciência: "Trabalho. Como estão perto hoje, também do mais ocioso de nós, o trabalho e o trabalhador! A cortesia real da expressão 'somos todos trabalhadores ' teria sido, ainda sob Luís XIV, um cinismo e uma indecên­ cia" (FW, 1 88). A alusão é à mensagem imperial endereçada em 1 7 de novem­ bro de 1 88 1 ao Reichstag, na qual Guilherme 1 lança, por inspiração de Bismarck, um programa incisivo de reformas sociais, como acaba reconhecendo um críti­ co implacável do chanceler. Tratava-se de "promover o bem-estar positivo dos operários", aprovando a "lei sobre seguros contra os infortúnios", garantindo alguma "previdência estatal" para aqueles que eram atingidos pela "incapaci­ dade ao trabalho por velhice ou invalidez" e estimulando o desenvolvimento de cooperativas "sob a proteção e ajuda do Estado".642 Tudo isso em nome de uma dignidade do trabalho do qual todos são participes, desde o operário de fábrica ao soberano. Compreende-se o horror de Nietzsche. Na onda da celebração do traba­ lho e da difamação do otium, começa uma intervenção considerável do Estado na economia e uma dilatação do aparelho estatal . Humano, demasiado huma­ no tinha prevenido contra essa tendência própria do socialismo, que desse modo revelava a sua cara despótica. Em Aurora e nos fragmentos relativos a ela ecoa de novo a palavra de ordem: "Estado, o menos possível ! " (M, 1 79; cf. também IX, 294). Portanto, há uma novidade de fundo. Essa palavra de ordem não é mais lançada em polêmica exclusiva com o movimento socialista, mas com o olhar voltado também para as tendências em ato a nível governativo na Europa, sobretudo, na Alemanha: Sei o que fará perecer estes Estados, o non plus ultra do Estado, que é o dos socialistas: e disso eu sou o adversário, e o odeio já no Estado atual [ . . . ] . As grnndes lamúrias sobre a miséria humana não me comovem, não me levam a participar daquele lamento (IX, 294).

Está encerrada a polêmica contra o ideal do Estado social, que sempre mais se difunde e que começa até a assumir uma configuração concreta, ainda que parcial . Agora, o imperador passou a fazer parte do grupo dos desprezíveis "apologetas do trabalho" (M, 1 73). Daí provém o impulso a "transformar o Estado na providência em sentido bom e mau". Contudo - objeta Nietzsche este "enorme propósito deliberado de aplanar todas as asperezas e arestas da vida", o ideal da "segurança geral", passa a fazer parte dos "objetivos vis" e, 64 2 Assim Mehring, 1 96 1 b, vol.

II, pp. 563-4.

ademais, desastrosos : fomos colocados "no caminho mais curto para transfor­ mar a humanidade em areia" (M, 1 74). Mais do que procurar proteção e salvação na intervenção do Estado, os operários alemães e europeus são solicitados por Aurora a percorrer a estrada da aventura colonial (M, 206). Naturalmente, as guerras coloniais comportam uma sensível ampliação do aparelho militar e estatal; mas não é este aspecto que Nietzsche olha com µreocupação, mas muito mais as reivindicações do movimento popular e socialista de intervenção do Estado na economia e na questão social. Por algum tempo, na polêmica contra o Estado social, que começa a dar os seus primeiros passos, Nietzsche não hesita em retomar os argumentos da cultu­ ra e do publicismo liberal e conservador, que remetem à Igreja como lugar da beneficência e da caridade.6'13 A Gaia ciência avalia positivamente o "serviço de assistência sanitária não pública" desenvolvido pelo sacerdote (FW, 35 1 ) Certamente, este argumento clássico toma em Nietzsche tons novos. Com res­ peito ao Estado, como lugar da massificação, a Igreja no seu conjunto parece muito superior e muito mais capaz de resistir ao difundido contágio plebeu: .

Não esqueçamos, enfim, o que é uma Igreja na sua oposição efetiva a todo Estado: uma Igreja é sobretudo uma estrutura de domínio, que assegura aos homens mais espirituais um lugar hierárquico supremo e crê no poder da espiritualidade ao ponto de proibir a si mesma qualquer instrumento mais grosseiro de violência: apenas com isso a Igreja, em qualquer circunstância, é uma instituição mais nobre que o Estado (FW, 358).

Essa nobreza prece tanto mais nítida quando comparada com as atenções mais ou menos hipócritas de Guilherme 1 à apologética plebeia do trabalho e com as concessões de Bismarcl< ao movimento operário. Mais do que perse­ guir soluções impossíveis de uma questão social fantasmática, convém tomar nota, segundo Nietzsche, da realidade: "Aqui tem efeito simplesmente a lei da necess idade (Noth): para viver precisa vender-se, mas se despreza aquele que explora esta necessidade (Noth) e compra o operário" (A rbeiter) (FW, 40). A persistente polêmica anticapitalista é a prova de que, apesar das repetidas con­ cessões das quais tem se beneficiado, a classe operária não está absolutamen­ te integrada, antes continua a mostrar-se malévola e hostil em comparação com aqueles que lhe fornecem a ocupação e os meios de subsistência.

64) Losurdo, 1992, cap. X, 5.

3. Da crítica do Estado social à crítica da "constituição represen­ tativa " Ao prevenir contra o descontentamento do operário e ao condenar o pro­ grama de Bismarck como inútil e desastroso ao mesmo tempo, Nietzsche argu­ menta de modo semelhante aos expoentes mais intransigentes do liberalismo. Nesse momento, o chancel@r é obrigado a defender-se da acusação de aspirar a um programa social segundo o princípio do Estado-"providência" e da "onipo­ tência estatal". Não - respondem os partidários de Bismarck -, não se trata disto, mas é preciso começar a pensar numa "conciliação dos operários com o Estado": é um problema removido pelos teóricos extremistas do laissezfaire, pelo "conventículo dos políticos manchesterianos, os representantes sem pie­ dade do portafólio", que querem reduzir o Estado a simples função de polícia ao serviço das classes proprietárias.644 Mas, brada um deputado no curso do debate parlamentar - as reformas aprovadas pelo governo vão além também do "socialismo", são o início da capitulação ao "comun ismo". 645 Nietzsche se associa a essa polêmica, radicalizando-a posteriormente e de modo extremo. A denúncia do compromis­ so social projetado por Bismarck se torna cada vez mais áspera até encontrar a sua formulação mais acabada e mais radical em Crepúsculo dos ido/os. É uma loucura ter teorizado uma presumida "questão operária". Mostrando-se sol ícitos diante dos seus problemas ou das suas reivindicações, esperaram ca­ tivar de alguma maneira o operário. Na realidade: Ele se encontra bem demais para pedir sempre mais, para pedir sempre mais imoderadamente. Acima de tudo, ele tem a seu lado a vantagem do grande número [... ]. Tomou-se o operário apto ao serviço militar, deu-se-lhe o direito de associação sindical (Coa/itions-Recht), o direito político ao voto: é de admirar que hoje o operário sinta a sua existência como uma condição misérrima (Nothstand), em termos morais, como injustiça? (Unrecht) (GD, Incursões de um inatual, 40; cf. também XIII, 30).

Não basta a legislação de emergência contra os socialistas, ou seja, con­ tra o partido operário que se coloca no terreno da revolução ou de qualquer modo da contestação de todo o sistema social existente. Trata-se, ao contrário, de descon:hecer os direitos políticos e sindicais ao operário como tal. Indepen­ dentemente da adesão a esse ou àquele partido político, ele é membro de uma 644 Bismarck, s.d. vol. II, pp. 337-34 1 . 645 Assim Eugen Richter i n Fenske, 1978, p. 280. ili

classe inimiga e pronta à insurreição; é uma política suicida recrutá-lo para o serviço mil itar e ensinar-lhe o uso das armas . É necessário, ademais , negar-lhe o di reito à instrução: não se pode educar como dono quem está destinado a trabalhar como escravo. O ideal seria "constituir. uma categoria" (Stand), ou seja, uma espécie de casta sem mobilidade social e propensa a se reproduzir hereditariamente, "uma espécie de homens modesta e satisfeita consigo mes­ ma, do tipo chinês" (GD, Incursões de um inatual, 40) . É verdade, à s acusações de comunismo Bismarck responde que ele se inspira, ao contrário, no "cristianismo prático" ou posto em p rática; e em termos análogos se exprime Guilherme 1, na sua mensagem ao Reichstag.646 Mas isto não soa nada tranqüilizador para Nietzsche, que começa a tomar nota de uma convergência substancial entre duas correntes à primeira vista contrapostas, isto é, o cristianismo e o socialismo. A subversão é premente e não parece encontrar res istência imp ortante. Depois que as angústias provocadas pela Comuna de Paris se dissiparam ou atenuaram, a situação tornou-se de fato novamente alarmante. As concessões ou cessões de Bismarck não pareciam ter aplacado ou tomado mais condescendente o par­ tido social-democrata alemão. No congresso do ano anterior ( 1 880), realiza­ do na Suíça para fugir à perseguição da legislação antissocialista promovida pelo chanceler de ferro, ele não só tinha expressado "a própria simpatia pela luta de libertação dos niilistas russos", mas tinha modificado também "o pro­ grama de Gotha, afirmando que o partido tendia para seus fins com todos os meios e não mai s simplesmente com todos os meios legais".647 Um processo analógico de radicalização se verificava na França, onde, naquele mesmo ano, L 'Égahté, de Jules Guesde, abandonando o subtítulo anterior de "jornal republicano socialista", se proclamava "órgão coletivista revolucionário".648 No que diz respeito depois à Rússia, em 28 de fevereiro de 1 8 8 1 , uma orga­ nização terrorista, após várias tentativas fracassadas e tendo sofrido duras perdas (ondas de prisões e de execuções), consegue executar a "condena­ ção à morte" decretada para Alexandre II. Se também concentra a sua aten­ ção na Alemanha, Nietzsche não está por fora da evolução da situação polí­ tica europeia. Um aforismo da segunda edição da Gaia ciência faz referên­ cia explícita ao "niilismo ao modo de Petersburgo", que se lança até o "mar­ tírio" (FW, 3 47). A gravidade da ameaça exige uma resposta à altura da situação. Por um lado, o conflito social parece tomar-se dramaticamente violento também dentro 646 In Fenske, 1978, p. 2 81 ; Mehring, 1 96 1 b, vol. II, pp. 563 -4 647 Assim Mehring, 196 1 b, vol. II, p. 543. 648 Mayeur,

1973, p. 98. 332

da Alemanha, como confirmam os atentados terroristas contra Guilherme 1. Tomando isto como ocasião, Treitschke convida as autoridades a esmagar o complô da social-democracia, a proibir seus discursos e seus escritos, a que­ brar a cadeia de seus ')ornais": a obra necessária de repressão não deve se deixar estorvar por uma "filantropia mole e sentimental".649 É bom que a re­ pressão posta em ação pelo aparelho estatal combine-se, segundo o expoente nacional liberal, com a repress,ão a partir da sociedade civil : "Por que os nossos grandes industriais não declaram que não empregarão nas suas empresas ope­ rários que participem na instigação social-democrática?" Quem faz esta per­ gunta são "muitos órgãos da imprensa burguesa", de modo que - observa Mehring - "eles possam publicar longas listas de firmas que se comprometiam em não dar trabalho aos social-democratas".650 No entanto, apesar do clima de caça às bruxas, as leis excepcionais custam a ser aprovadas pelo Parlamen­ to . É a confirmação, do ponto de vista de Nietzsche de que é necessário ir além da "constituição representativa". Já no período "iluminista", ao lado de propostas de restrição ou neutralização do sufrágio, não faltam sugestões mais radicais. Vimos um aforismo de O andarilho -e a sua sombra partir do fenômeno do abstencionismo eleitoral a fim de deslegitimar o sufrágio universal (masculino) em vigor para a eleição do Reichstag (supra, cap . 9 § 1). Bem mais drástica, porém, soa a redação prepa­ ratória desse mesmo aforismo: Dentro de um Estado que tinha uma constituição representativa, se numa votação, por exemplo, para eleger os membros do Parlamento, participa me­ nos da metade daqueles que têm direito de voto, em tal caso a própria cons­ tituição representativa é rechaçada (XIV, 1 98).

Aqui deve ser posta em discussão a "constituição representativa" como tal . Tendo antes sido deixada de lado, essa sugestão se transforma num progra­ ma explícito nos anos seguintes. Desdenhoso agora é o juízo sobre o parlamen­ tarismo: é a homenagem prestada a um "rebanho" obtuso, com a "autorização pública para poder escolher entre cinco opiniões políticas fundamentais" (FW, 1 74). Com uma radicalização ulterior, Além do bem e do mal condena "todas as constituições baseadas no princípio de representação", ou seja, em última análise, no domínio do rebanho (JGB, 1 99). É interessante notar que tal condenação é pronunciada a partir da emer­ gência do Estado social e, portanto, do peso crescente que no Parlamento exer649 Treitschke, 1 878, pp. 6-8.

650

Mehring 1 96 1 b, vol. II, p. 50 1 . 333

cem deputados e grupos que pretendem representar as necessidades das mas­ sas populares: Hoje, no tempo em que o Estado tem um ventre absurdamente intumescido, em todos os campos e nas especializações há, além dos trabalhadores de fato, os "representantes", por exemplo, além dos doutos os letrados, além das classes populares necessitadas (leidende) os inúteis faladores que se gabam "representar" -aquela privação (Leiden), para não falar dos politiquei­ ros profissionais, que estão muito bem, mas esbaforam-se para "represen­ tar" diante do Parlamento condições de miséria (Nothstande) (XI, 475).

A conclusão à qual Nietzsche chega é drástica: seria preciso dar um "pon­ tapé" num sistema, numa "vida mod�ma" que, além do mais, com o seu "gran­ de número de intermediários" e "representantes", torna-se "extremamente dispendiosa" (kostspielig) (XI, 475). Tudo isto é tanto mais absurdo pelo, fato de que o ideal do Estado "providência" equivoca-se de modo radical sobre a natureza do homem, cuja mola principal não é realmente a busca da segurança e da satisfação material: Não o estado de necessidade nem o desejo, mas o amor do poder é o demô­ nio dos homens. Dê-se a todos eles saúde, alimentação, moradia, diversão eles são e continuam iruelizes e .extravagantes: pois o demônio espera e aguarda e quer ser satisfeito (M, 262).

Não são a miséria e a necessidade social que alimentam a agitação operá­ ria. Vimos que se trata mais de indivíduos mal sucedidos, malogrados, interior­ mente bichados. A partir desse momento, Nietzsche não se cansa mais de insistir no tema da doença e da degeneração. Os acontecimentos parecem dar razão a ele. Leiamos o retrato que Mehring faz do protagonista do primeiro atentado contra Guilherme 1: Aos 20 anos já era uma sucata de homem, levava em si as nódoas e as feridas que a sociedade burguesa costuma infligir aos infelizes que não são convida­ dos à sua mesa. Filho ilegítimo, iruectado de sífilis hereditária, já quando meni­ no açoitado como batedor de carteiras e colocado como vagabundo num instituto de correção [ . .. ]. Doente de espírito e de corpo, não ti�ha a energia para tornar-se um revolucionário e lutava como um trapaceiro e um ladrãozinho contra as forças hostis que o reduziam à sua existência quase bestial.651

É a confirmação, do ponto de vista de Nietzsche, da inexistência da "questão social". Na realidade - observa mais tarde Assim falou Zaratustra - "nascem 651 Mehring, 1 96 1 b, vol. II, p. 495.

homens demais: para os supérfluos foi inventado o Estado", ou seja, o Estado social (Za, 1, Do novo ídolo). Além de ser um veículo custoso de nivelamento e massificação, as reformas promovidas por Bismarck não atingiram o resulta­ do perseguido por elas, de integração do movimento operário no sistema exis­ tente. E agora, diante de pretensões absurdas, convém acentuar um princípio fundamental : "Não se tem direito nem à existência, nem ao trabalho nem, me­ nos ainda, à felicidade; para o indivíduo humano as coisas não são diferentes do que são para o ínfimo verme" (XIII, 98).

4. "Não podemos ser senão revolucionários " A essa altura, podemos tentar compreender melhor o significado global da evolução de Nietzsche e das etapas que, por reconhecimento explícito dele, marcam o tempo. A primeira, que gira em torno de O nascimento da tragédia, vê o seu autor tomar suas posições não muito distantes daquelas dos nacional­ liberais alemães, como testemunham a amizade e a devoção em relação a Wagner, a admiração por Bismarck, a participação ativa na transfiguração da Alemanha, ou antes da "essência" alemã, como vanguarda da luta contra a "civil ização" vulgar, cOntra "o nivelamento e a 'elegância' franco-judaica" e a subversão moderna. A segunda etapa vê Nietzsche aproximar-se de certa for­ ma das posições do liberalismo conservador europeu, como revelam, por um lado, a denúncia da teutomania e, por outro, o julgamento em geral positivo sobre a Inglaterra, onde não se impôs ainda o sufrágio universal (masculino) e as reformas liberais não derrubaram os elementos de hierarquia e de aristocra­ cia do Antigo Regime. Nessas duas etapas, objeto de condenação são mais as crescentes contaminações democráticas do liberalismo e da representação par­ lamentar do que o liberalismo e a representação parlamentar enquanto tais; daí a ambigüidade do julgamento de valor formulado sobre o liberalismo e a tenta­ tiva de distinguir entre um liberalismo autêntico e um outro espúrio. Agora, pelo contrário, o quadro muda sensivelm"ente: Não somos absolutamente "liberais", não trabalhamos para o progresso, não temos necessidade de tapar as orelhas contra as sereias do mercado promissor - o que elas cantam, "igualdade dos direitos", "sociedade livre", "basta de senhores e escravos'', isso não nos atrai (FW, 377).

Criou-se uma nova situação. E, por outro lado, é preciso anotar que o próprio liberalismo tende a falar a liL1guagem da subversão, participando, por exemplo, com Sybel, da celebração irrefletida da modernidade e da campanha 335

de difamação da Idade Média (infra, cap. 1 7 § 1 ). Pior, "traduzido em alemão, liberalismo significa animalizar-se no rebanho" (GD, Incursões de um inatual, 38); ele se inspi ra na mesma demagogia igualitária e na mesma visão da vida, de conformidade com a equalização e com o conforto para todos, que caracte­ rizam o socialismo. Junto com o liberalismo tomou-se inútil também o conservadorismo: "Nós não 'conservamos ' nada, n�o queremos sequer regredir a algum passado" (FW, 3 77). Que sentido tem demorar-se numa atitude de conservação, ou aspirar a uma restauração qualquer, se o ciclo revolucionário se alastra por séculos ou até por milênios? Os conservadores apelam para tradições às quais dão gran­ des significados morais e religiosos, na tentativa de afastá-las das dúvidas e das contestações que se difundem . Mas trata-se de uma operação vazia e artifici­ osa: "Aqui se esconde a grande desonestidade dos conservadores de todo tem­ po: são mentirosos 'ainda por cima"' (FW, 29). O conservadorismo assume frequentemente tons cristãos . Mas - objeta Nietzsche -, se também a Igreja e a religião podem revelar-se instrumentalmente úteis em determinadas circuns­ tâncias, nós "não admitiremos nunca uma situação em que domine o santarrão" (EH, Porque sou tão inteligente, 5). Este último, por um lado, continua a estar agarrado a uma religião de cujas implicações subversivas não é consciente; por outro lado, é totalmente inferior ao desafio do tempo. Está claramente surgindo um novo "partido" político, que quer acabar com o movimento democrático e socialista, mas sem de nenhum modo confim­ dir-se nem com o liberalismo, cuja cumplicidade ou subaltemidade com respei­ to a esse movimento dênuncia, nem com o conservadorismo, cuja veleidade e hipocrisia sublinha. E então? Uma variante do aforismo da Gaia ciência acima citado explicita a conclusão que agora se impõe: é preciso "descobrir terras desconhecidas", "ideais novos, novas realidades, uma nova pátria! " (XIV, 276). Impõe-se uma luta frontal não só contra o socialismo e o anarquismo, mas também contra o II Reich, culpado de ser condescendente, com Bismarck, com a "mediocridade (Vermittelmaj3igung) da democracia e com as ' ideias modernas ' " (GT, Tentativa de autocrítica; I, 20). Embora tome em conside­ ração de modo particular as concessões ao movimento operário e as tentativas de construção de um mínimo de estado social em nome do "cristianismo práti­ co", da "compaixão" pelos abandonados ou de vagas ideias de ')ustiça", a polêmica de Nietzsche ataca agora em cheio também o liberalismo e a "cons­ tituição representativa".

5. A sombra da suspeita ataca os moralistas Um programa político tão radical como aquele aqui enunciado exige uma plataforma filosófica bem diferente daquela do "iluminismo moral'', chamado mais a prejudicar a "boa consciência" da ação revolucionária do que a fundar e estimular a ação contra-revolucionária. Ainda em O andarilho e a sua som­ bra Nietzsche sente a necessidade de se distanciar do imoralismo: Os moralistas devem hoje suportar sentir-se acusados de imorais, porque dissecam a moral. Mas quem quer dissecar deve matar: mas só para que se saiba melhor, se julgue melhor e se viva melhor, não para que todos disse,. quem (WS, 19).

No entanto, pouco a pouco, a atitude assumida pelos moralistas começa a parecer inadequada. "Rochefoucauld erra apenas nisto: ele estima os motivos que julga verdadeiros muito mais baixos do que os outros, presumidos; ou seja, no fundo crê ainda nos outros motivos, e não obtém a medida própria" {IX, 44 1 2). De fato, os moralistas continuam a prestar obediência à moral, mesmo se aparentemente a dissecam de modo tão impiedoso: Os moralistas assumiram como sagrada e verdadeira a moral venerada pelo povo e procuraram apenas sistematizá-la, ou seja, puseram nela a veste da ciência. Nenhum moralista ousou indagar a sua origem: ela tinha a ver com Deus e o seu mensageiro! Partia-se do pressuposto para o qual a moral se tornaria desfigurada na boca do povo e teria necessidade de uma "purifica­ ção" (IX, 127).

Ao se comportar como defensores e restauradores do discurso moral au­ têntico, os moralistas acabam herdando as suas contradições e hipocrisias: "Os homens agem de modo totalmente diferente do que dizem. Também os moralis­ tas . Por que moralizar? Mas sede honestos! O principal é que não podemos fazer de outro modo! Todo 'por que' é charlatanearia e mentira" (X, 282). Comp reende-se então porque A lém do bem e do mal assimila os "velhos moralistas" (Moralisten) aos "pregadores de moral" (Moralprediger): é ne­ cessário e é ao mesmo tempo "um não pequeno prazer rever as posturas" uns dos outros (JGB, 5). Mais tarde, refletindo sobre a "longa história" do seu afastamento de Wagner, Nietzsche observa: "Se fosse um moralista (Moralist), não sei como a chamaria! Talvez superação de si. - Mas o filósofo não gosta dos moralistas (Moralisten) . . . Também não gosta das belas palavras" (WA, Prefácio) . Tamb ém os moralistas dão p rova de magn i l oquência e autocomplacência, de mistificação idealista da realidade. A figura do moralista 337

acaba assim identificando-se com a figura do filósofo idealista, com respeito à qual era antes chamada a funcionar como antídoto: "Os filósofos, como os moralistas, minam o naturalismo da moral" (XIII, 403). Depois de ser projetada, graças também à sua lição, sobre o pathos dos nobres sentimentos morais para os quais faz apelo o movimento revolucionário, agora a sombra da suspeita ataca, e de modo pesado, os próprios moralistas. O modo deles de argumentar tende a obstacular a "boa consciência" da ação enquanto tal, não apenas &" ação revolucionária. É necessário desembaraçar­ se de uma p resença que se tomou embaraçosa. Só a esta altura o campo pode tomar-se livre para a ação contra-revolucionária. Acompanhada de uma pergunta inquietante e sempre mais persistente ("Não se podem inverter todos os valores? E é por acaso bem o mal?"), a travessia do "deserto" põe cabo à aquisição da "grande saúde" (MA, Prefá­ cio, 3). Quem esclarece o significado de tal abordagem é uma voz, que tam­ bém fala ao espírito livre (que agora adquiriu ou está para adquirir a "grande saúde" e que, a partir deste cume conquistado com dificuldade, é chamada a abraçar e usufruir o novo horizonte, mas também a refletir sobre o caminho percorrido): Devias aprender a compreender a necessária injustiça de cada pró e contra, a injustiça como inseparável da vida, a própria vida como condicionada pela própria perspectiva e pela sua injustiça. Devias sobretudo ver com os teus olhos onde a injustiça é sempre maior: lá onde a vida se desenvolveu do modo mais minúsculo, mais restrito, mais mesquinho e mais primordial, e, todavia, não pode deixar de tomar a si mesma como objetivo e medida das coisas e estilhaçar e questionar secreta e mesquinha e incessantemente, por amor da sua conservação, aquilo que é superior, maior e mais rico; devias olhar na cara do problema da hierarquia e ver como força e direito e amplitude da perspectiva crescem juntos em altura. Devias. . . Basta, o espírito livre sabe agora a qual "deves" obedeceu (MA, Prefácio, 6).

A meta é indicada na superação da visão moral do mundo, que tantas armas fornece ao movimento revolucionário e socialista, mas da qual são atin­ gidos também os moralistas anteriormente chamados a deslegitimar, com o seu exercício da suspeita, a boa consciência daquele movimento.

6. Hegel e Nietzsche: duas críticas contrapostas da visão moral do mundo A visão moral do mundo começa a revelar-se bastante problemática já durante o período iluminista. Uma contradição de fundo a caracteriza: Os homens do amor e .da abnegação têm interesse em que persistam os egoístas sem amor e incapazes de sacrifício, e a suma moralidade, para poder subsistir, deveria verdadeiramente impor a existência da imoralidade (com isso, porém, suprimindo a si mesma) (MA, 133).

Para poder celebrar o próprio absoluto, a norma moral que exige o altruís­ mo é obrigada a pressupor o mal que não se cansa de denunciar. É interessante notar que uma crítica análoga é dirigida já por Hegel ao mandamento cristão do amor ao próximo e de ajuda aos pobres: "Se a pobreza deve continuar a existir para que o dever de ajudar os pobres possa ser exercido, então, ao se deixar existir a pobreza, o dever, imediatamente, não é cumprido".652 É uma passagem comentada com eficácia por um discípulo de Hegel, isto é, Fischer, numa história da filosofia de algum modo conhecida de Nietzsche: A máxima ética impõe: ":Ajuda os pobres". Mas a ajuda real consiste em libertá-los da pobreza; e então, cessada a pobreza, cessam também os po­ bres e cessa o dever de ajudá-los. Mas se por amor da esmola se deixa continuar a existir também os pobres, então, mediante este deixar existir a pobreza, o dever [de ajudar realmente os pobres, libertando-os da pobreza] não é [ . . . ] cumprido.653

Atingida por uma espécie de contradição performativa, a visão moral do mundo pressupõe, tem necessidade de pressupor, a existência e a permanência daquele mal (o egoísmo, a pobreza, etc.) que proclama querer eliminar. E a contradição performativa é a mesma coisa que o narcisismo: estamos na pre­ sença de um tipo de homem interessado em primeiro lugar no gozo da própria interioridade. É preciso não se deixar enganar pela autodifamação ostentada pelo sujeito moral. De fato - observa Nietzsche - "esse escárnio da própria natureza, esse quebrar a si mesmo, esse spernere se sperni, tão apreciado pelas religiões, é exatamente um altíssimo grau de vaidade" (MA, 1 3 7) . Nesse ponto, Hegel talvez seja ainda mais duro, pois denuncia o "narcisismo repug­ · nante" (Eigensinn) que a vida de renúncia do asceta inspira, empenhado ex652 Hegel, 1 969-79, vol. II, p. 466. 653 Fischer, 1 9 1 1, p. 278.

clusivamente em persegui r um fim "totalmente subjetivo, um fim do homem individual por si mesmo", ou seja, "a salvação da sua alma", a consecução da "sua felicidade".654 Deixando de lado qualquer cautela ou interdição lingüísti­ ca, Nietzsche, por sua vez, faz valer essa crítica para o próprio fundador do cristianismo, para o próprio Homem-Deus da religião oficial : "Jesus era um grande egoísta" (IX, 5 50). Depois de ter percorrido um trecho em comum, eis que os dois filósofos entram em dois caminhos radicalmente opostos. Em Hegel, a crítica da visão moral do mundo desemboca na afirmação da necessidade de um ordenamento ético concreto, capaz de incorporar as exigências morais do sujeito, as quais, exatamente ao assumir a dimensão da objetividade, demonstram a sua autenti­ cidade e deixam de ser instrumento de complacência narcisista. Mas, aos olhos do filósofo agora a ponto de servir ao imoralismo, o pathos da eticidade não é menos suspeito que o pathos da moralidade. Vimos, na cultura liberal europeia, a denúncia do desaparecimento do indi­ víduo durante o processo de massificação do mundo moderno. É um tema que Nietzsche retoma, radicaliza e declina em sentido asperamente crítico em rela­ ção não só com a democracia, mas também com a moral: "Noutras épocas, o indivíduo estava mais no alto, era mais frequente. São os tempos mais malva­ dos: ele se tornava mais visível; ousava-se mais, era-se mais nocivo, mas men­ tia-se menos" (IX, 1 26). Não se pode contrariar nem recalcar o fenômeno da massificação sem pôr de novo em discussão a visão moral do mundo. É neces­ sário saber reabilitar o "mal": "O que teria acontecido com o homem sem medo, inveja, avidez ! Não existiria mais" (IX, 457). Essas paixões e esses supostos vícios são estimulados pela inovação e impedidos pelo entrincheiramento pro­ vinciano de uma sociedade. À primeira vista, não estamos muito longe de Hegel. Este sublinha a "enor­ me potência do negativo" e, rejeitando um ideal de moral entendida como pure­ za asséptica, chama a atenção para o fato de que "nada de grande no mundo foi realizado sem paixão". 655 O mesmo Kant, ao examinar o desenvolvimento econômico e social, acaba atribuindo um papel positivo ao "desejo de honra, de potência, de riqueza", à luta, à "resistência" ( Widerstand), que "excita todas as energias do homem e o induz a vencer a sua tendência à preguiça". Quando desloca a atenção do sujeito para a objetividade das relações sociais e dos processos históricos, Kant acaba retomando o tema caro a Mandeville dos vícios privados que se transformam em virtudes públicas: 654 Hegel, 1 969-79, vol. XIV, pp. 165-6. 655 Hegel, 1969-79, vol. XII, p. 38.

Graças sejam dadas à natureza pela intratabilidade que gera, pela invejosa emulação da vaidade, pela cobiça nunca satisfeita de posse ou de donúnio! Sem elas, todas essas excelentes disposições naturais inatas na humanidade pennaneceriam eternamente adonnecidas sem se desenvolver. O homem quer a concórdia, mas a natureza sabe melhor do que ele o que é bom para a sua espécie: ela quer a discórdia. 656 Portanto, assistimos tamõém nesses casos a uma espécie de reabilitação do mal. Sem ele não se pode pensar aquela "sociabilidade insociável" que é a sociedade civil, e tampouco se pode pensar o prodigioso desenvolvimento das forças produtivas que caracteriza o mundo burguês moderno: assim argumen­ tam Kant e a tradição liberal. Esse aspecto está presente também em Hegel, o qual, porém, insiste num outro aspecto ainda mais importante: as contradições, os conflitos, as paixões, a negatividade no seu conj unto é a mola que impele à realização dos organismos éticos sempre mais desenvolvidos, capazes de dar expressão sempre mais rica ao reconhecimento recíproco entre os homens; neste sentido, é preciso saber distinguir entre a "grande paixão histórico-mundi­ al" e a paixão que persegue fins meramente particularistas.657 A reabilitação do "mal" em Nietzsche tem características bem diferentes . Há uma metáfora que aparece tanto nele como já em Kant. Este, como se sabe, compara a sociedade civil com uma mata: Assim como as árvores de um bosque, pelo fato que cada uma se ocupa a tirar o ar e o sol da outra, obrigam-se reciprocamente a procurar o ar e o sol para cima e por isso crescem belas e retas, as árvores que crescem em liber­ dade e longe uma das outras lançam galhos à vontade, crescem aleijadas, tortas e retorcidas. 658 E agora leiamos Nietzsche: "Perguntai-vos se uma árvore, que deve crescer soberba em altura, pode evitar o mau tempo e a tempestade" {FW, 1 9). Aqui a árvore é declinada no singular; já passou o momento da relação com a outra árvore e do estímulo, através da competição, para o crescimento recíproco. Resta só a comparação com as intempéries naturais. Sõbrevive, ganhando robustez, apenas a árvore capaz de superar a prova: "o veneno, que faz a natureza mais fraca perecer, revigora o vigoroso - para este não tem sequer o nome de veneno". Ou então, com linguagem diferente, "o mal", que dá o título ao aforismo, "põe à prova a vida dos homens e dos povos melhores e mais fecundos" (FW, 19). 656 Kant, 1 900, vol. VIII, pp. 20- 1 (fese quarta). 657 Hegel, 1 969-79, vol. XII, p. 55. 658 Kant, 1900, vol. VIII, p. 22 (fese quinta). 341

Não se trata de aspirar a "uma humanidade bela, tranqüila, alimentada e florescente em todo sentido"; esse objetivo poderia ser conseguido também sem o "mal", mas nada teria a ver com o fim ao qual Nietzsche tende e que define como a "nossa melhor humanidade". O significado de tal categoria é esclarecido por uma declaração ulterior: "Se se pensa no homem mais rico, nobre e fecundo sem o mal, se pensa uma contradição [ . . . ] . Um gênio deveria sofrer terrivelmente, porque toda a sua fecundidade quer alimentar-se egoista­ mente dos outros, dominá-los, sugá-los, e assim por diante" (IX, 457). Trata-se de compreender e justificar o sacrificio, que a civilização pede, de uma massa considerável de homens, bem como da maior parte da humanidade. Antes identificada na "compaixão", nos "nobres sentimentos", nos apelos à "justiça", agora o perigo de deslegitimação de tal sacrificio é identificado na moral en­ quanto tal. Agora, ela é posta totalmente fora do jogo mediante a afirmação da irresponsabilidade que preside o agir humano e, portanto, com a tese da "ino­ cência do devir".

7. Da culpa universal à "inocência do devir " À primeira vista ter-se-ia aberto um abismo com relação à adesão juvenil à filosofia de Schopenhauer. Não seria o autor de O mundo como vontade e representação o teórico da culpa inata na existência enquanto tal? Pois bem, a aproximação de Nietzsche se caracteriza pela afirmação da "inocência de toda existência" (Unschuld alies Daseins) (XIII, 426), da "inocência de toda ação" ( Unschuld alter Handlungen) bem como de toda "opinião" (M, 56), da "ino­ cência do devir" ( Unschuld des Werdens) (XII, 386; GD, Os quatro grandes erros, 8). Parece ter-se verificado uma inversão total de posições; no entanto, o próprio Nietzsche sublinha que as duas visões filosóficas, aparentemente con­ trapostas, visam na realidade conseguir o mesmo resultado político-social : É possível arrancar dos seus eixos a justiça mundana - com a teoria da plena irresponsabilidade e inocência (vol/ige Unverantwortlichkeit und Unschuld) de todos: e já foi feita uma tentativa de igual direção exatamente em base à teoria oposta da plena responsabilidade e culpabilidade (Verantwortlichkeit und Verschuldung) de todos (WS, 8 1 ).

É verdade que essa última teoria é atribuída ao "fundador do cristianis­ mo'', mas certamente se trata de um cristianismo visto com os olhos de Schopenhauer, que não por acaso afirma a centralidade nele do tema do peca­ do original, ou seja, da "culpa profunda (tiefe Verschuldung) do gênero huma-

no pelo fato mesmo de existir"

(durch sein Dasein se/bst).659 É

verdade que,

aos olhos de Nietzsche, até a doutrina da culpa ou pecaminosidade inevitável e universal dos homens pode ser lida como uma espécie de formulação ainda aproximativa e em negativo da tese chamada a justificar todo homem de um sentido de culpa opressor. Outras vezes, o cristianismo está ligado de modo mais direto

à tese da irresponsabilidade e da inocência. Jesus "se considera o

filho unigênito de Deus e por isso se sente imune ao pecado"; desse modo "se atinge a mesma meta, o s entimento de plena inocência, de completa

1 44).

irresponsabilidade, que hoje ninguém pode conseguir com a ciência" (MA,

Seja como for, já no período "iluminista" aparece clara a tendência que depois desembocará na afirmação da ino cência do devir : "A p lena irresponsabilidade do homem pelo seu agir é a gota mais amarga que aquele que persegue o conhecimento deve engolir". O sentido de amargor provém do hábito do homem "de ver na responsabilidade e no dever o título de nobreza da sua humanidade". Mas é preciso saber libertar-se também dessa vaidade

1 07).

(MA,

Para ajustar as contas até o fundo com os sentimentos morais, não se

pode ficar no meio do caminho, como fazem os moralistas . Está finalmente na hora de tomar nota: "A história dos sentimentos por força dos quais responsa­ bilizamos alguém, ou seja, dos chamados sentimentos morais'', em poucas pala­ vras, "a história dos sentimentos morais é a história de um erro" (MA,

3 9) .

Portanto, o s 'juízos morais" não têm sentido: eles podem ser "assimilados a epidemias" ou "drogas"

(IX, 483 e 48 1 ) .

N a evocação do ansiado mundo novo da inocência, linguagem iluminista e linguagem religiosa se fundem. Surge agora no horizonte "o sol de um novo evangelho": os seus "raios" são chamados a realizar um "grau de iluminação e de libertação" desconhecido no passado. Amadurece agora a esperança que "a humanidade possa transformar-se de humanidade moral em humanidade sábia".

É

uma condição nova e exaltadora:

Tudo é necessidade - assim diz o novo conhecimento; e este mesmo conheci­ mento é necessidade. Tudo é inocência: e o conhecimento é o caminho para a compreensão desta inocência [ . . ] . O costume hereditário de avaliar, amar e odiar erroneamente pode bem continuar a reinar em nós; sob a influência do crescente conhecimento se tomará, todavia, mais fraco. Um novo costume, o de compreender, de não amar, de não odiar, de olhar do alto, enraíza-se pouco a pouco em nós no mesmo terreno, e em milhares de anos será talvez forte bastante para dar à humanidade a força de produzir o homem sábio e inocente .

(consciente da sua inocência) tão regularmente como agora produz o homem 659 Schopenhauer, 1 976-82 b, p. 802.

não sábio, não justo, sobrecarregado do sentido de culpa - quer dizer, o degrau necessariamente precedente, não o contrário dele (MA, 1 07). Também o homem sobrecarregado do sentido de culpa não é culpado: a sua visão, os seus erros, a sua experiência são uma etapa obrigatória para a libertação. A referência à arte também reforça posterio rmente a tese da irresponsabilidade e da inecência. O homem iluminado pelo "novo conhecimen­ to" e transfigurado pelo "novo evangelho" deve saber olhar "para as ações dos homens e para as suas próprias" como se olha para uma "obra de arte", ou então para uma "planta". Aí não se buscam "méritos" que pressuponham uma liberdade imaginária do querer, mas se pode sempre "admirar a sua força, be­ leza, plenitude" (MA, 1 07). Nietzsche enuncia um programa: "O meu desejo é que se use sempre menos a balança moral e sempre mais a balança estética e que se chegue enfim a sentir a moral como a marca de uma época atrasada e da incapacidade estética" (XIV, 262). A esta altura intervém um outro tema de molde positivista. A moral é, em última análise, um atavismo, o resíduo de uma época aquém do conhecimento científico: Quero cada dia mais desacostumar-me a usar a balança da moral; quero acolher o nascimento de um juízo moral como um sinal de que naquele mo­ mento a minha natureza não está de posse de toda a sua energia e nobreza e vaga pela senda do passado, por assim dizer, entre os sepulcros da pré­ hlstória (XIV, 262). Uma vez superado o estágio teológico da humanidade, junto com o con­ ceito de Deus, também o de nonna moral e de "pecado" está destinado a tomar-se "uma brincadeira infantil e uma dor infantil" (JGB, 5 7). Refletindo sobre a sua evolução passada, o Nietzsche maduro indica na tese da inocência do devir a verdade desde sempre buscada, ainda que por caminhos tortuosos: Há quanto tempo me esforço por demonstrar a inocência perfeita do devir! E que estranhos caminhosjá percorri a propósito disso! [... ] E qual a finalida­ de disso tudo? Não era para dar a mim mesmo o sentimento da absoluta irresponsabilidade? (vollige Unverantwortlichkeit) (XI, 553). Neste quadro, a adesão juvenil à filosofia de Schopenhauer é reconhecida como uma etapa legítima do processo de construção de uma teoria capaz de deslegitimar pela raiz o protesto e a agitação socialista. Se Schopenhauer re­ move a "questão social" tomando participante, graças à unidade genérica rea-

lizada pela compaixão, o próprio atormentado da "culpa" (Schuld) do atormen­ tador, o Nietzsche imoralista liquida, ao contrário, a questão social invertendo essa culpa "genérica" na inocência do devir. A reivindicação da 'j ustiça" por obra dos escravos revoltados, contra a qual já O nascimento da tragédia previne, encontra agora a sua refutação mais radical. Falar de "injustiça profunda" do sistema social significa inventar responsabilidades que não existem e inventá-las, aliás, a partir do rancor incu­ bado pelo próprio fracasso (infra, cap. 20 § 7). A "inocência" (Unschuld) daquele menino que é o real permite a Nietzsche o "sagrado dizer sim" à vida (Za, 1, Das três metamorfoses), mas também a uma ordem social reduzida a natureza; um sim à sociedade existente que Schopenhauer pronuncia de modo aparentemente mais atormentado, na realidade mais hipócrita, através da com­ paixão e da negação da vontade de viver.

8. Quatro etapas na evolução de Nietzsche Vivida como uma descoberta libertadora e exaltante, a inocência do devir projeta a sua luz também sobre o percurso feito. A partir desse resultado, numa espécie de versão nietzscheana da fenomenologia hegeliana do espírito, encon­ tram uma sua justificação parcial também os estágios que a consciência atra­ vessou anteriormente, a serem considerados à maneira de tentativas sucessi­ vas e aproximações do problema central e da sua solução definitiva. Agora é claro: no plano mais exatamente político, é necessário saber "olhar de frente o problema da hierarquia": Posto que o problema da hierarquia é o problema do qual podemos dizer que é o nosso, de nós espíritos livres: só agora, no meio-dia da nossa vida, compreendemos quantos preparativos, voltas e rodeios, provas, tentativas e disfarces o problema teve de atravessar, antes de poder surgir diante de nós (MA, Prefácio, 6-7).

No plano mais exatamente filosófico é necessário elevar-se à consciência da i nocência do devir. Os escritos e as etapas precedentes são agora reinterpretados teleologicamente como momentos de um itinerário dificil e com trechos tortuosos para a plena compreensão e assimilação de uma visão do mundo implicitamente presente e operante já no início : "Recomeço a fazer aquilo que sempre fiz, eu, velho imoralista e intrujão, e falo de modo imoral, extramoral, 'além do bem e do mal"'. Mas então como explicar O nascimento da tragédia e a homenagem por ele prestada a Schopenhauer, que à vontade

de viver contrapõe a sua "cega vontade de moral"? Na realidade, é uma opera­ ção a incluir entre as "falsificações ou invenções poéticas". Querendo-se, pode­ se falar de "engano'', mas se trata sempre de um engano funcional à manifes­ tação de uma "veracidade" mais alta; por outro lado, esse desvio é a confirma­ ção, para vergonha de todos os moralistas, do modo tortuoso como procede a "vida" (MA, Prefácio, 1). Relida atentamente, a obra juvenil fala com clareza suficiente: "contra Schopeohauer e a interpretação moral da existência, pus mais alto a interpretação estética", mesmo sem chegar ao ponto de "negar ou modificar aquela moral" (IX, 6 1 5). Essa coabitação incômoda é novamente discutida no curso da evolução sucessiva. Com Aurora - declara Nietzsche - "começa a minha campanha contra a moral" (EH, Aurora, 1 ), uma campanha que visa "enfraquecer uma antiga confiança, sobre a qual nós filósofos, há dois milênios, estávamos acos­ tumados a edificar como sobre o mais seguro fundamento [ . . . ]; enfraquecer a nossa confiança na moral" (M, Prefácio, 2). Pode assim despontar a "nova manhã", longamente procurada e enfim encontrada na "transvaloração de to­ dos os valores, no desvinculamento de todos os valores morais, num sim a todas as coisas, também na confiança em tudo o que até agora foi proibido, despreza­ do, maldito" (EH, Aurora, l ) . Enquanto termina a evolução de Nietzsche, a plena compreensão dessa "nova manhã" constitui um resultado de uma impor­ tância que vai muito além de um evento pessoal: "Em nós chega ao seu cumpri­ mento [ ... ] a auto-supressão da moral" (M, Prefácio, 4). Podemos agora dar uma rápida olhada no percurso realizado pelo filósofo. Nós o vimos falar de três etapas na sua evolução, a "metafisica", a "iluminista" e a "imoralista". Na realidade, no que diz respeito à primeira etapa, convém fazer uma distinção ulterior. Aproveitando e radicalizando a lição de Burke e do romantismo alemão empenhado na crítica da revolução, O nascimento da tra­ gédia denuncia os efeitos devastadores da hybris da razão, mas identificando o seu início já em terra grega. É verdade, esse tema continua a deixar vestígios vistosos em todos os escritos que precedem à virada "iluminista"; nesse senti­ do, Nietzsche tem razão ao falar de uma fase "metafisica" no seu conj unto. No entanto, por outro lado, é preciso não perder de vista as novidades importantes que intervêm já com a segunda e a terceira Inatuais . No plano mais exatamen­ te filosófico, a crítica da visão meramente antiga dá história é a crítica também da plataforma ideológica ao modo de Burke, incapaz de fundamentar e estimu­ lar a ação contra-revolucionária que se impõe e da qual o "homem de Schopenhauer", ou seja, o "rebelde solitário" se encarrega. No plano mais es­ tritamente político, essa figura toma o lugar do membro da "comunidade popu­ lar" celebrada nos anos de O nascimento da tragédia.

Com Humano, demasiado humano, vemos surgir um "iluminismo" aris­ tocrático que analisa impiedosamente as paixões, as ilusões, o fanatismo do movimento revolucionário e disseca no plano psicológico as palavras de ordem morais que ele agita. Enfim, a quarta e última fase, que, no plano político, é sinônimo de "radicalismo aristocrático" (infra, cap. I I § 2) e, no plano filosófi­ co, de imoralismo, de afirmação da inocência do devir. O fio condutor, o ele­ mento de continuidade é representado pela crítica, antes pela denúncia apaixo­ nada da revolução e dos perigos mortais que ela faz pesar sobre a civilização. O protagonista da luta assim evocada e auspiciada é, primeiro, o membro e o cantor da "comunidade popular", que à hybris da razão e da revolução contra­ põe o mito supra-histórico no qual se reconhece e com o qual se alimenta todo um povo, graças à visão trágica do mundo intimamente unido, não obstante a escravidão e a carga de sofrimentos que a civilização inevitavelmente compor­ ta. Depois é a figura do "rebelde solitário" que toma o lugar da anterior. Cons­ ciente de não poder mais apelar para uma "comunidade popular" irremediavel­ mente desaparecida, ele agita, ao contrário, com gesto de desafio a sua solidão em contraposição à massificação produzida pela revolução e pela modernidade. Pretende mais do que nunca opor-se à revolução, mas com a consciência de que por ela deve saber aprender algo, a começar pela recusa a entregar-se de modo preguiçoso e inerte à tradição, para interromper a gradualidade do seu desenvolvimento com uma ação resolutiva cheia de riscos e de dilemas morais. Segue-se a figura do "iluminista" aristocrático que, tirando proveito também do "iluminismo moral", zomba da pretensão da revolução de apelar para a razão e a justiça e sublinha, ao contrário, o que há aí de rude, de supersticioso, de intolerante, de fanático e de doentio. Intervém finalmente o aristocrata imoralista que, enquanto submete à suspeita e à dessacralização mais impiedosa os valo­ res e os falsos ideais da revolução e da modernidade, ao mesmo tempo conser­ va fresco e intacto o seu fervor e o seu entusiasmo pelo novo que pretende realizar e que pretende realizar não mais como "rebelde solitário'', mas, como logo veremos, de modo organizado, apoiando-se no "partido da vida" ou no "novo partido da vida", a fundar. Vimos assim um entrelaçamento de continuidade e descontinuidade. O pri­ meiro elemento é representado obviamente pela denúncia da revolução. Para com­ preender o segundo, voltemos ao motivo da reabilitação e celebração do "mal": Foram os espíritos mais vigorosos e mais malvados que até hoje fizeram principalmente a humanidade avançar [... ]. Com as armas, com a destruição das pedras marcadoras de fronteiras, infringindo cultos na maior parte dos casos, mas também por meio de novas religiões e morais! [ . . . ] Mas em todas 347

as situações, o novo é o mal, à medida que quer derrubar o que é para conquistar, as antigas pedras de fronteiras e os velhos cultos; e só o antigo é o bem. As almas boas de todo tempo são aquelas que enterram nas profundezas os antigos pensamentos e os fazem frutificar, os lavradores do espírito. Mas, no fim, aquela terra estará exaurida e sempre de novo deverá voltar o arado do mal (FW, 4).

É particularmente significativo o fato que o termo "camponês" tenha se tornado um insulto. Verificou-se uma inversão com respeito ao "prefácio" de um "livro não escrito" que indicava como "tonificante" o espetáculo da vida "consuetudinária" dos "servos da gleba" fechados no "recinto melancólico da sua restrita existência" (infra, cap . 1 4 § 4) . É verdade, o discurso era conjuga­ do olhando exatamente mais para os servos da gleba que para os seus senho­ res. Assim como se volta para os espíritos livres, e só para eles, quando se afirma que "ser genuínos, mesmo no mal, é melhor que perder-se a si mesmo na eticidade da tradição" (FW, 99). Resta o fato que, no período pré-"iluminista" se notava o fascínio de uma ideologia ao modo de Burke e não havia ainda consciência plena da necessidade do discurso duplo a dirigir aos servos ou aos senhores, a plena consciência da "hierarquia". Depois de passar da fase "iluminista'', a crítica e a denúncia da revolução se coloca agora no terreno do "modernismo reacionário".660 A ruptura com o culto do solo é também a ruptura com o culto da tradição; é a tomada de consciência que, nas condições da modernidade, pode-se opor de modo radical à revolução apenas colocando-se no mesmo nível. Certamente, também Zaratustra pronuncia uma dura crítica à "grande cidade" como lugar privilegi­ ado da subversão, por um lado, e da mediocridade, por outro; mas a alternativa a tudo isso já não é identificada no impossível retomo ao solo e sim na expansão colonial: graças a ela se livra da superpopulação e dos miasmas dos mal suce­ didos enquanto, ao mesmo tempo, se fortalecem as virtudes vi.ris e guerreiras dos melhores (infra, cap . 1 8 § 6 e cap . 1 1 § 7). Sobre a novidade forte da última fase com relação à "iluminista" é o próprio Nietzsche que chama a atenção: Suponhamos que tivesse batizado o meu Zaratustra com o nome de outro, por exemplo, o de Richard Wagner; pois bem, a agudeza de dois milênios não teria bastado para adivinhar que o autor de Humano, demasiado humano é o visionário ( Visionar) do Zaratustra (EH, Porque sou tão inteligente, 4).

660

Sobre conceito de "modernismo reacionário" Cf. Herf, 1988 e Losurdo, 1 99 1 , cap. 5.

Salta aos olhos a autodefinição que o último Nietzsche dá de si mesmo: "visionário"! Estão superadas as incertezas e a atitude fundamentalmente de­ fensiva do período iluminista, agora é com tom inspirado e agudo que se anun­ ciam o "novo conhecimento" e o "novo evangelho" antes procurados às apal­ padelas . A nova verdade, melhor, a verdade sempre desejada e finalmente vin­ da à luz, é vivida como a conclusão de um longo ciclo, com a liquidação dos terríveis atavismos que pesam sobre a existência humana, a começar pelo sen­ tido de culpa do pecado imposto e instilado no espírito pelo tirano imaginário no reino dos céus. Mas do próprio elemento de descontinuidade surge novamente a continui­ dade de fundo, ou seja, a crítica e a denúncia da revolução. Junto com a moral, também a ideia de igualdade é um atavismo: "Por imensos períodos de tempo, o intelecto produziu ai:>enas erros [ . . . ], por exemplo, estes: que existem coisas duráveis, que existem coisas iguais" (FW, 1 1 O). Agora é possível reconhecer o que é velharia primitiva: "Partindo da etimologia e da história da linguagem, consideramos todos os conceitos como desenvolvidos e muitos como ainda em devir; e precisamente de modo tal que os conceitos mais universais, bem como os mais falsos, devem também ser os mais antigos" (XI, 6 1 3). Continua a existir algo do "iluminismo" da fase anterior, como se segue da denúncia da "inclinação i lógica", que até "criou no princípio todos os funda­ mentos da lógica", a "tratar o semelhante como igual" (FW, 1 1 1 ), a instituir um sinal de igualdade entre os homens onde há semelhança mais ou menos vaga. Ainda mais clara é a persistência do "positivismo", como surge pela configura­ ção em chave naturalista tanto da ideia de igualdade como da norma moral, ambas rejeitadas à medida que não correspondem a qualquer realidade, a qual­ quer fato. Superados os atavismos teológicos e revolucionários, agora se afirma a ideia de irresponsabilidade e de inocência com tudo o que ela tem de problemá­ tico e inquietante: Quais são as transfonnações profundas, que devem derivar das teorias se­ gundo as quais se afirma que não há um deus que se preocupa conosco e não há uma lei moral eterna (humanidade ateisticamente imoral)? Que somos animais? Que a nossa vida é transitória? Que não temos responsabilidade? O sábio e o animal se aproximarão e produzirão um tipo novo! (IX, 461 ).

11 " RADICALISMO ARISTOCRÁTICO " E "NOVO PARTIDO DA VIDA" 1 . O "novo partido da vida " o final de sua vida consciente, Nietzsche manifesta a sua aspiração de fundar ou contribuir para "fundar um partido da vida" (XIII, 63 8), ou seja, um "novo partido da vida" (EH, O nascimento da tragédia, 4), chamado a levar até o fim a luta contra a subversão e a modernidade. O perfil do "partido" político aqui invocado começa a surgir já a partir da virada imoralista. Nada tem a ver com o tradicionalismo religioso e político, em relação ao qual assume uma atitude de preferência polêmica e dessacralizadora. Além do bem e do mal dedica todo um capítulo, o segundo, ao "espírito livre". Ele termina com uma advertência contra uma possível confusão entre essa figura e a do "livre pensador", cara às correntes mais radicais do iluminismo e agora até do movi­ mento anarquista e socialista. Às vezes até o defensor da subversão se autodefine como "espírito livre". Mas é preciso não se deixar enganar pelas assonâncias:

N

Em todos os países da Europa, e também na América, existe hoje em dia algo que perpetra um abuso em relação a esse nome, uma espécie de espírito muito estreito, prisioneiro, agrilhoado, que quer mais ou menos o contrário daquilo que há nas nossas intenções e instintos [ . . . ]. Estes pertencem, para dizer clara e redondamente, aos ruveladores, esses falsamente ditos "espíri­ tos livres" - ao passo que são apenas escravos, loquazes e folhetinescos do gosto democrático e das suas "ideias modernas" (JGB, 44) .

Estamos na presença de um "abuso" terminológico, ou seja, de um crédito infundado pelo fato de que esses supostos espíritos livres continuam a dar mos­ tras do "servilismo", ainda que "mais sutil" do que o costumeiro. Nos seus projetos de transformação social em nome da justiça proclamam "princípios de um dever incondicionado aos quais se pode sem infâmia submeter-se ou mos­ trar-se submissos" (FW, 5). Apesar da pose de imparcialidade que assumem, eles são os herdeiros do clericalismo e da avareza religiosa: Os insatisfeitos devem ter algo a que votar o próprio coração; por exemplo, Deus. Agora que este último veio a faltar, muitos, que no passado ter-se-iam agarrado a Deus, se voltam para o socialismo ou então para a pátria (Mazziru). ili

Um motivo de magnânima abnegação pública (porque mantém a disciplina e a coesão e dá até coragem !) deve sempre existir! (IX, 591). Quer lutem pela revolução democrática e nacional, quer pela revolução socialista, trata-se sempre de carolas e zelotas em forma nova. Eis, portanto, uma primeira linha nítida de demarcação. De um lado temos sempre um "cren­ te", preso à "convicção fundamental que a ele devem ser dadas ordens", do outro está o homem que "se despede de toda fé, de todo desejo de certeza" e que por isso goza do "prazer e [da] energia da autodeterminação". Este é "o espírito livre par excellence" (FW, 347). Além disso, deve-se ter presente que pathos moral, mentalidade gregária e subaltemidade wm respeito ao espírito filisteu do tempo são tudo a mesma coisa. Agitando as palavras de ordem da igualdade dos direitos e de uma com­ paixão capaz de abraçar todos os homens independentemente de qualquer di­ ferença de classe, os intitulados espí ritos livres ou os "livres pensadores" de tipo anarquista e socialista não se distinguem de nada, nem da massa nem da ideologia dominante: "Eles aspiram com todas as suas forças à universal felici­ dade do rebanho em pastagem verde, com segurança, ausência de perigos, conforto (Behagen), alívio da vida para todos" (JGB, 44). Estamos na presença de "escravos do gosto democrático", de "homens sem solidão". Bem diferentes são as coisas no lado oposto: "Como admirar que nós 'espíritos livres ' não sejamos exatamente os espíritos mais comunicati­ vos?" Se os primeiros, como todos aqueles que têm a ver com a massa, são "loquazes" e "ridiculamente superficiais'', os segundos se distinguem pela sua profundidade e impenetrabilidade. São "almas manifestas e ocultas, cujas in­ tenções últimas dificilmente poderiam ser divisadas, com proscênios e bastido­ res que nenhum pé conseguiria percorrer até o fim, escondidos sob o manto da luz" (JGB, 44). Da sociedade que declaram querer combater os intitulados espíritos livres herdam na realidade o essencial, ou seja, a visão filisteia da vida: "A própria dor é tomada por eles como algo que deve ser eliminado" (JGB, 44). O ideal de "au­ sência de dor" é que associa "socialistas e políticos de todos os partidos", unanimemente concordes em refutar uma perspectiva ao mesmo tempo mais realista e mais atraente: ··o máximo de desprazer possível, como preço pelo incremento de uma abundância de sutis prazeres e alegrias, raramente saborea­ dos até hoje" (FW, 12). É essa, porém, a perspectiva perseguida pelos autênticos espíritos livres, bem conscientes da fecundidade de "dureza, prepotência, escra­ vidão, perigos pelas ruas e no coração", de "tudo o que há no homem de mau, de tirânico, de animal de rapina e de serpente". São as condições para que "a planta 'homem"' cresça em altura e vigor e "a sua vontade de vida" possa "potenciar-

se até a absoluta vontade de potência". No seu desejo de paz e de conforto, os intitulados espíritos livres revelam-se medrosos, enquanto aqueles autênticos de­ vem estar "prontos para ousar tudo" (JGB, 44) , devem saber colocar-se na "bus­ ca de tudo o que a existência tem de estranho e problemático, de tudo o que até agora era proibido pela moral" (EH, Prólogo, 3). Em conclusão, ao romper com toda forma de conservadorismo, o novo "par­ tido" endossa a palavra de ordem do anticonformismo e da dessacralização da tradição religiosa e política vigente, mas, ao mesmo tempo, toma nitidamente distância de uma corrente já há algum tempo empenhada em agitar, com objeti­ vos bem diferentes, essa palavra de ordem. São os anos em que Büchner, presi­ dente da ·'Liga dos pensadores livres" (Freidenkerbund), se bate pela "seguridade estatal para a velhice e a invalidez", com um programa de reformas sociais avan­ çadas, embora seja levado adiante em oposição, segundo a opinião de Mehring e da social-democracia revolucionária, ao "movimento autônomo do proletariado".(,61 Compreende-se, então, a nítida contraposição entre a figura do Freidenker, poli­ ticamente subalterna ao democratismo e ao conformismo dominantes que ten­ dem a assumir poses aparentemente rebeldes no plano religioso, e a figura do autêntico espírito livre. Ao reconstruir mais tarde sua evolução, Nietzsche decla­ rará que desde a primeira Inatual ele sentira a necessidade de distinguir-se da corrente ideal e política dos "pensadores livres": No fundo, tinha posto em prática uma máxima de Stendhal, aquela em que se recomenda fazer a sua entrada na sociedade com um duelo. E como tinha escolhido bem o meu advers.:1rio! O primeiro livre pensador alemão!. .. De fato, através de todas essas coisas se manifestou então pela primeira vez uma espécie totalmente nova de livre pensador: até agora nada me é tão distante e estranho quanto toda a ralé europeia e americana dos "/ibres penseur.Ç'. Estou no mais profundo desacordo com eles, com estes incorrigíveis estúpidos e fanfarrões das "ideias modernas" do que com qualquer um dos seus adversá­ rios [ . . . ]. Eu sou o primeiro imoralista (EH, Considerações inatuais, 2).

O novo "partido", que surge das ruínas do conservadorismo e do liberalis­ mo e a partir da experiência da sua inanidade e definhamento, deve rasgar a bandeira da liberdade e imparcialidade de espírito do movimento revolucioná­ rio, ao qual pretende opor-se e liquidar. Exatamente em virtude dessa operação podem surgir pontos de contato entre os dois elementos da antítese. O novo "partido", ou seja, como é definido aqui, o "aristocratismo", tem em comum com o ''anarquismo" a estranheza ao "instinto" da mediocridade burguesa e 661

Mehring, 196 1 a, vol. XIII, pp. 13 3 e 13 7. 353

filisteia (AC, 5 7). Indo ainda além, Nietzsche declara: "Não podemos ser senão revolucionários" (Revolutioniire) (EH, Porque sou tão inteligente, 5). Tendo já aparecido nos_ apontamentos preparatórios da terceira Inatual (supra, cap. 6 § 9), a aspiração a rasgar do movimento socialista, junto com a bandeira do anticonformismo e do radicalismo teórico, também a da revolução, toma-se um traço essencial característico do novo partido.

2. "Nova nobreza " e "nova escravidão " Trata-se, nesse caso, de uma revolução bastante singular. Para evitar equí­ vocos, Nietzsche esclarece logo que os chamados espíritos livres odiosos a ele "são exatamente não livres e ridiculamente superficiais, sobretudo pela sua tendência a ver nas formas da velha sociedade até hoje existente a causa de toda humana miséria e fracasso" (Missrathen) (JGB, 44) . Impõe-se, ao con­ trário, a tomada de consciência do fato que é a natureza enquanto tal que condena a massa dos homens a uma condição servil e a uma vida de privações e impõe uma organização aristocrática. Não há dúvida, essa persuasão caracteriza Nietzsche durante toda a sua evo­ lução. Nem sequer o período "iluminista" representa um corte: já em Humano, demasiado humano transparece o empenho em pesquisar as condições da forma­ ção e consolidação de "uma aristocracia espiritual e fisica" (MA, 243). Mas agora o problema do domínio da "boa e sadia aristocracia" (JGB, 258) está no centro das preocupações, e a sua solução exige o repúdio das meias-medidas. Por isso, numa carta de 2 de dezembro de 1 8 87, Nietzsche se reconhece prontamente e com entusiasmo na definição, feita por Brandes, da sua filosofia como um "radicalismo aristocrático" (B, III , 5, p. 206). Adjetivo e substantivo são aqui intercambiáveis. O "radicalismo aristocrático" é um "aristocratismo" tão radicalmente comprometido com a luta contra "os ideais do rebanho" (XIII, 65 ) que não pode certamente satisfazer-se com a defesa da ordem existente, ela mesma toda perpassada pela visão do mundo mercantil e plebeia, que é preciso liquidar de uma vez para sempre. Em outras ocasiões, Nietzsche professa um "antidemocratismo" tão conseqüente que parece "horrível" aos oll10s dos contemporâneos (B, III, 3, p. 58). É constante a polêmica contra "esta época da plebe e dos camponeses" (B, III, 3, p. 65), contra o .. século democrático" (B, III, 3, p. 32) e a sua "liberdade de imprensa e de impru­ dência" (Pref3- und Frechheits-Freiheit) (B, III, 3, p. 62). A orientação ideal do novo "partido" é agora clara. Estamos na presença de um ''radicalismo aristocrático" defendido com tons rebeldes e até revoluci11ários e, às vezes, ap roximando-se do "anarquismo". Um aforismo posterior

da Gaia c1encia, que se distancia niti damente do l ib e ral i s mo e do conservadorismo, além de, é claro, do movimento democrático e socialista, lan­ ça luz sobre os conteúdos mais propriamente políticos: Alegramo-nos com todos aqueles que, como nós, amam o perigo, a guerra, a aventura, que não se deixam acomodar, capturar, conciliar e castrar, incluí­ mos a nós mesmos ent�e os conquistadores, meditamos sobre a necessidade de novas organizações, até de uma nova escravatura - porque todo fortale­ cimento e elevação do tipo "homem" está estreitamente ligado a um novo gênero de escravismo - não é verdade? (FW, 377).

Portanto, a rebeldia pretende pôr em discussão não mais a organização social existente, mas todo o ciclo histórico da revolta servil. Mas como atingir este objetivo? É o problema enfrentado por outro aforismo da Gaia ciência, que já começamos a examinar no capítulo anterior e que põe em discussão o compro­ misso social planejado por Bismarck. Mas, aqui, Nietzsche não se limita a criticar a política do chanceler: formula de modo explícito uma alternativa. De início, deparamo-nos com um tema amplamente conhecido, e já evidenciado no título ("Da falta de nobreza da forma", Vom Mangel der vornehmen Form) (FW, 40): Soldados e comandantes conservam sempre nas suas relações recíprocas uma atitude muito mais elevada do que a dos operários e dos empregadores. Por enquanto, pelo menos, toda civilização com bases militares se encontra acima de toda a intitulada civilização industrial: esta última, na sua configu­ ração atual, é em geral a mais vulgar forma de existência que houve até hoje.

Mas surge uma alternativa: É singular que a submissão a pessoas poderosas que incutem temor e até terror, a tiranos e comandantes do exército, há muito tempo não é sentida de maneira tão penosa quanto essa sujeição a pessoas desconhecidas e não interessantes, como são os magnatas da indústria: comumente, o operário vê no empregador apenas um cão astuto, que suga o sangue e explora toda a sua situação de necessidade (Noth) dos homens, e do qual lhe são total­ mente indiferentes o nome, a pessoa, os costumes e reputação. Provavel­ mente até hoje tenha faltado muito aos industriais e aos grandes empresári­ os comerciais todas aquelas formas e aqueles emblemas (Abzeichen) da raça superior, que são os únicos que tomam a pessoa interessante: se eles tives­ sem no olhar e nas atitudes a distinção (Vornehmheit) da nobreza de nasci­ mento, talvez não houvesse o socialismo de massa.

Portanto, não se derrota o socialismo com as refonnas sociais promovidas por Bismarck e menos ainda arvorando-se a apologetas do trabalho. Ao con­ trário, essa demagogia acentua "a famigerada vulgaridade dos industriais com mãos vermelhas gorduchas", liquidando definitivamente qualquer elemento de distinção e hierarquização também exterionnente visível e, portanto, solapando posterionnente o respeito e a obediência das massas: De fato, elas estão tlefinitivamente dispostas à escravidão de toda espécie, suposto que quem está acima delas mostre constantemente, através da no­ breza ( Vornehmheit) da forma, os títulos da sua superioridade e do seu destino inato ao comando (FW, 40).

Aqui está enunciado um programa político novo, que olha além da soci­ edade industrial, mas não mais para reencontrar o solo. Também não tem sentido alimentar ilusões excessivas acerca da aristocracia tradicional . É pre­ ciso que esta adquire vitalidade e energia novas . É necessária uma "fonna superior de aristocratismo"; é a ela que compete o "futuro" (XII, 463 ) . Mas , uma vez resolvido esse problema, é possível liquidar o socialismo e fazer com que as massas populares voltem séculos atrás e aceitem a "escravidão de toda espécie". O aristocratismo professado por Nietzsche não tem a tarefa de cha­ mar de volta à vida uma sociedade agrária ou dominada exclusivamente pela grande propriedade fundiária. Seria uma evasão sem sentido desejar um processo atrasado para a época da indústria e da grande indústria. Tra­ ta-se, ao contrário de fazer com que ela não seja mais dirigida por uma classe mercantil, marcada pela sua vulgaridade e sua incapacidade de se fazer respeitar pela massa dos operários, e sim por uma élite, uma aristo­ cracia em condições de conferir ao seu domínio uma nova legitimação. Longe de apelar para a comunhão ou semelhança com os dominados, se­ gundo o slogan caro a Guilherme 1 ("Sejamos todos trabalhadores"}, agora os dominadores subl inham o elemento de insuperabilidade e naturalidade da distância que os separa dos primeiros, como a querer constitu ir uma nova ·'nobreza de sangue". O problema central é exatamente o da constituição dessa classe. De res­ to, não é de modo algum irreversível o ciclo histórico da revolta servil. Antes, não faltam os sintomas animadores de uma inversão de tendência: "Uma clas­ se de escravos está se fonnando - façamos com que se fonne também uma nobreza" (IX, 483). Mas "como se organiza a nova nobreza (Ade!), enquanto classe que possui o poder?" (IX, 445). Um fragmento da primavera-outono de 1 8 8 1 procura dar uma resposta a esta pergunta:

A escravidão é visível por toda parte, embora ela não queira reconhecê-lo; devemos aspirar a estar por toda parte, a conhecer todas as suas relações, a defender do melhor modo todas as suas opiniões; só assim poderemos dominú-la e utiliz..1-la. O nosso ser ( Wesen) deve pennanecer escondido: como o dos jesuítas, os quais exercem uma ditadura na anarquia geral, mas intro­ duziram-se como instmmento e função. Qual é a nossa função, o nosso manto de escravos? .O ensino? - A escravidão não deve ser abolida, ela é necess<íria. Devemos apenas fazer com que nasçam sempre de novo aqueles para os quais os outros trabalham, a fim de que esta massa enonne de ener­ gias político-comerciais não seja consumida em vão (IX, 527).

Nem tudo é claro nessas formulações. Mas alguns pontos são imediata­ mente evidentes: 1) a necessidade de conservar a escravidão em proveito da nova nobreza; 2) ·possibilidades novas e animadoras que se abram para tal perspectiva, sob a condição de saber cavalgar o tigre, agitando palavras de ordem rebeldes e revolucionárias e sem hesitar, se for necessário, confundir-se com o próprio movimento subversivo, com os escravos e a revolta servil; 3) necessidade de agir não isoladamente, mas como força organizada, e organiza­ da de modo peculiar. Não há dúvida. Aqui Nietzsche parece falar como membro ou líder de um partido, e o modelo organizativo ao qual ele faz referência é significativamente a ordem dos jesuítas, no seu tempo celebrada pela cultura da Restauração como instmmento precioso da luta contra a subversão da maçonaria: a revolu­ ção - sentenciara Maistre - teria sido impossível sem a destmição prévia dos jesuítas".662 Nietzsche talvez pense ainda no papel desempenhado pela ordem no Paraguai e na capacidade demonstrada por ela nessa ocasião de impor a disciplina e o trabalho forçado. Uma coisa é certa: com o liberalismo e o conservadorismo, a ruptura se consumou não só no plano dos conteúdos políti­ cos, mas também no organizativo. Estamos diante da primeira teorização de um partido de luta, o qual não tem nada em comum com o partido burguês de opinião e quer estar à altura das mudanças que aparecem no horizonte.

3. Gesto aristocrático de distinção e apartheid social Se o ''livre pensador" de orientação socializante se une à causa comum de uma massa plebeia e informe da qual é parte integrante, o autêntico espírito livre, enquanto aristocrático, caracteriza-se, em primeiro lugar, pelo "pathos da 662

Maistre, 1 984 , tomo 8, p. 205.

distância". Típico de cada época forte", este pathos evidencia "o abismo entre homem e homem, entre categoria e categoria" (Stand) (GE, Incursões de um inatual, 3 7), evitando assim que "os homens de condição superior e de senti­ mento elevado" sofram uma contaminação com "tudo o que é ignóbil e de sentimento ignóbil, vulgar e plebeu" (GM, 1, 2). Já quando estudante universitário, ao descrever a aristocracia e identifi­ car-se com a sua causa, Nietzsche escrevera: "O nobre deve, sob todos os aspectos, manter-se longe da relação com a plebe" (a plebis commercio) (DTM, 1 5 ; p. 5 9-60) . É um tema agora acentuado com mais força do que nunca: "Todo homem eleito (auserlesener) tende instintivamente ao seu lar e à sua intimida­ de, onde é redimido (erlost) da multidão, dos muitos, do maior número, onde é possível esquecer a regra 'homem' enquanto sua exceção". Um "homem de gosto superior" deveria evitar "más companhias" e "toda companhia é má, salvo aquela com os próprios semelhantes" (JGB, 26). Ou, mais sinteticamen­ te, ·'é preciso ser muito superficial para não voltar para casa cheios de remor­ sos depois de ter estado com gente comum" (VIII, 3 65 ) . É uma questão de higiene: "de fato, para nós a solidão é uma virtude, enquanto inclinação e arre­ batamento pelo asseio, que imagina como no contato entre homem e homem 'em sociedade ' - deve resultar uma falta inevitável de limpeza" (JGB, 284). Nem por um instante o aristocrata, o membro da "casta superior", deve perder de vista o encurtamento da distância insuperável que o separa da ralé (GM, 1, 2). E não se trata apenas de uma distância espiritual. É absolutamente necessário que "os sãos fiquem separados dos doentes, preservados até da vista dos doentes, para não serem confundidos com os doentes ". E, sobretudo, "que os doentes não façam os sãos adoecerem" (GM, III, 1 4)! É bom evitar não só os plebeus, mas também os lugares freqüentados por eles: "Onde o povo come e bebe, até onde ele tributa a sua veneração, há comumente o fedor. Não se deve ir à igreja se se quer respirar ar puro". A proibição de comunicação parece não conhecer limites : "Os l ivros para todos são sempre l ivros malcheirosos : o cheiro da gente pequena fica grudado neles" (JGB, 3 0) A esta espécie de apartheid social, aqui recomendado, Zaratustra eleva um hino: .

Há uma vida que a canalha não alcança ! [. . . ] Porque esta é a nossa altura e a nossa pátria: habitamos numa altura íngreme demais aqui, para todos os impuros e a sua sede [. . . ]. Na verdade, não uma comida que também aos impuros seja permitido comer! [ . . . ] e como ventos vigorosos queremos viver acima deles, perto das águas, perto da neve, perto do sol: assim vivem os ventos vigorosos (Za, II, Da canalha; EH, Porque sou tão sábio, 8).

A ''gente comum", ou seja, a "gente pequena" é tão repugnante que sus­ cita nojo só pelo fato de querer pesquisá-la com o pensamento. Seria preciso "banir do próprio horizonte todos os graus inferiores da humanidade! Ou então não querer ouvi-los nem vê-los ! " Nesse sentido, o "sábio" é caracterizado pela "cegueira" e pela "surdez" (IX, 45 8). Então se poderia dizer que a filosofia autêntica "é vida voluntária entre os gelos e as alturas" (EH, Prólogo, 3). Certamente, por outro lado,. "o estudo do homem médio [ ... ] constitui um frag­ mento necessário da biografia de todo filósofo", mas se trata exatamente do "fragmento talvez mais desagradável, mais malcheiroso, mais rico em desilu­ sões" (JGB, 26). Sim, "o nojo pelo homem, pela 'canalha' " é um perigo, à medida que corre o risco de estimular a evasão do campo de luta, que, ao contrário, não deve ser abandonado; sem cair num culto abstrato e fraco da pureza, que seria sinônimo de deserção, afrontando mesmo a contaminação de algum modo implícita na luta, as naturezas superiores podem conseguir a "re­ denção do nojo", sob a condição de acentuar também interiormente a infinita distância que as separa da massa (EH, Porque sou tão sábio, 8). Além de se manifestar no plano espacial, o pathos da distância se manifesta também no plano temporal. Nesse último caso, quem produz a separação e o abis­ mo é o olllar voltado para o futuro, que se horroriza diante do espetáculo do presen­ te massificado: "Há homens que nascem póstumos" (EH, Porque escrevo livros tão bons, l ). É preciso nunca perder de vista o fato de que "os maiores aconteci­ mentos e pensamentos [ . ] são compreendidos muito mais tarde". E por isso, "Quantos séculos são necessários para um espírito ser compreendido?" (JGB, 285). A distância temporal pode ser instituída também com o olhar voltado para o passado. O mote de um aristocrático autêntico é: "O meu orgulho é: ' Eu tenho uma origem"' (IX, 642). E passando este mote para o plano pessoal, Nietzsche constrói para si uma genealogia que se afasta da Alemanha, do lugar que, como veremos (infra, cap. 1 7 § 1 ), está agora se configurando, a seus olhos, como o foco principal de infecção da massificação moderna: "Sempre me ensinaram a remontar a origem do meu sangue e do meu nome a uma família de nobres polacos, que se chamavam Nietzky" (IX, 68 1 ). Não se trata de uma curiosidade banal: "Com isto toco no problema da raça; eu sou um nobre polaco pur sang [ . . . ] . Mas como polaco sou também um enorme atavismo" (EH, Porque sou tão sábio, 3). Ao ser afirmado no plano espacial ou temporal e, neste último caso, com o olhar voltado para o futuro ou para o passado, o pathos da distância, e por isso da "inatualidade", é um traço característico do espírito livre e do aristocrata. É um tema desenvolvido em particular em Além do bem e do mal, a propósito do qual, mais tarde, Ecce Homo observa: ..

O livro é uma escola do gentilhomme, se o conceito for entendido no sentido mais espiritual e radical que jamais lhe foi dado [... ]. Todas as coisas que

fazem o orgulho do nosso tempo são sentidas como contraditórias com este tipo, quase como sinais de má educação (EH, A lém do bem e do mal, 2).

Para ulterior confirmação da sua distinção, os "homens excepcionais", ou seja, dotados de uma "natureza superior'', exprimem todo o seu desprezo pelo cálculo utilitário que consti!ui o horizonte exclusivo da humanidade comum: "A irracionalidade ou a racionalidade extravagante próprias da paixão é o que a pessoa vulgar despreza na nobre". O estranho ao círculo aristocrático, que "mantém sensatamente sob os olhos a vantagem própria", não consegue aper­ ceber-se de "como se pode colocar em jogo a saúde e a honra, por exemplo, por amor de uma paixão do conhecimento". Mais em geral, "todos os senti­ mentos nobres, magnânimos, aparecem à naturezas vulgares, afinal, como ina­ dequados e, por isso, antes de tudo, como não dignos de fé". Sim, eles "são desconfiados (argwohnisch) em relação ao homem nobre, como se este bus­ casse a sua vantagem por caminhos transversos" (FW, 3). O Nietzsche moralista tinha feito valer a "escola da suspeita" em relação aos "'sentimentos superiores" para os quais apela o movimento revolucionário que agita a bandeira da justiça social (supra, cap. 8 §§ 1 e 5). É preciso reco­ nhecer - como Aurora tinha sublinhado - que eles "estão misturados de ilusão e de absurdo" {M, 3 3 ) ; mas agora é apenas a natureza vulgar que difama como "totalmente fantástica e arbitrária" a motivação adotada pelo "homem nobre, magnânimo, pronto ao sacrificio" (FW, 3). O Nietzsche moralista e "iluminista" tinha oposto as luzes à fé cristã e socialista; mas agora o aristocrata, o qual "nos seus momentos melhores abre uma pausa na sua razão" e compreende que "o intelecto deve calar", é celebrado em contraposição ao plebeu ao qual tudo isso parece "defeito de ininteligibilidade e falta de praticidade" (FW,3). Nesse sentido podemos falar de formalismo de Nietzsche: a natureza su­ perior é por ele definida de modo também radicalmente diferente, o essencial é res istir ao abismo que a separa da humanidade comum. Mas se fizermos abs­ tração do período ou intervalo ''iluminista", não há dúvida de que quem define o homem plebeu e vulgar é o pensamento calculista, que ignora toda grandeza e é incapaz de qualquer profundidade, que visa a ausência do perigo, o sossego e o conforto e, portanto, a ''civilização".

4. Aristocracia, burguesia e intelectuais Não obstante a transfiguração que investe contra ela e inicialmente a toma irreconhecível, a figura do membro da ansiada nova nobreza acaba assu­ mindo concretude pol ítico-social . Para reconstruir as suas feições me baseio aqui sobretudo em algumas páginas de apontamentos de maio-julho de 1 8 85 (XI, 543-5), que se propõem.a responder à pergunta: Was ist vornehm? Quais são as características do indivíduo distinto e aristocrático? Em primeiro lugar, "a capacidade de estar no ócio, a absoluta convicção de que em qualquer caso um oficio, embora não desonre, de todo modo desnobrece" (XI, 543-4). Ou seja, dito em outros termos : "a nobreza é fecunda em grande estilo exatamente porque produziu costumes aristocráticos: o mais aristocrático de todos é o de conseguir suportar o tédio" (XI, 45 3). Se ainda houvesse dúvida, Nietzsche esclarece que está se referindo à "nobreza de nascimento" (XI, 543). Aliás, "a laboriosidade" (A rbeitsamkeit) é "o indício de uma espécie (Art) de homem não distinto" (unvornehm), mesmo que se trate de "uma espécie de homem apreciável e indispensável" (XI I, 4 8). Não deve haver dúvida: é preci­ so saber ''honrar altamente" a "diligência" (Fleij3) no sentido "burguês", mas a ela compete de qualquer modo um papel nitidamente subordinado (XI, 544). Isto é, mesmo reivindicado para si a hegemonia, a nobreza de sangue não pre­ tende excluir a burguesia capitalista, como está confirmado em particular por um fragmento da primavera de 1 8 88: Tornamo-nos pessoas respeitáveis porque somos pessoas respeitáveis (anstandig), ou seja, porque se nasceu capitalista dos bons instintos e de situação de abasta nça (Capita/is! guter lnstinkte und gedeihlicher Verhaltnisse) .. quando se nasce pobre, já por parte de pais que só tenham dissipado e não acumulado, se é então "incorrigível", ou seja, maduro para a penitenciária ou para o manicômio (XIII, 290). .

Como confirmação ulterior do caráter não exclusivista da nova nobreza, "capitalista" é aqui sinônimo de bem sucedido e de membro da classe superior. Todavia, o capitalista no sentido exato do termo parece ser por Nietzsche solici­ tado a depor o que ainda há de vulgar nas suas atividades, integrando-se melhor nos modos e na ideologia da aristocracia. É o que se segue de um aforismo da Gaia ciência dedicado ao tema ''comércio e nobreza". Certamente, "adquirir e vender são consideradas coisas tão comuns quanto à arte de ler e de escrever". No entanto, as coisas podem mudar. Não aconteceu o mesmo com a caça? Da atividade que visava à subsistência, ela transformou-se em "uma questão de ca­ pricho e de luxo", ''acabou tomando-se um privilégio dos poderosos e dos nobres

(der Machtigen und Vornehmen) perdendo com isto o caráter da cotidianidade e vulgaridade". O mesmo poderia acontecer também para o comércio. "Só então o comércio se tomaria um sinal de distinção (Vornehmheit) e os nobres, talvez, se dedicassem a ele de boa vontade, como fizeram até hoje com a guerra e a políti­ ca" . Ao contrário da política, vulgarizada pela presença sempre mais maciça dos plebeus, "hoje já deixou de ser o oficio do aristocrata"; talvez um dia seja conside­ rada "tão vulgar que seja c�locada, junto com todas as publicações jornalísticas e partidárias, sob a manchete 'prostituição do espírito"' (FW, 3 1 ) . Para a aristocracia trata-se, por um lado, de tomar nota do caráter agora plebeu do Parlamento e de um mundo político marcado pelo sufrágio universal e pelo advento das massas, e, por outro lado, de reconhecer as potencialidades aristocráticas inerentes ao comércio. Depois de muitas hesitações, Nietzsche chamará também o grande capital empregado no comércio do dinheiro a fazer parte do bloco dominante, com a condição de reconhecer a hegemonia política e cultural da nobreza, tomando própria a palavra de ordem otium et bel/um, que é o mote de toda aristocracia autêntica. Nesta base é desejável, como veremos, uma fusão não só social, mas também matrimonial entre finanças judaicas e nobreza tradicional . É fundamentalmente a situação que, segundo a análise de historiadores autorizados, caracteriza países como a Alemanha, a Grã-B retanha e a Itália até a primeira guerra mundial e as revoluções e às convulsões resultantes dela.663 Essa situação de permanente vitalidade ou de sobrevivência, em roupa nova, do Antigo Regime é ameaçada por uma mobili­ dade social e por uma "massificação" estimuladas, quer pela rápida expansão da economia capitalista, quer pelo crescimento sempre mais impetuoso do mo­ vimento operário e socialista. E é com o olhar voltado para os desafios e as ameaças que se mostram no horizonte que Nietzsche sente a necessidade de reforçar a transmissão, de geração em geração, da dicotomia entre bem-suce­ didos e mal-sucedidos, ou seja, da dicotomia entre "capitalistas dos bons instin­ tos", por um lado, e dissipadores condenados à marginalização, por outro. Certamente, enquanto legitima o bloco social dominante no II Reich, Nietzsche contesta violentamente a sua ideologia "cristã" e o apego às institui­ ções parlamentares. Mas, no que respeita ao primeiro ponto, é interessante notar um último particular, que completa a descrição do bloco social chamado ao domínio. Ser diferente ou aristocrático significa também "gostar dos prínci­ pes e dos padres, pelo fato de que eles têm viva, pelo menos simbolicamente, e no conjunto também efetivamente, até na avaliação do passado, a crença numa 663

Mayer, 1982, passi111 e, pelo que respeita particulam1ente à Inglaterra, Cannadine, 199 1 , pp. 22-4.

diversidade dos valores humanos, em suma, na hierarquia" (XI, 544). Portanto, na medida em que aceitar ratificá-lo no plano religioso, também o clero ou o alto clero pode ser cooptado no bloco dominante. Os intelectuais, porém, estão excluídos. Nietzsche sublinha que a "nobreza de nascimento" celebrada por ele não tem nada a ver com a chamada aristocra­ cia do espírito . ..Aristocracia do espírito" - observa ele - "é um mote favorito dos judeus", e é perigoso à media gue corre o risco de atribuir uma posição de pree­ minência aos ··artistas", aos ·'poetas", a "qualquer um que seja mestre em alguma coisa", ou seja, em última análise, os intelectuais. Quando não estejam propensos à '·demagogia" e à subversão, eles merecem proteção. "Mas :.... acrescenta Nietzsche, falando como membro ou porta-voz do novo 'partido' aristocrático nós, como seres que somos naturalmente superiores àqueles, àqueles que sim­ plesmente sabem fazer alguma coisa, aos homens meramente 'produtivos' , não nos confündimos com eles" (XI, 543-4). Já um fragmento juvenil tinha sublinhado que "existe uma aristocracia ética que ninguém pode alcançar se não nasceu nela e para ela" (VII, 809). Agora se fala de modo mais explícito de "nobreza de nascimento". De qualquer modo, pelo menos num ponto Bismarck merece apre­ ço: ele é "desconfiado em relação aos intelectuais" (XI, 256). Longe de identificar-se com os intelectuais, Nietzsche pretende ser o ideólogo do bloco social por ele desejado e transfigurado: "Pegar na mão um livro meu me parece uma das mais raras distinções que alguém pode conceder­ se [ . . . ] . É uma distinção sem igual poder entrar neste mundo nobre e delicado" (EH, Porque escrevo livros tão bons, l e 3). Um mundo exclusivo: Genealogia da moral "tem a sorte de ser acessível apenas aos espíritos de sentimento mais elevado e maximamente rigorosos" (WA, Epílogo, nota). É bastante pequeno o círculo dos leitores também porque é chamado não só para adquirir um saber teórico, mas também a desenvolver uma ação de importância decisiva: "Os supremos eleitos se dedicam à maior de todas as tarefas, a da transvaloração de todos os valores" (EH, O nascimento da tragédia, 4).

5. Do elitismo cultural ao cesarismo Vimos a condenação sem apelação da "constituição representativa" contra a qual Nietzsche se lança. Mas pelo que ela pode ser substituída? Quanto mais intolerável é o presente, tanto mais apaixonada se toma a invocação do novo: Que beneficio, que alívio de uma opressão que está se tornando intolerável, para vergonha disso tudo, é para esses europeus animais de rebanho o

aparecimento de um homem que comanda de maneira absoluta; o último grande testemunho disso fornece o efeito suscitado pela entrada de Napoleão cm cena - a história da influência napoleónica é como se a história da mais alta espécie alegrasse o século inteiro nos seus homens e nos seus momen­ tos mais preciosos (JGB, 1 99).

Antes posto sob a responsabilidade do socialismo, acusado de promover "o Estado ditatorial cesáreo deste século" (supra, cap. 9 § 2), agora o cesarismo é explicitamente afirmado e celebrado. No entanto, seria superficial pensar que se trata de uma inversão de posições. O "Estado ditatorial cesáreo" considera­ do cm Humano. demas iado humano é o Estado ao qual aspirariam jacobinos e socialistas, empenhados em realizar a felicidade de todos: o cesarismo poste­ riormente invocado é chamado a prosseguir e intensificar, com métodos dife­ rentes, a luta contra a revolução e o socialismo. Confirmando ainda uma vez a atenção e a agudeza com que segue o desen­ rolar da situação política alemã e internacional, Nietzsche constata o potencial surgimento, já dentro da ordem existente, de um regime político de tipo novo. De instmmento de controle e limitação do poder, os organismos representativos ten­ dem a transformar-se em algo radicalmente diferente: "Os parlamentos podem ser extremamente úteis para um homem de Estado forte e flexível"; eles pare­ cem um elemento de resistência, mas na realidade são algo sobre o que eles "'podem apoiar-se" e eventualmente "descarregar muita responsabilidade" (XI, 456). É um fenômeno que se manifesta com particular nitidez na Alemanha: "'Como Frederico o Grande continuava a fazer o jogo do .feminisme da regência dos Estados vizinhos, assim faz Bismarck com respeito ao 'parlamentarismo ' ; trata-se de um novo meio para fazer algo que se quer" (XI, 45 1 . São os anos cm que Marx e Engels falam de bonapartismo para caracte­ rizar não só o regime de Napoleão III, mas também a realidade política do II Reich, dominado pela figura do chanceler de ferro. E a análise de Nietzsche não é diferente, mesmo se nesse caso seja claramente perceptível o tom com­ placente com o qual é descrito o fenômeno. É o próprio Luis Napoleão, ainda antes de se tomar Napoleão III, que deseja a chegada de um regime no qual as ''massas" e os ""povos" possam ser levados e guiados pela "influência de um grande gênio [que], semelhante nisso à influência da Divindade, é um fluido que se estende como a eletricidade; exalta as imaginações, faz palpitarem os cora­ ções e arrebata porque toca a alma antes de persuadir". Esse carisma irresistível é um elemento de estabilização, serve ''não mais para perturbar a sociedade, mas, ao contrário, para reordená-la e reorganizá-la": todos estão como que subjugados por uma personalidade e um fascínio superior. No final do século XIX, depois de ter afi rmado que a civilização é "obra de uma pequena minoria 364

de espíritos superiores, comparáveis à pqnta de uma pirâmide", enquanto a base é constituída pela multidão nas garras do primitivismo, eis que Le Bon identifica neste fato não mais um inconveniente, mas o pressuposto da solução do problema: "O tipo de herói caro às multidões terá sempre a estrutura de um César. O seu penacho seduz. A sua autoridade se faz respeitar e o seu sabre suscita medo". Até um expoente de primeiro plano da tradição liberal como o inglês Bagehot invoca um líder carismático que disponha de "um poder excep­ cional nas relações humanas" baseado na "fé", no "entusiasmo" e na "confian­ ça", que sabe transmitir mesmo "apelando para algum vago sonho de glória"; a massa dos homens acaba assim reconhecendo-se na "ação de uma única von­ tade" e no "'comando de um único homem". 664 Bagehot está presente n a biblioteca e nas leituras de Nietzsche, e bem conhecido dele é também Carlyle, o qual, por sua vez, lamenta que as tendên­ cias democráticas ou niveladoras ponham em discussão toda lordship or leadership, ou seja, todo Dux or Duke . Depois do horror suscitado pela revo­ lução de 1 848, o escritor inglês procura abrigo das convulsões subversivas não mais na velha sociedade dos aristocratas, "lords" e notáveis, mas num novo regime guiado por um "líder" ou por um "duce"; é assim evocada a figura de um ·'Verdadeiro Capitão" (Real Captain), chamado a tomar finalmente o lugar daquele ·'Fantasma de Capitão" que é o resultado da infeliz onda de "democra­ cia universal".665 Em confirmação de seu radicalismo aristocrático e da moral dos senhores por ele teorizada, Nietzsche faz intervir a "etimologia" (os "pro­ blemas das origens" infelizmente ocultados e removidos pelo "preconceito de­ mocrático") e demonstra que a dicotomia bom/mau originalmente contrapõe o aristocrata bem nascido e guerreiro ao plebeu vulgar e fraco (GM, 1, 4-5). De modo não diferente, Carlyle sente a necessidade de esclarecer nestes termos a sua tomada de posição contra a democracia e a favor de uma "heroiarquia" ou "hierarquia", em favor de um poder de algum modo "sagrado" contra o desgoverno da multidão profunda. "Duque significa dux, condutor; king, rei, vem de kônning, kanning, homem que sabe (knows) ou pode" (can).666 Mas enquanto nos países de tradição liberal mais consolidada e na própria Alemanha as tendências bonapartistas não perturbam o quadro parlamentar, Nietzsche olha agora claramente além dele. Sim, Bismarck pode dispor bastan­ te livremente das instituições representativas, mas acima dele continua a pesar a mácula do sufrágio universal; junto com o chanceler de ferro, eles são sem664 Sobre isto cf. Losurdo, 1 993, cap. 2, § 2, 3 e 6. 665 Carlylc, l 983 , pp. l 2-3 e 3 1. 666 Carlyle, 1990, p. 26.

pre expressão da "época mesquinha da miopia plebeia" (XI, 353). E é exata­ mente a esta época que se trata de pôr fim de uma vez para sempre: No conjunto desejaria que a idiotice numérica e a superstição da maioria não se estabeleçam na Alemanha como entre as raças latinas; e que no fim se inventasse ainda alguma coisa in politicis! Há pouco sentido e muito perigo em deixar que o costume, mesmo tão breve e erradicável, do sufrágio univer­ sal crie raízes mais pro fundas, dado que também a sua introdução foi apenas uma medida adotada no momento por necessidade (XI, 456-7).

De novo, o robusto senso histórico de Nietzsche encontra confirmação. Na Alemanha, as instituições representativas datam só da "nova era" de Bismarck, e ainda mais recente é a introdução do sufrágio, e ambos são o resultado não mais de agudas lutas sociais, mas de uma manobra tática que visa estender o consenso necessário para promover desde o alto a unificação do país. Agora, o quadro político mudou profundamente, e a nova situação que vai se delineando poderia tornar obsoleto ou supérfluo o velho expediente. É preciso de qualquer modo saber inventar algo novo. O modelo a seguir está claro: "Os grandes homens como César e Napoleão são espécies vivas ! Qual­ quer outro governo é imitação" (nachgemacht) (X, 282). É um ponto de vista rebatido até o fim e nos mais diversos contextos. "Se procuro a fórmula mais alta para defini r Shakespeare, encontro sempre a mesma, ou seja, que conce­ beu o tipo de César" {EH, Porque sou tão inteligente, 4) . O que favorece a nova perspectiva poderia ser exatamente a radicalização cm ato do movimento socialista. Os atentados aos quais recorrem os anarquis­ tas e o movimento revolucionário na Alemanha e na Rússia apresentam tam­ bém um aspecto positivo: fazem vacilar o terreno no qual se apóia o filisteísmo habitual, aplanam a estrada para novas experiências, abrem novas possibilida­ des : sim, põem em crise o sistema existente, mas não necessariamente na di reção auspiciada pelos promotores e autores da nova onda de violência: Princípio: não as descargas libertadoras, por mais que pudessem ser violen­ tas, fariam pior mal para a humanidade, mas a sua inibição. Devemos eliminar o mau humor, os sentimentos doentios do mal-estar; mas, para fazer isto, é preciso a coragem de julgar de modo diferente e mais favorável aquilo que nas descargas libertadores assusta. Os atentados são preferíveis às hostili­ dades subterrâneas.

Não se trata mais, como nos anos do embate com os moralistas, de suspei­ tar dos sentimentos morais superiores dos socialistas, mas de aproveitar a oca­ sião da violência ddes para liquidar a visão moral do mundo e derrubar os obstá-

culos que impedem de dar uma resposta à altura da situação. É significativa a referência aos atentados contra Guilherme 1. Se a ideologia dominante grita es­ candalosamente e ferve de indignação por causa da ameaça que eles represen­ tam ao sistema existente, Nietzsche identifica nas convulsões que se mostram no horizonte a ocasião de um radical ajuste de contas com a modernidade: "Entra­ mos na época da anarquia: mas esta é também a época dos indivíduos mais espirituais e livres . Uma enonne energia espiritual está se perdendo"; os obstá­ culos interpostos "pelos costumes, pela moralidade, etc." são derrubados pelo movimento revolucionário que, com a sua violência, pode objetivamente favore­ cer o advento da "época do gênio", embora por ele odiada (IX, 452). Neste sentido, os próprios protagonistas dos atentados terroristas desem­ penham uma fünção muito mais positiva do que os pequeno-burgueses apega­ dos à tranqüilidade e à ordem: "Nos países dos homens amansados há sempre um bom número de atrasados e de não domados : no momento eles se reúnem mais no campo dos socialistas do que em qualquer outro lugar". Se chegassem a tomar o poder, imporiam uma "espantosa disciplina" e atariam os outros e a si mesmos a "uma corrente de ferro" (M, 1 84) . Mas isto seria apenas o início de um processo com resultados bem diferentes: a Revolução Francesa não aca­ bou produzindo Napoleão I? E as agitações de fevereiro a junho de 1 848 não desembocaram no bonapartismo de Napoleão III? As "grandiosas agitações" que se prenunciam abrem "boas perspectivas": "Espero que todos os proble­ mas fündamentais venham à luz e que se vá bem além das tolices do Novo Testamento" e da incapacidade de agir, que deriva da incerteza ou atitude estetizante, de "Hamlet e Fausto, os dois 'homens mais modernos "' (XI, 1 55). Até a intervenção dos "estratos inferiores do povo" pode produzir resulta­ dos positivos. Sempre de novo se verificam circunstâncias "nas quais a massa está pronta a pôr em risco a própria vida, o próprio patrimônio, a própria cons­ ciência, a própria virtude", a fim de poder dispor ''de outras nações, como nação vitoriosa, tirânica, que age ao seu alvedrio". Mais uma vez, é transparen­ te a referência a Napoleão e ao seu exemplo de "grande política" (M, 1 89). O resultado dessas convulsões não é claro, mas parecem de qualquer modo anun­ ciar o fim da sociedade mercantil e do filisteísmo ligado a ela: "O socialismo é um fermento que anuncia um número enorme de experiências com o Estado, portanto também do fim do Estado e dos novos germes . O amadurecimento dos Estados atuais acontece mais rapidamente; a violência militar fica sempre maior" (IX, 527). Isso torna ainda mais concreta a perspectiva cesarística: "Quando os 'costumes decaem ' " emerge a figura nova do "indivíduo", não mais ligado à tradição e às normas costumeiras : "o amor pelo ego apenas descoberto é

agora muito mais potente que o amor pela velha gasta 'pátria' cantada com todas as notas" (FW, 23). Agora não há mais espaço para o tipo de conten­ ção da revolução desejada por Burke e pelo tradicionalismo em geral . É uma situação cheia de dificuldades, mas também de promessas : junto com os indivíduos, surgem "algumas pessoas que são chamadas de tiranos" e que "são os precursores e, por assim dizer, as primícias precoces dos indi­ víduos" (FW, 23 ). Que .fique claro: não é que todos se tenham tornado indivíduos ; até agora estão bem presentes e até constituem a maioria "os seus opos itores, os homens do rebanho". São a m assa de manobra e o material bruto dos indivíduos ti ranos , empenhados numa luta pelo poder: "Quando a decadência chegou ao seu apogeu e assim a batalha dos ti ranos de todo tipo, então vem sempre o César, o ti rano resolutivo, que põe fim ao cansaço da luta pela hegemonia" (FW, 23).

6. Movimento feminista e "embrutecimento universal " O �juste de contas com a democracia é também o acerto de contas com o movimento de emancipação feminina. Nietzsche está bem consciente de que ele é parte do processo de democratização: "Por toda parte que o espírito da indústria debelou o espírito militar e aristocrático, hoje a mulher aspira à auto­ nomia econômica e jurídica de um empregado" (JGB, 23 9) . Exatamente na Alemanha, onde atua o mais forte partido socialista, o movimento de emancipa­ ção da mulher encontra condições particularmente favoráveis. Aos olhos de Nietzsche, é a confirmação de que ele constitui "os piores progressos do embrntecimento universal" (JGB, 232). Na cultura do tempo está difundida a comparação entre a mulher, de um lado, e o proletário-escravo, do outro. Podemos ler em Engels a tese segundo a qual ''a moderna família nuclear está fundada sobre a escravidão doméstica, aberta ou camuflada, da mulher"; em todo caso, "o macho é o burguês, enquanto a mulher representa o proletariado".(,67 Nietzsche polemiza contra esse "andar por toda parte cm busca, com malcriação e despeito, daquelas formas de escra­ vidão e de servidão que a posição da mulher no sistema social prolongado até hoje teve e ainda tem em si" (JGB, 239). Sim, a condição da mulher faz pensar na condição dos "miseráveis das classes inferiores", dos "escravos do trabalho (A rheitssklaven) ou encarcerados" (GM, III, 1 8); mas sabemos que a escravi­ dão é a condição ineliminável da civilização e do seu desenvolvimento. 667 Marx-Engels,

1 955, vol. XXI , p. 75.

Quando se rebela e se toma feminista, a mulher alimenta os sentimentos típicos do escravo rebelde: .. Emancipação da mulher" - este é o ódio instintivo da mulher mal sucedida, ou seja, daquela que não pode procriar, para com a mulher bem sucedida [. . . ] . N o fundo, a s mulheres emancipadas são a s anarquistas n o reino do "Eterno Feminino". as infelizes, o seu instinto mais profundo é a vingança (EH, Por­ que escrevo livros !tio bons, 5).

As características atribuídas à mulher refletem a condição do tempo, que Nietzsche, porém, adapta e transfigura sub specie aeternitatis: "O que é mais raro que uma mulher que saiba de fato o que é a ciência? As melhores nutrem um desprezo secreto com respeito a elas"; por isso "um perigo não pequeno surge quanto lhes é confiada a política e certos setores da ciência (por exemplo, a história)" (MA, 4 1 6). Por outro lado: "O que importa a verdade para a mulher? Desde que o mundo é mundo, nada é mais estranho, repugnante e hostil à mulher do que a verdade" (JGB, 232). Bem considerado, a mulher não é sequer propri­ amente "um ser pensante" (JGB, 234). Como a pesquisa intelectual autônoma, assim também a vontade forte e autônoma é estranha à mulher: A paixão da mulher, na sua absoluta renúncia aos próprios direitos, tem exatamente como pressuposto que do outro lado não existe tal pathos, tal vontade de renúncia [ ... ]; a mulher quer ser tomada, conquistada como uma posse, quer resolver-se no conceito de "posse", de "possuída"; quer, por conseguinte aquele que a toma, sem ele mesmo dar-se ou doar-se, mas ao contrário se faça em "si" precisamente mais rico - através de um aumento de força, de felicidade, de fé, que lhe dá a mulher dando a si mesma.

Trata-se, segundo Nietzsche, de um "contraste natural", absolutamente insuperável (FW, 363); sim, "vontade é a natureza do homem, docilidade a da mulher" (FW, 68). O processo de adaptação das relações sociais historicamen­ te determinadas favorece o recurso a estereótipos. A mulher é superficial e vaidosa: basta olhá-la ·'diante de uma vitrina de uma loja de moda" (IX, 442); "a sua grande arte é a mentira, o máximo dos seus afazeres é a aparência e a beleza" (JGB, 232). E ainda: "Com as mulheres, nunca se toca no fundo, por­ que não há: é tudo" (EH, O caso Wagner, 3); quando se dedicam à literatura, é só para chamar a atenção (GD, Máximas e dardos, 20). Está claro que a desejada recuperação aristocrática deve reforçar a subaltemidade também da mulher. E também nesse caso, como para o servo ou o escravo, pode ser útil o papel da religião: "uma mulher sem devoção", sem religião, "para um homem profundo e ateu é algo totalmente repelente e ridícu-

lo" (JGB, 239) . Contra o movimento de emancipação feminina é invocada até a autoridade da Igreja: "Foi previdência viril e delicadeza para com a mulher o decreto da Igreja: mulier taceat in ecclesia". Em época de secularização, esta proibição deve ser relida à maneira de Napoleão: "mulier taceat in politicis". Ou melhor, ao movimento de emancipação feminina que avança se pode e se deve opor a máxima: "mulier taceat de muliere" (JGB, 232). Enfim, não há dúvida sobre o lugar que homem e mulher ocupam na hie­ rarquia social e dos valores . A condenação de uma religião fraca e plebeia como o cristianismo é ao mesmo tempo a condenação das "religiões da massa inferior das mulheres, dos escravos, das classes não aristocráticas" (XIII, 1 1 6). Ao denunciar a falta de "toda nobreza de atitudes e de desejos" em certas atitudes religiosas, por exemplo, de Agostinho, Nietzsche fala a propósito de "uma ternura e avidez toda feminina, que urge vergonhosa e inconsciente con­ tra uma unio mystica et physica" JGB, 50). Na vertente oposta, quando cele­ bra as raras "mulheres de alma nobre, heroica, régia, prontamente capazes de respostas, decisões e sacrificios grandiosos, prontamente capazes de dominar os homens", Nietzsche se apressa em acrescentar que nelas "o melhor da masculinidade se tomou, além do sexo, um ideal vivo e verdadeiro" (FW, 70). A decadência do mundo moderno encontra a sua expressão acabada na sua "dulcificação e falsidade moral" e isto no seu "feminismo profundamente en­ raizado" (GM, III, 1 9), no fato de que "a Europa é no final das contas uma mulher" (XI, 5 1 3). A superação desta condição é sinônimo de "virilização da Europa", mediante a subjutação da figura da "mulher" (além da do "mercador" e do "filisteu") (FW, 3 62). Trata-se de evitar o perigo do "marasmusfemininus" que ameaça a Europa e de recuperar as "virtudes viris e guerreiras" (XI, 5 87).

7. Uma "nova idade guerreira " Para compreender os valores dos quais a nova aristocracia é portadora, convém fazer referência ainda uma vez à antiguidade clássica: Um homem de boa origem escondia seu trabalho quando a necessidade o obrigava a trabalhar. O escravo trabalhava oprimido pelo sentimento de fazer algo desprezível [... ] "A nobrez.a e a honra estão apenas no otium e no bel/um'', assim soava a voz do antigo preconceito (FW, 329).

Vimos Nietzsche delinear a perspectiva de um processo de absorção na nobreza tradicional da classe dos comerciantes. Esta, porém, se toma "repe­ lente" na medida em que permanece teimosamente agarrada ao pensamento

calculista e aos valores e estilos de vida próprios da modernidade (IX, 340) . É desmedido o desprezo de Nietzsche pelo "espírito do comércio enquanto espí­ rito da época" (IX,545). Nada é mais prejudicial para o destino da civilização de uma sociedade toda sob o lema do conforto, da paz, da ausência de tensões e de perigos. Por isso, "o maior progresso das massas foi até hoje a guerra religiosa: ela, de fato, é uma prova de que a massa começou a tratar com veneração as ideias" (FW, 144) . Sim, "quando por uma diferença de opiniões se derrama sangue e se imola, a civilização está num nível alto: as opiniões se tomaram bens preciosos" (IX, 556). É indício de mesquinhez gritar escandalo­ samente em nome da tolerância: "Afinal, o que é a tolerância! É o reconheci­ mento dos ideais do outro! Quem promove com grande profundidade e intensi­ dade o seu próprio ideal não pode crer em outro ideal, não pode não julgá-lo negativamente - como ideais de seres inferiores" (IX, 476-7). Um abismo parece separar agora Nietzsche do seu "iluminismo" prece­ dente . Com efeito, parece reler A. W. Schlegel, segundo o qual as "guerras religiosas" são as que "principalmente honram a humanidade", pois constituem a "demonstração mais forte do poder das ideias"; por sua vez, "a tolerância da Europa moderna não passa de indiferença camuflada e celebração satisfeita da cnervação?".668 O fato é que, para Nietzsche, "uma condição de barbárie e de indivíduos em luta é, para a arte, mais favorável que a segurança excessiva" (IX, 33 7). Por outro lado, já no período "iluminista'', bem longe de desaparecer, o tema da celeb ração da guerra começa a assumir tons particularmente estriden­ tes e inquietantes: Uma humanidade superculta e, portanto, necessariamente fraca, como é a dos europeus de hoje, precisa não só de guerra, mas até das guerras maiores e mais terríveis - ou seja, de quedas temporárias na barbárie - para não perder, nos meios necessários para a civilização, a sua civilização e a sua própria existência.

A guerra é chamada a conferir a povos que enfraquecem aquela rude energia do campo de batalha, aquele profundo ódio impessoal, aquele sangue frio homicida com boa consciência, aquele ardor geral na destruição organizada do inimigo, aquela soberba indife­ rença para com as grandes perdas, para com a existência própria e a das pesso­ as queridas e aquela sombria, subterrânea sacudida da alma (MA, 477).

668 Sobre isto cf.

Losurdo, 1 997 a, cap. IX, 2. 371

Encontramos , portanto, uma novidade quando lemos na Gaia ciência uma profissão de "fé" numa regeneração masculina da Europa mediante a guerra (FW, 3 26). "'O segredo para colher a fecundidade maior e o prazer maior da existência se exprime assim: viver perigosamente ! Construí a vossa cidade sob o Vesúvio, enviai vossas naves a mares inexplorados !" (FW, 283). É um tema que volta também nos escritos posteriores: "Se se renuncia à guerra, renuncia­ se à vida grandiosa" e se permanece inextricavelmente prisioneiro da medio­ cridade e da banalidade do moderno (G D, Moral como contranatureza, 3) . O tema novo que se apresenta, depois da conclusão da fase "iluminista", e a espera confiante de uma nova época de guerras, é a persuasão que agora leva ao fim o período de paz e de ideal da paz perpétua: "Saúdo todos os sinais de uma idade viril e guerreira que está no seu começo e que honrará, antes de tudo, a força do valente". São anunciadas "guerras por amor às ideias e suas conseqüências" (FW, 283). Não se pode fechar os olhos diante da "nova idade gtÍerreira, na qual nós europeus entramos claramente" (JGB, 209). A quais conflitos se faz referência aqui? A pergunta se impõe porque, tendojá aparecido nos escritos "iluministas", a condenação do chauvinismo alemão e, mais em geral, intraeuropeu, é agora acentuada com força. Dura, e fascinante, é a acusação feita contra a "pequena política", que se alimenta não só com os "ódios mortais" entre os países europeus, mas também com o "naci­ onalismo e ódio de raça" (Rassenhass) e que particularmente na Alemanha cultiva uma ·'mentirosa autoadmiração e libido racial". Felizmente, "não faltam entre os europeus de hoj e aqueles que têm o direito de chamar-se, num sentido eminente e honorífico, sem pátria". E A gaia ciência declara que é a eles que quer dirigir-se em primeiro lugar: "Nós somos, numa palavra - e deve ser esta a nossa palavra de honra - bons europeus, os herdeiros da Europa, os ricos demais, mas também nas obrigações desmedidamente ricas herdeiros de um mi lenar espírito europeu" (FW, 377). Portanto, quais são as guerras que surgem no horizonte? São os anos em que a expansão colonial do Ocidente se desenvolve mais impetuosa que nunca. Também na Alemanha se fazem sentir com força sempre maior as vozes que exigem a participação do país na competição que se realiza entre as grandes p otênc ias . Destes humores é expressão a fundação do Deu tsche r Kolonialverein: estamos no ano de 1 8 82, o ano que vê a ocupação do Egito pela Inglaterra e a publicação da Gaia ciência. Já apresentada na primeira edição, a "idade viril e guerreira" adquire contornos mais precisos na segunda edição: aqui Nietzsche formula o desejo de que, aproveitando a lição de Napoleão, "uma Europa unida" se tome "senhora da terra" (FW, 362).

372

É indubitável a simpatia com que o filósofo olha, já no período iluminista, para a marcha expansionista do Ocidente. Entre os seus resultados positivos deve ser incluído o fim do medo dos "bárbaros" e dos "animais ferozes" (su­ pra, cap . 9 § 6). Mais positivamente ainda deve ser saudado o processo em curso, pelo fato de ele poder servir para neutralizar o conflito social na metró­ pole capitalista. Para este fim Nietzsche faz um apelo ao operário alemão e europeu em geral. Mais do que-se tomar "escravo do Estado", como resultado da extensão da intervenção do Estado na economia, ou, pior, "escravos de um partido subversivo", deixando-se enganar pela propaganda socialista, convém percorrer outro caminho: É melhor emigrar para regiões selvagens e intactas do mundo e procurar tor­ nar-se senhor, e sobretudo senhor de mim mesmo: mudar de lugar enquanto continuar a haver algum sinal de escravidão; não abandonar o cantinho da aventura e cfa guerra, e, para os casos piores, estar pronto para a morte, contanto que não seja necessário suportar mais essa indecente condição servil, contanto que deixe de ser amargo, venenoso e conspirador (M, 206).

A emigração aqui recomendada é de caráter guerreiro, é a expansão co­ lonial naquele período reivindicada na Alemanha por crescentes setores da opi­ nião pública. Em 1 879, dois anos antes da publicação de Aurora, tinham se levantado vozes para recomendar a conquista de territórios além-mar como o instrnmento privilegiado para erradicar na pátria "as plantas venenosas da sub­ versão socialista". Além do mais, talvez se tivessem criado além-mar "nações alemãs de senhores" (deutsche Herrennationen).669 É o "sinal de escravi­ dão" que Nietzsche diz que pisca. Graças a essas "entusiásticas expedições de colonizadores" - prossegue Aurora - a Europa deixará de ser "superpovoada" e '·cmbolorada" pela presença de "operários" que estão "descontentes, irrita­ dos e ávidos de prazer". Em conclusão: "aquilo que dentro do país natal come­ çava a degenerar em perigoso descontentamento e em tendência criminosa, adquirirá fora dali uma natureza selvagem e bela e tomará o nome de heroísmo" (M, 206). A uma conclusão não diferente tinha chegado um autor anteriormen­ te citado, que à colonização tinha atribuído o mérito de promover "a exportação da massa dos materiais explosivos revolucionários" e de pôr um fim à "fermen­ tação socialista nas cabeças das nossas [ . . . ] massas sem propriedade".670 No entanto, as angústias se entrelaçam com as esperanças. Um acrésci­ mo depois cancelado ao aforismo 4 77 de Humano, demasiado humano, que 669 l n Wehler, 1985, pp. 143-4. 671l ln Wehler, 1 985, p. 1 44. 373

vimos empenhado na celebração das virtudes purificadoras da guerra, fazia referência às "guerras [ . . . ] socialistas", guerras "terríveis", as quais era neces­ sário enfrentar com energia e isenção de ânimo: "Para não morrer de fraqueza, é preciso tomar-se bárbaros" (XIV, 148). Também nesta sua análise da situa­ ção política, Nietzsche não está isolado. Intervindo no ano depois de Humano, demasiado humano, o jornalista já citado observa: "Vivemos debaixo de um vulcão no sentido mais verdadeiro do termo". Assiste-se a uma progressiva piora das tensões sociais e poderia acontecer que "o centésimo aniversário da Revolução Francesa" veja o II Reich submerso "num mar de sangue". 671 Nos anos seguintes, os atentados na Alemanha e na Rússia, a radicalização geral do movimento socialista e anárquico pareciam confirmar a tese segundo a qual não é possível reabsorver pacificamente o protesto das classes subalter­ nas: as "guerras sociais" estão na ordem do dia (IX, 546). No plano internaci­ onal surgem mais confusões, que, além das colônias, tendem a atacar também as grandes potências. O olhar de Nietzsche está voltado para a Rússia, já vista como "as fauces estendidas da Ásia, que queriam engolir a pequena Europa" em O andarilho e a sua sombra (supra, cap. 9 § 7). Estamos no início de 1 8 8 O. Em outubro do ano anterior a Alemanha tinha feito uma aliança com a Áustria também para responder à pressão, percebida como ameaçadora, da Rússia. Alexandre II, desiludido e frustrado com os re­ sultados do Congresso de Berlim que, por iniciativa em primeiro lugar da Grã­ Bretanha, tinha bloqueado o avanço do seu país nos Bálcãs e em direção aos Estreitos [Dardanelos], tinha enviado uma carta dura e quase como ultimato a Guilherme 1 (a chamada "carta da bofetada") . O perigo parecia tomar-se con­ creto - como diz Bismarck numa carta ao imperador alemão - de "um ataque bárbaro".672 Nos anos que se seguem a tensão não cessa, a qual parece tor­ nar-se de novo aguda em 1 8 85-86 por ocasião de uma nova crise nos Bálcãs. 673 É talvez neste contexto que esteja colocada a análise contida em A lém do bem e do mal. Enquanto os países europeus se revelam muitas vezes enfraqueci­ dos , "a força do querer" continua a manifestar-se impetuosa "naquele imenso Império intermédio no qual, por assim dizer, a Europa reflui para a Ásia, na Rússia", a qual parece empurrar em todas as direções: Não só poderão se tornar necessárias guerras na Í ndia e complicações na Ásia, a fim de que a Europa se liberte do peso do seu maior perigo, mas serão necessárias convulsões internas, o desmembramento do Império em peque671

l n Wehler, 1985, p . 143. ln Fenske, 1978, p. 237. m Treue, 1 958, pp. 6 1 2-3.

672

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nos corpos e sobretudo a introdução da imbecilidade pa rlamentar, inclusive a obrigação de cada um ler o seu jornal no café da manhã (JGB, 208).

Que fique claro - acrescenta Nietzsche para evitar equívocos -, as suas preferências iriam em direção oposta, mas aqui se trata de enfrentar uma situ­ ação concreta de perigo . Claramente, em relação à Rússia, o filósofo está propondo uma Realpolitik semelhante à praticada por Bismarck nas relações com a França e condenada .em Humano, demasiado humano: a fim de enfra­ quecer o país inimigo pode ser útil promover no seu interior instituições políticas suscetíveis de provocar o seu enfraquecimento ou a sua desagregação. Além de um perigo, o "aumento de ameaças da Rússia" é também uma ocasião. Colocada diante de tal desafio, talvez a Europa se sinta obrigada a decidir tomar-se também ela igualmente ameaçadora, ou seja, adquirir uma vontade única, graças à intervenção de uma nova casta dominante sobre a Europa, de uma durável, tremenda vontade própria, em condições de se propor metas além dos milênios - a fim de que finalmente a comédia, demorada até demais, não só do seu conjunto de estadinhos, mas também da multiplicidade dos suas veleidades dinásticas e democráticas, chegue enfim ao epílogo. Pas­ sou o tempo da pequena política: já o próximo século levará consigo a luta pelo domínio da terra - a compulsão à grande política (JGB, 208).

Em conclusão. Bem longe de prestar homenagem ao ideal da paz, a con­ denação do chauvinismo interno à Europa ocidental se entrelaça, em Nietzsche, com a ironia sobre a "Revolução Francesa, que visou não só a 'fraternidade' entre os povos, mas também universais, florais trocas de corações''. Napoleão teve o mérito de acabar com essas tolices e esta bugiganga. Graças a ele,o homem, ou melhor, "o macho tomou-se agora senhor", neutralizou o sentimen­ talismo feminino, mercantil e filisteu e derrotou a "civilização" (Civilisation) que ele odiava com todas as suas forças, confirmando assim "ser um dos mai­ ores continuadores do Renascimento" (FW, 362) . "O instinto de toda socieda­ de civilizada" tende à segurança, ao conforto, à paz, à "domesticação do ani­ mal" humano, para uma condição no âmbito da qual resultem supérfluos ou impossíveis aqueles "grandes homens", que, por sua vez, constituem o objetivo essencial de toda "cultura" autêntica; neste sentido, existe um "antagonismo abissal" entre os dois termos (XIII, 485-6). Como nos anos de O nascimento da tragédia, o alvo de Nietzsche continua a ser a "civilização", só que o seu antídoto é agora identificado não mais na Alemanha herdeira do helenismo trágico, mas na Europa que retoma o programa napoleônico de unidade interna e de domínio da terra: 375

Agora podem seguir-se alguns séculos guerreiros para os quais não existe igual na história, em suma, realizou-se a nossa entrada na idade clássica da guerra, da guerra i nstruída e ao mesmo tempo popular em escala mais larga (de meios, de talentos, de disciplina), à qual todos os séculos vindouros se voltarão para olhar, i nvejosos e veneradores, como se fosse um fragmento de perfeição (FW, 362).

Terceira parte Nietzsche no seu temp o. Teoria e prática

do "radicalismo aristocrático " Se quisermos escravos, é tolice educá-los como senhores (GD, Incursões de um inatual, 40). Quem deve ser o senhor da terra? Este é o tema recorrente da minha filosofia prática (XI, 76). Nenhum estudo me parece mais essencial do que o das leis da reprodu­ ção (XI,480). Aniquilação das raças decadentes (XI, 69). Aniquilação dos mal sucedidos - por isto devemos nos emancipar da moral atual (XI, 75). Conseguir aquela enorme energia da grandeza a fim de formar o homem futuro, por um lado mediante a sua criação e, por outro, medi­ ante o aniquilamento de milhões de mal sucedidos: e não se deve desa­ nimar por causa da dor que se cria, uma dor que até agora nunca foi vista (XI, 98). Quem "explica " a passagem de um autor "mais profundamente " do que o necessário, não esclareceu, mas obscureéeu o autor (WS, 1 7).

12 A ESCRAVIDÃO NOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA E NAS COLÔNIAS E A LUTA ENTRE ABOLICIONISTAS E AN1IABOLICIONISTAS 1. O carro da civilização e os escravos imos o teórico do radicalismo aristocrático chamar a atenção sobre a ne­

Vcessidade de uma "nova escravidão". Já nos anos de O nascimento da

tragédia, Nietzsche não se cansa de afirmar e acentuar a tese segundo a qual a escravidão é inseparável da civi lização. No final de sua vida consciente, o filósofo insiste: "Se quisermos escravos - e eles são necessários - não se deve educá-los como senhores" (XIII, 30; cf. também GD, Incursões de um inatual, 40) . Oferecer a eles instrução significa apenas estimular uma revolta servil com consequências catastróficas . Evitar torná-los inaptos com relação à con­ dição que sofrem e que devem sofrer é, no fundo, de seu próprio interesse, além da civilização no seu conjunto. Esta pode ser comparada a "um vencedor coberto de sangue, que na sua marcha triunfal arrasta como escravos os ven­ cidos, acorrentados ao seu carro", estando estes últimos, em condições nor­ mais, deslumbrados por "uma força benéfica" que impede que tomem consci­ ência das correntes que os mantêm presos (CV, 3; 1, 768-9) . Os ideólogos empenhados em proclamar programas insensatos de emancipação geral são os mais cruéis inimigos daqueles que pretendem beneficiar: "Se um escravo na sua prisão sonha em ser livre e solto das correntes, quem será tão malvado para despertá-lo e dizer-lhe que é apenas um sonho?" (B, 1, 2, p. 229). A escravidão: eis uma presença embaraçosa e como que removida da historiografia filosófica e da imensa bibliografia sobre Nietzsche. Compreende­ se que, para um autor tão fascinante e muitas vezes lido como um teórico do individualismo, os intérpretes estejam propensos a considerar o tema, que volta obsessivamente, como um paradoxo ou como uma metáfora inocente e fasci­ nante. Por outro lado, o que é a "verdade" senão "um exército móvel de metá­ foras" (supra, cap. 2 § 3)? No entanto, convém não perder de vista o contexto histórico. Os primei­ ros passos de Nietzsche se colocam num período de tempo em que à abolição da escravidão nos Estados Unidos corresponde a abolição da servidão da gleba

na Rú s s i a . Nos anos segu i ntes, enquanto formas de escravidão ou semiescravidão persistem nos dois países, o debate relativo aos temas é agudo como nunca a nível internacional. A Inglaterra, que em 1 8 33 abolira a escravi­ dão nas suas colônias, faz depois, nos anos 70 e 80, o bloqueio naval das costas da África oriental para impedir o persistente tráfico dos negros em direção, sobretudo, ao Brasil, que abole a escravidão e o comércio relacionado dos escravos somente em 1 888, 110 ano em que acaba a vida consciente de Nietzsche. Há de se notar ainda que todo o período histórico em questão está marcado por resoluções e tratados, como aquele, por exemplo, assinado por Inglaterra e Zanzibar em 1 873, que proibiam o comércio dos escravos,674 enquanto para os ex-escravos ainda em 1 8 74 eram fundados novos Estados ou estabelecidas no­ vas instalações nas costas da África Oriental, frequentemente sob impulso das missões cristãs.675 Finalmente, em 1 8 84-85 se realiza em Berlim uma Conferên­ cia internacional sobre o Congo, que delimita na África as esferas de influência das potências coloniais, que se empenham c01�untamente, não sem hipocrisia, na luta contra a escravidão. Finalmente - observa em tais ocasiões o primeiro­ ministro francês, Jules Ferry -, foi traduzido "em direito positivo, em obrigação sancionada pela assinatura de todos os governos" o dever moral de "combater o tráfico dos negros, este tráfico horrível, e a escravidão, esta infâmia".676 O debate que se desenvolve atinge plenamente a Prússia e a Alemanha também no nível das mais altas esferas pol íticas e não só pelo fato de hospedar a Conferência de Berlim. Pelo que parece, no momento do estouro da Guerra de Secessão, Bismarck revela "um certo pendor pelos homens do Sul dos Esta­ dos Unidos", embora preferisse um tratamento mais humano dos negros.677 Trata-se de simpatias difundidas também no corpo dos oficiais: uma recepção que eles organizaram em julho de 1 864 em honra de oficiais da Confederação provoca um protesto da União e um embaraçado desmentido ou distanciamento por parte do governo prussiano.678 As polêmicas não cessaram com o fim da Guerra de Secessão, mas continuam a se desenvolver com relação às colônias. Em 30 de setembro de 1 890, imediatamente depois do seu afastamento do cargo de chanceler, Bismarck inspira um artigo nas "Hamburger Nachrichten" no qual distingue entre a escravidão, cruel e agora desaparecida, própria do Sul dos Estados Unidos, e aquela ainda existente nos Estados muçulmanos, na qual 674 Rcnault, 1 97 1 , vol. 1, p. 89. 675 Hammcr, 1978, pp. 155 e 295-6 e Wamcck, 1889, pp. 36-7. 676 111 Girardct, 1 983, p. 104. 677 Stolbcrg-Wemigcrode, 1 933, pp. 60-1 e p. 74. 67� Lutz. 1 9 1 l, p. 5 1 .

o escravo é, no fundo, um .. servo membro da família" (dienender Hausgenosse), bem tratado e contente com a própria sorte.679 Guilhenne II, por sua vez, se torna o alvo da polêmica e do sarcasmo de Nietzsche, que lhe censura o zelo com que se empenha na luta pela libertação dos "negros escra­ vos domésticos" (Hausknechte) (infra, cap. 1 7 § 3). O debate em questão irrompe com força também no campo do estudo da antiguidade clássica: em 1 848, tienri Wallon publica a sua Histoire de / 'esclavage dans / 'antiquité e, no longo prefácio (um livro no livro), toma posição nítida a favor da abolição da escravidão nas colônias francesas, decidida pela república nascida da Revolução de Fevereiro. A segunda edição do livro do Sécretaire perpétuel de l 'Académie des Inscriptions et Belles-Lettres leva a data de 1 879, o último ano que vê Nietzsche ensinar filologia clássica em Basileia. Compreende-se o envolvimento dos filólogos. Wallon observa que, ao opor­ se à supressão da escravidão nas colônias francesas, "'os partidários do status quo apelam para a antiguidade".680 Também nos Estados Unidos a polêmica antiabolicionista celebra repetidamente o esplêndido florescimento da Grécia antiga, impensável sem a presença daquele benéfico instituto, tão odioso para infelizes ideólogos privados do senso da realidade. Há uma significativa afinna­ ção atribuída a Calhoun, o teórico mais ilustre do Sul escravista: "Se fosse possível encontrar um negro em condições de conhecer a sintaxe grega, só então teria reconhecido que os negros eram verdadeiramente seres humanos e deviam ser tratados como tal".681 Política de Aristóteles é o ponto de referên­ cia constante para Calhoun bem como para outro eminente teórico da escravi­ dão, ou seja, Fitzhugh. Mais em geral, nos anos que precedem o estouro da Guerra de Secessão, o estudo dos clássicos latinos e gregos está no centro do curriculum das escolas e das universidades no SuJ.68'.? Por outro lado, em 1 849, Chateaubriand, de quem Nietzsche conhece as obras literárias, se refere nes­ tes termos ao debate que se desenvolve na república norteamericana: "Um deputado da Virgínia sustentou a causa da liberdade antiga referindo-se à pre­ sença da escravidão, resultado do paganismo, em polêmica contra um deputa­ do de Massachusetts, o qual defendia a causa da liberdade moderna sem es­ cravos, assim como foi depois trazida à luz pelo cristianismo".683 679

Stolberg-Wcmigerode, 1933, p. 75.

680

Wallon, 1 974 b. p. IV e Wallon 1974 a, p. XXXIII. Nussba u m , 1 999, p. 175.

681 6s2

Harrington, 1 989.

683

Chatcaubriancl 1 973, vol. 1, p. 328; Chateaubriand e mais vezes citado nos fragmen­ tos pó stumos .

Os argumentos que acabamos de ver em defesa do instituto da escravidão não são diferentes daqueles que depois encontramos em Nietzsche. Na verdade, além da antiguidade clássica, a propaganda antiabolicionista às vezes se refere, em alternativa ou conjuntamente, a Paulo de Tarso e à sua Carta a Filêmon, o escravo fugitivo convidado a voltar ao seu dono.684 Mas também o primeiro Nietzsche atribui ao ''cristianismo primitivo" o m.érito de não ter encontrado ne­ nhum motivo de escândalo no instituto da escravidão (supra, cap. 1 § 1 0). Não se passaram muitos anos aesde as tomadas de posição públicas de eminentes expoentes cristãos conservadores (pensar em particular em Otto von Gerlach) em favor da causa dos secessionistas, insurgidos em defesa de um instituto con­ sagrado não só pela "natureza", mas também pela "Revelação".685 Ainda no Nietzsche maduro se pode ler este fragmento: "sobrevivência de ideais passados (por exemplo, a escravidão em Agostinho") (XII . 27). Mas agora o filósofo-filólogo tem consciência do empenho das igrejas na bataUra abolicionistas; elas desempenham um papel bastante significativo e até hegemônico em algu­ mas situações (é o caso da Inglaterra e, sobretudo, dos Estados Unidos).686 É exatamente o abolicionismo destes dois países que constitui o alvo mais frequente da polêmica do filósofo, o qual não poupa as suas flechas contra A cabana do Pai Tomás, o célebre romance abolicionista (XI, 6 1 ). A autora (Harriet Beecher­ Stowe) era uma expressão clara do puritanismo americano: "Filha de um pastor, mulher de outro pastor, com irmãos e filhos também pastores, viveu sempre numa atmosfera religiosa. Nasceu entre as convicções religiosas, e a língua dos ser­ mões constituiu o seu balbucio infantil .687 No que diz respeito, depois, ao mundo católico, a Santa Sé confere uma espécie de reconhecimento oficial a um texto que apareceu em primeira edição em 1 876, que atribui ao cristianismo o mérito pelo desaparecimento da escravi­ dão antiga. 688 Pouco mais de dez anos depois, a Igreja católica, através do cardeal Lavigerie, põe-se à frente da campanha ou da cruzada pela abolição da escravidão nas colônias, conseguindo envolver também a Alemanha, o que sus­ cita o sarcasmo e a indignação do filósofo (infra, cap . 1 7 § 3 ) . É também a partir de um balanço preciso dos acontecimentos do seu tempo que o Nietzsche 684 Stolberg-Wemigerode, 1 933, p. 62. 685 Cf. Lutz,

1 9 1 1 , pp. 50 e 63-4 e Bowman, 1 993 , p. 23.

c.s6 Hanuner, 1978, passim. 687 Parrington, 1 969, vol. li, p. 465. 688

Allard, 1 974; o texto é precedido de uma carta ao autor da parte do "Secrétaire de Sa Saintité Pie IX pour les lettres latines".

da maturidade põe em conexão cristianismo e revolta dos escravos e lê no mesmo Paulo de Tarso um feroz ressentiment servil e plebeu. Na França, porém, é a revolução que dá o impulso ao movimento abolicionista. Mas deve-se notar que, no momento da convocação dos Estados Gerais, frequentemente provêm do clero os cahiers de doléance que visam o tráfico dos negros e o instituto da escravidão.689 No âmbito do movimento abolicionista, surge depois a figura do abade Grégoire. A França revolucionária primeiro, concede a cidadania honorária ao pastor anglicano William Wilberforce, definido "o mais zeloso e o mais eloquente defensor dos negros"690 e, depois, com os j acob inos, sanciona a emancipação dos escravos nas colônias. Depois da marcha à ré de Napoleão, será o movimento democrático socialista que se põe à frente da luta pela abolição definitiva da escravidão nas colônias; e não é casual que este objetivo será conseguido com a Revolução de Fevereiro. Tam­ bém esses acontecimentos têm um eco no pensamento de Nietzsche: conside­ re-se a leitura do cristianismo, da Revolução Francesa e do socialismo como três etapas da revolta dos escravos. O Napoleão caro ao filósofo é aquele que, junto com o poder que agita a palavra de ordem do fim da revolução, três anos depois, em 1 802, aprova a lei que no seu artigo 1° decreta: nas colônias "a escravidão será mantida de acordo com as leis e os regulamentos anteriores a 1 789".691 Por ocasião do debate ocorrido no Corpo Legislativo não faltam os deputados que convidam a pôr-se "na escola dos antigos", fazendo com que ela acabe com a "filantropia mal colocada", nascida da Revolução Francesa.692 No lado oposto, para citar um autor conhecido de Nietzsche, Herzen rotula Napoleão como o "restaurador da escravidão".693 Se este é o quadro histórico, bastante problemática parece a leitura do tema da escravidão em perspectiva metafórica: Nietzsche recorreria a esta metáfora no momento em que a escravidão é uma realidade bastante consis­ tente, no centro de lutas gigantescas e de um debate apaixonado que, entre os intelectuais, envol;re também filósofos, literatos e estudiosos da antiguidade.

689 Blackbum,

l 990, p. l 72.

l 962, p. 1 36. 1 96 1 , pp. 29 1 -2. 692 ln Césaire, 1 96 1, pp. 285 e 287-8. 693 Herzen, 1 993, p. 97. 690 Godechot,

691 ln Césaire,

2. Nietzsche, a escravidão e a polêmica antiabolicionista O mesmo acontece na Alemanha. Concentremos a atenção nos autores conhecidos e caros a Nietzsche. Uma novela de Kleist (O noivado em S. Domingos), ambientada nos inícios de 1 800, descreve com tintas escuras a revolta dos escravos negros: os passos irrefletidos da Revolução Francesa de­ sencadearam uma "vertigem geral de vingança"; o "frenes i de liberdade" con­ duz na realidade à "carnificina dos brancos". O debate sobre a escravidão se une ao debate relativo à Revolução Francesa e à questão colonial. Em 1 8 2 9, conversando com Eckermann, Goethe faz ironia sobre "declamações contra o tráfico dos escravos" com as quais a Inglaterra se compraz. Ela exibe "máxi­ mas morais", mas na realidade persegue os seus interesses "mercantis " e co­ loniais com desinibição e cinismo, por isso, no Congresso de Viena, se choca com o delegado português, que observa que não veio para ouvir lições sobre os ·'princípios da moral" ou para assistir a sessões de "um tribunal universal". Em conclusão, "enquanto os alemães se atormentam com a solução dos problemas filosóficos, os ingleses, com seu grande senso prático, se riem de nós e conquis­ tam o mundo".694 Ao intervir p0ucos anos depois sobre esse mesmo problema, Schopenhauer exalta, porém, a "generosa nação britânica" pelo seu empenho contra a institui­ ção da escravidão e o tráfico dos negros.695 É um debate que se desenrola vivamente nos anos e décadas seguintes. Nas publicações antiabolicionistas con­ titmam a ressoar os argumentos já vistos em Goethe e na polêmica contra a hipocrisia imputada à Inglaterra, protagonista, nos anos 70 e 80, de bloqueios navais da costa da África oriental, que visam a impedir o tráfico dos escravos.696 É neste contexto histórico que devemos colocar a afirmação de Nietzsche segun­ do o qual quem se opõe ao ''fato" indiscutível da "escravidão" e da sua necessi­ dade é a maldita hipocrisia, ou melhor, para usar o termo ao qual o original recorre significativamente , o "maldito cant inglês-europeu" (XI, 72-3) . A tomada de posição antiabolicionista é clara e nítida, e o olhar é dirigido não só para as colônias, mas também para os Estados Unidos da Guerra de Secessão. Tenha-se presente o argumento com o qual os defensores da escra­ vidão se opunham à agitação dos abolicionistas: a condição dos operários livres não era certamente melhor do que a dos escravos. Nesses anos floresce todo um setor de publicações e uma literatura que compara o trabalho operário na 694 Eckcrmaim,

198 1 , pp. 347-8 (colóquio de 1 de setembro de 1 829). Schopenhauer, 1 976-82 d, p. 763. 696 Cf. Lémonon, 1 97 1 , p. 1 6 1 e Hanuner, 1 978, p. 296. 695

fábrica com o trabalho dos escravos nas plantações, a escravidão assalariada, descrita com implacável dureza de tons, com a escravidão propriamente dita, mistificadoramente imersa numa atmosfera patriarcal protegida: até nos títulos vemos postas em comparação a english ser/dom (a condição operária pesquisada a partir do país então industrialmente mais avançado) com a american slavery, o hireling com o slave .691 É um tema bem presente também nas publicações antiabolicionistas que florescem na Alemanha. Leiamos algumas das intervenções mais significati­ vas: "No Suriname, se um proprietário quisesse impor a seus escravos apenas um sexto do rendimento diário [ao qual estão obrigados as operárias e os ope­ rários de fábrica na Europa e nos Estados Unidos], lhes seria imediatamente retirado o direito de ter escravos por haverem pretendido um trabalho excessi­ vo ";698 a "escravidão branca" existente nas fábricas inglesas é muito mais impiedosa do que aquela, em suma, paternal e benévola, em vigor nas planta­ ções dos estados meridionais dos Estados Unidos.699 Também em Kleist, autor acompanhado por Nietzsche com atenção já na adolescência (A, 43), imediatamente após a Guerra de Secessão, se pode ler a tese segundo a qual a sorte do escravo negro nos Estados Unidos é mais aceitá­ vel e digna do que a reservada ao operário branco na Inglaterra. 700 De modo não diferente se exprime um aforismo de Humano, demasiado humano, com o título "escravos e operários": todos desejam a "abolição da escravidão"; contudo é preciso admitir que "os escravos sob qualquer aspecto vivem mais seguros e mais felizes do que o moderno operário" (Arbeiter) e que "o trabalho (Arbeit) dos escravos é bem pouco em relação ao do operário", do Arbeiter (MA, 457). Nietzsche inicia a sua atividade de pesquisa científica com um estudo sobre Teógnis: profundamente atravessado pelo tema da escravidão, coincide com os anos da Guerra de Secessão. O filólogo cita os versos do poeta grego: "Nunca a cabeça de um escravo está erguida, / mas sempre dobrado e torto tem o pescoço. / De uma cebola não brota uma rosa ou um jacinto, / nunca de uma escrava nasce um filho livre" (DTM, 1 5 ; p. 57). É louco e criminoso querer modificar a ordem da natureza. E de novo Nietzsche cita Teógnis e com ele se identifica: "Com o ensinamento nunca farás de um mau um bom" (DTM, 1 5 ; p. 5 9). É dificil pensar que não haja qualquer relação entre a visão do 697

Parrington, 1 969, vol. II, pp. 77- 1 34; para um olhar de conjunto sobre o debate em questão na França e nos Estados Unidos, ver Canfora, 1 980, pp. 23-30.

698 Duttenhofer,

1855, p. 70.

699 Bensen, 1 965, pp. 428-430. 100 Kleist, 1 973.

mundo aqui esboçada e o gigantesco choque que neste momento ocorre nos Estados Unidos. Pelo menos numa ocasião, Nietzsche reivindica a atualidade da sua análise: para ulterior demonstração da importância da riqueza para o desenvolvimento de urna classe dedicada exclusivamente à "cultura" e às "artes liberais", ele remete de modo explícito aos acontecimentos que ocorrem diante dos seus olhos, nos "nossos dias" (nostris temporibus) (DTM, 1 5 ; p. 59). Em todo caso, quando lemos o desdém do poeta grego pelo "sangue nobre contaminado pelos matrimônios com gente nova" (DTM, 3 ; p. 29), vem à nossa mente a miscegenation contra a qual previnem os teóricos da escravidão, ou seja, a supremacia branca. O tenno é cunhado, tornado do latim e juntando miscere e genus, pelo final de 1 8 63,701 exatamente no período de tempo em que Nietzsche, além de Teógnis, ocupa-se com os Estados Unidos e as "condi­ ções religiosas" vigentes naquele país (KZD, 1 8-3 1 ) . É verdade que, 20 anos depois, ao retornar o poeta grego, definido e celebrado como "portavoz" da "aristocracia", e retornando a contraposição de fundo do ensaio juvenil entre áãáeló (que depois é o "bom" e nobre proprietário de escravos) e êáêló (que depois é, em primeiro lugar, o escravo "mau" e desprezível), Nietzsche traduz êáêló por malus, mas também por niger. Por outro lado, a Genealogia da moral aproxima maüts de iãeáó; e por isso êáêló se identifica, já pela cor da pele e dos cabelos, com o expoente de urna raça diferente e se contrapõe à "loura raça dominante'', à ariana "raça dos conquistadores e dos senhores" (GM, 1, 5). A esta altura nos vem à mente que, além do Atlântico, o espectro da miscegenation é também o espectro da melaeukation. Ainda que decidida­ mente menos feliz que o primeiro - nem sempre os cruzamentos da pureza podem gabar-se da cultura clássica dos seus líderes - este segundo tenno é cunhado conternporanearnente com o primeiro, sempre por obra dos mesmos ambientes e autores, e obtido tornando emprestado, desta vez, do grego e jun­ tando melas (negro) e leukas (branco) .7º2 Em todo caso, não há dúvidas sobre o fato de que o jovem filólogo olha com atenção para os Estados U1údos, corno está confirmado pela conferência, profe­ rida por ele, sobre as condições religiosas dos alemães na América do Norte: estamos em meados de março de 1 8 65, nesse tempo os sulistas já foram pratica­ mente derrotados (a rendição formal será poucos dias depois, em 9 de abril), e é compreensível, portanto, que não se fale de urna guerra já acabada. No entanto, esta conferência é importante pelas referências à situação política. Pense-se em particular no desprezo expresso pelos democratas alemães, emigrados para a 701

Wood, 1 968, pp. 53 seg. '2 Wood, 1 968, p. 54.

América depois do fracasso da revolução de 1 848 (KZD, 24-5), que estiveram na primeira fila, também no plano das publicações, na luta pela abolição da escra­ vidão, 703 e sobre cujo empenho abolicionista - é um detalhe que não se deve perder de vista - a imprensa alemã se referia em certos períodos diariamente.704 Demos agora uma espiada no epistolário. Quando, em dezembro de 1 8 67, Carl von Gersdorff escreve ao amigo Nietzsche que "capital e trabalho estão em luta um contra o outro na F.rança, na Inglaterra, na América, entre nós", não é dificil perceber o eco da Guerra de Secessão terminada há dois anos (fazen­ do-se abstração da guerra civil que levou à emancipação dos escravos, os Estados Unidos pareciam imunes a conflitos sociais agudos) (B, 1, 3, p. 224) . Alguns anos depois - nesse ínterim foi publicado O nascimento da tragédia é Rohde quem sublinha "a profunda desordem que a abolição da escravidão deve ter provocado em todas as condições e fins da vida da civilização". Tam­ bém nesse caso, o discurso não está certamente vinculado ao passado remoto. Mesmo se não falta a referência à antiguidade clássica, o olhar é dirigido tam­ bém e em primeiro lugar ao presente. A Hélade perseguia como fim supremo a criação do "gênio" e sabia persegui-lo também "com a dureza e a crueldade" necessárias; agora, junto com elas, são dispersados os "frutos mais nobres" daquela esplêndida civilização (B, II, 4, p. 622-4) . A carta de Rohde é dirigida tanto a Nietzsche como a Overbeck. E, por sua vez, o historiador do cristianis­ mo, numa pesquisa sua de 1 8 75, centrada exatamente no tema da escravidão, constata o "desaparecimento de um pedaço da antiguidade de nossa vida".705 E de novo somos remetidos ao conflito terminado dez anos antes. Por outro lado, a partir pelo menos do período iluminista, Nietzsche mostra grande inte­ resse, ainda que polêmico, não só por Dühring, mas também por Carey (VIII, 5 8 7), ou seja, por autores cujos textos são ricos em referências ao tráfico dos negros, ao problema da escravidão e à Guerra de Secessão, esse acontecimen­ to ainda "potente", que marca o fim da influência exercida, também além dos Estados Unidos, pelo "Sul escravista". 706 703 Pensar em particular na figura de Friedrich Kapp, amigo e correspondente de Feuerbach: um livro seu sobre a escravidão e sobre as lutas que precedem o estouro da Guerra de Secessão (Die Sklavenfrage in den Vereinigten Staaten, geschichtlich entwickelt, Gõttingen und New York 1 854) é citado com simpatia nos "Preufüsche Jahrbücher", L 1 858, p. 475 nota. 704 Lutz, 1 9 1 1 , p. 47. 7º5 Overbeck, 1 994-95 a, p. 1 44. 106 D ühring, 1 87 1 , pp. 3 73 e passim; de Henry Charles Carey, autor, entre outro, de The S/ave Trade ( 1853), se ocupa difusamente Dühring, 1 87 1 .

Voltemos agora ao fragmento já citado, que polemiza contra a autora da Cabana do Pai Tomás : N ietzsche sublinha aqui criticamente o papel do sofri­ mento, e da compaixão pelo sofrimento, nos movimentos de revolta servil (XI, 6 1 ). É um tema no qual a Genealogia da moral se detém de modo particular: Agora que o sofrimento deve sempre mostrar-se como o primeiro dos argu­ mentos contra a existência, como a sua pior incógnita, será bom lembrar-se dos tempos em que se julgava o contrário, porque não se prescindia dofazer­ sofrer, e se via nisso um encanto de primeira ordem, u m verdadeiro atrativo de sedução para a vida. Talvez então - diga-se para consolo dos delicados - a dor não doesse como hoje; pelo menos é o que poderia concluir um médico que tratou de negros (tomando a estes como representantes do homem pré-histó­ rico) vítimas de grave inflamação interna, que levam ao limiar do desespero até o europeu da melhor compleição orgânica - isto não acontece com os negros. (A curva da tolerância humana à dor parece subir extraordinariamente e quase de repente, assi in que deixamos para trás os primeiros dez mil ou dez milhões de indivíduos de uma civilização superior) (GM, II, 7).

As publicações abolicionistas desses anos estão cheias dos sofrimentos desumanos infligidos aos escravos negros pelos seus donos . A elas responde toda uma literatura "médica" que atribui aos negros, junto com uma menor inteligência, também uma maior capacidade de suportar a dor. Um desses mé­ dicos, Carus, observa que "fineza e desenvolvimento da sensibilidade na pele" são muito mais acentuados nos brancos.707 Entre os apontamentos da juventu­ de de Nietzsche há a transcrição do título não só de um escrito, diferente do que acabamos de citar, de Carus, mas também de dois textos de Oken (KGA, 1, 4, p. 5 76), um naturalista que faz parte do mesmo grupo de Carus,708 o qual dialoga com ele sobre estes temas. 7m Também Wagner é da opinião que "a capacidade da dor consciente" está particularmente desenvolvida na "raça bran­ ca":710 por forte que possa ser, o "sofrimento" não chega à plena consciência de si nas "naturezas inferiores", que ficam de algum modo protegidas pela insuficiência de seu desenvolvimento intelectual.7 1 1 101 Carus, 1 849, p. 2 1 . 708 Cf. as páginas dedicadas à "filosofia da natureza" e aos "médicos românticos" por Schnabel, 1 954, pp. 1 72- 1 99. 709 Carus, 1 849, pp. 1 3 e 1 04 nota 1 4. 71º Wagner, 1 9 10 r, p. 28 1 . 7 1 1 Wagner, 1 9 1 0 r, p. 277.

Essa configuração do negro como "homem pré-histórico" é menos gené­ rica do que parece à primeira vista. Somos mais uma vez remetidos às publica­ ções antiabolicionistas, as quais distinguem entre "povos que têm uma história e povos cuja história até este momento é uma página em branco": os negros estão fora das "raças humanas históricas".712 Gobineau dedica um parágrafo do seu livro para demonstrar a tese segundo a qual "a história existe só nas nações brancas".713

3. Entre reintrodução da escravidão clássica e "nova escravidão " Mas Nietzsche pensa realmente em desenterrar na Europa a escravidão verdadeira? O intérprete atual muitas vezes se esquece de que a reivindicação da permanente validade e atualidade dessa instituição é um tema que continuou a agir por muito tempo na história do Ocidente. Na Inglaterra dos séculos XVII e XVIII vemos um filósofo ilustre como Hutcheson desejar a reintrodução da escravidão como remédio para a chaga da vagabundagem. Como demonstra em particular o caso de Andrew Fletcher, "um profeta escocês do iluminismo" do final do Século XVIII, é possível ser "defensor da liberdade" e, ao mesmo tempo, "defensor da escravidão" a cargo da gentalha ociosa e incorrigível.714 É contra este ambiente que Hume polemiza quando observa pungentemente: "Alguns apaixonados admiradores dos antigos e ao mesmo tempo zelosos ad­ vogados das liberdades civis [ . . . ] não podem deixar de lamentar a perda daque­ la instituição", isto é, da escravidão.7 15 Passemos agora para a França. Em Montesquieu podemos ler: "Todos os dias se ouve dizer que seria bom que houvesse escravos entre nós".7 1 6 Aqui se visa sobretudo a Melon. Neste contexto, porém, o autor mais significativo é, sem dúvida, o francês Linguet que, sempre no Século XVIII, não se cansa de acentuar a indissolubilidade da relação que há entre escravidão e civilização, com acentos que fazem pensar em Nietzsche: "A maior parte do gênero huma­ no" é obrigada a funcionar como "instrumento", como "braço e perna artifici7 12 Duttenhofer, 1855, p. 1 7. m

Gobineau, 1 997, pp. 489 seg. (livro IV cap. 1).

7 14 Morgan, 1 975, pp. 3 24-5 e Davis, 1 97 1 , pp. 423-7 (no tocante a Hutcheson); também O Capital faz referência a Fletcher, e à sua aspiração a transfom1ar os "mendigos" em "escravos" (cf Marx-Engels, 1 955, vol. XXIII, p. 750, nota 1 97). 715 Hume, 1 971, p. 786. 7 16 Montesquieu, 1 949-5 1 , p. 497 (livro XV, 9).

ais" ao serviço daqueles que desenvolvem a cultura e a arte; os sofrimentos que daí se seguem são o preço da civilização.717 O que estamos examinando é um capítulo de história que não se conclui no Século XVIII . Ao analisar a "legislação sanguinária contra os vagabundos'', Marx sublinha que relações de trabalho substancialmente escravistas continu­ am a existir na Inglaterra até meados do Século XIX. 718 Obviamente, porém, a atenção deve concentrar-se em primeiro lugar nos Estados Unidos. Particular importância, para fins de comparação com Nietzsche, têm os autores que, mais do que centrar a sua argumentação no destino racial dos negros, formulam uma tese de caráter mais geral: "Em todos os sistemas sociais deve haver uma classe que faça as obrigações servis (menial duties) de modo a resolver os problemas da lida da vida" (drudgery of life): assim se exprime um daqueles teóricos do Sul empenhados em "recomendar a escravidão como uma solução da questão social europeia".719 O expoente mais eminente e mais conhecido desta corrente de pensamento é sem dúvida Fitzhugh, segundo o qual "a escra­ vidão representa a relação correta entre cada tipo de trabalho e o capital".720 Do lado europeu do Atlântico, Proudhon polemiza contra um publicista e pol ítico francês que morreu em 1 880, Gamier de Cassagnac, segundo o qual seria preciso suprimir não a escravidão, esta "instituição anterior e superior à sociedade", mas o socialismo, culpado por envenenar as mentes com o sonho de uma emancipação impossível do trabalho.721 Conviria tomar nota da reali­ dade : a humanidade está inevitavelmente dividida entre uma "race libre" e uma "race esclave"; contra tal visão do mundo se insurge também o já citado Wallon, desdenhoso desta "filosofia da escravidão". 722 O texto aqui considerado é imediatamente traduzido na Alemanha. 723 Mas em terra alemã se erguem também autonomamente vozes que expressam uma orientação semelhante. No Vormarz, um liberal refere, rechaçando-o com for­ ça, o "conselho certamente mais aludido do que pronunciado claramente, que queria encoritrar remédio para o perigo iminente (rep resentado por uma ques­ tão social não resolvida e aguda) na introdução de uma verdadeira escravidão 71 7 Linguet, 1984, pp. 444, 438 e 457 (livro V, cap. 1 , 2, 4). 7 18 Marx-Engels, 1 955, vol. XXIII, pp. 76 1 -5. 7 1 9 ln Ge novese, 1 995 b, p. 93 ; Genovese, 1 995 a, p. 39. 720 Genovese, 1 978, p. 1 39. 72 1 Proudhon, 1968, p. 7 1 6. 722 Wallon, 1 97 4 a, pp. XXVI, XXXI II e passim. 723 Cassagnac, 1 977.

dos operários de fábrica".724 Dir-se-ia que, às vezes, quem apresenta tais propostas são pessoas compassivas, que se afastam horrorizadas do espetácu­ lo que nestes anos a industrialização capitalista apresenta. Depois de ter subli­ nhado que a condição do operário é bem pior que a do escravo, Lamennais acrescenta: "Na verdade não me admiro que alguns, que consideram apenas o aspecto material das coisas, o presente separado do futuro, lamentem, na nossa tão elogiada civilização, a escravidão antiga"725 Vejamos agora o caso Carlyle. Este, enquanto justifica a escravidão dos afroamericanos do outro lado do Atlântico, rotula como "negros" os irlande­ ses. 726 No escritor inglês ressoam temas fami liares ao leitor de Nietzsche: Cheguei à conclusão de que, sancionada por lei ou ah-rogada por lei, a escravidão existe amplamente neste mundo, nas Índias Ocidentais e fora delas. A escravidão não pode ser abolida com um ato do parlamento; pode­ se apenas abolir o seu nome, e isso é muito pouco. 727

Quer se fale de escravos ou de "servos assalariados por toda a vida'', ou seja, de "adscripti glebae", trata-se sempre de escravidão.728 Estamos diante de um instituto que pertence à ordem da natureza: "É a escravidão imposta ao fraco pelo forte, ao medíocre e vulgar pelo homem grande e nobre! A escravi­ dão imposta à Loucura pela Sabedoria"; por outro lado, as supostas emancipa­ ções são ao mesmo tempo o pressuposto e o resultado de "épocas anárquico­ constitucionais"729 decadentes . Ainda algumas décadas mais tarde, Langbehn, segundo refere o seu bió­ grafo, deseja "a reintrodução da escravidão" de modo a permitir que as "raças superiores" se dediquem sem empecilhos à "ocupações livres", à cultura e à arte; é um objetivo que só pode ser alcançado entrando em choque com a Igreja e fazendo valer "uma soberana virilidade grecoalemã".730 Não é por acaso que Langbehn é um grande admirador de Nietzsche . . . 724 Mohl,

1 98 1, p. 9 1 . 125 ln Bravo, 1973, p. 370. 726 Carlyle, 1 983, pp. 463-5. 727 Carlyle, 1 983, p. 439. 1983 , pp. 464 e 466. 729 Carlyle, 1 983, p. 439. Ainda no final do Século XIX, estes temas ecoam em Anthony James Froude, admirador de Carlyle e defensor do imperialismo inglês: cf. Bodelsen, 1968, p. 1 %.

728 Carlyle,

730 Nissen,

1 926, p. 37.

Tendo já passado a Guerra de Secessão, o filósofo percebe bem a dificul­ dade ou impossibilidade de reintroduzir na Europa e no Ocidente a escravidão p ropriamente dita, tanto mais porque o desenvolvimento da modernidade e a agitação socialista puseram fim ao benéfico deslumbramento dos amarrados ao carro da civilização. É p reciso ter presente a nova situação: "Nos Estados europeus, a cultura do operário e do empregador é em certos casos tão próxi­ ma que continuar a p retender dos operários um trabalho mecânico desgastante suscita um sentimento õe indignação". Um espaço amplo e crescente é aberto pela agitação dos "socialistas", os quais "fazem da justiça o seu p rincípio". Certamente, é preciso opor-se a essa agitação também no plano ideal. É pre­ ciso não hesitar em p roclamar uma verdade que se tornou incômoda no mundo moderno: "os direitos humanos não existem". Aliás, "ao querer a reviravolta completa da sociedade, os socialistas apelam para o poder" e, portanto, aca­ bam entrando em contradição com os princípios morais que invocam. Sim, é necessário fazer valer estes argumentos, mas não é com eles que se poderá liquidar de uma vez por todas a agitação socialista. E então? Se a necessidade e o refinamento de uma cultura superior penetrarem na classe operária, ela não pode fazer aquele trabalho sem sofrer desproporcio­ nadamente demais. Um operário que for assim desenvolvido aspira ao ócio e não exige a diminuição do trabalho, mas a liberação dele, isto é, quer impor o fardo a algum outro. Talvez se pudesse pensar numa satisfação dos seus desejos e numa introdução maciça de populações bárbaras asiáticas e africa­ nas, de modo que o mundo civilizado sujeitasse continuamente a si mesmo aquele não civilizado, e de tal modo a não cultura fosse verdadeiramente considerada como algo que obriga a trabalhos servis (VIII, 48 1 -2).

Por isso é bom "que se façam vir para cá os chineses: estes trariam consigo a maneira de viver e pensar próprias de laboriosas formigas" {M, 206) . Ou então, as ··populações bárbaras asiáticas e africanas" poderiam ser procuradas nos seus próprios lugares de origem pelos operários que evitam o trabalho servil, que se tomou agora probiemático na Europa. Em conclusão, ou se consegue fazer da classe operária europeia algo de "tipo chinês" (GD, Incursões de um inatual, 40), uma "chinesaria operária" (Arbeiter-Chinesenthum) (XIII, 30), ou então são os chineses e as outras populações bárbaras que devem constituir, após a colonização, ou imigração, a classe operária e servil da Europa e do mundo civil. Mais uma vez não estamos na presença de .uma metáfora. Podemos ler em Renan uma tomada de posição análoga àquela que acabamos de ver: A natureza criou uma raça de operários (a raça chinesa) com uma maravilhosa destreza das mãos e quase totalmente privada do sentimento de honra; governai-

a com justiça tirando dela, em troca do beneficio de tal governo, um acúmulo bens (douaire) em proveito da raça conquistadora; a raça chinesa estará satis­ feita. Os negros são uma raça da terra: sede bons e humanos em relação a eles e tudo estará em ordem. Os europeus são uma raça de senhores e de soldados. Reduzi esta nobre raça a trabalhos forçados como os negros e os chineses, e ela se revoltará. Entre nós, todo rebelde é mais ou menos um soldado com uma vocação errada, um ser feito para a vida heroica e que usais para uma necessi­ dade contrária à sua raça: mau operário e soldado valente. 73 1

Deve-se acrescentar que as propostas e as sugestões de Nietzsche e de Renan não são produto solitário de uma especulação abstrata e puramente livresca: são os anos em que, para dar um exemplo, as companhias americanas começam a construção da impérvia linha ferroviária destinada a consolidar a conquista do Far West mediante a importação da China de I 0.000 coolies.732 A Guerra de Secessão terminou; para dizer com Engels, procura-se substituir a escravidão negra formalmente abolida pela "escravidão camuflada dos coolies indianos e chineses".733 Nessa mesma época 20.000 felás egípcios são utiliza­ dos como escravos ou semiescravos e sacrificados em massa durante a cons­ trução do canal de Suez.734 Eis que surge o quadro completo das "populações bárbaras asiáticas e africanas" de que Nietzsche fala. Podemos concluir este ponto citando uma consideração de Lamennais: A antiga escravidão, modificada somente na forn1a e em detrimento do escra­ vo, existe ainda de fato no seio das sociedades modernas, até das mais adian­ tadas; mas existe em contradição com a ideia e o sentimento de um direito irremovivelmente estabelecido na razão pública e na consciência universal. 735

É esta "ideia" e este "sentimento" que Nietzsche se empenha em liquidar.

m

Renan, 1947, vol. 1, p. 390-1. 1960, p. 333. 733 Marx-Engels, 1955, vol. IV, p. 132 (trata-se de uma nota colocada por Engels na Miséria dafilosofia de Marx). 732 Nevins-Commager,

734 Sombart,

1987, vol. III, p. 327. A Lesseps, o construtor do canal de Suez, faz referência uma carta de Nietzsche, agora donúnado pela loucura (B, III, 5, p. 578). 735 ln Bravo, 1973, p. 384.

4. Trabalho e servitus na tradição liberal Na ironia que faz da nova "dignidade" atribuída ao trabalho e na afirma­ ção de que em toda civilização sadia ele é sinônimo de vulgaridade e de servi­ dão, Nietzsche evoca a antiguidade clássica. Na realidade, estamos na presen­ ça de temas que continuam a revelar-se vitais bem além do fim do mundo grecorromano e até medteval. Interroguemos a tradição liberal partindo de Grotius. Uma das fontes da escravidão - uma instituição a seus olhos plena­ mente legítima - é o direito de guerra. O vencedor garante a vida do prisionei­ ro, o qual em troca oferece trabalho e serviços perpétuos . Não é uma relação substancialmente diferente com respeito àquilo que se institui entre os donos de um lado e "aqueles que, coagidos pela pobreza, venderam-se para ser escra­ vos". 736 Em termos não muito diferentes se exprime um aforismo de Humano, demasiado humano: "O inimigo encontra a sua vantagem na conservação [do derrotado] . Nesse sentido, há direitos também entre escravos e senhores, ou seja, exatamente na medida em que a posse do escravo é útil e importante para o seu dono" (MA, 93). Mas voltemos a Grotius. A seus olhos, como o trabalho assalariado, tam­ bém a escravidão descansa num contrato: nesse caso, senhor e escravo, ou seja, prisioneiro e vencedor, se comprometem a trocar entre si, durante a vida natural, respectivamente, subsistência e serviços. Por outro lado, é o trabalho como tal que é subsumido na categoria de servilus: a escravidão propriamente dita é "a espécie mais vil de submissão" e a mais completa, a servilus perfecta, pela qual se distingue a servilus imperfecta, própria seja dos servos da gleba seja dos mercenarii ou assalariados .737 O ponto de vista de Locke não é muito diferente. Enquanto cons idera óbvia e pacífica a escravidão nas colônias, o filósofo liberal inglês se exprime assim a propósito do trabalho assalariado na metrópole capitalista: "Um homem livre se toma servo de outro". Como se vê, o trabalho enquanto tal continua a ser colocado sob a categoria de servidão: de fato, o contrato introduz o assala­ riado "na família do seu senhor e o submete à disciplina normal dela", mesmo se tal disciplina é bem diferente do "domínio absoluto e incondicionado poder" do senhor, que caracteriza a escravidão e define "a condição da escravidão perfeita" (per.fect condition o/ slavery) .138 Assim se representa a bipartição grotiana entre servilus perfecta e servitus imperfecta: falar em tal contexto 7J6 Grotius,

1913, p. 544 (livro III, cap. XIV, § II). m Grotius, 1 9 1 3, pp. 158-60 (livro II, cap. V, § XXVII e XXX) .

nM Locke, 1970, pp. 157-8 e 128 (II, § 85 e 24); sobre isto, cf. Losurdo, 1992, cap. XII, 3.

de trabalho livre seria uma contradição, enquanto liberdade e trabalho são con­ cebidos como termos antitéticos . Como acontece em Nietzsche. Também com relação à celebração do otium (a outra face do desprezo reservado à maldição servil do trabalho), além da antiguidade clássica, à qual Nietzsche se refere explicitamente, vemos agir por trás a tradição liberal. Eis o modo como Constant justifica a exclusão dos não proprietários dos direitos políticos: o otium, o "lazer" (loisir), é "indispensável para adquirir a cultura e um juízo reto"; e "só a propriedade garante este lazer, só a propriedade toma os homens capazes de exercer os direitos políticos". Mas essa classe que com o seu trabalho garante o otium dos proprietários habilitados ao exercício dos direi­ tos políticos não faz pensar nos escravos da antiguidade clássica? Não - respon­ de Constant -, ''aqui não se trata das distinções que nos antigos separavam os escravos dos homens livres".739 O teórico do liberalismo rechaça antecipada­ mente aquela assimilação que depois com maior desenvoltura Nietzsche ousa pronunciar de modo explícito: no entanto é inegável o elemento de continuidade que liga o apaixonado cantor da antiguidade clássica em polêmica com o mundo moderno ao teórico da superioridade da liberdade moderna sobre a antiga. Ou, para passar da França para a Inglaterra, tomemos Mandeville. Empe­ nhado em celebrar a harmonia que na sociedade burguesa resulta dos diversos e contrapostos egoísmos e vícios privados, ele constata tranquilamente que "toda a comodidade da vida'', a "'condição civilizada enquanto tal" depende, não pode não depender, do "trabalho duro e sujo" realizado pelos pobres e depois pelos ··filhos dos pobres" (portanto, mais que de uma classe aberta, trata-se de uma espécie de casta hereditária dos pária). É verdade que a con­ dição operária é distinta da escravidão real que existe nas colônias.740 Mas a distinção é às vezes evanescente: o p róprio Mandeville reconhece que "a parte mais mesquinha e pobre da nação" na realidade "trabalha à maneira dos escra­ vos" (the working slaving peop/e). 741 Também em Locke, o desenvolvimento da riqueza e da civilização se apre­ senta como o resultado das privações e das fadigas anônimas e embrutecedoras daqueles que Nietzsche define como as "cegas toupeiras da cultura" (CV, 3 ; 1, 770); para o liberal inglês os trabalhadores estão obrigados a lutar pela "mera subsistência" e por isso não têm "nunca [ . . . ] o tempo e a oportunidade de elevar os seus pensamentos acima dela". À semelhança das "toupeiras" de que Nietzsche tanto gosta, também os assalariados de quem Locke fala não m constant l 957, pp. l l46-7 (= Constant, 1 970, pp. 99-100). 740 Mandevillc, 1 988, vol. II, p. 259. 74 1 Mandeville, 1988, vol. 1, p. 1 1 9.

têm, não podem ter uma autêntica vida racional : "Não se pode esperar que um homem, que labuta durante toda a sua vida num oficio cansativo, conheça da variedade das coisas que há no mundo mais do que um cavalo de carga, que vai e volta do mercado por um caminho estreito e uma estrada suja, que possa ser perito na geografia do país". 742 Não obstante a celebração que Locke faz do trabalho por dizer respeito à relação homem-natureza e, no âmbito da socieda­ de, da relação entre homen,s e classes sociais, o otium continua a ser o pressu­ posto da cultura e até de uma condição propriamente humana. Certamente, se a "toupeira" de Nietzsche é "o escravo" (der Sklave) tout­ court, em Locke "a maior parte da humanidade", dedicada como está ao traba­ lho, "tomou-se escrava (enslaved) das necessidades da sua condição medío­ cre".743 Quer dizer, no segundo caso, não é uma classe social que impõe esta espécie de "escravidão'', mas uma condição obj etiva. Mandeville e Locke se preocupam em distinguir o trabalho assalariado moderno da escravidão real (que continuam a considerar óbvia) nas colônias; Constant se preocupa em rechaçar a acusação de querer assimilar os trabalhadores manuais aos bilotas. Burke, po­ rém, não hesita em falar do trabalho assalariado como de um conjunto de ocupa. ções não só "mercenárias" (mercenary), mas também "servis" (servil); 744 e, não sem fündamento, o tradutor e discípulo alemão traduz o segundo termo re­ correndo ao adjetivo "sklavisch".145 A figura do operário tende de novo a con­ fundir-se com a do escravo. Por outro lado, Burke não hesita em retomar a distinção, própria da antiguidade clássica, entre os vários instrumentos de traba­ lho e a colocar o trabalhador assalariado na categoria de instrumentum vocale .146 O whig inglês não cita o erudito romano Varrão, do qual a definição é evidente­ mente tomada,747 mas Nietzsche conhece bem demais a antiguidade clássica para não saber que o instrumentum vocale não é outra coisa que o escravo. Obviamente, por trás de Varrão está Aristóteles . E o próprio Sieyes, o autor do mais célebre manifesto da Revolução Francesa, parece perceber a influência do grande filósofo grego, enquanto para "um pequeno número, ver­ dadeiramente pequeno, de cabeças livres e pensantes" contrapõe a "maior parte dos homens", definidos, sobretudo nos apontamentos privados anteriores 742 Locke, 1982, pp. 804-5 (IV, XX, 2). 743 Locke, 1982, p. 804 (IV, XX, 2). 744 Burke, 1 826, vol. V, pp. 105-6 (= Burke, 1 963, p. 2 10-1 1). 745 Gentz, 1 967, pp. 9 1 -2. 746 Burke, 1 826, vol. VII, p. 383. 747 De re rustica, 1, 17.

a 1 789, como "máquinas de trabalho" (machines de travai!), "instrumentos de trabalho" (instrnments de labeur) ou "instrumentos humanos da produção" (instruments humains de la production}, ou seja, como "instrumentos bípedes" (instruments bipedes).148 São categorias que voltam em Nietzsche, o qual também define os trabalhadores assalariados como "máquinas inteligentes" (AC, 57) ou como "instrumentos de transmissão" (XII, 49 1 -2). Neste caso, porém, a referência à antiguidade clássicjt é consciente: as expressões usadas remetem de modo transparente à definição aristotélica do escravo como "instrumento de ação" (ôfíáêôéêi'í) chamado a transmitir o movimento aos "instrumentos de produção" (i'fíãáíá oi'éçôéêá) que são as lançadeiras e cujo funcionamento tor­ na indispensável a figura social do escravo.749 Conhecemos a violenta polêmica de Nietzsche contra uma difusão da instrução que acabaria minando a necessária sujeição das vítimas sacrificais da civilização. Também este tema está bem presente na história do pensamento moderno. Para Necker, "a instrução é proibida aos homens nascidos sem pro­ priedade"; seria uma catástrofe se eles desenvolvessem "a faculdade de refle­ tir sobre a origem das classes" da "propriedade" e das "instituições"; é preciso não perder de vista que "a desigualdade dos conhecimentos" é "necessária para a manutenção de todas as desigualdades sociais"; pôr em discussão "a cegueira do povo" e promover junto dele "o aumento das luzes" significaria fazer o ordenamento social vacilar.750 É um ponto tratado com a costumeira ausência de preconceitos sobretudo por Mandeville: O bem-estar e a felicidade de todo Estado e de todo reino exigem que os conhecimentos de um trabalhador pobre sejam restritos aos limites do seu trabalho e nunca ultrapassem (pelo menos no que respeita às coisas concre­ tas) o limite daquilo que interessa à sua ocupação. Quanto mais coisas do mundo e daquilo que é estranho ao seu trabalho ou emprego um pastor, um lavrador ou qualquer outro camponês conheça, tanto menos apto será de suportar alegria e satisfação as fadigas e a dureza do próprio trabalho.

O fato de sermos obrigados a "gastar cifras astronômicas" para manter trabalhadores em ocupações humildes e cansativas demonstra que "as pessoas de condições mais humildes conhecem coisas demais para nos serem úteis".751 74 8 Sieyes,

1985 d, p. 236; Sieyes, 1985 e, pp. 75 e 81.

749Pol. 1253 b 33-1254 a 8. 750 Necker, 1970-7 1, vol. 1, pp. 130-1 (também este é um trecho para o qual as teorias da mais-valia chamam a atenção: cf Marx-Engels, 1 955, vol. XXVI, 1, pp. 280-1). 1s 1 Mandeville, 1974, pp. 9 1 e 106.

No Kant da Crítica do juízo Nietzsche pôde ler a discussão crítica deste tema: A cultura só pode ser bem desenvolvida na espécie humana por meio da desigualdade entre os homens; porque o maior número deles cuida da ne­ cessidade da vicia quase mecanicamente, sem ter necessidade de uma arte particular, e para o lazer e o otium dos outros, os quais elaboram os elemen­ tos menos necessários da cultura, a ciência e a arte, mantendo os primeiros numa situação de opressão, na qual trabalham duramente e gozam pouco, ao passo que gradualmente se propaga entre eles parte da cultura da classe superior. Com o progresso desta cultura (que, para um certo nível, quando a busca do supérfluo começa a prejudicar o necessário, se chama luxo) os males crescem potencialmente, e em medida igual, de ambas as partes, numa parte pela violência que lhe é imposta, na outra pela intemperança interior; mas a miséria dourada se encontra ainda conjugada com o desenvolvimento das disposições naturais na espécie humana, e o fim da própria natureza, senão o nosso fim, é alcançado dessa maneira. 752

É verdade, o trabalho duro das massas continua a ser o pressuposto do otium da civilização. Mas isto não é agora uma obviedade indiscutível e insupe­ rável, como na tradição que examinamos : 1) começa a emergir a realidade da dura opressão a que a maioria da população está submetida; 2) a minoria privi­ legiada é objeto de crítica pela sua "intemperança" e pelo fato de sacrificar ao próprio "luxo" as necessidades vitais das massas trabalhadoras; 3) este enredo de miséria e duro trabalho por um lado e de riqueza e otium por outro não é mais a civilização enquanto tal, mas uma "miséria dourada" (glanzendes Elend) bem mais ambígua. Nietzsche é bem consciente disso e, exatamente com refe­ rência à Crítica do juízo (§ 65 nota) repreende Kant por ter visto "na Revolu­ ção Francesa a passagem da forma inorgânica do Estado para a forma orgâni­ ca" (AC, 11 ) A consecução da forma "orgânica" pressupõe o reconhecimento em cada homem da sua dignidade intrínseca, com a superação da condição de "instrumentos" imposta à maior parte da humanidade. Kant se identifica tão pouco com o otium da minoria privilegiada que na Pedagogia insiste sobre a importância, ou antes sobre a centralidade do trabalho: a escola deve de algum modo "habituar as crianças a trabalharem". 753 .

752 Kant,

1900, vol. V, p. 432 (Critica dojuízo, § 83). m Kant, 1 900, vol. IX, pp. 470-1 .

5. A Guerra de Secessão, o debate sobre o papel do trabalho e as peculiaridades da Alemanha Compreende-se bem, portanto, a polêmica de Nietzsche. Sobre o radi­ calismo e a falta de escrúpulos de suas posições influi também a peculiarida­ de da situação da Alemanha. Aqui, ao inverso dos países europeus mais avan­ çados, se manifestam com atraso as preocupações apologéticas que come­ çam a emergir na onda da Revolução Francesa e da revolução industrial . No que diz respeito à França, sob retudo depois da revolta operária de junho de 1 848, a tradição liberal parece dar adeus à precedente celebração do otium . Guizot eleva ao trabalho um hino que transp ira hipocrisia: "A glória da civili­ zação moderna consiste em ter compreendido e posto à luz o valor moral e a importância social do trabalho, de ter-lhe restituído a estima e a categoria que competem a ele". O trabalho do qual se fala não é aquele fornecido pelos trabalhadores assalariados ou dependentes; não, ele está "por toda parte nes­ te mundo"; pode ser definido como a infinita "variedade das tarefas e das missões humanas". Uma categoria tão ampla pode agora abranger também a condição daquelas classes sociais que, antes do surgimento ameaçador da questão social e do movimento operário, se gabavam da sua pureza não con­ taminada com respeito à produção material . Guizot não tem dificuldade em esclarecer o significado ideológico do seu discurso. Trata-se de fazer com que "a palavra trabalho" não seja mais um "grito de guerra" c,ontra as camadas privilegiadas . Assistimos assim à tentativa de dobrar essa palavra de ordem para fins exatamente opostos, virando-a con­ tra aqueles que primeiro a tinham agitado e alvejando assim os operários "pou­ co inteligentes, preguiçosos, licenciosos". 754 O alvo, implícita ou explicitamente declarado, é constituído pelos operários revolucionários que, em vez de traba­ lhar, se entregam à vagabundagem política. Reconstruindo a véspera da revolta operária de junho de l 848, Tocqueville olha com espanto e até com um senso de nojo os "temíveis ociosos" que circundam a Assembleia.755 Oisif o termo que servira a Saint-Simon para denunciar as camadas parasitárias que vivem do trabalho alheio, 756 serve agora para rotular os operários revolucionários e "demagogos" em geral . De modo análogo, na Inglaterra, Spencer brada contra os idlers que camuflam o seu parasitismo com uma presumida falta de traba754 Guizot, 1849, pp. 38-40. 755 Tocqueville, 1 95 1 , vol XII, p. 1 3 1 . 756 C( Marx-Engels, 1955, vol. III, p. 452. .

lho . 757 Como obsoletas e até decididamente perigosas, por serem suscetíveis de agudiçar o ressentimento operário e o conflito de classe, são agora percebi­ das a celebração do otium e a configuração do trabalho como uma maldição da qual as classes subalternas não podem fugir. Mas há momentos em que a coerência do novo discurso racha. Agora é Tocqueville que sublinha a loucura inerente na busca de um "remédio contra este mal hereditário e inçurável da pobreza e do trabalho". Parece que se escuta Nietzsche . Por outro lado, quando polemiza contra a "vida de vadios" (Faulenzerleben) à qual aspirariam os teóricos da "serenidade" grega (supra, cap . 2 § 2 e cap. 1 § 1 3), o filósofo alemão assume tons ao modo de Guizot. No entanto, as ocasionais rachaduras na coerência dos dois diferentes discursos não devem fazer com que percamos de vista uma diferença de fundo. Na Alemanha, onde o conflito social é menos agudo, a apologética hipócrita do trabalho se faz perceber sensivelmente mais tarde. Desaparecida na França, a celebração do loisir caro a Constant ressoa mais do que nunca nas páginas de Schopenhauer e Nietzsche, os quais continuam a indicar no otium a condição preliminar de um pleno desenvolvimento das faculdades intelectuais e da civili­ zação enquanto tal . Quando também Guilherme 1 percebe a necessidade de prestar homenagem ao trabalho, segundo o modelo já visto em Guizot, Nietzsche não hesita em gritar até o escândalo por causa da "indecência" do imperador (supra, cap . 1 0 § 2). Mas há outra peculiaridade no desenvolvimento histórico e ideológico ale­ mão. Ela não reside tanto na simpatia difusa que, por ocasião da Guerra de Secessão, a Confederação sulista angaria entre as corporações estudantis e, sobretudo, em "grande parte da nobreza prussiana e dos oficiais do Exérci­ to".758 Também na Grã-Bretanha não são certamente insignificantes os círcu­ los que se comportam de modo análogo.759 Se Bismarck, como sabemos, reve­ la "certo pendor" pelos secessionistas, Disraeli se exprime em termos bastante ásperos sobre o movimento abolicionista. 7ro A peculiaridade do debate na Ale­ manha e sobretudo na Prússia é outra. Desenvolvida desde pontos de vista antagônicos e com juízos de valor contrapostos, de qualquer modo se impõe a comparação entre os grandes plantadores do Sul dos Estados Unidos e os gran­ des proprietários de terra Junker, entre a escravidão negra e a servidão, que 757 Spencer, 198 1 , p. 32. 758 Stolberg-Wemigerode, 1 933, pp. 60- l . 759 CT Marx-Engels, 1 955, vol. XXIII , p. 270 nota eMill, 1965 b, p. 267 (= Mill, 1 976, p. 209). 760 ln E. Williams, 1990, p. 195.

caracteriza a história da Prússia e continua de algum modo a subsistir no mo­ mento em que estoura a Guerra de Secessão. Compreende-se que a nobreza prussiana tenda a identificar-se com os rebeldes do outro lado do Atlântico. Na vertente oposta, um democrata radical, que participou da revolução de 1 848 e, depois de ter passado pela prisão, teve uma estada de alguns anos nos Estados Unidos, publica em 1 863 um livro com um capítulo de título de per si significativo: O proprietário de plantações _do Sul ou o barão do algodão do Novo Mun­ do, com uma clara aproximação entre aristocracia fundiária prussiana e proprie­ tários americanos de escravos.761 Num e noutro caso - reforça outro escritor quase três décadas mais tarde - a riqueza e o ócio dos senhores são o resultado do "trabalho coagido de homens não livres" (Zwangsarbeit von Unfreien).162 Em virtude também desta comparação, além da sorte dos escravos ne­ gros, a disputa da Guerra de Secessão é identificada na condição do trabalho enquanto tal . Lincoln é o defensor da causa do "trabalho livre" (freie Arbeit), declaram as associações operárias berlinenses por ocasião do assassinato do presidente americano. 763 Se a imprensa antiabolicionista sublinha que "o negro escravo (horig) participa neste caso da sorte de toda a classe chamada a servir (dienende Classe) dentro do mundo civilizado",764 um artigo publicado nos "Preufüsche Jahrbücher" critica o fato que, para os defensores da escra­ vidão, ela, independentemente da "cor" da pele, "constitui a condição natural das classes trabalhadoras", enquanto "o trabalho livre" deveria ser considera­ do como "uma experiência fracassada da sociedade modema".765 A realidade da Confederação e o discurso dos seus ideólogos se baseiam no pressuposto da "identidade do trabalho e da escravidão".766 Criticada aqui, a tese da "identidade" acaba de algum modo por se firmar também na Prússia. Podemos ler em Treitschke: "A massa permanecerá sempre a massa. Não há civilização sem servos" (Dienstboten); "milhões de pessoas devem trabalhar a terra, ou o ferro ou a madeira, para que poucos milhares possam pesquisar, pintar ou fazer poesia". 767 É a visão que já conhecemos de Nietzsche, segundo o qual são as dificuldades e a escravização da massa que 76 1 Griesinger, 1863, pp. 64 seg. Sobre isto cf. Bowman, 1993, p. 27. 762 Kna pp, 1891, p. 57. 763 Stolberg-Wernigerode, 1933, pp. 76-7. 764 Duttenhofer, 1855, p. 73. 765 Rieffer 1858, pp. 300-1. 766 Rieffer, 1858, p. 302. 767 Treitschke, 1897-98, vol 1, pp. 50- 1. ,

.

"tomam possível que um número restrito de homens olímpicos produzam o mun­ do da arte" (CV, 3 ; 1, 767). E, às ideias fixas igualitárias, como o filósofo, também o historiador contrapõe a "aristocracia natural". 768 Só a rebeldia contra a neces­ sidade das coisas e as exigências da civilização motivam "a inveja e a cobiça". 769 Ou seja, o ressentiment sobre o qual, como veremos, Nietzsche insiste. Enquanto do outro lado do Atlântico a guerra é violenta, um fervoroso abolicionista cristão escreve que está em jogo uma aposta de caráter universal, a "honra e a dignidade dó trabalho". Ehre und Würde der Arbeit é a palavra de ordem posta em destaque por Nietzsche, que a ela contrapõe a tese da escravidão como pressuposto inevitável da civilização, como é testemunhado, em primeiro lugar, pela antiguidade clássica. E o fervoroso abolicionista cristão acusa de fato os secessionistas da Confederação de p retenderem uma "hilotização dos operários" em escala internacional, reproduzindo no mundo moderno a degradação à qual o trabalho estava submetido no mundo antigo. 770 Somos de novo conduzidos a Nietzsche. Ele não se cansa de celebrar a superioridade da antiguidade clássica; felizmente, ainda no mundo moderno, embora em círculos restritos, continua a sobreviver "o sentido aristocrático de que o trabalho desonra" (A rbeit schandet). Não é, porém, essa visão do mun­ do não apenas dos Junker, mas também dos proprietários das grandes planta­ ções no Sul dos Estados Unidos? Ambos - observa o escritor democrático radical já citado - se deixam guiar, no seu "modo de pensar e de viver", por um princípio fundamental: "Fazer os outros trabalharem no seu lugar: o trabalho em primeira pessoa desonra" (Selbstarbeit schandet) . À "classe operária" (Arheiterstand), que compreende indistintamente escravos e servos de qual­ quer tipo, se contrapõe o "gentleman exclusivo" e preocupado em ser e man­ ter-se "distinto" (vornehm).771 De qualquer modo, a observação é confirmada por Tocqueville, pelo me­ nos no que respeita à classe dominante no Sul dos Estados Unidos: o valor mais alto é a oisiveté, o otium, enquanto "o trabalho se confunde com a ideia de escravidão".772 Um abismo separa o mundo do otium e da cultura do mundo do trabalho e da escravidão: "Sob penas severas é proibido ensinar os escravos a ler e escrever". 773 Preocupações análogas são expressas também pelos 768 Treitschke,

1897-98, vol. 1, p. 6 1 .

1973, p. 1 8 1 . 77º Como em V.A. Huber, citado i n Cronholm, 1958, pp. 87-8. 77 1 Griesinger, 1863, p. 7 1 . 769 l n Iggers,

1 95 1, vol. 1, 1 , pp. 392 e 362 (DA, livro 1 , parte II, cap. 10). m Tocqueville, 195 1, vol. 1, 1, p. 377 (DA, livro 1, parte II, cap. 10). 772 Tocqueville,

Junker: ·'Quem - se pergunta F. A. L. von der Marwitz - alugará um só servo (Knecht) que se to rnou ladino (klug) na escola?"774 E de novo somos reconduzidos a Nietzsche. Este, é verdade, no período "iluminista" se refere ao exemplo edificante de Diógenes, "ao mesmo tempo escravo e preceptor" (MA, 45 7), ou de Epicteto, ao mesmo tempo escravo e mestre de vida, capaz de aceitar a condição própria sem se abandonar às expectativas e às esperanças dos escravos cristãos (M, 546)': É clara, porém, a orientação de fundo: o traba­ lho é sinônimo de escravidão e, seja antigo ou moderno, o servo ou o escravo deve ser excluído de qualquer forma de instrução, de modo que não cultive ilusões ou pretensões que se condizem só ao senhor.

6. Otium e trabalho: a liberdade e a escravidão dos antigos e dos modernos O choque sangrento nos Estados Unidos estimula um debate sobre o pa­ pel do trabalho, que é ao mesmo tempo uma nova querela entre antigos e modernos. Nietzsche parece intervir, de modo original e provocador, no debate sobre liberdade antiga e moderna aberto por Constant. É neste contexto que pode ser colocada a tese da escravidão como funda­ mento i rremovível não só da civilização grega, mas também da civilização en­ quanto tal . Se o liberal francês assimila jacobinos e nostálgicos da antiguidade clássica como Inimigos da liberdade dos modernos, Nietzsche rotula, como se­ guidores da modernidade e associados pelo ódio "contra a antiguidade clássi­ ca" não só comunistas e socialistas, mas também os "seus mais inexpressivos descendentes, a raça pálida dos ' liberais'" (CV, 3 ; 1, 767-8). Quando fala de "socialistas" e ..comunistas", o autor de O Estado grego, aqui citado, pensa em primeiro lugar em Lassalle. Este, de fato, zomba da ingênua transfiguração da antiguidade clássica por obra de uma "massa de gente que, se hoj e fosse transportada para a Grécia, poderia no máximo ser usada para os oficios mais baixos de escravos ou de hilotas, e se maravilharia verdadeiramente por apren­ der às próprias custas um exemplo de urbanidade ática".775 Por outro lado, os liberais visados por Nietzsche são aqueles que, celebrando a liberdade moder­ na em contraposição com a antiga, e classificando como inadmissível toda for­ ma de escravidão, bem longe de opor-se à maré jacobina e socialista, acabam 774 Marwitz, 1965, p. 143 . 775 Lassalle, 1970, p. 10. Carl von Gersdorfffaz referência a este tex1o e convida Nietzsche a lê-lo (carta de 15 de fevereiro de 1868, in B, vol. 1, 3, p. 229).

engrossando-a, alimentando ulteriormente uma revolta servil que, como de­ monstra a Comuna de Paris, não cessa de crescer. E de novo surge a discrepância no desenvolvimento ideológico dos dois países. Enquanto de um lado do Reno os jacobinos se referem à polis para edificar, sobre os escombros do Ancien régime, a comunidade dos citoyens, do outro lado do rio vemos desenvolver-se um neoclassicismo de sinal bem diferente: em 1 703, Wilhelm von Humboldt - um autor que Nietzsche, impelido pela sua sede de "cultura universal", lê e aprecia já nos anos da adolescência (A, 73) - observa que, mesmo representando "um meio injusto e bárbaro" (supra, cap. 1 § 1 ), a instituição da escravidão, de qualquer modo, conseguiu o resultado de exonerar os livres do trabalho e do "exercício unilateral do corpo e do espírito", tomando possível o desenvolvimento da esplêndida era da Grécia clássica. 776 Alguns anos depois, Schelling lamenta "o fim da humanidade mais nobre que já floresceu", 777 ou seja, do "florescimento mais belo da humanidade"; 778 porém essa lamentação aflita está em função da condenação do mundo moderno e da "chamada liberda­ de política" (bürgerliche Freiheit), vista e desprezada como a simples e "mais turva mistura da escravidão com a liberdade".779 Isto é, se na França perturbada pela revolução, a referência à antiguidade clássica significa a celebração da ágora e da participação unânime dos cida­ dãos na vida pública, na Alemanha, onde ainda domina sem oposição o antigo regime e o único campo aberto para a atividade dos intelectuais é constituído pela cultura, a antiguidade clássica é sinônimo de esplêndida civilização à medi­ da que é sinônimo de schole, isto é, pelo fato de ter permanecido aquém da divisão intelectual do trabalho que caracteriza a arruinada decadência do mun­ do moderno. Quando irrompe a revolução de 1 848 nas duas margens do Reno, a dife­ rença ideológica entre os dois países parece reduzir-se. Como Constant critica os jacobinos e Rousseau, assim na Alemanha, sempre em nome da liberdade moderna, Haym procede à liquidação de Hegel, também ele culpado de ser fo rtemente condicionado pelo modelo grego, cujo acento sobre o ético e sobre o político é agora inconciliável "com as necessidades da realidade moderna e da consciência moderna". Se para Constant o primado da riqueza sobre o po­ der político é constitutivo da liberdade moderna, para Haym o Estado moderno, mais do que partir do "universal abstrato", como em Rousseau e em Hegel, isto 1 903-36 b, pp. 270-1 (§ 26). 1856-6 1 , vol. III, p. 604. 778 Schelling, 1856-6 1 , vol. V, p. 225. 779 Schelling, 1 856-6 1 , vol. V, p. 3 14. 776 Humboldt, 777 Schelling,

é, de um projeto de comunidade, deve limitar-se a legitimar politicamente a articulação em categorias ou classes (standisch) da sociedade civil e, portanto, das relações sociais existentes.780 Num caso e no outro é preciso acabar com a celebração da polis antiga, que não só evoca a lembrança da comunidade dos citoyens querida dos jacobinos, mas, pior ainda, com o acento colocado no político e, por isso, no desconhecimento imp lícito da centralidade e da intranscendentabilidade da figura e da esfera do bourgeois, parece evocar diretamente o espectro do comunismo. 781 No entanto, entre os dois países continua a existir uma diferença de fundo, que pode ser evidenciada a partir do Schelling posterior a 1 848. Eis em que termos ele se dirige ao povo alemão: Deixai que vos acusem de ser um povo apolítico, porque a maioria de vós prefere ser governada a governar - ainda que muitas vezes não o sejais, ou sejais mal governados -, vós que considerais maior sorte ter o otium, espí­ rito e alma do que coisas que levem a discussões políticas. 782

Se em Constant o otium era o pressuposto político da liberdade moderna, de um governo capaz de garantir a liberdade moderna, protegendo-a da ilusão de uma participação de massa na vida pública e das paixões "infantis" dos não­ proprietários, em Schelling, numa Alemanha que ainda não conseguiu sacudir de suas costas o peso do absolutismo monárquico, o otium coincide com a tranquila aceitação de ser governados, com o gozo não perturbado, mais do que da propriedade privada, da vida espiritual interior. Há mais, porém. O liberal francês recupera o otium sem uma referência consciente à antiguidade clássi­ ca, antes no curso de uma polêmica cerrada contra a liberdade antiga. Schelling, ao contráriõ; faz referência explícita a Aristóteles, com o qual os alemães con­ cordam ao sustentar "que a primeira função do Estado é de garantir o otium aos melhores". Não só, mas se no liberal francês a ridicularização do pathos político antiquado dos jacobinos comporta a evidência e a denúncia da escravi­ dão no mundo grecorromano, Schelling, ao condenar as ilusões e as utopias do movimento revolucionário, não hesita em se referir ao Aristóteles teorizador do caráter natural da escravidão: "A um compete ser escravo, ao outro ser se­ nhor". É um trecho da Política que a Filosofia da mitologia cita para de­ monstrar o fato de que não "pode haver qualquer tipo de organização que não comporte ·desde o nascimento ' uma distinção entre dominadores e domina780 Haym, 1974, pp. 26, 377-8 e 389-90 781 Cf. Losurdo, 1983 a, em particular cap. 1, 4-6 e II, 1-2. 782 Schelling, 1 856- 186 1 , vol. XI, p. 549.

dos". 783 Pelo menos no que diz respeito à Europa, a escravidão antiga é cha­ mada a testemunhar a favor do absolutismo monárquico, quando a escravidão propriamente dita pode ser pensável, se for o caso, apenas para os negros. 784 Encontramos em Schopenhauer o mesmo desprezo pela política e a mesma celebração do otium: a "independência" econômica, o afastamento das preocu­ pações materiais e do trabalho e da profissão continuam a ser as condições ne­ cessárias do "autêntico filosofar", ou melhor, de toda cultura verdadeira. Ela não deve ser dirigida para o desenvolvimento da profissão na vida civil e muito menos para o compromisso na vida política. O erro, ou antes, o crime de Hegel é exata­ mente ter inoculado nos jovens "a mais rasteira, a mais filisteia, a mais vulgar visão da vida", extinguindo todo "ímpeto por algo de nobre" e absolutizando "os interesses materiais aos quais pertencem também os interesses políticos".785 Ao manifestar o seu desprezo pelo trabalho e pela profissão, Schopenhauer faz referência a Teógnis,786 o autor que depois se toma particularmente caro a Nietzsche. Com este último, se desfazem as ambiguidades anteriores. Na sua luta contra a revolução, Schelling se serve da autoridade tanto de Aristóteles como de Paulo de Tarso para recordar aos esquecidos a desigualdade natural entre governantes e governados e diretamente entre senhores e escravos. Nietzsche, porém, tendo superado as primeiras incertezas, faz a revolta servil partir do cristianismo ou, melhor, da tradição judeucristã. Em segundo lugar, ele invoca a Grécia sim, mas a Grécia precedente à chegada da polis e ainda imune à doença da democracia, a Grécia cuja esplêndida cultura repousa na existência indiscutida da escravidão. Ao pôr sob acusação os expoentes da filosofia clássica alemã como carentes de "independência" material e de estranhos ao ideal do otium, deste julgamento de condenação Schopenhauer exclui, instrumentalmen­ te, o autor da Crítica da razão pura, da qual tão amplamente e�1rai O mundo como vontade e representação . É bem diferente a posição de A lém do bem e do mal, que insere Kant, junto com Hegel, entre os "operários da filosofia", em vez de pô-los entre os ''verdadeiros filósofos" (JGB, 2 1 1 ). Nietzsche não tem dificuldade em farejar tudo o que de vulgar e plebeu há num autor que se gaba do ..tom de distinção" dos aristocratas preguiçosos (infra, cap. 22 § 2). Agora o quadro é claro. No mundo moderno é geral o contágio do trabalho e da ideologia do trabalho, com uma pavorosa decadência com respeito à antiguidade clássica, que, ao se libertar de toda incrustação jacobina, toma-se univocamente Schelling, 1856- 186 1 , vol. XI, p. 530 e nota. Schelling, 1856-186 1 , vol. XI, pp. 5 14-5; sobre isto cf. Lukács, 1 974, pp. 179-80. 785 Schopenhauer, 1976-82 c, vol. IV, pp. 238, 205 e 2 13 . 786 C f. Schopenhauer, 1976-82 e, vol. IV, p. 1 84 e pp. 237-8. 7M}

784

sinônimo de escravidão nas suas diversas formas e articulações: para Nietzsche, a "classe de escravos", da qual gozavam a Grécia e a antiguidade clássica, deve continuar a existir, ainda que em formas novas, no moderno proletariado, se se quer evitar a ruú1a da civilização. Se, antes, a subversão política e social era acusada de assumir cores antiquadas, agora é acusada de renegar a herança e a lição da antiguidade clássica. Constant censura os jacobinos por terem esquecido a escravi­ dão como fundamento da liberdade antiga admi rada por eles. O aristocrata radical lembra ao liberal francês tudo o que de antiquado há na visão com base na qual só a separação do traballlo garante o gozo dos direitos de cidadania.

7. Marx, Nietzsche e a "mais-valia " Como no mundo antigo, assim no moderno o otium dos melhores, ou seja da classe dominante, fundamenta-se - observa Nietzsche com a costumeira falta de escrúpulos - sobre a "mais-valia" (Mehrarbeit) fornecida pelos es­ cravos ou pelos servos de todo tipo (CV, 3; 1, 767). Também esta categoria tem uma longa história. No Século XII - observa Tocqueville - não tinha ainda surgido o Terceiro Estado e, portanto, a situação pode ser caracterizada assim: de um lado havia "aqueles que cultivavam a terra sem possuí-Ia" e, do outro, "aqueles que possuíam a terra sem cultivá-la".787 Na realidade, é uma situação que continua a existir ainda alguns séculos depois, a julgar pelo menos por Taine : no Antigo regime vemos uma "classe que, grudada à gleba, sofre a fome há sessenta gerações para alimentar as outras classes".788 Como é confirma­ do em particular pelo quadro traçado por La Bruyere: homens ou talvez "ani­ mais selvagens" com aspecto humano habitam em "tocas" e "vivem de pão preto, d� água e de raízes" e desse modo "poupam para os outros homens a pena de semear, de trabalhar e de colher para viverem".789 Montesquieu, por sua vez, não tem dificuldade de identificar a fonte do luxo (e, em última análise, da civilização) no "trabalho alheio" (travai/ d 'autrui) .190 Imediatamente antes de Nietzsche, Schopenhauer indica com clareza no "trabalho desmedido" de uma massa de operários, escravos ou semiescravos, o fundamento do otium de poucos e do desenvolvimento da civilização enquanto tal. 791 7�1 Tocqueville, 1 95 1 , vol. XVI, p. 1 2 1 . 7ss Taine, 1899, vol. II, p. 6 1 (= Taine, 1986, p. 430). 7�9 Taine, 1899, vol. II, pp. 199-200 (= Taine, 1986, p. 569). 790 Montesquieu, 1949-5 l, p. 332 (livro VII, 1 ). 791 Schopenhauer, 1 976-82 c, vol. V, p. 29 1 .

Nietzsche é mais preciso. Ao falar de "mais-valia" se exprime com a mesma linguagem de Marx, segundo o qual a extorsão de "mais-trabalho" (Mehrarbeit) ou "mais-valor" (Mehrwert) já não é o fundamento natural e insuperável da civilização enquanto tal, mas de uma sociedade fundada na ex­ ploração de classe. Poder-se-ia dizer que o debate sobre o trabalho chega às suas consequências extremas na Alemanha e, mais exatamente, nas duas pla­ taformas teóricas e polít!cas contrapostas de Nietzsche e de Marx. Os dois concordam em aproximar sociedade antiga e sociedade capitalista: ambas fim­ damentam-se no "mais-trabalho", que os beneficiários do otium impõem aos seus servos. Permanecendo clara a antítese no que respeita ao juízo de valor, Nietzsche não teria tido dificuldade em subscrever esta análise de Marx: "Os povos modernos não souberam fazer outra coisa senão mascarar a escravidão no seu próprio país e impuseram-na sem máscara no novo mundo". 792 Os dois se ignoram mutuamente. Mas o primeiro critica as teses do se­ gundo, lendo-as, ainda que de forma parcial, esquemáticas e muitas vezes distorcidas, em Dühring. Este, ao exprimir a própria simpatia pelos "elementos oprimidos da sociedade" e o próprio compromisso na luta contra as "injustiças sociais",793 junto com os "sistemas econômicos baseados no pedestal da es­ cravidão, seja a antiga ou a americano-moderna ou colonial'', condena o "tra­ balho assalariado semilivre" do mundo moderno que, na realidade, é uma espé­ cie de escravidão,794 condena a "escravidão em sentido estrito e em sentido amplo" (eigentliche und uneigentliche Sklaverei).195 Novamente são ataca­ dos pela análise crítica os Estados Unidos da Guerra de Secessão e a Europa da revolução industrial, a metrópole capitalista e as colônias, mundo moderno e mundo antigo, tudo junto. Mas com a sua pretensão de querer emancipar o trabalho enquanto tal, Dühring - objeta Nietzsche - se revela um "anarquista" (JGB, 204), pelo fato de pôr em discussão os fundamentos mesmos de todo ordenamento social e da civilização enquanto tal. Por sua vez, embora ignorando Nietzsche, Marx conhece bem um autor francês do Século XVIII que parece ter algum ponto de contato com o filósofo alemão. Trata-se de Linguet, que considera a escravidão como uma condição eterna da civilização, de modo que o recurso a nomes mais "suaves" não muda nadá da substância da coisa. Sim, "a essência da sociedade [ . . . ] consiste em exonerar o rico do trabalho; desse modo lhe são fornecidos novos órgãos, mem792 Marx-Engels,

1 955, vol. IV, p. 1 32.

793 D ühring,

1 871, p . 385.

794 Dühring,

1873, p. 16. 1 871, p. 400.

795 Dühring,

bros incansáveis que tomam sobre si todas as operações cansativas de cujo fruto o rico se apropria".796 Marx julga o autor francês ao mesmo tempo "reacioná­ rio", por causa da sua saudade da instituição da escravidão,797 e brilhante, pelo fato de desmascarar eficazmente a ideologia dominante, revelando a persistente realidade da escravidão e da mais-valia.798 Se tivesse podido, Marx teria inserido também Nietzsche, junto com Linguet, nas suas Teorias da mais-valia, entre aqueles autores modernos que não hesitam em pronunciar sem fingimento o se­ gredo da acumulação capitalista (o tabu inviolável da apologética vulgar), sem sequer esconder o que há de escravista no moderno trabalho assalariado.

8. Raça dos senhores e raça dos servos: Boulainvilliers, Gobineau, Nietzsche Nietzsche, porém, exatamente porque tem constantemente presente o modelo da antiguidade clássica, e não se cansa de sublinhar a identidade entre trabalho e escravidão, confere pouco espaço para a escravidão racial propria­ mente dita. A escravidão é, em primeiro lugar, o resultado de uma exigência objetiva e irresistível da civilização e em si tem pouco a ver com a cor da pele. Posições análogas surgem também do outro lado do Atlântico durante o debate que precede a Guerra de Secessão. Mesmo defendendo, em polêmica com os abolicionistas, a escravização dos negros, Fitzhugh critica a ideia de "limitar a esta raça a justificação da escravidão": "Nos tempos antigos nada nos é dito de uma escravidão negra". Certamente, por causações históricas e de oportunida­ de, a população de origem africana constitui o reservatório mais conveniente para o fornecimento da força-trabalho servil da qual a civilização tem necessi­ dade; de resto, "seja ela negra ou branca, a escravidão é justa e necessá­ ria".799 Não é diferente o ponto de vista de Nietzsche que, embora olhando de modo particular para o mundo colonial como fornecedor de força-trabalho for­ çada, não exclui absolutamente a promoção de uma "chinesaria operária" no próprio coração da Europa. É verdade que em Genealogia da moral a dicotomia senhores/servos corresponde à dicotomia "raça loura dominante" de origem ariana/"habitantes originários de cabelos escuros" de origem não ariana (GM, 1, 5); nem por isso 796 ln Marx-Engels, 1955, vol. XXVI, 1, pp. 320 seg. 797 Marx-Engels, 1 955, vol. XXVI, 1 , p. 320. 798 Marx-Engels, 1 955, vol. XXIII, pp. 643-4, nota .

799 Fitzhugh, 1 854, pp. 98 e 225.

é preciso entregar-se a conclusões precipitadas. Aos olhos do filósofo, a con­ tradição principal é aquela que contrapõe não já nações e grupos étnicos, mas senhores e servos bem sucedidos e mal sucedidos. É um traço que se pode observar já a partir do escrito sobre Teógnis. O poeta grego sintetiza assim a decadência, diante da degeneração de Mégara e da sua nobreza: "a riqueza confunde a raça" (genos). O jovem filólogo e estudante comenta assim: "Acon­ tece que, enfim, os nobres. não se separavam mais da plebe, mas procuravam riquezas contraindo matrimônios recíprocos, enquanto os plebeus desse modo podiam aspirar à nobreza e consegui-Ia" (DTM, 1 6; p. 6 1 ). Para esclarecer melllor esse ponto, podemos partir de Boulainvilliers, que no início do Século XVIII interpreta o conflito entre aristocracia e Terceiro Estado como conflito entre os francos conquistadores e os galorromanos derrotados e escravizados. Violentamente hostilizadas pelos teóricos e pelos seguidores da Re­ volução Francesa, as teorias de Boulainvilliers encontram "um eco favorável no ambiente dos exilados".800 Com efeito, é uma leitura que se encontra também em Montlosier. Nietzsche cita e subscreve claramente a tese deste "Emigrant" as­ sim o defme - segundo o qual o ano de 1 789 não representa outra coisa senão a sublevação de uma "raça de escravos", os galorromanos derrotados, e generosa­ mente poupados, pelos francos conquistadores (XII, 4 1 2). Como se sabe, Thieny faz sua essa tese a fim de usá-la para fins politicamente opostos, para celebrar a revolta do lerceiro Estado como luta de emancipação e de liberdade da qual é protagonista uma classe ou uma raça escravizada e oprimida.801 Ele se identifica com os "vencidos" e celebra e sente como própria a causa dos "fill10s dos venci­ dos".802 Compreende-se então a censura que Nietzsche faz ao historiador francês; a sua ''lústoriografia" está atravessada pela "compaixão por tudo o que sofre e é mal sucedido" (XII, 558); nesse sentido, Tlúeny representa "a revolta popular na própria ciência" (XIII, 1 99). Nietzsche estende a leitura desenvolvida por Montlosier para a Revolução Francesa e a aplica para a situação que se criou na Europa depois da Comuna de Paris : assim é denunciada a tentativa "de misturar radical­ mente as classes e, por conseguinte, as raças" (JGB, 208). A racialização que ele faz do conflito político social é, pelo menos no que diz respeito à Europa, transversal, no sentido de que atravessa e divide toda comunidade nacional opondo senhores e servos, sucedidos e mal sucedidos, aristocratas e populacho (infra, cap. 25 § 5). No entanto, a dicotomia cara a Boulainvilliers, que legitima a escravidão dos galorromanos, não podia ser subscrita plenamente por Nietzsche, que vê -

Arendt, 1 966, p. 163 (= Arendt, 1 989, p. 228). MOI Cf. Omodeo, 1 974, pp. 278-309. �02 ln Poliakov, 1987, p. 43. Moo

exatamente no declínio da antiguidade clássica um momento decisivo da sub­ versão plebeia e antiaristocrática. A dicotomia é, pois, reformulada com o olhar voltado para a irrupção ariana na Índia, onde a divisão em castas continua ainda a ser vital. Podemos agora compreender o papel da mitologia ariana em Nietzsche. Já presente em O nascimento da tragédia, ela reaparece com força maior na última fase da sua evolução. Contudo, diferente do que aconte­ ce nos autores e nas correntes antissemitas, aqui ariano não é contraposto a judeu: é sinônimo de nobre e áristocrata assim como antiariano é sinônimo de plebeu e vulgar. Poder-se-ia dizer que, em seguida à irrupção da mitologia aria­ na, Nietzsche mergulha e enxagua de novo no Ganges o tipo de leitura do conflito social sugerida por Boulainvilliers : os arianos tomam o lugar dos fran­ cos, enquanto os galorromanos são substituídos pelos "sudra, uma raça de ser­ vos; provavelmente uma espécie inferior de povo, que foi encontrada no terri­ tório do qual esses arianos se instalaram" (XIII, 396). A nova dicotomia, que tomou o lugar daquela cara a Boulainvilliers, tem agora a vantagem de ser válida não em relação a um país determinado, mas a nível internacional; além do mais, ela está em condição de incluir na raça domi­ nante também os antigos gregos e os antigos romanos. Daí resulta um quadro unitário no plano espacial e no temporal. O código Manu, este "produto absolu­ tamente ariano", exerce uma influência sobre o Platão melhor, teórico exata­ mente das castas (B, III, 5 , p. 325). Por outro lado, o início da revolta servil é bem anterior à sublevação antinobiliária dos plebeus franceses : o cristianismo representa "a transvaloração de todos os valores arianos, a vitória dos valores dos chandala, o Evangelho pregado aos pobres, aos humildes, a revolta total de todos os oprimidos, os miseráveis, os mal sucedidos, os degradados, contra a "raça", a vingança imortal dos chandala como religião do amor" (GD, Aqueles que "melhoram . . a humanidade, 4). Agora é preciso reavaliar os valores cristãos para rechaçar os chandala e garantir o triunfo da "humanidade aria­ na" . Eis proclamado o ideal de uma sociedade dividida em castas. Para separá­ las e mantê-las há rígidas barreiras e medidas impiedosas em prejuízo daqueles que ousassem violá-las . Voltamos à proibição de miscegenation existente no Sul dos Estados Unidos, que agora, porém, é reformulada em perspectiva de apartheid mais social do que racial . Percebe-se nisso a presença de Gobineau, o qual celebra os arianos que invadem a Índia, dizimando e subjugando as "raças aborígines" pertencentes ao ·'tipo negro".803 "Orgulhoso de sua própria condição" e apegado à "ideia nobiliária", o vencedor e conquistador cuida de não se misturar e confundir Mo3 Gobincau, 1997, p. 364 (livro III, cap. 1).

ili

com a "multidão": mantém bem distante de si "os pobres, os prisioneiros, os escravos, numa palavra os metecos e os seres de raça inferior". 804 Gobineau descreve satisfeito a violência que se desencadeava em prejuízo daqueles que violavam a proibição de miscegenation e da sua prole, os chandala: "Pode-se dizer que a expulsão, e até a morte, representavam bem pouca coisa" em rela­ ção com a sorte reservada a "todos os desventurados nascidos dos cruzamen­ tos causados por casamentos proibidos".805 É clara a satisfação também de Nietzsche pelas medidas drásticas que no âmbito da sociedade de casta atin­ gem "o homem-não-de-criação (Nicht-Zucht-Mensch), o homem híbrido (Mischmasch-Mensch), o chandala", ou seja - prossegue o filósofo citando o código Manu - "o fruto do adultério, do incesto e do delito". Sim, "para esta organização foi necessário ser terrível" (GD, Aqueles que "melhoram " a humanidade, 3). Gobineau observa em tei-mos análogos: "Se se quisesse im­ pedir o sistema de morrer [ ] um remédio vigoroso devia rapidamente caute­ rizar a chaga" dos matrimônios mistos; "a categoria dos chandala respondia a uma necessidade implacável da instituição". Eles são considerados e tratados como um veículo de contaminação: "Uma fonte onde eles bebiam estava con­ denada"806 Nietzsche, por sua vez, refere a norma segundo a qual "a água de que eles necessitam não pode ser tomada nem dos rios, nem das nascentes, nem dos lodaçais, mas apenas das entradas dos pântanos e das covas feitas pelas pisadas dos animais". É assim que a "humanidade ariana" consegue manter-se "absolutamente pura, absolutamente original"; a ideia de pureza, "a ideia de 'sangue puro' é o oposto de uma ideia inócua" (GD, Aqueles que "melhoram " a humanidade, 3-4). "Ser aqui duros é sinônimo de ser 'sadios' : é o nojo pela degeneração" (XIII, 297). E Gobineau, sempre a propósito dos chandala: ·'a simples aproximação destes tristes seres constitui uma sujeira" da qual é preciso absolutamente lavar-se. Apesar de tudo, porém, é preciso não perder de vista a fundamental "doçura dos c0stumes hindus".807 Estamos na presença - observa por sua vez Crepúsculo dos ídolos de "um tipo humano cem vezes mais manso e mais racional" do que o cristão ou o europeu moderno (GD, Aqueles que "melhoram " a humanidade, 3). Embora citado de modo explícito apenas numa carta tardia (8, III, 5, p. 5 1 6), o autor do Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas começou ...

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804 Gobineau, l 997, pp. 53 l e 789 (livro IV, cap. III e livro VI, cap. III). 805 Gobineau, 1997, p. 404 (livro III, cap. II). 806 Gobineau, 1 997, pp. 404 e 406 (livro III, cap. II). 807 Gobineau, 1997, p. 404 (livro III, cap. II).

a exercer a sua influência já diversos anos antes. 808 E isto se compreende bem: ''Nenhum outro escritor moderno compenetrou-se tão profundamente daquele sentimento que Nietzsche define como pathos da distância".809 Por outro lado, para o autor francês, depois do processo de mistura do sangue e do abastarda­ mento geral, nenhuma nação historicamente constituída pode reivindicar uma completa pureza racial, de modo que, pelo menos potencialmente, cada país se apresenta dividido transversalmente no plano racial e de casta. Neste sentido, Gobineau retoma e reelabora uma tradição de pensamento que remonta a Boulainvilliers. Nietzsche procede de modo análogo : escravidão antiga e socie­ dade de castas hinduista se fundamentam no modelo de "nova escravidão" reivindicada pelo radicalismo aristocrático.

808 Fõrster-Nietzsche, 1895-1904, vol. II, p. 886; cf. Verrecchia, 1978, pp. 60-1 e Cancik, 1997, p. 56. 809 Cassirer, 1946, pp. 235-6.

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13 " HIERARQUIA " ' GRANDE CORRENTE DO SER E GRANDE CORRENTE DA DOR 1. O carro da civilização e a compaixão pelos escravos as por que os escravos ou os membros das castas inferiores devem su­ portar seu destino sem se rebelar? A resposta é clara: porque este é o preço da civilização; por outro lado, "os muitos" não têm nenhum valor intrinseco, "existem para ser servos e para a utilidade coletiva e apenas por isso têm direito de existir" (JGB, 6 1 ). O que empana a consciência da necessidade desse sacri­ fício é o sentimento de compaixão, que impede de olhar com a necessária lucidez e frieza para o sacrificio do escravo no altar das exigências da civilização. Mais uma vez, Nietzsche se refere à antiguidade clássica e a Aristóteles (IX, 1 28). Porém não é difícil divisar a tradição também moderna que está por trás de tal visão. Mandeville condena "o sentido irracional de reverência mesquinha pelos pobres" e considera que "é uma fraqueza imperdoável ser excessivamente com­ passivo quando a razão o proíbe e o interesse geral da sociedade exige firmeza nos nossos pensamentos e nas nossas decisões".810 A compaixão é configurada como a absolutização doentia do individual que coloca em perigo o desenvolvi­ mento ordenado do universal . Burke não só condena aqueles que procuram "ex­ citar a compaixão", mas também acrescenta que, "se temos compaixão como pobres por todos aqueles que devem trabalhar para que o mundo possa existir, brincamos com a condição da humanidade".81 1 O desenvolvimento da industrialização e da acumulação capitalista, com os terríveis custos humanos e sociais que comporta, impõe um 1útido endurecimento de atitude para com os pobres . Nas palavras de reconhecidos historiadores, na Inglaterra, a partir da metade do Século XVII, novas "doutrinas fizeram da dure­ za um dever em vez de um pecado, e apagaram os impulsos naturais de pieda­ de".81 2 A quase dois séculos de distância, a situação não parece ter mudado: "A compaixão foi afastada dos corações" enquanto "uma determinação estoica de

M

81 0 Mandeville, 1 974, pp. l 15-6. 8 11 Burke, 1 826, vol . VIII, p. 368. 812 Tawney, 1 975, pp. 5 1 1-2.

renunciar à solidariedade humana [ ... ] conquistou a dignidade de uma religião secular" .813 Compreende-se então a tomada de posição de Malthus : a compai­ xão "é uma paixão que, sob certos aspectos, é cega e irrefletida".814 Mas quem nos reconduz para perto de Nietzsche é sobretudo o Linguet já citado. A polêmica de Rousseau contra a escravidão - observa ele - é o discur­ so típico dos "corações compassivos". Mas "o sentimento da comiseração é justamente bem pouca coisa aos olhos da política" e dos políticos, bem consci­ entes do fato que a civilização enquanto tal "está fundamentada inteiramente sobre a aniquilação dos direitos da natureza", em nome dos quais Rousseau queria ver banida a escravidão. O legislador deve saber ser "sem piedade". Se esta tivesse livre curso, junto com a escravidão seria ameaçada também a hierarquia sobre a qual necessariamente repousa a organização social: "Há necessidade de classes, de distinções no mundo".81 5 Com Linguet estamos ainda aquém de 1 789. Durante o processo de radicalização da Revolução Francesa, quando a irrupção das massas populares na cena política levanta o pano do drama da sua miséria, a condenação da compaixão adquire nova urgência. Aos olhos de Sade, "longe de ser uma virtude, ela se toma um vício real, logo nos leva a perturbar uma desigualdade querida pelas leis da natureza", quando "per­ verte a lei wuversal". 81 6 Nos anos seguintes, o debate sobre a revolução se configura também como o debate sobre o papel da compaixão. Os philosophes - observa Momuer - desacreditaram o instituto da escravidão aos olhos de "todos os homens que não têm um coração de tigre" e contribuíram para pôr em crise o Antigo Regime recomendando a "piedade pelos infelizes" enquanto tais.817 Exatamente esse é o ponto de partida da análise crítica de Tocquevil le, segundo o qual uma sensibilidade doentia contribuiu poderosamente para o desencadeamento das paixões revolucionárias: No final do século, quando a linguagem particular de Diderot e Rousseau teve tempo de difundir-se e diluir-se na língua vulgar, a falsa sensibilidade que enche os livros destes escritores conquista até os administradores e penetra até nos empregados das finanças. Um subdelegado se queixa com o 8 13 Polanyi, 8 1 4 Malthus,

1974, p. 1 30.

1 965, p. 506. 8 15 Linguet, 1984, pp. 459-60 (livro V, cap. 5). 8 1 6 Relatado em Horkheimer-Adorno, 1 982, pp. 106-7.Ainda nos nossos dias, Arendt ( 1 983) indicou a irrupção da "compaixão" como a causa decisiva da "degeneração" da Revolução Francesa. 8 1 7 Mounier, 180 1 , p. 15.

intendente de Paris porque "prova muitas vezes no exercício das suas fim­ ções uma dor dilacerante para uma alma sensível".8 1 8 Por ocasião da Guerra de Secessão, a agitação e a revolução abolicionista são postas por seus adversários na conta da influência exercida pelos "princípi­ os franceses" e pela "sentimental filosofia francesa".819 Por isso, o debate sobre a compaixão acompanha e estimula todo o ciclo revolucionário. Quer se trate da ideia de felicidade ou do sentimento (e da ideologia) da compaixão, Nietzsche formula o seu julgamento de condenação a partir de um balanço histórico preciso. Entrementes, a "compaixão" começa a ser a bandeira não só do movimento socialista, mas também dos autores e círculos culturais de algum modo influenciados por ele. É o caso, por exemplo, de Giovanni Pascoli: O socialismo! Sem outros argumentos e fatos, bastaria este, do surgimento do socialismo, para demonstrar que o reino da piedade já está avançado. Ele é um fenômeno do altruísmo [ . .. ]. Ó tenebroso Apocalipse, eu não creio em ti, porque creio na caridade! Eis a base do meu socialismo: o aumento certo e contínuo da piedade no coração do homem. 820

É a "compaixão socialista" escarnecida por Nietzsche (supra, cap. 8 § 5 ) e olhada com suspeita ou hostilidade por todos os autores empenhados de vários modos na crítica da revolução . Mais uma vez, porém, o filósofo alemão se destaca pelo seu rigor. Vimos Tocqueville evidenciar criticamen­ te o papel do sentimentalismo do Século XVIII na preparação ideológica da revolução. Mas eis que, num contexto diferente, ele chega a fornecer uma avaliação tão pos itiva do sentimento de compaixão que esta se torna o fio condutor do progresso e da progressiva construção da unidade do gênero humano. Partindo de uma revolta popular na Bretanha de 1 675, reprimida "com atrocidade sem igual", mas que madame de Sévigné relata, numa carta à filha, com tom sereno e quase divertido, o liberal francês observa que a nobre senhora "não tinha uma ideia clara do que é sofrer, quando não se era ari stocrata". Numa sociedade rigidamente hierárquica, nem sequer os sentimentos conseguem superar as barreiras de classe ou de casta; só numa sociedade democrática, na qual domina a ideia de igualdade, começa a surgir "uma compaixão geral por todos os membros da espécie huma818 Tocqueville, 1 95 1 , vol. II, 1 , p. 1 3 1 (AR, livro II, cap. 6). 819 Calhoun, 1992, p. 293; Merriam, 1 969, pp. 235 e 230. 82º Pascoli, 1 994, pp. 1 60 e 168. 821 Tocqueville, 1 95 1 , vol. 1, 2, pp. 1 73-75 (DA, livro II, parte III, cap. l ). 417

na". 821 A contrarrevolução auspiciada por Nietzsche deve saber pôr em discussão este resultado : se por um lado "têm-se deveres unicamente para com os semelhantes", por outro lado é preciso ter presente como "com respeito aos indivíduos de classe inferior e a todos os estrangeiros seja lícito agir ao próprio talante ou 'como quer o coração' e de qualquer modo 'além do bem e do mal"'. É só nesse nível que "pode ter lugar a compaixão ou outras coisas do gênero" (JGB, 260). A compaixão da qual se fala aqui não só não tem um caráter "geral", mas, longe de anulá-las ou reduzi-las, reforça e enfatiza mais as distâncias entre homem e homem. O radicalismo de Nietzsche se torna compreensível à luz das novidades acontecidas na situação política. De um lado está a agudização, real ou temi­ da, do conflito social na Alemanha e na Europa, que suscita a invocação do recurso às maneiras fo rtes, sem mais impedimento dos escrúpulos humanitá­ rios e sentimentais . Mas não é só com o olhar voltado para a questão social que a compaixão é condenada. Tomemos Carlyle. Ele se coloca sem dúvida na esteira da tradição já vista de condenação do novo trinômio revolucioná­ rio: ·'filantropia, emancipação e compaixão pelas desgraças humanas".822 E não parece afastar-se demais de tal tradição sequer a afirmação com base na qual, se as leis que presidem o funcionamento organizado da civilização forem esquecidas, "a ladainha universal da Compaixão (Pity) é apenas uma moléstia universal, uma turva blasfêmia contra os deuses".823 Não se deve, porém, perder de vista o fato de que esse discurso está estreitamente ligado, em Carlyle, não só com a defesa do instituto da escravidão, mas também com a celebração do "homem branco europeu" e do "heroísmo europeu'', ao man­ ter afastados os "canibais" e selvagens de todo tipo.824 Ou seja, o elemento de novidade é constituído pelo expansionismo colonial, com a nova brutalida­ de que ele contém. Por isso, a polêmica não só com o jusnaturalismo revolu­ cionário (para um negro das Índias ocidentais "o primeiro 'direito do homem"' é o de "ser obrigado ao trabalho"),825 mas também com "sentimentalismo", ou seja, com o "sentimentalismo cristão" e também com as pregações conti­ das em "Evangelhos e Talmude".826 Na onda da denúncia dos efeitos paralisantes e perversos do sentimento de compaixão acaba sendo colocado em discussão também o cristianismo, ou seja, a 822 Carlyle,

82� Carlyle, 824 Carlyle,

1983, p. 66. 1 983, p. 104.

1 983, pp. 46 1 e 458-9. l<.!5 Carlyle, 1983, pp. 435-6. �26 Carlyle, 1 983, pp. 428 e 440.

tradição judeu-cristã. É um tema que conhece uma radicalização drástica em Nietzsche, no âmbito de um discurso coerente no plano histórico e teórico: A compaixão impede em bloco a lei do desenvolvimento que é a lei da sele­ ção . Ela conserva o que está maduro para o fim, opõe resistência a favor dos deserdados e dos condenados da vida. Nada é mais insalubre, no meio de nossa modernidade ins� lubre, do que a compaixão cristã (AC, 7).

Também neste caso, como veremos, a condenação da compaixão é pronuncia­ da com o olhar votado seja para o conflito social interno à metrópole capitalista, seja para a expansão colonial. As duas situações exigem uma virada no plano ideológico e moral: ·'Onde estão os teus grandes perigos? Na compaixão" (FW, 27 1 ).

2. O carro da civilização e o ressentimento dos escravos Se, nas classes superiores, o sentimento de malestar pelas leis gerais da civilização, que inexoravelmente exigem o acorrentamento dos escravos, é a com­ paixão, nas classes inferiores é o ressentiment. E, assim como a compaixão propriamente dita é o início da abdicação das classes superiores ao papel de comando que naturalmente compete a elas sobre o carro triunfal da civilização, assim o ressentiment é o início da revolta dos escravos. Compaixão e ressentiment são dois momentos, no alto e embaixo, da crise da civilização. Também nisso Nietzsche se revela como o ponto de chegada de uma longa tradição, que não se cansa de condenar toda contestação da organização existente como simples ex­ pressão de invej a e de rancor: desse modo o conflito social perde a sua dimensão objetiva para ser reconduzido aos maus sentimentos das classes subalternas ou de alguns seus expoentes interiormente deteriorados. No âmbito da democracia ateniense - escreve Ferguson - os pobres, "movidos pela inveja, estavam prontos a banir do Estado todos aqueles que, na ordem superior dos cidadãos, fossem dignos de respeito e eminentes". A inveja e a paixão igualitária exprimem uma inclinação ao nivelamento por baixo, com efeitos desastrosos para a cultura e a civilização: "Se as pretensões à igualdade de justiça e de liberdade devessem levar a reduzir de modo uniforme toda classe a servos e mercenários, produziremos uma nação inteira de hilotas e não teremos mais cidadãos livres".827 À medida que as massas populares irrompem na cena política e social, esta denúncia se torna mais persistente. Burke previne contra os perigos que 827 Ferguson,

1973, pp. 2 1 1-2 1 2.

"inveja" (envy) e "rapacidade" (rapacity) fazem pesar, em p rimeiro lugar, so­ bre a grande propriedade e sobre a sociedade no seu conjunto.828 Em A demo­ cracia na América, tendo já passado as revoltas operárias de Lyon e a agudização do choque social nos anos da monarquia de Julho, Tocqueville, com transparente referência ao socialismo, denuncia o "gosto depravado pela igual­ dade que leva os fracos a quererem degradar os fortes ao seu nível e que reduz os homens a preferir a igualdade na escravidão à dessemelhança na liberda­ de". 829 Trata-se de homens que "medem a olho o espaço imenso que separa os seus vícios e as suas misérias do poder e das riquezas, e amontoariam ruínas nesse abismo para tentar enchê-lo".830 Mas é sobretudo depois do junho parisiense e, ainda mais depois da Comuna de Paris, que a denúncia da inveja e dos sentimentos turvos que fundamentam a agitação operária e socialista se toma, a nível europeu, um lugar comum da cultura e das publicações empenhadas na defesa da organização social exis­ tente. Lamartine exprime todo o seu desprezo pela "inveja" igualitária de Marat e pelo próprio Marat: ''A igualdade era o seu furor pelo fato de que a superiori­ dade [dos outros] era o seu martírio".831 Em termos análogos Guizot aponta o dedo acusador contra o "desejo invejoso (envie) de abaixar tudo o que é eleva­ do" e contra a "necessidade de vingança".832 Se, na França Renan faz brotar do ''ciúme" a reivindicação revolucionária da igualdade, 833 na Alemanha, Bismarck rotula a égalité como "a filha quimérica da inveja e da cobiça"834 e, na Inglaterra, Bagehot sublinha o papel funesto desempenhado na Comuna pela "inveja, que em todos os tempos e em todos os países o homem pobre e desesperado tem pelo homem feliz e rico", ou seja, pela "raiva" que os perdedores e os fracassados nutrem por aqueles que conseguiram vencer a "partida" da vida. 835 O destinatário de todas estas acusações é o movimento socialista, que tam­ bém por Nietzsche é acusado de tomar "invejoso" o trabalhador e de ensinar-lhe a ''vingança" (AC, 57). Naturalmente, agora entram algumas novidades impor828 Burke, 1 826, vol. V, p. 1 07 ( Burke, 1963, p. 2 1 2). 829 Tocqueville, 1 95 1 , vol. 1, l , p. 53 (cap. 1, 1 , 3). 830 Tocqueville, 195 1 , vol. 1, 1, p. 308 (cap. 1, II, 9). =

831 ln Stein, 1959, vol. 1, pp. 294-5. 832 Guizot, 1 849, p. 9. Renan, 1 947, vol. 1, p. 486. 834 In Herre, 1 983, p. 1 73. 835 Bagehot, 1 974 e , p. 1 98. m

tantes. O discurso perde a sua imediatez político-social, enquanto a denúncia passa do plano moral para o psicológico e psicopatológico: mais do que na inveja pelas riquezas materiais das classes dominantes, a mola da revolução deve ser identificada no ressentimento surdo que os fracassados sentem pelas naturezas superiores enquanto tais: é a ·'rancune pela grandeza" que envenena a cultura e a sociedade europ�ia (EH, Assim falou Zaratustra, 5). Mas há outro elemento de novidade. A tradicional crítica da "inveja" é um convite às massas populares para se contentarem com a própria sorte; ao contrário, a denúncia do ressentiment é a resposta polêmica do apelo frequente do movimento revolucionário à ideia de justiça e aos sentimentos nobres. Ou seja, em relação ao discurso revolucionário de crítica e de condenação da organização social em nome da moral, o discurso de Nietzsche toma a fonna de uma metacrítica.

3. Miséria do pobre e responsabilidade e tédio do rico O ressentiment dos servos e das classes subalternas não só não têm legi­ timidade moral, mas tampouco qualquer fundamento na realidade. Os afeitos à compaixão perdem de vista o fato de que a capacidade de perceber a dor e o sofrimento não está distribuída de modo unifonne. São as almas mais nobres que ficam mais expostas e são mais frágeis. É um tema que, embora assumin­ do no tempo fonnas diversas, caracteriza Nietzsche em toda a extensão de sua evolução. Já conhecemos a "nuvem de melancolia" que envolve as naturezas nobres e superiores, incapazes, ao contrário dos filisteus de toda espécie, de encontrar satisfação no próprio tempo e, portanto, constantemente tomadas de uma inquietação interior (supra, cap. 6 § 8). O homem comum se dá conta disso: "A massa inferior, com o pouco que possui, está insatisfeita à vista do rico, crê que o rico é feliz. A massa dos escravos, que trabalham, está sob recarregada de trabalho e raramente descansa, crê que o homem sem tra­ balho tisico é feliz" (IX, 535). Na realidade, "Quanto menos embotado é o olho, tanto mais extenso é o bem. Por isso a eterna serenidade do vulgo e das crian­ ças ! Por isso a melancolia dos grandes pensadores e o seu descontentamento aguçam a má consciência! " (FW, 53). Também nesse caso estamos na presença de um tema com uma longa tradição por trás. Em Voltaire podemos ler: "Nem todos os pobres são absoluta­ mente infelizes. A maior parte nasceu já em tal estado, e o trabalho, embrutecendo­ os, os impede de refletir demais sobre a sua situação".836 E Mandeville: 836 Voltaire, 1 968, p. 27 1 , verbete Igualdade (Égalité).

O que chamei de vida dificil não parece nem é tal na realidade para aqueles que foram criados num semelhante modo de vida e nunca conheceram outro melhor. Não há gente mais contente entre nós do que aqueles que trabalham demais e desconhecem o fausto e as molezas do mundo.

Olhando bem, o sofrimento é o privilégio, exclusivo e doloroso, das almas superiores e dos homens de condição elevada: "Quanto maiores forem o co­ nhecimento e a experiên�ia que um homem tem no mundo, quanto mais refina­ dos são os seus gostos e em geral mais profunda a sua capacidade de julga­ mento, tanto mais dificil será, obviamente, satisfazê-lo". Comparemos os dois extremos da hierarquia social, de um lado "o mais humilde e ignorante campo­ nês" e, do outro lado, "o maior dos reis" e imaginemos que um possa observar por alguns dias a vida do outro. O resultado será este: O camponês, mesmo notando diversas coisas que desejaria ter para si, en­ contraria muitas mais que quisesse imediatamente mudar e corrigir se lhe fosse possível tomar o lugar do rei; antes se admira que o soberano suporte o que para ele seria intolerável.

Por sua vez, se o soberano examinasse da mesma maneira a vida do camponês, lhe pare­ ceria impossível suportar o duro trabalho; a sujeira e a imundície, a comida, os amores, os passatempos, e os divertimentos do vilão lhe pareceriam to­ dos abomináveis, mas como acharia encantadores a serenidade de espírito do camponês, a calma e a tranquilidade da sua alma!837

Não há, portanto, nenhum motivo para pôr em discussão a hierarquia social: cada um pode estar contente com a própria sorte; isto vale em particu­ lar para o camponês e para o pobre em geral, que teria menos a invejar na condição do rei do que o rei haveria de invejar na do seu ínfimo súdito. As privações e os farrapos de um camponês ou de um pastor escondem melhor felicidade do que a pompa de um rei: é um topos do pensamento moderno; podemos encontrá-lo em Voltaire. 838 Partindo disso, Malthus chega a uma conclusão drástica: "A compaixão pode ser mais exaltada por uma boa e patética cena de teatro ou por uma descrição romanceada do que por um acontecimento real ". 839

m Mandeville, 1 974, pp. 1 16-9. KlR

Voltaire, 1 99 1 , pp. 460- 1 . 1 965, p. 506.

M39 Malthus,

Por outro lado - observa, por sua vez, Nietzsche - "pode-se sofrer até demais" (FW, 14). A opulência e a isenção da obrigação de ter de trabalhar para viver estão bem longe de garantir a felicidade:

Hí1 um tédio das mentes mais finas e cultas, para as quais o melhor que a terra oferece tornou-se insípido; habituados a comer comidas escolhidas e sem­ pre mais escolhidas e a nausear-se com aquelas mais grosseiras, estão em perigo de morrer de fome - pois de ótimo há pouco, e às vezes se tornou inacessível ou duro como pedra, de modo que nem sequer dentes bons podem mais mordê-lo (VM, 369). Se este topos também tem uma longa história, pennaneceu inquestionado. Pode-se recordar a polêmica de Diderot contra Helvétius. À afinnação deste último segundo o qual "o tédio é um mal terrível, quase como a miséria", o primeiro contrapõe: "Eis o raciocínio de um homem rico e que nunca se preocu­ pou com o seu almoço"; na realidade, "há muitos estados na sociedade que desfalecem pela fadiga, que exaurem rapidamente as forças e que abreviam a vida, e qualquer que seja o salário que atribuís ao trabalho, não impedis nem a frequência nem a justiça dos lamentos do operário".840 Mas é sobretudo sobre duas intervenções que convém concentrar a aten­ ção. Ao criticar a ideologia da felicidade do pobre, Rousseau tem palavras de fogo contra a insensibilidade que o rico mostra: Ele vê sem piedade aqueles infelizes, oprimidos por um trabalho incessante, obterem com dificuldade um pão seco e negro que serve para prolongar a sua miséria. Não acha estranho que o produto seja em proporção inversa ao trabalho, e que um mandrião sem piedade e voluptuoso se engorde com o suor de um milhão de miseráveis extenuados pela fadiga e pela necessidade. É a sua condição, diz ele, assim nasceram, o hábito faz tudo igual e eu não sou mais feliz, debaixo dos meus ricos tetos do que um vaqueiro na sua cabana, nem, deveria acrescentar, do que o boi no seu estábulo. 84 1

Em tennos análogos, a História das duas Índias de Raynal-Diderot re­ jeita "os cruéis sofismas com que se embalam os ricos e os grandes, os quais adormecem sobre as fadigas do pobres, fecham as suas vísceras para os seus gemidos e afastam sua sensibilidade dos seus vassalos para voltá-la toda ao cuidado de seus cães e seus cavalos".842 A referência ao boi ou aos cães e 840 Diderot, 1982, pp. 180-1 . 84 1 Rousseau, 1 97 1 , pp. 330- 1 . 842 Raynal, 198 1, p. 263. 423

cavalos esclarece o nominalismo antropológico que está no fundamento da ide­ ologia em questão: o pobre não é propriamente subsumido na categoria de homem; e, nesse sentido, o rico se comporta, aos olhos de Rousseau, "sem piedade", ou seja, sem aquela compaixão que permite subsumir sob a espécie humana também o servo. É um sentimento que, exatamente por seu pressuposto "realismo", é con­ denado por Nietzsche com referência explícita em primeiro lugar exatamente a Rousseau. A compaixão, além de nociva e funesta, se revela também supérflua e mal ocultada: A gente se engana como espectadores do sofrimento e das privações dos estratos ilúeriores do povo, porque sem querer se mede coruorme o metro da própria sensibilidade, como se nos transferíssemos para a sua condição com o nosso cérebro e;)\.1remamente excitável e capaz de sofrer. Na verdade, as dores e as privações aumentam à medida que aumenta a cultura do indiví­ duo; os estratos ilúeriores são os mais obtusos (VIII, 48 1 ).

Até a dor propriamente fisica parece ser o privilégio das classes superio­ res e das almas nobres (supra, cap. 1 2 § 2). Como conclusão, de todo ponto de vista, ''a casta dos ociosos é a mais capaz de sofrer, a mais sofredora, o seu prazer de existir é menor, a sua tarefa é maior" (MA, 439). Em confirmação da sua dimensão política, esse debate se toma particu­ larmente intenso e apaixonado a partir das décadas que precedem o estouro da Revolução Francesa. No final do Século XVIII, os defensores da servidão da gleba recorrem amplamente ao argumento segundo o qual os benfeitores aspi­ rantes dos servos exageravam demasiadamente os seus sofrimentos, confun­ dindo a sua delicada sensibilidade com aquela bem diferente dos camponeses, há tempo acostumados com as durezas da vida e da sua condição. 843 Nos séculos XIX e XX, mais do que relacionado com os servos da gleba, o debate em questão se trava em relação com a condição operária. Poucos anos depois da revolução de 1 848, Gutzkow zomba do lema querido de uma "escola conhe­ cida" segundo o qual "para o rico o seu prazer é trabalho assim como para o pobre o seu trabalho é prazer".844 Por sua vez, ao tratar d'A questão operá­ ria, Lange polemiza duramente contra a tese de Leo segundo o qual a "pele calejada" protegeria os proletários dos sofrimentos do trabalho duro e das pri­ vaçõe s . 845 Mais tarde Kautsky faz ironia sobre o tema p resente em m Epstein, 1 973, p. 238. 844 Gutzkow, 1 974, p. 300. 845 ln Mehring, 196 1 a, vol. XIII, p. 1 70.

Schopenhauer da serenidade despreocupada dos pobres e dos sofrimentos, re­ cônditos, mas tanto mais tormentosos, dos ricos. 846 Mehring, depois, censurará Nietzsche por ter tornado própria, para tal finalidade, a tese da "pele calejada" cara a Leo, mas brilhantemente refutada por Lange.847 Enfim, sobre o tema da refratariedade substancial das classes populares à dor, bem como aos sentimentos mais delicados, convém recordar uma inter­ venção do Século XX. A propqsito de Paul Bourget, o escritor que Nietzsche mostra apreciar como um daqueles psicólogos "ao mesmo tempo tão curiosos e tão delicados" dos quais a Paris do final do Século XIX era rica (EH, Porque sou tão inteligente, 3), Gramsci observa ironicamente que, para aquele, "é preciso que uma mulher tenha 100.000 francos de renda para ter uma psicolo­ gia".848 A "Grande corrente do Ser'', que, no âmbito da filosofia dos séculos 1 7 e 1 8, vê todos o s seres serem colocados numa rigorosa ordem hierárquica, no âmbito da qual uma passagem gradual e apenas perceptível conduz da espécie dos animais superiores aos homens de natureza inferior,849 essa pirâmide ma­ jestosa e harmoniosa é também uma Grande Corrente da Dor ou, para ser mais exatos, da sensibilidade à dor: à posição elevada da colocação social tendem a corresponder a riqueza, a fineza e a fragilidade da vida interior. Portanto, o filósofo-filólogo se apega mais ainda a um filão do pensamento moderno e contemporâneo do que ao pensamento antigo. Aristóteles, aliás, formula uma tese que parece estar nos antípodas do topos apenas examinado: o escravo e o vulgar são incapazes de felicidade.850 Admitir "a participação de um escravo na felicidade" significa admitir a sua participação também numa vida digna de um homem".851 Na realidade, "nem um boi, nem um cavalo, nem outro animal" é capaz de felicidade,852 os escravos levam uma "vida própria dos animais", e os escravos e "os outros animais" "não participam nem da felicidade nem de uma vida escolhida por eles".853 Mas a contradição entre as duas teses aqui comparadas é apenas aparente: num caso e no outro, o vulgar 846 Kautsky,

1 888, p. 103. ' 1 96 1 a, vol. XIII, p. 1 70. 848 Gramsci, 1 975, p. 896. 849 Lovejoy, 1 966. 850 Ética a Nicômaco, 1 1 77 a 8-9; sobre a exclusão dos banáusicos da felicidade cf. Ética Eudemia, l 2 l 5a, 25-35 e Política, l 329a, 20-4. 85 1 Ética a Nicômaco, l 1 77a, 8- 10. 852 Ética a Nicômaco, l099b, 32-33 . 847 Mehring,

853 Ética a Nicômaco,

1 095b, 1 9-20; Política, l 280a, 33-34. 425

empenhado em trabalhos servis é excluído de uma vida autenticamente espiri­ tual . O elemento de continuidade é representado pelo nominalismo antropológi­ co: se Aristóteles parece assimilar o servo ao boi pela incapacidade de conse­ guir a felicidade autêntica que é própria apenas dos homens dotados de áfiâôç, 854 numa corrente de pensamento moderno, segundo a denúncia j á vista de Rousseau, o servo é assimilado ao boi pela incapacidade de perceber a dor espiritual que é privilégip dos animais nobres. De fato, o tema da incapacidade do escravo de elevar-se a uma felicidade autêntica surge também em Nietzsche. A seus olhos, mais que a melancolia e a dor, é a intensidade extraordinária dos sentimentos em geral que caracteriza as grandes almas: "Quanto mais alto é o intelecto, tanto mais se alarga o âmbito, o domínio e o grau do sofrimento e do prazer" (IX, 567). Na busca do verdadeiro e do belo está implícito um tormento do qual o operário mergulhado no trabalho material não tem a mais pálida ideia; também se há de acrescentar que, em raras situações, o tormento pode transformar-se no seu contrário, numa felici­ dade cuja intensidade continua a ser ignorada e barrada ao homem comum: Não o escondamos de nós: com esta felicidade de Homero na alma somos também os seres mais capazes de sofrer que jamais existiram debaixo do sol [ . . . ]. Tomamo-nos sempre mais sutis na dor e, finalmente, sutis demais: bas­ tou um leve desapontamento, um leve desgosto para que Homero conside­ rasse a vida aborrecida. Não tinha conseguido resolver um pequeno enigma insensato que certos jovens pescadores lhe haviam proposto. Sim, os pe­ quenos enigmas são o perigo dos mais felizes ! (FW, 302).

Portanto, "o homem superior se toma ao mesmo tempo sempre mais feliz e mais infeliz", pelo fato de que "a quantidade dos seus estímulos está em contínuo desenvolvimento e assim também a dos seus modos de gozar e de sofrer". É preciso não perder de vista a Grande Corrente da nobreza de espírito, da sensibi­ lidade à dor e da receptividade aos sentimentos finos e profundos : "Os homens de alto 1úvel se distinguem dos inferiores pelo fato de verem e ouvirem indizivelmente mais, pelo fato de verem e ouvirem pensando: exatamente isto diferencia o ho­ mem do animal e os animais superiores dos inferiores" (FW, 30 1 ). Se o servo da gleba pode conseguir alguma felicidade - observa Tocqueville com referência à sociedade do Antigo Regime ainda não sacudida por frêmitos revolucionários - trata-se apenas de uma "felicidade vegetativa" (bonheur végétat(/) .855 O fato de que a exclusão da vida espiritual da massa embrutecida �54 Ética a Nicômaco, l l 77a, 10. m Tocqueville, 1 95 1 , vol. XVI, p. 1 2 1 .

pelo trabalho se configura agora como ausência de dor denota que desapare­ ceu a tranquilidade segura com que a antiguidade clássica olhava a divisão da sociedade em senhores e escravos; na incansável promessa da felicidade do servo surge a má consciência moderna, se exprime a necessidade de uma ideologia que oculte o negativo e remova a carga de sofrimento ligada à subs­ tancial permanência da relação servo-senhor. Nietzsche se consome de saudade pelo mundo antigo, que não se enver­ gonhava da escravidão e não sentia a necessidade de ocultá-la; e no entanto, ao insistir também ele na felicidade (vegetativa) de que o escravo gozaria (an­ teriom1ente ao envenenamento de massa real izado pelos agitadores socialistas mediante a difusão do ressentiment), mostra que participa de uma necessidade ideológica que é totalmente moderna. De resto, a continuidade em relação à antiguidade clássica é evidente. É de uma felicidade ou serenidade obtusa e ainda fundamentalmente subumana que, segundo Nietzsche (e a tradição mo­ derna que está por trás), o escravo deveria sentir-se satisfeito: "malvada" e cruel, enquanto destinada a aumentar inutilmente os sofrimentos das vítimas sacrificais da civilização, é a tentativa de fazer o escravo tomar consciência da sua condição. A compaixão, antes condenada na medida em que comporta um sentido inútil e estorvador para os vencedores que guiam o carro da civilização, desponta de novo e recebe implicitamente um papel positivo na medida em que serve para não pôr em discussão as algemas dos escravos no carro triunfal, isto é, na medida em que facilita a marcha da civilização. A felicidade em sentido forte continua a ser, como para Aristóteles, uma prerrogativa das classes superiores, tanto que a mensagem evangélica revela o seu caráter subversivo já pelo fato de querer permitir também para os "humil­ des e pobres", para a massa, ··o acesso à felicidade"; quando depois as "clas­ ses inferiores", ·'tratadas de modo excessivamente filantrópico", começam a gostar de "uma felicidade proibida a elas", a revolução, a revolta servil, já está em curso (XIII, 1 78-9).

4. Schopenhauer e Nietzsche: entre visão "trágica " da vida e re­

caída no harmonicismo Nietzsche deriva o tema ideológico da felicidade ou da serenidade do pobre em primeiro lugar do autor de O mundo como vontade e representa­ ção . Um fragmento da primavera de 1 8 8 8 reconhece isto: "' É-se tanto mais infeliz quanto mais se é inteligente' - Schopenhauer" (XIII, 2 1 8 ). Mais do que uma citação direta, trata-se de um trecho transcrito por um autor francês 427

(Féré},856 que encontraremos depois; mas é a confinnação de que, ao tratar desse topos, a cultura europeia da segunda metade do Século XIX, empe­ nhada em exorcizar o espectro da questão social, acaba reconhecendo, tam­ bém fora da Alemanha, a dívida contraída com Schopenhauer. Este último formula a tese segundo a qual "a mais elevada força intelectual" faz com que exatamente as classes superiores, aquelas aparentemente favorecidas pela sorte, sejam na realidade "capazes de sofrimentos bem maiores que os que os mais obtusos podem séntir". Se "a miséria é o perpétuo flagelo do povo'', para as classes superiores é o flagelo do "tédio'', "contra o qual a batalha é tão tonnentosa como contra a miséria".857 Nietzsche, por sua vez, sublinha que o aristocrata é chamado a enfrentar o grave problema de "conseguir suportar o tédio" (supra, cap. 1 1 § 4). Sim, "os operários lamentam-se por­ que os fazem trabalhar demais"; mas uma "atividade excessiva", ainda que espontânea, não "imposta do exterior", se manifesta também nas "classes ricas"; e, portanto, o operário "não deve crer que um banqueiro viva hoje de modo mais agradável ou mais digno que ele" (VIII, 335). Em conclusão : "Quanto mais a vida cresce em altura, tanto mais se torna dura - aumenta o frio, aumenta a responsabil idade [ . . ] . Para os medíocres, ser medíocre é uma felicidade" (AC , 5 7) . É comum aos dois filósofos o reconhecimento da capacidade de perceber o sofrimento como gesto de distinção aristocrática: "Aquele no qual vive o gênio sofre mais do que todos";858 e em ambos o tema do tédio dos privilegia­ dos perde o caráter crítico que tem nas correntes mais avançadas do iluminismo (e que continua a ter no protossocialismo).859 No entanto, não faltam as dissonâncias. Depois de ter descrito com tintas escuras e em tom aparentemente aflito, como veremos, a condição operária, Schopenhauer não hesita em afinnar que a vida e "o trabalho do proletário" é "uma fonte pennanente de prazer, de cuja abundância a serenidade dá um testemunho seguro, bem mais frequente no rosto dos pobres do que no rosto dos ricos". Certamente se trata de um "prazer" de caráter "negativo", enquan­ to "libertação de um malestar e de uma pena"; mas tal especificação não mo­ difica em nada os tennos da questão, tanto mais porque para Schopenhauer todo prazer é de caráter "negativo".860 .

856 Sobre isto cf. Lampl, 1 986, p. 25 1. 857 Schopenhauer, 1976-1 982 a, p. 430. 858 Schopenhauer, 1 976-82 a, p. 426 (§ 56). 859 ln B ravo, 1973, p. 257. 860 Schopenhauer, 1 976-82 c, vol. V, pp. 698-9 (§ 333).

Estamos na presença de um excesso de justificações ideológicas que, na sua redundância, acabam perdendo toda coerência. Por um lado, o "mal, que sempre incumbe sobre a maior parte do gênero humano sob o nome de escra­ vidão ou de proletariado",861 é exorcizado exatamente graças à sua eternidade, ou seja, à pretensa independência da organização político-social; por outro lado, esse "mal" é simplesmente negado, afastado como é sob o rosto sereno e sorridente do proletário. Se .no Mundo como vontade e representação era possível encontrar "outros rostos alegres tanto entre os pobres como entre os ricos",862 nos Parerga e Paralipomena a sorte, como se viu, virou decidida­ mente a favor dos pobres, com a consequência paradoxal de que agora se torna vacilante a to;:se a demonstrar (a dor ou a alegria são totalmente indepen­ dentes da "mudança de circunstâncias externas"): a julgar pelo menos pelos Parerga e Paralipomena, bastaria estender ulteriormente a miséria, precipitar nesta condição um certo número de ricos, para ver imediatamente aumentar o número dos rostos nos quais é possível ler a "serenidade". Em Nietzsche não há o filisteísmo desarmante de Schopenhauer. No entan­ to, a imagem trágica do carro triunfal da civilização, que derrama o sangue dos escravos nos quais ele se sustenta, parece às vezes ceder o lugar a um quadro mais tranquilizador, no qual o sofrimento está totalmente ausente, ou emerge apenas por uma intervenção externa, a dos socialistas ou dos apóstolos de qual­ quer modo camuflados pelo ressentiment e pelo espírito de vingança, os quais intervêm com os seus discursos barulhentos para despertar o escravo do seu sono benéfico. É clara a oscilação ou contradição entre dois temas dificilmente conciliáveis: de um lado, o sofrimento das classes populares é tão pouco ocultado que se afirma a necessidade de agravá-la ulteriormente para tornar mais ágil a marcha da civilização; por outro lado, não se hesita em retomar o topos do não­ sofrimento e até da felicidade ou serenidade dos escravos, com uma recaída, portanto, na versão harmonística própria de uma certa tradição moderna. No entanto, há um ponto decisivo que continua a associar os dois autores aqui comparados a uma tradição fortemente presente no pensamento moderno: se em Nietzsche a civilização é o resultado do "mais-trabalho", em Schopenhauer é o resultado, como Jogo veremos, da "sobrecarga de trabalho" da imensa maioria em vantagem da restrita minoria que pode e deve gozar do oti um. E essa relação, bem longe de se apresentar como "questão social", é um dado natural, imodificável. Para tal finalidade, podemos distinguir três momentos na história do pen­ samento moderno e contemporâneo. Em Montesquieu, a categoria de mais86 1 Schopenhauer, 1 976-82 e, vo l. V, p. 290 (§ 1 25). 862 Schopenhauer, 1 976-82 a, p. 434 (§ 57).

trabalho não tem qualquer significado crítico, é simplesmente a constatação de uma realidade, ainda aquém de qualquer contestação. Marx, porém, denuncia o "fi1rto do tempo de trabalho do outro" como o segredo da acumulação capita­ lista, 863 como a característica que continua a aproximar à sociedade escravista uma sociedade burguesa também inclinada a autocelebrar-se como a realiza­ ção da liberdade. Em Nietzsche, enfim, a categoria de mais-trabalho aparece no âmbito de um discurso que quer ser metacrítico: a crítica política e a indigna­ ção moral não têm sentido diante da ordem inviolável da natureza e da civiliza­ ção, em cujo fundamento só pode haver o trabalho servil. Porém, vale a pena notar que, no plano da ideologia e da visão do mundo, não há uma volta ao status quo ante . O mais-trabalho não é mais uma coisa óbvia; é uma verdade que é preciso reforçar contra as ilusões e as mistificações progressistas, mas cuj a crueldade intrínseca não pode mais ser ignorada.

863 Marx,

1 953, p. 593 (= Marx, 1 968, vol. II, p. 40 l ) .

14 A " MULTIDÃO INFANTIL" O " LIVRE PENSADOR" E O '

" ESPÍRITO LIVRE" . CRÍTICA E �TACRÍTICA DA IDEOLOGIA 1 . As correntes e as flores: a crítica da ideologia entre Marx e Nietzsche inda que por causas opostas, a crítica da ideologia é uma passagem obri­

Agatória tanto para Marx como para Nietzsche: para tal finalidade, eles

foram muitas vezes postos um perto do outro. 864 Com efeito, também o segun­ do não se cansa de insistir num ponto essencial para ele: é necessário liquidar as "alucinações conceituais" (Begrijfs-Hallucinationen (CV, 3; 1, 765), o "de­ lírio" ( Wahnvorstellung (VI I , 1 4 0), os "instrumentos de consol ação" (Trostmittel), as "imagens ilusórias" (Wahnbilder), as chamadas "excelentes ideias", ou seja, os "expedientes penosos" (klãgliche Nothbehelfe) e os "no­ mes enganosos, luminosos" (trügerischen, glãnzenden Namen) (VII, 33 6-7), os '·ídolos" (GD), que impedem de olhar de frente a realidade, ocultando ou transfigurando o que nela há de problemático e terrível. Os pontos de contato entre os dois autores pareceriam evidentes; mas em Marx se pode ler uma espécie de aviso prévio contra assimilações ou aproximações precipitadas . É preciso saber distinguir entre dois tipos de crítica da ideologia fundamentalmen­ te opostos: de um lado a "crítica" revolucionária e progressiva que arranca "da corrente as flores imaginárias . não para que o homem use a corrente sem enfeite e consolações, mas para que jogue fora a corrente e colha as flores vivas"; por outro lado, a crítica, cara aos defensores do Antigo Regime e à escola histórica do di reito, que "destroi as falsas flores das correntes, para usar correntes autênticas sem flores".865 A metáfora utilizada tem história. "O homem nasceu livre e em toda parte está acorrentado"; é o célebre ataque do Contrato social; sobre as "correntes de ferro" do sistema político-social as ciências e as artes cuidam depois de estender "guirlandas de flores" de modo a embelezá-lo e tomá-lo mais toleráx64 Como é sabido, Ricoeur ( 1 979, pp. 46 seg.), fala de "escola da suspeita" com referên­ cia à tríade Marx-Nietzsche-Freud. M65 Marx-Engels, 1 955, vol. 1, pp. 379 e 80.

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vel. 866 Locke se exprimira em tennos análogos a propósito da "escravidão" imposta pela tirania: "As correntes são duras de carregar, por mais que se cuide em limá-las e poli-las" (to file and to polish).861 É por isso que Marx fala dos ideólogos como de Schonredner ou de Gewissensbeschoniger,868 ou seja, como de uma espécie de decoradores por profissão, encarregados de embelezar e ocultar, com ornamentos mais ou me­ nos florais, a dura reajidade das correntes, da opressão social . Mas o embelezamento mistificador em que consiste a ideologia pode ser rompido a partir de preocupações político-sociais de sinal oposto. Ao argumentar de tal modo, Marx se aproveita também da experiência das lutas desenvolvidas a partir da Revolução Francesa que veem, talvez pela primeira vez na história, a participação e o choque de três distintas classes ou blocos sociais. O novo poder que se instaurou após a derrubada do Antigo Regime passa a ser discu­ tido, portanto, tanto pela aristocracia feudal, que acabara de ser derrubada, como pela nascente classe operária e pelas massas populares, que continuam a sentir-se e a ser marginalizadas. Compreende-se que, na sua defesa do Antigo Regime, os ideólogos da reação feudal sejam levados a pintar com realismo cru a nascente sociedade burguesa, chamando a atenção para as fonnas novas, mas nem por isso mais toleráveis, que o domínio de classe vai assumindo. Por que a condição daquele que é obrigado a mendigar deveria ser considerada preferível à do servo da gleba ou até à do escravo que, bem ou mal, tem o sustento garantido pelo seu amo? Os detentores e os ideólogos do novo poder apontam o dedo contra as violências, aliás raras e isoladas, em prejuízo dos escravos ou dos servos da gleba, mas passam por cima com desenvoltura sobre tudo o que "os pobres sofrem" na nova situação; Gustav Hugo869 argumenta desse modo; e exata­ mente polemizando contra este expoente da "escola histórica do direito", o jovem Marx observa que estamos na presença de uma crítica da sociedade burguesa funcional à celebração indireta do Antigo Regime, a um despedaçamento das "flores" que visam à legitimação das "correntes" da servidão da gleba, ou seja, do instituto ainda bem vivo e vital na Alemanha do tempo. É explícita a tomada de posição de Hugo a favor do trabalho servil nas suas diversas fonnas: pode ser útil examinar o debate que se desenrola a este respeito para compreender melhor de que modo a crítica da ideologia pode ser 866 Rousseau, 1 9 59, vol. III, p. 28 1 . 867 Locke, 1 970, p. 3 ( 1, § 1 ). 868 Marx-Engels, 1 955, vol II, p. 86, vol. VIII, p. 139 evol. XXVI, 1 , p. 274. 869 Hugo, 1 8 1 9, pp. 25 1 -2. .

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conduzida por dois pontos de vista contrapostos . Tome-se a expressão "escra­ vidão salarial", que volta com freqüência em Marx e que, em polêmica com a ideologia dominante, visa denunciar a dureza das correntes que obrigam tam­ bém o operário "livre" a vender sua força de trabalho no mercado capitalista. Mas a comparação entre o trabalho na fábrica e o trabalho dos escravos se encontra literalmente também em um autor absolutamente não revolucionário que é Schopenhauer: é fundamentalmente o mesmo destino, o mesmo "mal" declaram os Parerga e Paralipomena "que desde sempre incumbe sobre a maior parte do gênero humano sob o nome de escravidão ou de proletaria­ do". 870 A descrição que Schopenhauer faz do capitalismo do tempo não fica atrás, quanto à cmeza, daquela que emerge das páginas do Capital. Eis como é descrita a condição operária: "Com a idade de cinco anos, entrar numa fábri­ ca têxtil ou de outro gênero, ficar aí plantados por dez, doze e até quatorze horas, realizar o mesmo trabalho mecânico", e tudo isto para poder a custo sobreviver; como não pensar ainda uma vez na "escravidão negra"?871 E sempre aos "escravos negros" são comparados os "três milhões de tecelões" obrigados "apenas a vegetar, na fome e na dor, em úmidos casebres ou em desoladas cabanas".872 Entre uns e outros a "diferença fundamental" está apenas no fato de que "os escravos devem a sua origem à violência e os pobres à astúcia".873 A "astúcia", que é o fundamento da sociedade capitalista e que reduz a condições de pavorosa miséria uma classe operária aparente­ mente livre, é aqui desmascarada como forma de "violência" apenas mais sutil e refinada. Tem-se a impressão de estar diante de uma crítica implacável da desigualdade social: -

Entre a servidão da gleba na Rússia e a propriedade fundiária na Inglaterra, e em geral entre o servo da gleba e o meeiro, cultivador, devedor, hipotecário, etc., a diferença está mais na forma do que na substância. Não há uma dife­ rença essencial se me pertence o camponês ou a terra da qual ele deve alimentar-se, a ave ou seu alpiste, a árvore frutífera ou a fruta [ ... ] . Pobreza e escravidão são, portanto, apenas duas formas, quase se poderia dizer, dois nomes, da coisa cuja essência consiste no fato de que as forças de um homem são na maior parte empregadas não para o seu beneficio, mas para o beneficio de outros; de onde para ele deriva, por um lado, uma sobrecarga de 870 Schopenhauer, 1 976-82 c, vol. V, p. 290 (§ 1 25). 87 1 Schopenhauer, 1 976-82 b, p. 740. 872 Schopenhauer, 1 976-82 c, vol. V, p. 1 2 1 (§ 69). 873 Schopenhauer, 1 976-82 c, vol. V, p. 29 1 (§ 125).

trabalho ( Überladung mit Arbeit), por outro lado, uma escassa satisfação das suas necessidades. Mas a conclusão é bem diferente daquela que à primeira vista se poderia esperar. A condição das massas trabalhadoras pode ser atroz o quanto quiser, mas de qualquer modo ela é fatal : Enquanto por um lado há luxo (e o luxo é a condição essencial de haver civilização), por outro lado deve necessariamente haver sobrecarga de tra­ balho (übermaftige Arbeit) e uma vida de miséria, ainda que isto ocorra com o nome de pobreza ou de escravidão, de proletários ou de servos. 874 A denúncia das "flores" ilusórias que embelezam as "correntes" da condi­ ção operária desemboca na legitimação das "cadeias reais" e na sua ulterior consolidação. A crueza com que são descritas as relações de produção exis­ tentes dentro da sociedade capitalista visa liquidar toda esperança e todo proje­ to de transformação: a carga de misérias e de dores que pesam sobre a condi­ ção humana é tão opressiva e, sobretudo, tão tenaz - nas situações históricas mudadas se apresenta em formas sempre novas - que é loucura esperar da ação político-social, é absurdo aguardar algo da mudança das instituições: "Os esforços incessantes de banir a dor só servem para mudar o seu aspecto".875 Sob a influência de Schopenhauer, ao qual se refere explicitamente, em termos análogos se exprime o primeiro Nietzsche: contra o "otimismo" su­ perficial de que dá p rova em primeiro lugar o movimento socialista, "a nossa filosofia superior ensina que em qualquer parte sempre encontramos a ruína absoluta, a pura vontade de viver, e que todos os paliativos não têm sentido" (8, II, l , p. 58). Vimos que, indicando na "sobrecarga de trabalho", ou seja, no "mais-trabalho" o fundamento da civilização, do "luxo", do otium dos melhores e dos mais abastados, Schopenhauer e Nietzsche, ainda que a partir de um discurso cujo significado político é bem diferente, compartilham da tese de Marx segundo a qual o "mais-trabalho" é uma característica comum à sociedade escra·.-·ista e à capitalista em geral, isto é, comum a toda socieda­ de dividida em classes e fundada sobre a exploração, ou seja, sobre a apro­ priação do ··mais-trabalho" e da "mais-valia", que daí deriva, por ação de uma minoria privilegiada. É só a "forma" da apropriação do "mais-trabalho" o que distingue "'as formações econômico-sociais, por exemplo, a sociedade escravista da sociedade do trabalho assalariado"; aqueles que quisessem apresentar a apropriação do "mais-trabalho" como fenômeno exclusivo da 874 Schopenhauer, 1 976-82 c, vol. V, pp. 288-9 1 (§ 1 25). 875 Schopenhauer, 1 976-82 a, § 57.

sociedade escravista ou feudal fazem uma apologética vulgar das relações capitalistas de produção .87 6 Mais importante ainda é o fato de que das páginas de Nietzsche surge uma refutação da tese, cara à tradição liberal, da "liberdade negativa". De que modo ocorrem o fornecimento e a apropriação do mais-traballio? "Submetida, até ser a sua escrava, à urgência da sobrevivência" (der Lebensnoth sklavisch unterworfen), "a enorme maioria" da população é obrigada a fornecer "mais-traballio" para a manutenção da "classe privilegiada" (bevorzugte Klasse) (CV, 3; 1, 767). Sim, é apenas a dura necessidade de evitar a fome e a morte por inanição que obriga a grande massa dos proletários a sofrer uma condição não diferente daquela dos escravos antigos (supra, cap. 2 § 6). É a escravidão assalariada de que fala Marx, o qual surpreende a admissão involuntária dessa realidade até nos expoentes da tradição liberal. A esse respeito O capital cita Joseph Townsend, o qual saúda o fato de que a rumorosa e cansativa "coação juridica ao traballio" tenha sido subs­ tituída pela "pressão pacífica, silenciosa, incessante" da "fome", isto é, do medo da morte por inanição.877 Assim é garantida a necessária "obediência" do servant com relação ao seu master, dado que para um ''servo desobediente" não há "puni­ ção" mais eficaz do que a demissão e a ·'fome" que daí se segue.878 Mas isto não impede que o pastor liberal inglês trace um quadro bastante edificante de seu país: até o mais miserável é um "homem livre" (freeman), que presta um "serviço livre" com base no "seu próprio juízo e arbítrio", sem a "coação" à qual é submetido o "escravo".879 Para Nietzsche e para Marx, porém, aquele suposto "homem livre" assemellm-se de modo impressionante a um escravo. Com inegável carga desmistificadora, também Nietzsche identifica nos operários de fábrica os escravos modernos, mas para acrescentar logo depois que esse mecanismo deve ser conservado e lubrificado no interesse superior da civilização. Não menos forte que em Marx é o empenho em rasgar o véu com que a ideologia dominante procura camuflar a realidade da escravidão assalariada; mas a destruição das flores imaginárias acaba, neste caso, justifi­ cando e reforçando as correntes não só da escravidão assalariada, como em Schopenhauer, mas também da escravidão propriamente dita, que tinha conti­ nuado a subsistir no Sul dos Estados Unidos até o fim da Guerra de Secessão e que ainda subsistia e até se desenvolvia exuberantemente de forma nova na África e no mundo colonial em geral. 876 Marx-Engels, 1955, vol. XXIII, p. 23 1 , nota 30. 877 Townsend, 1 97 1 , pp. 23-4. 878 Townsend, 1 97 1 , pp. 26-7. 879 Townsend, 1 97 1 , p. 24; sobre Townsend cf Marx-Engels, 1 955, vol. XXIII, p. 676. 435

Schopenhauer assimila explicitamente "proletário" e "escravo", mas para fazer valer só para o primeiro a tese da insuperabilidade das cadeias da servi­ dão: enquanto zomba das tentativas de modificar de qualquer modo a condição operária, exibe todos os seus bons sentimentos ao denunciar a vergonha da escravidão negra. Nietzsche supera essa contradição, mas a saída talvez lhe seja sugerida exatamente por Schopenhauer, que faz uma distinção nítida entre os "infelizes" escravos das plantações do Sul dos Estados Unidos e "os escra­ vos dos antigos, a famllia, os vernae, uma linhagem (Geschlecht) contente, devotada e fiel ao senhor".880 Também em Nietzsche a escravidão antiga pa­ rece às vezes assumir o aspecto conciliado de Diógenes ou Epicteto (supra, cap. 1 2 § 5). Agora, de qualquer modo, tanto a condição operária como a escravidão moderna são assimiladas à escravidão antiga. A posição que assim surge não é apenas mais rigorosa no plano lógico, mas é também totalmente imune à pitada de instrumentalismo quiçá presente em Schopenhauer: exata­ mente no país tomado como modelo para as suas intuições políticas pelos de­ mocratas europeus, os Estados Unidos, onde, suprimidos os "privilégios de nas­ cimento", dominava o "direito puramente abstrato", exatamente lá grassava a barbárie da escravidão negra.881

2. A ideologia como legitimação e contestação do sistema social existente A função desempenhada por esta "flor" ilusória que é a ideologia é dupla e ambivalente. Por um lado, na medida em que serve para transfigurar as cor­ rentes realmente existentes, isto é, na medida em que age em sentido consolador e op iáceo com respeito à opressão social, na medida em que bloqueia a tomada de consciência da classe oprimida e paralisa a sua resistência, a ideologia de­ sempenha uma função conservadora, de consolidação das correntes: nesse sentido, é parte integrante de um sistema de domínio, ou, antes, constitui o seu tecido conectivo indispensável. Mas exatamente na medida em que é chamada a desempenhar uma função de embelezamento e de transfiguração da realida­ de, da opressão social, a flor ideológica não pode ser imediatamente identificada: nisso continua a estar presente um elemento de diferenciação e de transcendência, porquanto ilusória, em relação ao existente. 880 Schopenhauer, 1 976-82 c, vol. V, p. 4 14. 881 Schopenhauer, 1 976-82 c, vol. V, p. 299 (§ 127).

Marx, que não se cansa de sublinhar a função conservadora da ideologia, é também consciente, por outro lado, da inquietação e do embaraço que pode dar à classe dominante o elemento da diferenciação-transcendência com res­ peito ao existente. É sempre possível que alguém tome a sério o embelezamento ideológico e exija a sua realização. Assim se desenvolve uma dialética comple­ xa e rica em contradições. As reivindicações avançadas a partir da pretensão ou da esperança de realizar na prática as frases ideológicas com que a classe dominante procura embelezar e consolidar o próprio domínio se revelam total­ mente aleatórias . Não é, de fato, o cúmulo do absurdo querer "regular o mundo segundo uma fórmula que se pretende nova, mas que não é senão a expressão teórica do movimento real existente"? Em conclusão: É de fato totalmente impossível refazer a sociedade na base de que é apenas a sua sombra embelezada (verschonerter Schatten). À medida que a sombra toma corpo, a gente se apercebe que este corpo, longe de ser a sonhada transfiguração da sociedade, é o corpo atual dela. 882

Quando não se compreende "a necessária diferença entre configuração real e ideal" da sociedade existente, assume-se a "tarefa supérflua de querer realizar de novo a expressão ideal, onde esta é de fato apenas a transfiguração dessa realidade". 883 Mas, por idealista que possa ser a atitude aqui criticada, que autonomiza as flores da ideologia com respeito à corrente que ela é chamada a transfigurar e legitimar, por quixotesca que possa ser a pretensão de realizar de novo na realida­ de social o seu embelezamento ideológico, trata-se sempre de um elemento de estorvo para o poder dominante. A diversidade-transcendência com respeito ao existente, inserida na ideologia, pode transformar-se numa contradição, em "uma certa oposição e hostilidade". De um lado temos a classe dominante, imersa na gestão cotidiana e concreta do seu sistema de exploração e, portanto, de qualquer modo sempre com os pés na terra; do outro lado, as categorias empenhadas na construção da ideologia (das flores necessárias para o embelezamento e o ocultamento das cadeias), as quais exatan1ente por isso deveriam levar a sério as frases ideológicas, olhadas, porém, à distância, senão com desprezo, por aqueles que gerem concretamente o sistema de exploração e de domínio. 884 A destruição da flor ideológica feita pelas mesmas classes dominantes significa então um momento de reação ou, de qualquer modo, de atraso políti882 Marx-Engels,

1 955, vol. IV, pp. 8 1 e 105. 1 953, p. 160 (= Marx, 1 968, vol. 1, p. 2 1 9). 884 Marx-Engels, 1955, vol. III, pp. 46-7. 883 Marx,

co-social. ·'Flores 'entusiásticas"' adornam o berço da burguesia francesa, mas depois "murcham". 885 Abandonada a ilusão de construir uma comunidade de citoyens, a sociedade burguesa aparece claramente como o domínio da rique­ za e do capital. É um processo que se verifica não só depois da revolução de 1 789, mas também depois da revolução de 1 848. Por isso, nos momentos em que se toma mais agudo o choque político-social, a classe dominante percebe como um embaraço incômodo a ideologia que deveria ter transfigurado e legi­ timado o seu domínio. Dépois da revolução de Fevereiro de 1 848, "a emancipa­ ção dos trabalhadores, até como frase se toma um perigo intolerável para a nova república"; era enfim necessária "a supressão, mediante a violência sans phrase, de todas as fórmulas", dos "ingredientes ideológicos", para deixar cla­ ro, afinal, de uma vez para sempre, e aperfeiçoar definitivamente o sistema capitalista de "sujeição do proletariado", de "escravidão do trabalho". 886 Depois da revolução de 1 848, na tendência da economia política a ocultar as contradições existentes no âmbito de uma presumida "harmonia" superior, Marx já vê um sintoma da decadência ideológica da burguesia. 887 Por outro lado, de­ nuncia como uma variante mais brutalmente reacionária da ideologia das classes dominantes a tendência a destruir a ilusão harmonicista, a arrancar as "flores", mas só a fim de fazer valer as "correntes" nuas em toda a sua dureza. A opinião sobre Malthus é significativa neste propósito. "Em relação aos miseráveis mes­ tres de harmonia da economia burguesa", ele tem o "mérito" de não ter ocultado as ·'desarmonias", ou mellior, de lhes ter conferido "acentuado relevo"; mas es­ tas mesmas "desarmonias" são depois apresentadas "com cinismo sacerdotal e satisfeito". A imparcialidade é, portanto, apenas aparente. O teórico da superpopulação "exibe uma falta de respeito" ao descrever as relações sociais existentes, não evita absolutamente exageros, mas só para melhor fazer valer as "conclusões" da sua análise "contra os miseráveis". 888 Malthus não tem nada da lúcida objetividade e da real falta de cautela de um cientista ao modo de Ricardo, o qual pode parecer "cínico" só porque descreve a sociedade burguesa e a condição operária sem embelezá-Ia e legitimá-la com uma "linguagem 'humanitária'".889 Em Malthus, porém, a aparente imparcialida885 Marx-Engels, 1955, vol. II, p. 86. 886 Marx-Engels, 1955, vol. VII, p. 25, p. 4 1 p. 50 e p. 33. 887 A este respeito, ver a polêmica contra Bastiat, o teórico exatamente das "harmonias econômicas" : cf. Marx-Engels, 1955, vol. XXVI, 3, p. 492 e Marx, 1953, pp. 843-853 (= Marx, 1 968, vol. II, pp. 647-660). 888 Marx-Engels, 1 955, vol. XXVI, 2, pp. 1 1 3-4 e vol. XXVI, 3, p. 56. 889 Marx-Engels, 1 955, vol. IV, p. 83.

de se transforma no seu contrário, numa "apologia da miséria das classes traba­ lhadoras"; arrancando as "flores" das "correntes", de modo a liquidar qualquer vaga perspectiva de melhora para as classes trabalhadoras, ele "deu expressões bmtais ao ponto de vista do capital"890 ou das classes exploradoras em geral. A ideologia, segundo a análise de Marx, é a legitimação e a transfiguração da opressão existente, mas é também "a realização fantástica da essência humana". Nesse sentido, a religião é "expressão da miséria real", mas também ·'protesto contra a miséria real".891 É esse elemento, embora aleatório, de pro­ testo contra o existente que constitui o alvo real da crítica da ideologia que visa exclusivamente às "flores" . Aos olhos de Nietzsche, "a dignidade do trabalho é uma ideia louca do tipo mais estúpido; ela é um sonho de escravos" (VII, 140) . Mas neste sonho que é a ideologia, Marx critica o ilusório da superação em relação ao existente e Nietzsche, ao contrário, o desejo de superação que ele exprime, embora de modo confuso e com veleidade. É sintomática a atitude diferente e contrária assumida em relação ao cristi­ anismo. "Os cristãos - declara Marx - são iguais no céu e desiguais na terra", assim como no âmbito da sociedade burguesa "os membros singulares do povo são iguais no céu do seu mundo político e desiguais na existência terrestre da sociedade". 892 Quanto ao "ópio" e à técnica de consolação, a igualdade celeste consagra ou arrisca consagrar as desigualdades mundanas, que constituem o alvo real da crítica de Marx. Nietzsche tem uma atitude bem diferente: embora projetada numa esfera remota como a celeste, a afirmação da igualdade consti­ tui, de qualquer modo, um elemento destmtivo de contradição com respeito às desigualdades mundanas, que é necessário reconhecer na sua eternidade. Criti­ cado por Marx como instmmento de conservação político-social e pela sua inca­ pacidade de tomar realmente distância da organização existente, o cristianismo é, ao contrário, condenado por Nietzsche pela sua proximidade, ideal e às vezes até imediatamente política, com os movimentos igualitários e socialistas . Em ambos os casos o cristianismo é o protótipo da ideologia; então fica claro o sucesso contrário que a crítica da ideologia tem nos dois autores aqui comparados . Regularmente, os pontos de contato são ao mesmo tempo momentos de oposição. No modo de ver de Marx, a condição operária é sinônimo de "escra­ vidão econômica", de "escravidão camuflada" (verhüllte Sklaverei) ou "es­ cravidão modema", 893 ou então, como acabamos de ver, de "escravidão do 890 Marx, 1 953, p. 499 (= Marx, 1 968, vol. II, p. 270). 1 955, vol. I, p. 378. 892 Marx-Engels, 1955, vol. I, p. 283. 891 Marx-Engels,

893 Marx-Engels,

1 955, vol. VII, p. 23, vol. XXIII, p. 787 e vol . IV, p. 84.

trabalho". Em termos análogos, Nietsche fala de "escravidão de fábrica" (Fabrik-Sklaverei) e de "escravidão do trabalho" (M, 206 e GM, III, 1 8) . Se Nietzsche zomba da "dignidade do trabalho", Marx faz ironia sobre os "direitos do homem" na sociedade capitalista: "Para o capital, exploração igual da força de trabalho é o primeiro direito do homem".894 À primeira vista pareceria que ambos os autores advertem contra a ilusão de que reformas superficiais pos­ sam atacar profundamente a realidade da escravidão operária. É um tema bem conhecido em relação á Marx. Mas também em Nietzsche, a propósito da condição dos operários, se pode ler: "É uma injúria crer que através de um salário mais elevado a substância da sua miséria, quero dizer, a sua condição impessoal de escravos, possa ser eliminada!" (M, 206). Mas a convergência se transforma em antagonismo radical. Da constatação do caráter substancialmente escravista da condição operária da época Nietzsche deduz a afirmação da inutilidade de qualquer tentativa de mudança. Não só convida os operários a não sustentar as reivindicações sindicais, mas, junto com a luta econômica, condena também a luta política da socialdemocracia: "É uma infâmia deixar-se convencer de que, através da potencialização desta impessoalidade dentro do dispositivo mecânico de uma nova sociedade, a igno­ mínia da escravidão possa ser transformada em virtude" (M, 206). Não só a palavra de ordem da abolição da escravidão é insensata, mas também a preten­ são de querer rachar uma instituição que se apresenta inexoravelmente maciça e compacta. A única mudança possível é a de determinados indivíduos e grupos evitarem o destino de escravidão que por toda parte pesa sobre a maior parte da humanidade. Daí o convite aos operários alemães e europeus a empreende­ rem a aventura colonial (supra, cap. 1 1 § 7) . A posição de Marx é bem diferente. Se, por um lado, não se cansa de denunciar a condição operária do tempo como "escravidão assalariada", por ou­ tro lado, quando estoura a Guerra da Secessão, clama para a defesa do "sistema de trabalho livre" contra o "sistema da escravidão". 895 A dura condenação da sociedade capitalista não comporta nem o achatamento do traballio assalariado sobre o traballio servil, nem a condenação ou a desvalorização da luta para modi­ ficar, atenuar, suavizar ou limitar a mesma "escravidão assalariada". Além de as duas críticas da ideologia serem antitéticas no plano político imediato, são também no plano mais propriamente teórico. A um processo de naturalização se opõe um processo de dupla historização. Ao contrário de Nietzsche, Marx historiza a assimilação escravo-operário não só no sentido de 894 Marx-Engels,

1 955, vol. XXIII, p. 309.

895 Marx-Engels, 1955, vol XV, p. 340. .

que supõe e auspicia um ordenamento social bem diferente do existente, mas também no sentido de que, no próprio âmbito da sociedade capitalista, acha possível modificar sensivelmente a condição operária. Enfim, se uma das características do discurso ideológico é a de ocultar a negatividade, dando uma visão adocicada da realidade, é preciso dizer que a posição de Nietzsche (e de Schopenhauer) é ambígua. Por um lado, rejeitados os quadros edificantes, eles põem a nu a terrível realidade da condição operária do tempo; por outro lado, fazem intervir uma dupla técnica de ocultamento ou de neutral ização da negatividade. Em primeiro lugar, é preciso não perder de vista o fato de que a capacidade de sofrer e de sofrer espiritualmente e em profundidade caractt:riza sobretudo as classes superiores. Embora não sejam negados, os sofrimentos das classes subalternas perdem o estímulo suscetível de colocar em discussão a ordem social existente. Sobretudo, imersa como está num banho de eternidade e inevitabilidade, a carga de negatividade se torna como que neutralizada. Aparentemente, a crítica da ideologia alcança o seu ápice procedendo com "fria malvadeza contra a 'bela palavra' e também contra o 'belo senti­ mento"', contra a "loquacidade sentimental", contra toda "trapaça moral e ideal" . Mas, esta "vontade absoluta de não recorrer a mistificações" ideoló­ gicas é sinônimo de "cultura dos realistas", de "coragem perante a realida­ de", de aceitação da realidade imutável da escravidão, da divisão da humani­ dade entre senhores e escravos (GD, O que devo aos antigos, 1 -2). Se há um elemento de crítica real nesta visão, ele tem em mente os sonhos, as ilusões, as mistificações, os autoenganos, os delírios e as alucinações de quem desejaria de um modo ou de outro modificar e atacar a "sagrada ordem da natureza". Não só a classe dominante é visada, mas também o homo ideologicus, ao qual é contraposto o "homem tropical" que, longe de aban­ donar-se a sonhos de superação da realidade da hierarquia e da luta, sabe reconhecer-se e divertir-se como "homem predador" e "animal de rapina" à maneira de César Bórgia (JGB, 1 9 7) . É, portanto, superficial e insustentável a aproximação de duas críticas da ideologia diversas e opostas. Num certo sentido, a visão cara a Nietzsche é antecipadamente condenada, por Engels, com o olhar voltado para certos cír­ culos econômicos e políticos ingleses entrincheirados em suas posições mais declaradamente conservadoras . Aos operários que reivindicam a redução do horário de trabalho, eles parecem responder: Vós, operários, sois escravos e escravos deveis permanecer, para que ape­ nas nós possamos aumentar a nossa riqueza e o nosso bem-estar com fim441

damento na vossa escravidão, porque nós, a classe dominante deste país, não podemos continuar a dominar sem que vós sejais escravos.896 Vimos que, ao criticar a teoria do gênio em Carlyle, Engels faz ironia sobre a pretensão do "chicote" dar-se ares de genialidade (supra, cap. 2 § 5). É uma metáfora que no jovem Marx se apresenta com uma variante, a do açoite legitimado pela escola histórica do direito como "açoite idoso, históri­ co". 897 Tirando de algum modo proveito da lição iluminista, a escola histórica do direito dá mostras de um "método sem cuidados" em relação a quem quer que seja, toma uma atitude não fideista, mas ao contrário, cética (infra, cap. 1 6 § 4). Com u m resultado paradoxal. A crítica da ideologia que destroi as "flo­ res", as tentativas de legitimação da opressão e da violência perpetrada pela classe dominante, muda-se numa ideologia para a qual esta violência e esta opressão não têm sequer necessidade de recorrer a legitimações. Dir-se-ia que Nietzsche confere rigor e consequência ao modo de proceder de Marx critica­ do em Hugo.

3. Violência imediata e forma da universalidade Parti da Revolução Francesa ao analisar os dois tipos opostos de crítica da ideologia. No entanto, para esclarecer de modo mais adequado a posição de Nietzsche, convém voltar decididamente um pouco atrás. Poder-se-ia remon­ tar até Trasímaco que, segundo o testemunho de Platão, define "a justiça" como "aquilo que é útil ao poder constituído". Se até em teoria parece atingir toda fonna de governo, a carga desmistificadora tem como alvo político real em primeiro lugar a democracia: "Todo governo faz as leis conforme o interes­ se próprio: a democracia, democráticas, a tirania, tirânicas e assim por dian­ te". 898 A democracia não podia ostentar nenhum título particular de legitimida­ de: o poder do demos era desmascarado como baseando-se ele mesmo na violência, tal qual as outras formas de governo que ele pretendia superar em nome de uma organização político-social superior, marcada por maior 'justiça". Não por acaso, Trasímaco acaba depois fonnulando uma espécie de "manifes896 Marx-Engels, 1955, vol. VII, p. 227. 897 Marx-Engels, 1955, vol. 1, p. 380. x9s República, 338 e. 899 Assim se exprime Untersteiner, 1954, p. 24, com referência aos fragmentos Sobre a constituição.

to do partido oligárquico" e propagando o "retomo ao õáôfiéió ôleéôâéá",899 ou seja, à constituição do bom tempo antigo, no qual o poder oligárquico era aceito como um fato óbvio e natural, sem que fosse contestado em nome da democra­ cia ou da "justiça". A imparcialidade inicial com que se olha para qualquer forma de governo desemboca em realidade numa "apologética indireta"900 do regime aristocrático, e as "flores" da ideologia da 'justiça" foram arrancadas só para acentuar a necessidade das "correntes"; o poder foi desmascarado como violência apenas para melhor fazer valer a violência oligárquica como uma forma de poder, se não melhor, certamente não pior do que as outras. Nesse caso, a crítica da ideologia é a reação de quem invoca o princípio do tu quoque e, ao invocá-lo, destrói a forma da universalidade para si e para seus adversários. Também a superior idealidade por eles invocada para legitimar a sua posição são um ornamento i deológico. Este aspecto está bem presente em Nietzsche, desde o início empenhado em neutralizar a arma de apelo à 'justiça" e aos sentimentos morais superiores empunhada pelo movimento revolucionário e socialista. Mas é sobretudo ilustrativa a comparação com Cálicles, o qual se exprime assim no Górgias platônico: Na minha opinião, os que estabeleceram as leis são os homens fracos e a massa (i'é ôi'eei'é). Para si mesmos e para vantagem própria eles instituem as leis e dispensam elogios e censuras [ .. ]; quanto a eles, penso, estão bem contentes por serem iguais aos outros, uma vez que são inferiores. .

Por isso a lei declara injusto e vergonhoso procurar elevar-se acima do co­ mum, e isto é chamado agir injustamente. Mas a própria natureza, na minha opinião, nos mostra que éjusto que quem vale mais leve a melhor sobre quem vale menos e que quem é mais forte prevaleça sobre quem é mais fraco. Ela nos mostra que é assim em muitos casos, seja entre os mtimais, seja entre os homens, em todas as cidades e nas fanúlias.90 1

A norma, seja ela jurídica ou moral, confere a forma da universalidade a conteúdos e interesses que são ou podem ser meramente particulares. É por isso que dessa norma ou sistema de nonnas se pode contestar o caráter ilusório ou mistificador da universalidade, ou seja, a fonna da universalidade enquanto tal. À medida que assume a fonna da universalidade, um sistema de poder e de domínio consegue uma legitimação que o consolida. Por outro lado, a forma nunca é o nada; é sempre uma concessão da classe dominante e um vínculo para a ação: o seu domínio é de algum modo obstruído. Deste ponto de vista - observa Hegel em 900 Para

a categoria de "apologética indireta" cf. Lukács, 1974, p. 206. 90 1 Górgias, 483 b-d (Platão, 1993, pp. 156-7).

polêmica contra Haller, colocado também ele na posição de Cálicles - a negação da universalidade é apenas a celebração da "violência natural contingente". sxi2 Com efeito, Cálicles, "aristocrata ateniense [ . . . ], representante típico da sua classe social", deve ser incluído entre os "naturais adoradores da força". sxi3 É interessante ver surgirem, também nesse caso, as categorias e as metáforas que comumente caracterizam o discurso de crítica da ideologia: trata-se de libertar-se dos "vú1culos", dos "sortilégips'', dos "encantamentos" de uma mistificadora "igual­ dade" teorizada e imposta pelos mais fracos.904 Chegamos assim à questão cen­ tral . No âmbito da luta ideológica, são os mais fracos que tomam a iniciativa, agitando uma mistificadora "universalidade'', que em teoria deveria transcender o conflito, mas que, na realidade, visa apenas refrear os mais fortes. Este é o ponto de vista também de Nietzsche: é o fraco que, necessitado como é de evitar o confronto, "se esconde debaixo da generalidade do conceito 'homem "' (M, 26). Nos escritos juvenis se sublinha que "na época moderna é o escravo que fixa as representações" (VII, 337). À medida, porém, que se detennina a longa duração da subversão, a iniciativa ideológica do plebeu e do mal sucedido é progressivamente retrodatada por Nietzsche até abranger toda a hi stória do Ocidente, a começar pelo judaísmo, esta primeira e impetuosa revolta de escravos em nome da universalidade moral. Empenhado em denunciar o caráter ilusório da universalidade no âmbito de uma sociedade fundada na opressão de classe, Marx se concentra no papel das classes dominantes na construção do discurso ideológico. Em continuidade ideal com o discurso cristão, a égalité que brotou da Revolução Francesa acaba ocul­ tando ou legitimando a realidade da exploração e do domínio. Todavia, essa ideia de igualdade é algo de grande, está "indicando a unidade essencial dos homens, a consciência genérica e o comportamento genérico do homem, a identidade práti­ ca do homem com o homem, e isto é a relação social e humana do homem com o homem".sxi5 Ela representa "um progresso da história'',906 é uma concessão, embora bastante parcial, arrancada das classes dominantes. Nesse sentido, tam­ bém Marx reconhece o papel das classes subalternas na construção do discurso ideológico. Mas é exatamente o conteúdo celebrado por Marx que suscita a áspera crítica de Nietzsche, que nele lê a confinnação da continuidade da revolta 1969-79, vol. VII, p. 403 (Grundlinien der Phi/osophie desRechts, § 258 A, nota). 903 Jaeger, l 953, vol. 1, pp. 554 e 545-6. 904 Górgias, 484 a (Platão, 1993, pp. 1 58-9). 902 Hegel,

905 Marx-Engels, l 955, vol. II, p. 4 1 . 906 Marx-Engels, 1955, vol. 1, p. 283.

servil e da iniciativa desenvolvida no plano ideológico dos escravos a partir do cristiarúsmo, e antes, como veremos, do judaísmo pós-exílio.

4. Da reticência nacional-liberal à falsidade do radicalismo aris­

tocrático Se Marx está empenhado na denúncia da religião como "ópio do povo", ou seja, como momento de abrandamento e neutralização do protesto social e, portanto, de consolidação da ordem existente,907 na vertente oposta vemos uma crítica da ideologia que não hesita em conjugar ateísmo radical e recomen­ dação da religião para as massas populares. A posição de Schopenhauer é significativa. À primeira vista parece tornar próprios, sem reservas, os resulta­ dos da crítica iluminista contra o "obscurantismo", definido como "um pecado senão contra o espírito santo, certamente contra o espírito humano'', de qual­ quer modo um pecado imperdoável e que deve ser punido reservando um des­ prezo implacável, também post morrem, àqueles que forem responsáveis por ele.908 Na vertente oposta, objeto de veneração deve ser a memória de Voltaire, dos grandes iluministas, de todos aqueles que de algum modo se distinguiram na luta contra o "obscurantismo".m No entanto, o diálogo Sobre a religião, que começa com uma homena­ gem à coragem da verdade de Bruno e Vanini, pronunciada por um dos seus protagonistas, Filalete,910 encerra com a observação de Demófilo, que previne contra os efeitos politicamente ruinosos da crítica à religião: é preciso estar bem atentos para não favorecer "oclocracia e anarquia [ . . . ], o inimigo jurado de toda ordem legal , de toda civi lização e humanidade" .91 1 E, numa carta, Schopenhauer declara explicitamente que não se identifica absolutamente só com o Fi lalete, que deveria representar, como o nome sugere, o amor desinte­ ressado pela verdade, pela pesquisa teórica consequente e imparcial, mas de compartilhar também as preocupações de Demófilo, que, ao contrário, repre%7 Marx-Engels, 1955, vol. 1, p. 378. 908 Schopenhauer, 1 976-82 b, çp. 67 1 -2 e 750; autores como Adam Müller e o último Friedrich Schlegel são os principais responsáveis por esse desprezo. 909 Schopenhauer, 1 976-82 b, p. 749. 910 Schopenhauer, 1976-82 e, p. 384. 91 1 Schopenhauer, 1 976-82 e, vol. V, p. 424; Lukács, 1 974, p. 2 1 9, já chamou a atenção para a importfü1cia desta conclusão.

senta a consciência da necessidade de não atacar a religiosidade popular, o possível dique contra a maré "oclocrática'', anárquica e socialista. 91 2 Assim Schopenhauer que, com o olhar voltado para o passado, defende e celebra Voltaire e o iluminismo, em relação ao presente aprova e assim reivin­ dica o distanciamento das cátedras dos materialistas Büchner e Moleschott, colocados com desprezo entre os "docentes heterodoxos" - como são defini­ dos com linguagem que rev�la uma surpreendente preocupação pela ortodoxia religiosa - também em consideração do nexo que ocorre entre o seu materialis­ mo e o seu "fazer política" (Politisieren).913 A crítica à religião e à ideologia não deve penetrar nas massas: este é o ponto de vista explicitamente formulado pelo jovem Nietzsche, que desde logo prova a sua carga dessacratória e desmitificadora. Isso, porém, não impede que ele celebre a "inconsciência salutar", a "sonolência sadia", o "sonho sadio e restaurador" no qual o povo está imerso e é bom que continue a estar (BA, 3; 1, 699). Na onda do processo de industrialização e do processo de ascensão do movimento operário, as massas urbanas em primeiro lugar começam a sepa­ rar-se da ideologia tradicional, a fommlar reivindicações novas, assumindo uma posição autônoma, tanto no plano cultural como no político, em relação às ve­ lhas classes dominantes. A tudo isso o jovem Nietzsche contrapõe a saudade de um mundo camponês ainda dominado em última análise pela servidão da gleba e pela fidelidade sem problemas aos Junker, sem os estímulos críticos os confrontos da religião e da ideologia tradicional : Como é revigorante para nós a consideração dos servos medievais da gleba (1-Iorigen) com as suas relações jurídicas e consuetudinárias internas vi­ gorosos e delicados -, com respeito aos superiores, com o recinto melancó­ lico da sua existência restrita : como tudo isso é revigorante, e como é cheio de censura! (CV, 3; I, 769). -

No âmbito dessas relações sociais, "a servidão (Dienstbarkeit) da mas­ sa, a sua obediência submissa, o seu instinto de fidelidade" são garantidas pela permanência dos "instintos religiosos", das "imagens míticas ". A "fidelidade" da massa ..ao seu costume, aos seus direitos, ao solo pátrio, à sua língua", além de à sua religião, não foi ainda atacada pela irrupção dessagradora da instrução ou, ainda pior, pelo apelo à "emancipação" (BA, 3 ; 1, 698-9). 9 12

Schopenhauer. 1929-33, vol. II, p. 76 (carta a Julius Frauenstãdt de 30 de outubro de 185 1). m Schopenhauer, 1929-3 3, vol. II, p. 394 e p. 480 (carta a Julius Frauenstãdt de 15 julho de 1855 e de 28 março de 1856).

Continua a ecoar até o fim, em Nietzsche, o desapontamento pelo fato de que este mundo está transtornado pela subversão moderna: "Não há mais bra­ ços para o trabalho nos campos. A instrução destroi a raça dos lavradores e por conseguinte a agricultura" (XIII, 1 23). Um fragmento posterior chega a lamentar o desaparecimento da "inalienável propriedade da terra", à qual correspondia, no plano cultural e ideológico, a "veneração dos anciãos"; agora, porém, com o "despedaçamevto da propriedade da terra", o "o jornal substitui a oração cotidiana" (XI, 68-9). O crime do movimento socialista e revolucionário reside em primeiro lu­ gar no seu empenho em solapar e tomar impossível esse mundo: é implacável a polêmica contra os "malditos sedutores que destruíram o estado de inocência do escravo por meio do fruto da árvore do conhecimento" (CV, 3; 1, 765-6). Junto com a instrução foram inoculadas nele necessidades até aquele momento não percebidas: "Não ter necessidades é para o povo a maior desgraça, disse uma vez Lassalle. Por isso surgiram as ligas de cultura operária, sendo a sua intenção muitas vezes indicada como suscitar necessidades" (VII, 243). Suscitar necessidades aqui não significa senão perturbar a calma obtusa e sonolenta que o ópio ideológico permite aos escravos, apesar dos sofrimentos das correntes, significa introduzir um elemento estranho de reflexão e de cisão nesta identidade imediata e sem problemas com o sistema social existente e com uma espécie de labutas e de privações . Sim, a culpa da "canalha socialis­ ta" é ter "minado o instinto, o prazer, o sentimento de s implicidade sem preten­ sões (Genügsamkeit) do operário com a sua pequena existência" (AC, 57), ter destruído as condições que tomavam impossível ser ao mesmo tempo "pobre, alegre e escravo !", ter posto irremediavelmente em crise aquela "idílica misé­ ria voluntária" com que os operários-escravos estavam satisfeitos antes que a propaganda socialista acendesse neles "loucas esperanças" (M, 206). A marca de infãmia da sociedade contemporânea no seu conjunto é ter tomado impossí­ vel ··um tipo de homem modesto e sem pretensões" (selbstgeniigsam), capaz de aceitar serenamente e como um dado de fato natural a própria sorte, que é, porém, agora sentida e rejeitada como "estado de necessidade" (Nothstand) e ·'injustiça" (GD, Incursões de um inatual, 40). Apesar de tudo, a religião pode e deve ser recomendada na medida em que está em condições de ensinar os servos a venerar como "divindade", como algo sagrado, "a resignação e a modéstia", convencê-los de que não há "nenhuma razão para encarar a vida de maneira dificil e até para lamentar-se" (M, 92). É preciso, porém, acrescentar que, apesar do desapontamento suscitado pelo desaparecimento de um mundo de piedosa simplicidade camponesa, Nietzsche não só não se identifica com ele mas o percebe, em todo caso nos 447

anos da maturidade, em irremediável contradição com a sua visão do mundo. Desapareceu totalmente a perplexidade presente em Schopenhauer, ainda in­ certo entre Filalete e Demófilo; desapareceram a ambiguidade e a hipocrisia implícitas no próprio nome de Demófilo, como se a exclusão dos resultados da crítica à religião fosse ditada pelo amor do povo. Como veremos, talvez ainda se faça referência à "utilidade geral" (ou seja, à necessidade de não perturbar a ordem da civilização}, I!lªS sobretudo não se hesita em proclamar abertamen­ te o interesse dos "senhores" em recomendar a religião aos "servos". O fato novo é que agora são dirigidos às duas classes sociais, ou as duas "raças", discursos morais conscientemente opostos. Os primeiros são convidados a se libertarem dos empecilhos derivados do cristianismo, a fim de desenvolver com exatidão sua vontade e suas aptidões para o comando; e tais características são medidas também pela capacidade de saber pregar para as classes subal­ ternas os valores da humildade e da resignação. É verdade, se Schopenhauer confessa não querer identificar-se unilate­ ralmente com Filalete, Nietzsche, num apontamento da primavera-verão de 1 875, declara não estar "do lado de Demófilo" (VIII, 46). Mas isto não signifi­ ca que ele esteja pronto a superar as cláusulas de exclusão implícitas na sua crítica da ideologia. Ao contrário, elas são reforçadas com uma radicalidade totalmente nova. Estamos sem dúvida na presença de uma atitude diferente da atitude zombeteira de Engels, isto é, pelo respeito afetado em relação à religião oficial, exatamente dos nacional-liberais. Estes últimos interiorizaram de tal modo a regra da reticência e da autocensura que não ousaram sequer pronunciar publicamente nem pensar uma crítica real do cristianismo. Continuam antes a celebrar a sua grandeza em tom compassado e devoto, mesmo se depois acres­ centam com um suspiro que o desenvolvimento da cultura e da ciência colocou em crise as certezas anteriores, as quais todavia subsistem e é bom que conti­ nuem a existir entre as classes subalternas. Desde o início, Nietzsche, por sua vez, enuncia a regra da duplicidade; depois de ter censurado os "educadores elementares" por serem um elemento de perturbação com respeito à imperiosa necessidade que as crianças continu­ em a ser educadas no respeito pela "tradição" (supra, cap. 4 § 6), um aponta­ mento do inverno de 1 8 7 1 -72 acrescenta: "No cimo, a visão deve ser grandio­ samente livre. As duas coisas se conciliam muito bem" (VII, 385). O erro de Schopenhauer foi ter permanecido substancialmente no ponto de vista nacional-liberal. Ele atribuiu um "sensus allegoricus" à religião; não com­ preendeu que "ne1úmma religião nunca teve até agora, nem direta nem indireta­ mente, nem como dogma nem como alegoria, uma verdade" (MA, 1 1 O) . Esta atitude de indulgência em relação à religião estimula e perpetua nas classes domi-

nantes preconceitos, obstáculos e hesitações que elas devem saber sacudir de suas costas . Esta é a tarefa principal. Não se trata mais apenas de manter as massas às escuras dos resultados da crítica à religião. Certamente, "Zaratustra não deve falar ao povo" (Za, Prefácio de Zaratustra, 9). Mas isto não é tudo, nem sequer o essencial. É necessário chegar à plena consciência de que um é o discurso destinado às classes dominantes e outro o que deve ser dirigido às clas­ ses subalternas: ·'É preciso di!tinguir rigorosamente entre A e B" (XIII, 448).

5. As religiões como "instntmentos de criação e de educação " nas mãos da classe dominante Ao passo que não há problemas sobre o discurso a ser dirigido para B, ao bem sucedido, chamado a fazer parte da classe dominante, existe alguma dúvi­ da em relação ao discurso a ser dirigido para A, o mal sucedido, o servo. Cabe verdadeiramente à religião estimular nele a "sonolência" que a sobrevivência da civilização exige? Pelo menos no que respeita ao Ocidente, não há dúvida de que o cristianismo está realmente acometido por aquela mesma doença que ele em teoria deveria debelar. O ressentiment plebeu se faz sentir com força: Que se atribua o próprio passar mal a outro ou a si mesmo - o socialista faz a primeira coisa, o cristão, por exemplo, a segunda - na verdade não faz nenhuma diferença. O elemento comum, e dizemos também aquele que há de indecoroso nisso, é que cada um deve ser culpado pelo sofrimento - está em suma no fato de que o sofredor prescreve para si mesmo, contra a sua dor, o mel da vingança (GD, Incursões de um inatual. 34).

No plano político concreto, porém, as igrejas cristãs conseguem sempre des­ viar em sentido intimista o ressentiment e, portanto, pôr obstáculo a uma nova onda daquela revolta de escravos de que, aliás, a pregação evangélica foi o primeiro ato. Se não estão em condição de impedir o surgimento do ressentiment no escravo (e a referência é agora ao escravo assalariado), as igrejas podem pelo menos canali­ zar esse sentimento de modo a tomá-lo política e socialmente inofensivo: ·'Eu sofro: alguém deve ter a culpa disso" - assim pensa toda ovelha enfermiça. Mas o seu pastor, o padre asceta, diz a ela : "Está bem assim, minha ovelha ! Alguém deve ter a culpa disso: mas tu mesma és esse alguém, és unicamente tu que tens a culpa - és unicamente tu que tens culpa de ti mesma !" . . . Isto é bastante temerÍlrio, bastante falso: mas se nenhuma outra coisa for de tal modo acrescentada, de tal modo, como foi dito, a direção do ressenti111ent ... 11111do11 (GM, III, 1 5); 449

Foi conseguido um resultado importante: foi destruída a ilusão e a mentira socialista segundo a qual "a felicidade na terra [ ... ] é aumentada mudando as instituições" (VIII, 482). Nesse ponto é lícito, antes um dever, elevar um hino à figura do sacerdote: Aqui dita lei uma grande necessidade; de fato também para a imundície da alma há necessidade de canais de escoamento e de puras águas limpadoras que corram dentro·deles, há necessidade de torrentes rápidas de amor e de cora­ ções fortes, humildes, puros, que estejam prontos para tal serviço de assistên­ cia sa1útária não pública e se sacrifiquem: por ser um sacrifício, um sacerdote é e será sempre uma vítima humana ... Tais homens da "fé" oferecidos em sacrifi­ cio, tomados silenciosos, graves, o povo acha que são sábios, pode-se dizer que os percebe como tendo se tornado sábios, "seguros" em relação cqm a própria insegurança: quem lhes tiraria a palavra e esta veneração? (FW, 35 1).

Mas esta veneração não deve transbordar, atacando e contagiando tam­ bém a classe dominante, os bem sucedidos, os "filósofos" no sentido melhor do termo: no âmbito deste círculo, "um sacerdote é sempre considerado povo e não ·sábio' , sobretudo porque eles mesmos não acreditam nos 'sábios "', e exatamente nessa necessidade de abandonar-se à fé e à autoridade "têm já cheiro de ·povo "' (FW, 35 1). O importante é não perder nunca de vista a distinção entre A e B. No primeiro caso, "'o cristianismo ainda parece necessário". Fique claro que ele não é chamado a trazer a cura; pelo contrário, "em determinadas circunstânci­ as, serve para tomar doente, o que pode ser útil para despedaçar o espírito de rebelião e de rudeza'', de modo a refrear "a canalha e a besta", imobilizadas por uma espécie de ''camisa de força". Quando impunham extenuantes "peni­ tências" aos chandala, os brâmanes sabiam bem que "na luta contra a besta, tomar doente é muitas vezes o único modo de enfraquecer". No caso de B, porém, a religião e mais ainda o cristianismo é um "sintoma da doença" que deve ser absolutamente curada no interesse do indivíduo e da sociedade no seu conjunto (XIII, 448-9). Vale a regra da "duplicidade": "Nós, imoralistas e anticristãos, vemos a nossa vantagem no fato de que a Igreja continua a existir" (GD, Moral como contranatureza, 3); está "no instinto daqueles que dominam (quer se trate de indivíduos ou de classes) patrocinar e exaltar as virtudes graças às quais os escravizados se tornam manejáveis e devotos"; nesse sentido, "também os 'senhores ' podem tomar-se cristãos" (XII, 568). O problema não é então exprimir um juízo positivo ou negativo sobre as diversas religiões em termos gerais, mas garantir o seu controle político-social

para as classes dominantes: as consequências são ruinosas quando elas, em vez de funcionar como "instrumento de criação e de educação" (Züchtungs­ und Erziehungsmittel) da massa, se tomam autônomas e "querem ser para si mesmas fins últimos e não meios ao lado de outros meios" (JGB, 62). Mas, uma vez que os aristocratas conseguiram tomar o controle, a religião se toma um instrumento fundamental para opor-se à subversão e dar nova­ mente corpo aos valores do radicalismo aristocrático: Para os fortes, os independentes, aqueles que estão preparados e predesti­ nados a comandar, nos quais se encarnam a razão e a a rte (Kunst) de uma raça dominadora, a religião é um meio a mais para vencer as resistências, para poder dominar (herrschen), sendo ela um vínculo que une dominadores (Herrscher) e súditos e revela aos primeiros, entregando-a nas suas mãos, a consciência moral dos últimos, a sua parte mais secreta e mais íntima que bem gostaria de subtrair-se à obediência (JGB, 6 1).

É interessante notar que aqui a religião é definida em termos não diferentes daqueles que podemos ler em Marx. A religião é a comunidade ilusória, é a univer­ salidade mistificada que oculta o domínio e a opressão. Mas é exatamente esse elemento que chama a atenção de Nietzsche. A ilusão da comWlidade, por um lado, desempenha a função opiácea que já conhecemos, por outro lado, toma possível aquele controle total da plebe que nenhuma polícia estaria em condições de garan­ tir. A essa altura se abrem novas e promissoras perspectivas de engenharia social: O filósofo, como nós, espíritos livres, o entendemos - como o homem que tem a responsabilidade mais vasta e para quem o desenvolvimento global do homem (Gesa111111t-Entwicklung des Menschen) é um fato de consciência: este filósofo se servirá da religião para a sua obra de criação e de educação (Ziichtungs- und Erziehungswerke) do mesmo modo que utilizará as condi­ ções políticas e econômicas do momento (JGB, 6 1 ).

Através da utilização consciente e imparcial do instrumento da religião, a "raça dominadora" plasma a si mesma, tornando-se sempre mais capaz e mais digna de exercer o domínio sobre aqueles que são chamados a servir e cuja existência não tem valor intrínseco. Para eles a religião dá o inestimável dom de contentar-se com o seu estado e com o seu modo de ser, a múltipla paz da alma, um enobrecimento pela obediência, uma felicidade e uma dor mormente compartilhada com os seus semelhantes e uma espécie de transfiguração e de adorno, algo como a justificação de toda a sua vida cotidiana, de toda a sua abjeção, de tudo quanto é miséria semibestial da sua alma.

Não obstante a carga enorme de dor que a sua condição inevitavelmente comporta, a religião consegue manter apegados à vida aqueles servos chama­ dos a se sacrificarem pela causa da civilização e, portanto, "para a utilidade geral" (allgemeines Nutzen) : A religião e a significação religiosa da vida depõem sobre tais homens chagados (geplagt) um clarão de sol e tornam suportável a eles até a sua própria visão [ .. r] . Talvez não haja nada mais venerando, no cristianismo e no budismo, do que a sua arte de ensinar também os mais ignóbeis (den Niedrigsten anzulehren) a se colocarem, mediante a devoção, na aparên­ cia de uma organização superior das coisas, mantendo junto de si, de tal modo, aquele seu contentamento com o sistema rea l, no interior do qual vivem de maneira mais dura - e exatamente essa dureza é necessária (JGB, 61).

Não esquecer, porém, um ponto essencial: segundo a "natureza (Art) dos homens" envolvidos, "'a i nfluência na seleção e na criação" (der auslesende, ziichtende Einjl.uss) exercida pela religião pode ser "de cará­ ter tão destmtivo (zers!Orend) quanto criador e plasmador" (JGB, 6 1 ). Sobre o aspecto da seleção e do desbastamento, sobre o aspecto da destruição, este aforismo de Além do bem e do mal não indaga. Limita-se apenas a afirmar de modo alusivo que certos homens, como sabemos, "têm direito de existir" apenas enquanto são ·'servos" obedientes e prontos a se sacrificar para a .. util idade geral " . Ao terminar a vida consciente, Nietzsche se toma mais explícito; censura o cristianismo por ter fornecido uma religião de sobrevi­ vência a uma ralé agora sem qualquer significado do ponto de vista da "utili­ dade geral" (infra, cap. 19 § 4). São ao mesmo tempo perspectivas de intervenção eugênica as perspecti­ vas de engenharia social abertas pela utilização incscmpulosa da religião.

6. A cidade, o jornal e a plebe Confirmação ulterior da ·'falsidade" dessa crítica peculiar da ideologia é dada pela áspera polêmica de Nietzsche que, além do acesso das massas à instmção, visa também à difusão da imprensa e do interesse e da participação política. O avanço da "cultura geral", a "leitura de jornais" e "fazer política" são três aspectos de um único processo de massificação (JGB, 239). Também neste tema, como em tantos outros da filosofia de Nietzsche, procurou-se ler uma prova de sua recusa de acomodação filisteia ao existente,

do seu espírito rebelde, da sua "inatualidade"914 Na realidade, no momento em que acontece, essa tomada de posição polêmica revela-se tanto mais "atual". São os anos em que Wagner previne contra os efeitos desastrosos dos jornais sobre o "es pí rito do povo"91 5 e Treitschke denuncia a influência que a socialdemocracia consegue exercer sobre a massa, "mediante a exibição de força dos seus jornais", cuja "burocracia" pode, aliás, proliferar apenas graças à renda (Zeitungseinnahme}916 da venda dos jornais". Na vertente oposta, Engels, num escrito duramente polêmico exatamente contra o historiador naci­ onal-liberal, tece o elogio dos operários socialistas que "se exercitaram em ler mais copiosamente e mais metodicamente os jornais". 91 7 Com o olhar voltado para a imprensa socialista e a da oposição em geral, Bismarck brada contra a ·'p lebe jornalística" (Zeitungspobe/)9 1 8 e chega até "a chamar a imprensa e os jornais de 'armas do Anticristo "'.919 Nesses anos, difundiu-se a nível europeu a persuasão de que "a imprensa e os jornais", ao se difundir no "povo", contribuem para "aumentar o sentimen­ to dos seus males e o desejo de livrar-se deles";920 são, portanto, os partidários da ·'revolução social" que se servem sem preconceitos dos "meios da cultura moderna" e dos ·)ornais".921 É Kierkegaard quem acusa os jornais pelo fato de "dragarem a lama dos homens que nenhum governo poderá mais dominar"; eles "são e serão o princípio do mal no mundo moderno". É necessário pôr fim a esta obra de açulamcnto das massas : "Para a sociedade são mais necessári­ as as ligas proibicionistas contra os jornais do que contra as bebidas alcoóli­ cas " ; é preciso não hesitar em "proibir os jornais". 922 Em conclusão, estamos na presença de um topos da cultura comprometida com a crítica da revolução. Podemos ler em Comte, que, em 1 844, denuncia nos ')ornais" um dos maiores veículos de difusão do "contágio metafisico" e revolu­ cionário "entre as classes inferiores".923 Vemos na Itália, a Civiltà caltolica ..

Por exemplo. cm Negri, I 978, p. 29. Wagner, 1 9 10 f. p. 1 1 6. 916 Trcitschkc, 1878 pp. 6-7. . 917 Marx-Engels, 1 955, vol. XIX, p. I86. 91 4 915

Bismarck, s.d. vol. II, p. 342. 919 ln Croce, 1965, p. 2 1 9. 91M

92º Gioberti, 1 969, vol. 1, p. 99. 921 Luthardt 1967, pps. 1 57-8.

Kicrkcgaard, 1 948, vol. 1, p. 345. 923 Comtc, I 985, p. I I I . 922

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bradar, em 1 850, contra o ·'j ornalismo" com o dedo acusador apontado explicita­ mente contra o país das incessantes agitações políticas; e não é por acaso que o jornalismo, ·'instmmento de perpétua agitação entre os povos", não é outra coisa senão a "herança funesta da França revolucionária".924 A denúncia da parte católica encontra, depois, em 1 878, uma consagração oficial numa encíclica de Leão XIII de condenação de socialistas e comw1istas e da sua doutrina nefasta, que eles "difundem no povo com uma quantidade de gazetas".925 Esta denúncia reéorrente colhe um aspecto real do problema. Em Taine, Nietzsche pode ter lido esta s íntese que um observador atento do tempo (d' Argenson) traça do engrossamento da tempestade revolucionária na Fran­ ça: ·'Há cinquenta anos, o público não tinha qualquer interesse pelas notícias de Estado. Hoje cada um lê sua Gazette de Paris, até na província".926 No que diz respeito à Alemanha, a partir da Revolução Francesa a leitura atenta e participante dos jornais acompanha constantemente a fronda ou a luta nos con­ frontos do Antigo Regime. É um fenômeno que podemos observar em autores mesmo tão diferentes entre si como Kant, Hegel, Heine, Ruge, MarX.927 Este último, nos anos que precedem o estouro da revolução de 1 848, censura a filosofia acadêmica, e a alemã em particular, pelo afastamento da realidade pol ítica e dos problemas e das paixões que encontram o seu reflexo nos jornais: A filosofia, sobretudo a filosofia alemã, tem uma inclinação para a solidão,

para o isolamento sistemático, para autocontemplação isenta de paixões, que ela opõe com desdém a priori ao caráter dos jornais, belicoso e intenso, que encontra satisfação apenas na comunicação [ . . . ] . Conforme o seu cará­ ter, a filosofia nunca deu o primeiro passo para mudar os seus assépticos paramentos sacerdotais com o adorno simples, próprio dosjornais.928

Na véspera da revolução, na Prússia - refere Friedrich Kapp, amigo e seguidor de Feuerbach - "os jornais são geralmente devorados".929 Na vertente oposta, Schelling, atônito espectador em Berlim da revolução e dos combates na ma, acusa os jornais e os "maus jornalistas" pela sua obra 924 ln Lerda, 1976, p. 233. 925 ln Giordani, 1956, p. 29 (Quod aposto/ici 111uneris). 926 Taine, 1 899, vol. II, p. 145 (:::; Taine, 1986, p. 5 14) . 927 Cf. Losurdo, 200 1, cap. V, 1 e Losurdo, 1997 a, cap. IX, 4. 92� Marx-Engels, 1 955, vol. 1, p. 97. 929 ln Wehler, 1969, p. 5 1 . 930 ln Plitt, 1869-70, vol. III, p. 2 1 1.

de ·'instigação" das massas .930 Poucos meses depois, a partir de um lugar privilegiado de observação, dado que Frankfurt sedia a assembleia chamada a decidir o futuro da Alemanha, Schopenhauer brada contra a escuridão dos tem­ pos "em que ninguém abre mais um livro e jornais indignos usurpam o monopó­ lio das leituras".931 Também o Nietzsche adolescente é, de algum modo, teste­ munha desses acontecimentos inauditos para a Alemanha: em Naumburgo, onde naquele momento ele se encontra com a família, os jornais nascem como cogu­ melos,93'.? mas os efeitos derivados disso não são certamente positivos : "A ter­ rível revolução de fevereiro em Paris propagou-se com rapidez mortífera" e, em tomo das palavras de ordem "Liberdade, Igualdade, Fraternidade", acen­ de-se a guerra civil (A, 1 5 ). O jornal é um instrumento de massificação e de subversão plebeia inde­ pendentemente dos conteúdos que exprime. É uma observação que podemos encontrar também em outro autor, também ele aparentemente "impolítico", que é Kierkegaard: ··A forma inteira desta comunicação é falsa", no sentido de que promove a vulgarização e a massificação, próprias do mundo moderno: "o jor­ nal comunica tudo o que comunica como se fosse a Multidão, a pluralidade quem sabe".933 Para tal propósito, o filósofo dinamarquês se exprime com acentos que poderiam ser definidos como nietzscheanos: cobre-se de ridículo um jornal que "pretenda ser aristocrático e ser ao mesmo tempo um jornal"; não, ··ser aristocrata no meio dos jornalistas é como ser aristocrata no meio de vagabundos". 934 Esse tema encontra em Nietzsche a sua expressão radical e coerente. Não se trata só de parar a agitação socialista. Certamente, não falta o convite aos operários a não darem ouvidos "ao jornal'', ou seja, ao "tocador de pífaro dos socialistas enganadores" (M, 206). Mas, junto com o socialismo, é preciso liquidar em bloco também a "imbecilidade parlamentar", da qual o "jornal" e a sua leitura assídua são parte integrante (JGB, 208). Do outro lado, é exatamen­ te essa ·'imbecilidade" que aplana a estrada ao socialismo: "parlamentarismo" e 'jornalismo" (Zeitungswesen) são "os meios com os quais o animal do reba­ nho se faz senhor" (XI, 480). O ·jornal" é um elemento constitutivo essencial da "cultura das grandes cidades" (XIII, 93), o lugar onde com mais virulência se manifesta a subversão democrática e plebeia. Não surpreende, então, que, mesmo fazendo, por outro 9J 1 Schopenhauer, 1929- 1933, vol . 1, p. 635 (carta de 28 de janeiro de 1849). 1 984, p. 24.

9J2 Ross,

Kierkegaard, 1 948, vol. 1, p. 344. 9J4 Kierkegaard, 1948, vol. I, p. 345. m

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lado, uma critica radical da ideologia, Nietzsche pareça todavia desaprovar o processo de urbanização que afasta as massas da anterior existência à sombra do campanário. Vimos que no mundo moderno, infelizmente, "o jornal substitui as orações cotidianas". Como se sabe, esta visão do jornal como alternativa leiga aos textos sagrados da religião já está presente no Hegel ienense. Em dois aforismos ele compara a "leitura matutina dos jornais" com "uma espécie de oração realista" e, significativamente, arremata essa comparação com uma polê­ mica explícita contra aquéles que, "desaparecida a religião", pretendem que a filosofia "edifique" e, portanto, "tome o lugar do pároco".935 Nesse contexto, porém, convém citar sobretudo Stendhal: na véspera da revolução de Julho, de­ pois de ter sublinhado o "medo" que incute aos pequenos tiranos a simples "proxi­ midade dos jornais de Paris", Le rouge e le noir pergunta: "o jornal poderá substituir a paróquia?"936 É um romance lido com entusiasmo por Nietzsche (B, III, 5, p. 27-8), que defme o seu autor como um "amigo" (XI, 254). O filósofo alemão parece tomar do escritor francês por ele amado a mes­ ma dicotomia, invertendo, porém, o seu julgamento de valor. Para as massas populares é recomendável a vida à sombra dos campanários . A condenação do jornal é a outra face da celebração do torpor dos estratos populares, da cele­ bração do caráter benéfico do ópio ideológico.

7. "Espíritos livres " contra "livres pensadores " O Nietzsche maduro não é menos consciente do que Marx da oposição de fundo que existe entre os dois tipos de crítica da ideologia anteriormente anali­ sados, só que ele a formula de modo diferente, é óbvio, de Marx. Vejamos agora se confrontarem duas figuras aparentemente semelhantes mas, na reali­ dade, antitéticas: o "espírito livre" e o "livre pensador". Com particular clareza um apontamento do verão de 1 8 85 observa: os supostos "livres pensadores" poderão até assumir, sobre o tema da "alma" e da "negação de Deus", posi­ ções aceitáveis, mas não é isto o essencial; enquanto fazem parte do "movi­ mento democrático" e da ala dos "niveladores", elevando "todos os homens à condição de 'liberdade' espiritual" (XI, 557-8), na realidade se colocam em posições opostas àquelas dos autênticos espíritos livres.

935 Hegel, 1969-79, vol. II, pp. 54 7 e 558 936 Stcndhal, 1 980, pp. 237 e 200 (livro II, cap. 1 e livro 1, cap. XXI.X).

O que distingue nitidamente a crítica da ideologia do "espírito livre" e a do "livre pensador" é a rejeição à ideia de uma comunidade da razão que abrange­ ria todos os homens: Hú livros que têm um valor oposto para a alma e a saúde, confonne servir a uma alma ignóbil (nieder), uma força vital inferior, ou, ao contrúrio, àquela mais alta e mais poderosa: no primeiro caso S
Uma variante deste aforismo, depois de ter denunciado o ar infestado de suor plebeu que se respira nas igrejas, prossegue assim : "Mas são poucos aqueles que têm direito ao ·ar puro', aqueles que pelo ar puro não se arruinariam. Isso para rechaçar a suspeita de que eu queira convidar aos meus jardins 'os livres pensadores "' (X IV, 352). Nietzsche não chegou imediatamente à consciência dessa antítese. Ainda em Humano. demasiado humano o termo Freidenker tem uma conotação positiva (supra, cap . 7 § 7), que depois desaparece para sempre. Já nesse momento, porém, o que caracteriza o espírito autenticamente livre é a consci­ ência da necessidade de delimitar de modo rigoroso o âmbito no interior do qual a crítica da ideologia é chamada a desenvolver-se. Mas em que condições esta delimitação é possível? Só enquanto existe um abismo entre a "multidão infan­ til" (zmmündige Menge), de um lado, e o poder que se arvora em seu "tutor", do outro. Em tal caso "se pode supor que as pessoas e as classes que gover­ nam se dão conta da utilidade que a religião lhes fornece, e se sentem, portanto, até certo ponto, superiores a ela, à medida que a usam como meio; para os quais tem origem aqui a liberdade de espírito" (Freigeisterei). O ponto de partida é aquele próprio da tradição liberal ainda aquém de qualquer contaminação democrática: à multidão infantil, junto com a cidadania política é negado o direito à instmção e, com maior razão, o direito às luzes da crítica da ideologia. Mas o que acontecerá - se pergunta já Humano, demasia­ do humano - com a chegada da democracia? "Aqui também o governo não pode assumir senão a mesma posição que o povo assume em relação à religião" de modo que o ·'iluminismo" acaba atacando também os '·representantes" do povo e então "uma utilização e um aproveitamento dos impulsos e dos confortos da religião não serão tão facilmente possíveis". Por isso, já no período "iluminista" a reivindicação da duplicidade está ligada com a luta contra a ·'democracia mo­ derna", que é depois "a forma histórica da decadência do Estado" (MA, 472). Ao sublinhar a necessidade da religião, da ideologia, para as classes su­ balte rnas, Nietzsche se refere a Voltai re: "Pour la 'canaille ' un Dieu

rémunerateur e/ vengeur" (XII, 447) . Devemos assimilar as posições dos dois filósofos sob o signo da duplicidade? Na realidade, o iluminista francês é um sincero seguidor do deísmo, que ele considera benéfico para todo nível da vida social, enquanto suscetível de conter o anarquismo da gentalha, mas tam­ bém "a desenfreada avidez do poder do príncipe ateu".937 Em todo caso, se por um lado Voltaire teoriza a necessidade do espantalho do inferno a fim de man­ ter longe os ''patifes" e garantir a ordem social, de castigar ou prevenir "os delitos escondidos", por Óutro lado não hesita logo depois em declarar que "a razão penetra na França todo dia mais, tanto nas lojas dos mercadores como nos palácios dos senhores", de modo que é impossível impedir que amadure­ çam os fmtos da razão. 938 Antes tendencialmente negada com o olho voltado para o perigo representado pela ralé, a comunidade da razão é reafirmada com o olho voltado para as exigências da luta antifeudal. Nietzsche, ao contrário, condena esta comunidade como intrinsecamente subversiva: "Estamos rebelados contra a revolução . . . Estamos emancipados da atitude reverencial em relação à raison, ao espectro do Século XVIII" (XII, 5 1 4). Junto com o ideal da comunidade dos ciloyens, o ideal da comunidade da razão continua a viver na crítica marxiana da ideologia. Marx poder ter subscri­ to esta declaração de Diderot: ·'A ignorância é a herança do escravo e do selvagem. A instrução dá ao homem a sua dignidade, e o escravo não demora então a perceber que não nasceu para a servidão". Certamente, em Marx o processo de emancipação da falsa consciência é algo mais complexo e ator­ mentado do que a libertação do analfabetismo. A ideologia tem uma espessura social maior do que a ignorância. Mas pem1anece o pathos da universalidade da razão, que constitui o próprio fundamento do pathos da emancipação. De qualquer modo, Marx poderia ter oposto a Nietzsche, que condena a difusão da instmção entre as massas populares como suscetível de pôr em crise a civiliza­ ção e o domínio dos senhores, a pergunta crucial de Condorcet: "Que direito teriam os homens poderosos e iluminados de condenar outra classe de homens à ignorância, de modo que ela trabalhe para eles sem parar?"939 Ao desmistificar o cristianismo diante das classes chamadas ao domínio, Nietzsche sublinha a gênese plebeia e subversiva da pregação evangélica, com uma análise que, como logo veremos, apresenta não poucos pontos de contato com aquela feita por Engels e Kaustsky e que se choca de modo violento com a ideologia oficial, empenhada em acusar e até pôr fora da lei a social-demoMason, l 984, p. 1 52. 9:1s Voltaire, 1 968, p. 278. verbete Inferno (Enfer) e Voltaire, 1 978, p. 558 (cap. XX). 939 Reto1mmdo as duas citações de Didcrot e de Condorcet por Moravia, 1986, pp. 32 1 e 328. 937

cracia em nome também da defesa do cristianismo. No entanto, essa análise toda mundana do cristianismo visa educar politicamente a classe dominante, reforçar, portanto, o seu domínio, não certamente tirá-lo. A crítica da ideologia não só é di rigida de modo exclusivo à classe dominante, mas pretende ensinar explicitamente a esta que é absurdo e perigoso favorecer ou tolerar a difusão, no interior das classes subalternas, de uma cultura suscetível de determinar em si uma tomada de consciência .. Ao longo de toda a trajetória de sua evolução, Nietzsche dirige a sua crítica da ideologia às classes dominantes para que tomem consciência da ne­ cessidade da dureza das correntes sem se deixar comover pela sorte dos es­ cravos: o fato de as flores imaginárias da ideologia se abandonarem a certas palavras de ordem acariciadoras, mas vazias, pode apenas constituir um ele­ mento de fraqueza e de incerteza. Por outro lado, a malograda tomada de consciência da dureza das correntes, ao passo que nas classes dominantes denota ignorância e decadência, nas classes oprimidas é um fato altamente ··benéfico". Se Marx se coloca do ponto de vista em primeiro lugar dos "venci­ dos", chamados a lançar o olhar sobre as correntes que os oprimem, e portanto a lutar para despedaçá-las, Nietzsche se dirige aos ·'vencedores" revelando uma verdade da qual eles, no interesse próprio e da civilização que os vê como hegemônicos, devem tomar consciência, mas ela deve permanecer desconhe­ cida dos vencidos. Com respeito à crítica de Marx, continua a ser contraposta à crítica da ideologia própria de Nietzsche, que denuncia a hipocrisia oficial só para substituir a ela uma duplicidade proclamada em alta voz e sem escrúpulos.

15 DA CRÍTICA DA REVOLUÇÃO FRANCESA À CRÍTICA DA REVOLUÇÃO JUDEUCRISTÃ 1 . Crise revolucionária e aceleração do tempo histórico inda que partindo da reação antidemocrática que se desenvolve na Europa

Ae na Alemanha em seguida às jornadas de junho de 1 848 e à Comuna de

Paris, na sua crítica da revolução e da modernidade Nietzsche vai bem além dos alemães nacional-liberais. Nisso reside o seu radicalismo aristocrático. Quando começou o ciclo minoso que não cessa de devastar o Ocidente? As grandes crises históricas e os cortes de época estimulam uma percepção do tempo que se diferencia sensivelmente daquela que domina nos períodos de normalidade. O caráter inaudito das perturbações leva a abraçar toda a história do país e da humanidade no seu conjunto em duas únicas épocas, aquela que os protagonistas da revolução se propõem a encerrar e aquela que eles gostariam de inaugurar. É uma tendência que se manifesta, com modalidades diversas, também naqueles que assumem uma atitude mais precavida e moderada. O desenvolvimento temporal conhece uma dramática aceleração. Em 1 7 95, de­ pois do Termidor, Boissy d' Anglas declara que os seis anos de revolução que se tinham passado pesam na real idade como seis séculos;940 do outro lado, com a sua hostilidade em relação à cultura e a arte, com o seu "vandalismo bárbaro", os jacobinos são responsáveis por ter "feito regredir o espírito huma­ no por muitos séculos"941 . Seja em direção ao futuro ou ao passado, a vertigi­ nosa aceleração da mudança e do tempo histórico inclui a diminuição das dis­ tâncias temporais. Durante o mesmo ano, um outro termidoriano, Lanjuinais, exige a supressão do artigo 1 da Constituição jacobina (aquele que indica a '·felicidade comum" como '"o fim da sociedade") com esta significativa motiva­ ção: ··Há dois mil anos contavam-se 288 espécies de felicidade; não podemos certamente esperar defini-Ia melhor hoje" . 94� Parece que o tempo deve ser medido em séculos e até em milênios e não em meses e anos . 94 0 ln

Bosc. 2000, p. 1 25. Baczko, 1989, p. 245. 942 l n Bosc, 2000, p. 609 .

94 1

Com o processo de radicalização da Revolução Francesa e, sobretudo, depois das jornadas de junho de 1 848 e da Comuna de Paris, o publicismo liberal e conservador compara os revolucionários aos bárbaros que tinham irrompido contra o Império de Roma e contra a civilização. Na vertente oposta, de modo espetacular argumenta Marx, indignado com o banho de sangue que se abatera sobre os comunardos: "Para encontrar um paralelo para a conduta de Thiers e dos seus esbirros é preciso remontar aos tempos de Sila e dos dois triunviratos de Roma. Os mesmos extermínios de massa a sangue frio, a mes­ ma indiferença no massacre diante da idade e do sexo".943 O caráter illaudito dos acontecimentos aos quais se assiste, a singularidade ou unicidade que se é levado a atribuir a eles, conduz nos dois casos a uma drástica diminuição das distâncias temporais. Os balanços, que são feitos sempre mais, não param no imediato, mas buscam as raízes do presente, mais ou menos robustas ou mais ou menos frá­ geis , num passado mais ou menos remoto. Assi ste-se a um processo de radicalização, durante o qual a análise e a denúncia acabam abrangendo e questionando um arco temporal cada vez mais extenso. Como explicar o inces­ sante ciclo revolucionário que devasta a França e a Europa? São óbvias ou são assim consideradas as culpas de Voltaire e de Rousseau: mas são eles os úni­ cos responsáveis? Na cultura da Restauração surge, sobretudo nos ambientes católicos, a tese segundo a qual é preciso remontar à Reforma, ou seja, às correntes mais radicais que brotaram dela; a revolta seria iniciada com a reivin­ dicação da ''liberdade do cristão" e do livre exame do texto sagrado, com· um individualismo exasperado, cujo término não pode ser senão a deslegitimação da autoridade enquanto tal. E como explicar a inaudita concentração dos poderes que se verificara com o Terror? Tocqueville formula a tese da continuidade, na França, do abso­ lutismo e do estatismo a partir do Antigo Regime até o bonapartismo e o socia­ lismo. Por outro lado, também a derrocada do privilégio feudal tem uma longa história. É um processo iniciado bem antes do desmoronamento do Antigo Re­ gime, "há setecentos anos", com a participação ativa dos reis, os quais, assim, "mostraram que são os niveladores mais ativos e mais constantes".944 No II Reich, o balanço histórico do ciclo revolucionário francês se entre­ laça com o problema da construção da identidade nacional. A Alemanha em luta contra Napoleão 1 e Napoleão III é herdeira de Lutero, de Carlos Magno ou de Armínio? Como se vê, séculos ou milênios de história estão em discussão 94J Marx-Engels, 1955, vol. XVII, p. 356. 944 Tocqueville, 1 95 1 , vol. 1, 1 , p. 2 (DA, I ntrodução) .

e isso provoca um ulterior encurtamento das distâncias temporais. O individua­ lismo exasperado contribuiu para a catástrofe na França? Passando para uma radicalização extrema de tais temas, Schopenhauer condena toda visão do mundo que, ao perder de vista a essência do real (a vontade de viver que circula em todo homem e até em todo ser vivo, unificando todos numa condição e numa espécie que não conhece distinções), fica na aparência, ou seja, na esfera su­ perficial que só é caracterizada pelo principium individuationis. Ao fazer o balanço da catástrofe revolucionária, outros autores apontam o dedo acusador para a ideia de felicidade terrena. Este é o caso de Renan, o qual, porém, ao ir em busca das origens de tal aspiração ruinosa, detém-se substancialmente no iluminismo. E de novo, bem mais radical se revela Schopenhauer, que começa a projetar uma sombra de suspeita, se não sobre o cristianismo enquanto tal, pelo menos sobre o cristianismo espúrio de Pelágio, ou seja, sobre o cristianismo contaminado pelo otimismo velhotestamentista. Uma grande campanha da imprensa denuncia nos revolucionários a arrogância do intelectual que, pavoneando-se na própria razão e colocando-se no centro do universo, pretende plasmá-lo ao seu alvedrio. É preciso, porém, convocar, para tal propósito, a figura do philosophe, ou então é necessário incluir no julgamento de condenação, para dizer com Schopenhauer, o "desprezador oci­ dental, judeu, dos animais e da idolatria da razão"?945 Autores como Burke e Tocqueville condenam a engenharia social dos revolucionários, a sua pretensão de abandonar-se aos experimentos impetuosos ou loucos sobre o corpo vil da sociedade (supra, cap. 2 § 2); mas tal atitude não encontra uma legitimação seja no criacionismo velhotestamentista, seja numa ideia do deus que, segundo o relato bíblico, confere ao homem um poder absoluto sobre o mundo natural e animal? Ao pathos da ação, que marca ruinosamente a revolta contra a ordem existente, é contraposta a no/untas, que encontra a sua expressão mais alta nas antigas religiões orientais, chamada assim a pôr em discussão o longo ciclo da subversão moderna. Rotulando o Antigo Testamento como a fonte mais remota da doença revolucionária, Schopenhauer pôde expelir da Alemanha e do Ocidente autên­ ticos uma religião e uma visão do mundo estranhas a eles. É uma tendência que se apresenta também em Wagner, embora sem dignidade filosófica. Segundo o musicista, a Revolução Francesa pôde triunfar também porque, reduzindo-se a assunto de especialistas e mercadores, a arte se separou do "povo", que é assim degradado a ·'massa" pronta para qualquer rebelião e qualquer aventura (supra, cap. 4 § 1). Encontrar remédio, de uma vez para sempre, a esta situa945 Schopenhauer, 1976-82 d, p. 776.

ção significa liquidar o "demônio antiartístico de dois milênios infelizes", fa­ zendo também as contas com o povo que é profundamente invadido de espírito mercantil e que, mesmo tendo mantido uma .. relação bimilenar com as nações europeias", sempre rejeitou renunciar à identidade própria oriental.946 Segundo Wagner, como para a arte, também no que respeita ao saber e à consciência dos limites do saber, trata-se de aproveitar a lição de Kant e Schopenhauer para referi r-se à realidade e às doutrinas da antiga Grécia e assim pôr fim ao infeliz esquecimento ·'bimilenar".947 Destaquei em itálico as expressões que fazem referência a um ciclo histó­ rico de dois milênios, de modo a chamar a atenção para pontos de contato entre Wagner e Nietzsche. A tese da longa duração da crise da civilização acompa­ nha esse ciclo em todo o arco da sua evolução. Já no ginasial de Pforta enfren­ ta ..a dúvida de que a humanidade por dois mil anos se tenha deixado induzir ao erro de uma quimera" (FG, 433). Em seguida, o jovem filósofo reivindica a atualidade de uma época cultural florida em todo o seu esplendor "dois mil anos distante de nós", para logo depois se comprometer, como filósofo, a acabar com uma filosofia da história com base na qual se devia considerar irreversível o "par de milênios" de decadência sucessivamente verificada (supra, cap . 6 § 3). Embora com a sua indignação, Wilamowitz acerta o alvo enquanto censura o autor de O nascimento da tragédia de querer negar "o desenvolvimento dos milênios ".948 Ainda na véspera de lhe surgir a loucura, Nietzsche formula a pergunta retórica: "O que afinal são estes dois milênios" (XIII, 64 1). Ou seja, porque nos obstinamos à acomodação com o horrível parêntese aberto com o fim da esplêndida civilização da Grécia antiga, fundada no franco reconheci­ mento da necessidade do trabalho servil para a maioria dos homens? Quanto mais Nietsche radicaliza a crítica da modernidade, tanto mais in­ siste no fato de que é necessário saber ir contra a corrente com respeito não só à visão do mundo, mas também ao "gosto de dois milênios" (GM, III, 22); num modo ou no outro, é necessário acabar com o "atentado a dois mil anos de contranatureza e de deturpação do homem" (EH, O nascimento da tragédia, 4), ou seja, .. um par de milênios" de história, ou, mais precisamente, de degene­ ração (GM, III, 20). Para estimular essa luta toma como meta o Zaratustra, um .. livro, uma voz que passa sobre os milênios" e constitui para a humanidade uma esperança e uma perspectiva de cura e, portanto, "o maior presente que ela jamais recebeu" (EH, Prólogo, 4) . 946 Wagner, 1 9 10 b, pp. 68 e 7 1 . 947 Wagner, 1 9 10 p, p. 264. 94M Wilamowitz-Mõllendorff, 1972 b, p. 3 1 8.

Aceitar como óbvia a moral dominante sem se dar conta de que esta obviedade é o resultado de uma longa história e de uma longa luta, achatar-se ao presente ou à breve duração, como fazem os modernos, significa estar sem "vontade de saber sobre o passado" e, portanto, sobre o autêntico "instinto histórico" (GM, II, 4 ) : ''Não compreendeis? Não tendes olhos para esta coisa à qual foram necessários dois mil anos para alcançar a vitória? . . . Não há motivo para admiração: todas as coisas longas são dificeis de abranger com o olhar" (GM, 1, 8).

2. Da Revolução Francesa à Reforma e da Reforma aos "agita­ dores cristãos " e aos "agitadores sacerdotais " hebraicos Portanto, quando e como é iniciada esta "coisa'', esta história? Nietzsche não argumenta dedutivamente; parte sempre do ciclo da subversão que ainda ocorre diante dos seus olhos para voltar atrás em busca dos seus primeiros inícios. A fim de esclarecer melhor a sua abordagem, convém citar outra inter­ venção importante no debate suscitado pela Revolução Francesa. Por trás dela age, segundo Chateaubriand, a Reforma: é um tema clássico da cultura católi­ ca da Restauração, que agora, porém, conhece um desenvolvimento novo. Evidenciando o papel dos puritanos nos distúrbios da Inglaterra no Século XVII, o escritor francês observa: "Uma centelha do incêndio ateado sob Carlos 1 cai na América em 1 636 (emigração dos puritanos), a envolve em 1 755, atravessa de novo o oceano em 1 789 para devastar novamente a Europa".949 Um auto­ rizado historiador contemporâneo viu nesta formulação uma primeira antecipa­ ção da tese, cara a ele, da "revolução ocidental única" que atinge as duas margens do Atlântico.950 Na realidade, a ambição de Chateaubriand vai muito além. No seu percurso para trás não fica na Reforma, mas é da opinião que a concatenação possa de algum modo abranger as revoluções de todos os tem­ pos, "de modo que seria rigorosamente correto dizer que a primeira revolução do globo produziu nos nossos dias a da França".951 Em certo sentido, o programa aqui vagamente enunciado encontra depois a sua realização coerente em Nietzsche. Entretanto, está presente também nele, radicalizada, a tese da revolução ocidental única que parte da Reforma. Sem esta não é possível nem a guerra dos Camponeses na Alemanha nem a 949 Chateaubriand, 1 978, p. 147 nota F. 950 Godechot, 1984, p. 139 . 95 1 Chateaubriand, 1978, p. 253.

revolução puritana na Inglaterra. Nietzsche fala da Refonna como de um mo­ vimento plebeu "alemão e inglês" (GM, 1, 1 6), com referência explícita, no que diz respeito à Inglaterra, a Cromwell e aos "niveladores" (JGB, 46 e 44). Da Inglaterra partem depois aqueles dissidentes religiosos que desempenham um papel importante na América, muito além da guerra de Independência: é exata­ mente ·'uma raça de ex-puritanos" (JGB, 228) que estará na linha de frente da agitação e da revolução ab.olicionistas de algumas décadas depois. Já a esse respeito se tornam claras as novidades da colocação de Nietzsche, que lê em perspectiva de luta social o ciclo revolucionário iniciado com a Re­ fonna. Vai desde a revolta dos servos da gleba na Alemanha até a emancipa­ ção dos escravos afroamericanos, na onda da Guerra de Secessão, passando através da revolta servil que ocorreu também na França. Mas a novidade fi.m­ damental é, obviamente, outra. Pode-se acusar Lutero, pondo totalmente ao abrigo o cristianismo? Se os nacional-liberais alemães, que celebram a Alema­ nha protestante em contraposição com a França perpetuamente subversiva, não têm credibilidade, não menos sem fundamento estão os ideólogos católicos da Restauração, que rotulam a Reforma como momento inicial da onda revolu­ cionária, mas depois indicam o dique no cristianismo no qual Lutero se inspirou! É preciso não ficar no meio do caminho na busca das origens da revolta servil. Esta chameja já na Idade Média cristã, como demonstra o recorrente surgimento de movimentos em prol dos pobres e, em particular, a figura de Francisco de Assis que, ''em nome da pobreza" combate a "hierarquia" (XIII, 1 8 3 e 1 96). O próprio Renan, mesmo mostrando grande respeito e veneração para com a tradição cristã, é obrigado a reconhecer a carga de ódio contra a riqueza que transpira dos escritos da cristandade primitiva. É necessário então chamar com o seu verdadeiro nome os "Pais da Igreja": eles são "agitadores cristãos" (GM, III, 22). Não é por acaso que ''os socialistas apelam para os instintos cristãos" (XI II, 424). Por isso, quando se volta em busca das origens do ciclo revolucio­ nário francês, é preciso remontar da Refonna para a pregação evangélica. No "conceito de igualdade das almas diante de Deus" se deve ver "o protótipo de todas as teorias da paridade dos direitos", que depois se exprimiram poli­ ticamente na Revolução Francesa e no movimento socialista: Se a humanidade é ensinada, antes de tudo, a balbuciar em religião o princí­ pio da igualdade, mais tarde ele foi transformado em moral. Por que maravi­ lhar-se depois se o homem acaba levando-o a sério, tomando-o praticamen­ te, quer dizer, politicamente, democraticamente, socialisticamente, com o pessimismo da indignação'? (XIII, p. 424).

O próprio Terror já está de algum modo implícito na visão evangélica. ·'Foram os juízos cristãos de valor que toda revolução simplesmente traduziu no sangue e no crime" (AC, 43). Desnudando-o de sua aparência de inocên­ cia, autores como Burke, Tocqueville, Taine denunciaram no iluminismo, nas suas conversas de salão, nos seus ditos espirituosos aparentemente inócuos, o germe da posterior violência revolucionária impiedosa. De modo análogo Nietzsche argumenta em relação ao cristianismo: "Quando o cristão conde­ na, calunia, emporcalha o 'mundo', o faz com base no mesmo instinto do qual parte o operário socialista para condenar, caluniar, emporcalhar a socieda­ de". A referência ao além parece inócua e até edificante. Na realidade, "qual a finalidade de um além, se não fosse um meio para emporcalhar o aquém?" (GD, Incursões de um inatual, 34) . E o que é esta difamação radical do aquém se não a declaração de uma "inimizade mortal contra a realidade" (AC, 27) e contra aqueles que pretendem continuar fiéis à realidade e à terra? Lido com atenção, o discurso cristão se revela como a preliminar e radical deslegitimação de um mundo contra o qual se joga depois a violência revolucionária: não é essa a dialética que levou às derrubada do Antigo Regi­ me na França? Não devemos nos deixar enganar pela aparência espiritual e edificante do discurso de Jesus: ·'No Novo Testamento, especialmente nos Evangelhos" se percebe ''uma forma indireta da mais abissal fúria de difama­ ção e de destruição" (XII, 3 8 1 ) . Quem usa de zombaria e m relação ao Antigo Regime é o iluminismo, mas também o cristianismo primitivo leva adiante a sua obra de subversão exibindo a sua ·'incredulidade nos homens superiores" e colocando em ques­ tão a "hierarquia". Assim se desenvolve "uma revolta contra a Igreja judaica [ . . . ), contra a hierarquia da sociedade - não contra a sua corrupção, mas contra a casta, o privilégio, o sistema, a fórmula" (AC, 27). São tendências e temas que depois se apresentam de novo na Reforma; mas a fúria violenta da guerra dos Camponeses remete não só a Lutero, como pretendem os ideólogos católicos da Restauração, mas também a Jesus. Ele deve ser incluído entre os ··niveladores" (Gleichmacher) (XII, 3 80); bem considerado, é um "santo anarquista que chamou o povo baixo, os "rejeitados" e os "pecadores", os chandala dentro do judaísmo, a contradizer a ordem dominante - com uma linguagem, se se deve dar fé aos Evangelhos, que ainda hoje conduzi ria à Sibéria". Ele ''era um delinqüente político, na medida em que os delinqüentes pol íticos eram possíveis numa sociedade absurdamente impolítica" (AC, 27). Talvez fosse preciso ir mais longe ainda. Demos uma olhada na prega­ ção de Jesus: "Se alguém tivesse dito apenas a centésima parte disso, mere­ ceria, como anarquista, a morte" (XII, 3 8 1 ) .

Mas o próprio judaísmo contra o qual Jesus e, sobretudo, Paulo se rebe­ lam é o resultado de uma degeneração e contaminação servil. O judaísmo pré­ exí lio é bem diferente: Na origem, sobretudo na época do poder régio, também Israel se encontrava na relação justa, quer dizer, natural com todas as coisas. O seu Javé era a expressão da consciência do poder, do prazer de si, da esperança colocada de novo em si: déle se esperavam vitória e salvação, com ele se confiava na natureza. que ela desse :· 1uilo de que o povo precisava - sobretudo a chuva. Javé era o Deus de Israel e por conseguinte Deus da justiça : é esta a lógica de todo povo que tem o poder e uma boa consciência dele (AC, 25).

O momento de vi rada é representado pela derrota e pelo exílio: nestas circunstâncias se desenvolve uma revolução ruinosa, da qual são protagonistas os .. agitadores sacerdotais" que, pela primeira vez, avançam a ideia de um "ordenamento ético do mundo" e submetem a transformações radicais o pró­ prio conceito de Javé: eles "enfim interpretam toda boa ventura como prêmio, toda calamidade como castigo por uma desobediência a Deus, pelo 'pecado '" (AC, 25). A essa altura, a moral passa por um processo de autonomização, desnaturalização e repetição supérflua; a moral "não é mais a expressão das condições de vida e de desenvolvimento de um povo, não é mais o seu instinto vital mais profundo, mas tomou-se abstrata, transformou-se no oposto da vida". Nessa negação da vida se reconhecem os fracassados e mal sucedidos que, com seu zelo moral, buscam de qualquer modo golpear e envenenar aqueles que vivem com alegria a sua existência e a sua força (AC, 25). Os profetas judeus são os primeiros responsáveis pela "revolta dos escravos na moral". Eles ..fundiram junto · rico ' , 'ímpio', 'mau', 'violento', 'sensual ' e, pela primeira vez, deram um cunho de opróbrio à palavra ·mundo"' (JGB, 1 95). Carregados de ressentiment, não hesitaram nunca em evocar o "juízo universal" e uma terrível vingança dos seus inimigos (XIII, p. 15 8). Infelizmente, nem sequer a antiguidade grecorromana permaneceu imune à subversão. Ao fazer o balanço da Revolução Francesa, já Constant acusa a visão jacobina da antiguidade clássica e de algum modo a antiguidade clássica enquanto tal que, com o seu modelo de democracia política aberta à participa­ ção ativa de todos os cidadãos, inspirou o radicalismo e os erros dos jacobinos. Burckhardt, por sua vez, observa que o "domínio das massas" encontrou a sua primeira manifestação na Grécia do Século V a.C . Não é só Nietzsche que estabelece uma relação entre desenvolvimento político, por um lado, e desen­ volvimento filosófico e religioso, por outro. Com o ocaso da Hélade autêntica e a irrupção da '·veneração pela po/ís" e de um absolutista "impulso polític1" e

··instinto estatal" (supra, cap. 9 § 2), ""a plebe se toma preponderante" em todo nível: ··o medo alastrou-se em demasia também na religião; o cristianismo esta­ va se preparando" (JGB, 49). Na filosofia grega se percebe agora o caruncho da desvalorização e da difamação do aquém, com a referência a uma transcendência i maginária, ou seja, ao mundo das ideias e com o primeiro surgimento de uma visão moral do mundo. Verificou-se uma virada cheia de consequências: é preciso ler "a filo­ sofia grega desde Sócrates como sintoma de doença e, portanto, como prepa­ ração do cristianismo" (XII, 202); no fundo, o cristianismo não é senão uma fomla de "platonismo para o 'povo'" (JGB, Prefácio). Portanto, na reconstrução de Nietzsche, o interminável ciclo subversivo e revolucionário, por um lado, parte da tradição judeucristã (os "agitadores cris­ tãos" e, ainda antes , os "agitadores sacerdotais" judeus), por outro lado, parte da filosofia socrático-platônica. Há uma relação entre estes dois veios? Vimos quanto de cristianizante há em Platão; por outro lado, tanto o filósofo grego como os profetas hebraicos se revelaram "ingratos" e injustos com respeito à tradição que os precedia (XIII, 1 68). Mas não é tudo. Vemos a dialética e a sua ironia, essa ··forma de vingança plebeia", em ação tanto na decadência grega e em Sócrates como entre os judeus (GD, O problema Sócrates, 7). Isso vale também para a visão moral do mundo: "Quando Sócrates e Platão tomaram o partido da virtude e da justiça, foram judeus, ou não sei o que mais" (XIII, 33 1) . Sim, Platão, ess a encarnação do "antipaganismo" e essa antecipação do cristi­ anismo, é um "anti-heleno e semita por instinto" (XIII, 1 1 4); é a partir dele que "a filosofia está sob o domínio da moral" (XII, 259), da visão moral do mundo que remete em primeiro lugar ao judaísmo. Bem considerado, estamos na presença de algo mais do que de uma ana­ logia ou de uma afinidade eletiva entre decadentes: "Platão talvez tenha anda­ do na escola dos judeus" (XIII, p. 264) . Pode-se até conjeturar sobre o lugar em que o encontro ocorreu: "Platão, a grande ponte lançada para a corrupção, o primeiro que quis entender mal a natureza dentro da moral [ . . . ] já se tornara judiamente hipócrita (no Egito?)" (XII, 5 8 0). É fato que a visão do mundo de Sócrates e de Platão transpira ''egitismo" (GD, A "razão " na filosofia, 1). Além de no mundo grego, a influência nefasta do judaísmo se faz sentir também no mundo romano . A antiguidade clássica sobre a qual a religião judeu­ cristã consegue triunfar é uma Roma que perdeu a sua autenticidade, é uma "Roma judaizada", já profundamente impregnada de judaísmo, já contaminada por uma presença estranha e hostil. Uma antítese nítida atravessa profunda­ mente a história do Ocidente, e ela pode ser sintetizada assim: "Roma contra Judeia, Judeia contra Roma". Depois de ter conseguido uma vitória decisiva

primeiro com a infiltração e a dominação judaica do mundo antigo (com a revo­ lução judeu-cristã), depois com a Reforma e com a Revolução Francesa (GM, 1, 1 6), a Judeia continua a ser inspi radora do mesmo movimento socialista que, com seus sonhos de palingenesia social, não faz senão retomar e agitar a "des­ prezível frase judaica do céu na terra" (supra, cap. 3 § 1). Partindo da subversão que se alastra no presente e voltando para trás, é possível reconstruir os acontecimentos de um único gigantesco ciclo revolucio­ · nário que se desenvolve além de dois milênios. O programa enunciado por Chateaubriand tomou-se agora um balanço histórico bem argumentado e docu­ mentado. Poder-se-ia dizer que, em cada etapa de sua evolução, Nietzsche se empenha em aprofundar e enriquecer a análise daquela única gigantesca revo­ lução que devastou e devasta o Ocidente e que ele não se cansa de reconstruir. Evidente e forte é o elemento de continuidade: como em O nascimento da tragédia, também agora o ponto de partida da catástrofe é indicado no helenismo e no alexandrinismo amplamente influenciados pelo judaísmo e que se prepa­ ram para acolher o cristianismo. Só que, agora, a "Roma judaizada" e já interi­ ormente subjugada pela revolta servil é claramente distinta daquela autêntica e imperial. De qualquer modo, é com os judeus que se iniciou "a revolta dos escravos na moral, revolta que tem uma história bimilenar e que hoje não ve­ mos mais pelo simples fato de que está vitoriosa··" (GM, 1, 7). Este ciclo gigantesco, esta única revolução que abrange toda a história do Ocidente, gira em tomo de um único conflito: são sempre os senhores e os escravos que se enfrentam. Não se trata mais de contrapor a no/untas ao pathos revolucionário da ação ou de condenar o individualismo em nome de uma compaixão que ab range todos os vivos e supera o principium individuationis . Argumentando desse modo, Schopenhauer revela estar ele mesmo contagiado por valores e desvalores servis. Também não se trata de reconstruir a parábola da ideia de felicidade como, na esteira de Schopenhauer, O nascimento da tragédia faz, partindo de um socratismo judaizante. A crítica dessa ideia pode também ser recuperada, mas só dentro de um quadro histórico e conceituai bem mais amplo, que vê no seu centro exatamente a luta em todo nível entre senhores e servos. A revolta servil se manifesta primeiro no plano moral religioso e, depois, naquele mais diretamente político. Depois de ter colocado "há setecentos anos" o início do processo de rea­ lização na égalité, Tocquevi lle evidencia o papel desempenhado pela Reforma ("o protestantismo sustenta que todos os homens são iguais quanto a condições de encontrar o caminho do Céu") e, ainda antes, do cristianismo enquanto tal : Eis que o poder político do clero se afirma e rapidamente se estende. O clero abre as suas fileiras a todos, tanto ao pobre como ao rico, ao plebeu como ao

nobre; através da Igreja, a igualdade começa a penetrar no seio do governo e aqueles que, na sua condição de servos, teriam vegetado numa eterna escravidão, agora, como sacerdotes, têm o seu l ugar entre os nobres e mui­ tas vezes se sentam até acima dos reis.

Em conclusão: Se as páginas da nossa l}istória forem percorridas, pode-se dizer que não se encontra um só acontecimento de particular importância que nestes últimos setecentos anos não tenha terminado em favor da igualdade social [ . . . ]. É sempre a mesma revolução que continua em todo o mundo cristão.952

O quadro traçado por Nietzsche é mais dramático e menos evolucionista: há contratendências (o Renascimento, Napoleão, etc .); o juízo de valor é obvi­ amente diverso e contraposto. Mas de resto, se poderia sintetizar assim o seu ponto de vista: desde há mais de dois milênios é sempre a mesma revolução que continua em todo o mundo judeu-cristão. Uma vez reconstruída em todo o seu arco temporal, a revolução pode ser liquidada também em relação à cronol ógia imposta por ela. Fica claro: não é mais a cronologia introduzida pelo jacobinismo, no curso de uma única etapa do longo ciclo revolucionário que deve ser cancelada, mas aquela que marca o início mesmo do ciclo. O Anticristo termina anunciando o "ano um" de uma nova era pós-cristã, com o cancelamento de " 1 888" anos da velha e "falsa cronologia".

3. Cristianismo e revolução Medrosos e inconsequentes se revelam os nacional-liberais alemães quando recomendam o cristianismo como fármaco para a doença da subversão que se alastra. Estão, sobretudo, atrasados. Não se aperceberam que a referência à pregação evangélica e à cristandade primitiva tomou-se agora não só um to­ pos, mas também uma arma de luta do movimento protossocialista e dos ambi­ entes simpáticos a esse movimento. Ao contrário de Schopenhauer, já desde jovem, ou melhor, já desde ado­ lescente, Nietzsche parece ter-se medido profundamente com a Revolução Francesa (infra, cap. 28 § 2). Durante essa revolução, não faltaram as tenta­ tivas de legitimar os projetos mais radicais de transformação em nome do cristianismo. Polemizando contra a restrição censitária dos direitos políticos, 952 Tocqueville, l 95 1 , vol. 1, 1 , pp. 2-4 (DA, Introdução).

apoiada também pelo abade Grégoire, Camille Desmoulins assim se dirige a esses "padres desprezíveis": "'Não vedes que o vosso Deus não poderia ser elegível? Jesus Cristo, que dos púlpitos proclamais que é Deus, da tribuna parlamentar o tendes apenas relegado entre a canalha. E quereis que eu vos respeite, padres de um Deus proletário e que não era sequer um cidadão ativo ! Respeitai, pois, a pobreza que ele enobreceu".953 Começa assim a difundir-se, através de múltiplos canais, o tema do Cristo proletário, que desempenha depois um papel muito importante no movimento protossocialista. É um tema que, com alguma variação e no âmbito de um juízo crítico, surge também em Hegel, segundo o qual um algo de "sans-culotterie" estava presente no cristianismo e já em Cristo, como demonstraria a sua polê­ mica indiferenciada contra "'tudo o que subsiste" no plano político e social .954 Em Heine, um autor que lhe era familiar, Nietzsche pôde observar que também dois historiadores importantes, Michelet e Quinet, celebravam a Revo­ lução Francesa e que, por outro lado, também estavam animados pela "simpa­ tia mais profunda pelo cristianismo".955 Em relação ao primeiro, o filósofo se exprime com lucidez cheia de ódio (infra, cap. 28 § 2). Não é por acaso que o compara ao romancista Victor Hugo, este "adulador do povo, que fala com a voz de um evangelista a todos os 'humildes, oprimidos, falhas e mutilados "' (XI, 602). A inspiração cristã não é um antídoto contra a cumplicidade senti­ mental e intelectual em relação ao Terror. Tendo já caído na sombra o tema do pecado original, tendências contagi­ adas pela mitologia progressista começam a desenvolver-se no próprio terreno do cristianismo. É este, por exemplo, o caso de Lamennais: Nietzsche dedica a ele um ligeiro aceno, nos anos da maturidade (XII, 259), que, porém, talvez já desde jovem pudesse ler em Heine sobre a circulação na França das "doutrinas republicano-católicas de um Lamennais, o qual colocou sobre a Cruz um barre­ te jacobino".956 O abade francês, ao chamar à luta contra a "escravidão moderna", vê na permanência, apenas com roupa nova, dessa instituição antiga a prova de um trágico malogro: "Depois de dezoito séculos de cristianismo, vivemos ainda no sistema pagão"; "estamos ainda na solução pagã do problema social, na escra­ vidão das nações antigas, somente atenuada e camuflada com outros nomes e 95J ln Aulard, 1 977, p. 72. 954 Hegel, 1 978, pp. 6 1 9 e 639. 955 Heine, 1 969-78, vol. V, p. 489. 956 Heine, 1 969-78, vol. III, p. 35 1 .

sob outras formas".957 Contra esta situação, considerada intolerável, Lame1U1ais chega a evocar um "Espártaco dos escravos modemos".958 Alguns expoentes do movimento protossocialista, embora não fossem cren­ tes, referem-se calorosamente aos Evangelhos e chegam até a declarar, com Weitling, que o militante comprometido na luta pela igualdade material "é cris­ tão, é comunista".959 Fora ou às margens da Igreja se difunde, porém, o "novo cristianismo" de Saint-Simon. Este empenha-se em retomar e reinterpretar em sentido autêntico "a parte divina da religião cristã", referindo-se à "primeira doutrina cristã" e à Igreja das origens, a qual "ensinava que a sociedade devia reconhecer como legítimas apenas as instituições destinadas a melhorar a exis­ tência da classe mais pobre". Na sua forma nova e definitiva, o cristianismo é chamado a estimular os incessantes "progressos" da "espécie humana", a fim de garanti r a felicidade de todos.960 Heine coloca Saint-Simon entre aqueles "grandes socialistas" graças aos quais "o mundo se enriqueceu, enriquecido de um tesouro de ideias, que nos abrem novos mundos de prazer e de felicidade".961 A sua escola pode ser considerada como "a última religião".962 Tendo se desenvolvido no tron­ co cristão, a ·'Igrej a invisível dos sansimonianos" traz à memória a "Igreja cristã antes de Constantino";963 e é com impulso ainda cristão e religioso que os sansimonianos combatem pelos "direitos divinos do homem" e pela "felici­ dade material dos povos"964 e agitam a sua fé no "progresso" como "lei natu ral"965 e divina. Compreende-se, pois, que Saint-Simon seja visado pelo Anticristo , o qual o insere, junto com Savonarola, Lutero, Rousseau e Robespierre, entre os ..fanáticos" que marcam o ciclo ruinoso da modernidade (AC, 54). Vale a pena notar a prevalência, no âmbito deste grupo, dos segui­ dores do cristianismo velho ou novo: na realidade, aos olhos de Nietzsche, estamos na presença de uma religião que influencia também os revolucioná­ rios que não fazem referência explícita a ela. Em Renan, Nietzsche pode ter lido: ''Se quiserdes ter uma ideia das pri­ mei ras comunidades cristãs, olhai para uma seção local da Associação Interna95; Lame1mais, 1 978, pp. 173 e 1 6 1 . 95M Lamennais, 1978, p . 172. 959 ln Bravo, 1 973, pp. 376 e 297. 960 Saint-Simon, 1 968, pp. 5, 8, 57 e 64. 961 Heine, 1 969-78, vol. V, p. 503. 962 Heine, 1 969-78, vol. III, p. 540. 963 Heine, 1 969-78, vol. III, p. 3 17. 964 Heine, 1969-78, vol. III, p. 570. 965 Heine, 1 969-78, vol. III, p. 1 77. 473

cional dos operários". Retornando e subscrevendo esta tese,966 pelo final do Século 19, numa série de artigos e de cartas, Engels reconstroi as origens do cristianismo com o olhar constantemente voltado para o presente: "A história do cristianismo primitivo oferece notáveis pontos de contato com o movimento operário moderno"; "o cristianismo, corno todo grande movimento revolucioná­ rio, foi feito pelas massas".967 Urna analogia salta logo aos olhos: "Entre quais pessoas eram recrutados. os primeiros cristãos? Principalmente entre 'os atri­ bulados e os oprimidos', entre os que pertenciam aos estratos populares ínfi­ mos", em primeiro lugar entre os escravos. Analogamente, o movimento soci­ alista encontra a sua base social de massa entre os escravos assalariados, os operários de fábrica. 968 São os rejeitados, os fracassados da vida de quem Nietzsche fala, o qual, porém, pelo que diz respeito ao socialismo, faz referên­ cia mais ao subproletariado que ao proletariado, ou seja, a urna classe que, do ponto de vista de Marx e Engels, acaba frequentemente se tomando massa de manobra da reação. No final do Século XIX, é o próprio partido socialdernocrata que se com­ para com a comunidade cristã primitiva: "Passaram-se quase exatamente 1 600 anos desde que no Império romano agia igualmente um perigoso partido sub­ versivo"; as ferozes perseguições de Diocleciano e das classes dominantes romanas não conseguiram impedir a sua vitória final; assim aconteceria, segun­ do Engels, também para o movimento socialista. 969 Apagar a "falsa cronolo­ gia" cristã significa também infligir um golpe na filosofia da história do movi­ mento revolucionário.

4. Condenação da revolução, critica da "esperança " e crítica da

visão unilinear do tempo O interminável ciclo revolucionário que se alastra no Ocidente não pode ser eficazmente contrastado nem rechaçado se não se refutar de urna vez por todas a ideologia que o alimenta. Já conhecemos um terna central dessa ideologia: é a visão moral do mundo que, nas suas diversas configurações, difama a natureza e a organização natural sobre a qual repousam urna sociedade e urna civilização dignas deste nome e, junto com tudo isto, denigre e deslegitima a aristocracia natural, os bem sucedidos, os melhores. Mas este terna não exaure a ideologia 966 Marx-Engels. 1955, vol. XXII, p. 450 e vol. XXI p. 9. 967 Marx-Engels, 1 955, vol. XXII, p. 449 e vol. XXI p. 1 0. 968 Marx-Engels, 1955, vol. XXII, p. 463 . 969 Marx-Engels, 1955, vol. XXII, p. 526. ,

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revolucionária e não basta para explicar a sua vitalidade e periculosidade. Para poder estimular a revolta e a ação revolucionária concreta, a difamação moral do mundo e da natureza e o apelo à 'justiça" devem combinar-se com um tema ulterior, o da espera de um mundo diferente e melhor. É a espera messiânica da mudança e, portanto, a visão do tempo que define a continuidade do socialismo em relação ao cristianismo e, ainda antes, com respeito ao profetismo.judeu. "O cristão vive na esperança" e com ele "a grande multidão dos escravos". A eles Aurora contrapõe Epicteto, o escravo que se apoia na sua interna "força de espírito" para suportar ou aceitar a sua condição exterior. Ele "não espera", mas "crê rigorosamente na razão" (M, 546). A esperança, na sua visão cristã ou socialista é, claramente, sinônimo de superstição. Então se compreende que nos fragmentos póstumos encontremos em mais ocasiões o anúncio de um livro com o título tanto mais significativo: "O novo iluminismfi>. Preparação para uma filosofia do eterno retomo" (XI, 228 e 346) . Na sua forma nova e mais radical, o "iluminismo" combate a superstição messiânica e revolucionária, liquidando a visão unilinear do tempo que está em seu fundamento. Realizou-se uma viravolta com respeito à terceira Inatual. Aqui, a urgên­ cia de fundar uma teoria da ação contrarrevolucionária leva a sublinhar a inevitabilidade da decisão e da escolha. Ela urge porque ocorre num contexto histórico temporal sempre determinado e irrepetível. "Todo homem, no fundo, sabe muito bem que está no mundo só por uma vez, como um unicum, e que nenhuma combinação, por mais insólita, poderá misturar junto por uma segunda vez aquela multiplicidade tão bizarramente variegada na unidade que ele é" (SE, l : 1, 337). Por outro lado, nessa mesma direção leva o gesto aristocrático de distinção. A unicidade do indivíduo, e do indivíduo excepcional, encontra a sua confi rmação na unicidade de cada átimo temporal e, portanto, na irreversibilidade do tempo. Tomar consciência disso pode contribuir para ali­ mentar ulteriormente a luta contra a igualização e massificação moderna: "A nossa existência singular exatamente na hora atual - o fato inexplicável de que nós vivemos propriamente hoje e, no entanto, tivemos o tempo infinito para nascer, que não possuímos senão um brevíssimo hoje e nele devemos mostrar para que e para qual fim nascemos exatamente - isto nos anima a viver segun­ do uma medida e uma lei nossa" (SE, l ; 1, 3 39). Mas essa visão do tempo não corre o risco de favorecer o movimento revolucionário? Schopenhauer denunciara que os socialistas se apoiavam no tema da fugacidade do tempo e da vida mundana para conquistar as massas para o seu programa e movê-la à ação política: "Gaudeamos igitur!"; "edite, bibite. post mortem nulla voluptas" (supra, cap. 1 § 9). Nesse ponto, ainda

na primavera verão de 1 8 8 l , Nietzsche parece dar razão ao seu ex-mestre. A "fé no mundo" caracteriza a agitação revolucionária: por isto o seu fruto é o socialis­ mo, ou seja, os fugazes indivíduos querem conquistar afelicidade mediante a socialização, eles não têm nenhum motivo para esperar, como esperam os homens com almas eternas, de eterna duração e com perspectiva de melho­ ramentos futuros (IX, 504-5). O seu fim é o bem-estar do indivíduo fugaz:

As expressões que destaquei em itálico esclarecem a continuidade com respeito à denúncia, em O nascimento da tragédia, da "fé na felicidade terrena de todos" como tema inspirador do ciclo, antes da doença revolucionária (supra, cap. 1 § 3). Só que, agora, a esta doença é contraposta um antídoto decididamen­ te mais radical: .. A minha doutrina diz: o teu dever é viver de modo tal que devas desejar reviver, mas reviver tu deverás em qualquer caso!" (IX, 505). Estou citando um texto preparatório da Gaia ciência, a obra que na con­ clusão da primeira edição formula pela primeira vez, de modo ainda tímido, a tese do eterno retorno do idêntico. Evidente e, talvez, declarada é a preocupa­ ção pol ítica e até pedagógica que o inspira: ··se a repetição cíclica fosse apenas uma verossimilhança ou probabilidade, já o pensamento de uma probabilidade pode nos perturbar ou plasmar de novo [ . . .]. Quais efeitos não surtiu a possibi­ lidade da condenação eterna!" (IX, 523-4). Se a visão moral do mundo é con­ tradita pela tese da inocência do devir, a visão unilinear do tempo (o outro essencial elemento constitutivo da ideologia revolucionária) é refutada median­ te a tese do eterno retorno do idêntico. Um fragmento da primavera-outono de l 88 l nos reconduz ao ponto de partida de O nascimento da tragédia: Por que a civilização alexandrina morreu? Não conseguiu, apesar de todas as suas descobertas úteis e o prazer pelo conhecimento deste mundo, conferir a este mundo, a esta vida, a suprema importância; o além permaneceu mais importante! Ensinar algo de novo sobre este ponto é ainda hoje a principal tarefa: o que poderia acontecer se a metafisica atribuísse exatamente a esta vida o peso máximo - segundo a minha teoria! (IX, 5 1 5).

Só que, agora, a parábola que subverte a civilização alexandrina e o mun­ do antigo enquanto tal não é mais enfrentada mediante a denúncia dos efeitos ruinosos das luzes e do racionalismo socrático, mas, pelo contrátio, mediante a referência a um ·'novo iluminismo". Se Nietzsche é estimulado também, em primeiro lugar, por preocupações ético-políticas, não renuncia a conferir uma consagração "científica" à sua

nova doutrina : "Cuidemos para não pensar que o mundo cria eternamente algo novo" (FW, 1 09). Na realidade, "o devir infinitamente novo é uma con­ tradição, pressuporia uma força crescente ao infinito", mas não se compre­ ende onde ela poderia ..encontrar o excedente para alimentar-se" (IX, 525). É preciso, portanto, partir do pressuposto de "uma força determinada'', por grande que ela possa ser. Se ela é "eterna", não pode não incorrer na repeti­ ção. Ela é o resultado-obrigatório do encontro entre uma massa ou, melhor, ··força" finita e uma dimens.io temporal infinita. Portanto, "não há mudanças novas ao infinito, mas a circulação de um número determinado de mudanças se repete continuamente; a atividade é eterna, o número dos produtos e das situações de força, finito". Certamente, se pode negar o pressuposto da eternidade da força e levantar a hipótese de que ela "é ativa apenas a partir de um ponto temporal determinado e cessará, por sua vez, de sê-lo (IX, 5589). Isto signifi ca, porém, cm última análise, regredir ao creacionismo: "Quem não crê num processo circular do universo, deve crer no Deus com uma vontade" (IX, 56 1 ). Intrinsecamente ligada com a teologiajudeucristã, bem longe de ser óbvia obrigatória, a visão uni linear do tempo resulta insustentável. Por outro lado observa já a segunda Inatual - . .a origem da cultura histórica [ . ] deve ser ela mesma reconhecida historicamente (HL, 8; 1, 3 06). Para exprimir-nos em ter­ mos lógicos, Nietzsche recorre ao argumento autorreflexivo: a consciência his­ tórica é ela mesma submetida à transitoriedade dos acontecimentos históricos; tendo surgido no tempo, a visão uni linear do tempo está destinada a desapare­ cer. Aliás, ··a doutrina do eterno retomo", ou seja, da circulação incondicionada e infinitamente repetida de todas as coisas - "esta doutrina de Zaratustra" é, ela mesma, um retorno . Está presente em Heráclito ou, "pelo menos, encon­ tram-se traços dela na Stoa, que herdou quase todas as suas concepções fim­ damentais de Heráclito" (EH, O nascimento da tragédia, 3). Além da referência direta a um autor determinado, somos reconduzidos ao mundo e à v isão do tempo subvertidos pelo antropocentrismo e pelo messianismo j udeucristão. Pode ser interessante reler os argumentos de Celso na sua polêmica contra o c ristianismo: e

. .

O mundo sensível não é um dom dado ao homem, mas cada coisa nasce e morre segundo aquela altermlncia que chamei de transformação de uma na outra, cm vista da conservação do universo. Os bens e os males na esfera mortal não poderiam nem diminuir nem aumentar, nem Deus sente a necessi­ dade de uma ulterior correção, porque ele não agiu de modo carente e imper­ fcito, como um homem quando fabrica algo. Porque com dilúvio e com a 477

conflagrnção Deus não purifica o universo nem traz a ele correção nenhuma. Porque se algo te parece um mal, não é absolutamente claro se é verdadeira­ mente um mal, pois tu não sabes o que é útil para ti ou para um outro ou para o universo.970

No esforço de relativizar dois milênios de história, Nietzsche passa da denúncia do dano que a história causou à vida para a radical historização do saber. Tal historização átaca por último o sentimento da esperança, ataca a visão unilinear do tempo, que é antes relativizada mediante o evidenciamento da sua gênese histórico-social (as delirantes ilusões e pretensões dos rejeitados que se agitam no mundo judeucristão), e depois é posta definitivamente fora mediante a afirmação do eterno retorno do idêntico. Podemos então compreender a afirmação que configura "a doutrina do eterno retorno como martelo na mão dos homens mais poderosos" (XI, 295 ). Colocada numa perspectiva de longa duração, essa doutrina representa a res­ posta certa das classes dominantes para o desafio proveniente dos fracassados da vida. Vejamos quando e de que modo se afirma a visão unilinear do tempo. Enquanto Roma dominava de modo indiscutível, ·'todo o futuro parecia aalcançado, todas as coisas eram organizadas para uma condição eterna". Mas eis que este mundo começa a ser caluniado: é pintado como destinado ao fim enquanto já intimamente podre: Vingaram-se de Roma ao considerar próximo o imediato fim do mundo; vin­ garam-se de Roma, pondo de novo diante de si um futuro [ ... ] ; vingavam-se dela sonhando com o juízo final - e o judeu cmcificado, como símbolo de salvação, constituía o extremo escúrnio para os esplêndidos pretores roma­ nos da província; de fato, eles agora apareciam como os símbolos da des­ ventura e do "mundo" maduro para o fim (M, 7 1). A doutrina do eterno retomo configura-se, então, como a contravingança das classes dominantes, que agora zombam das esperanças e das ilusões das classes subalternas.

5. Doutrina do eterno retorno e fim do antropocentrismo (do ju­ daísmo até a Revolução Francesa) A tradição judeucristã, além de se caracterizar pela visão unilinear do tempo, se caracteriza pelo seu antropocentrismo fátuo, estranho à antiguidade 970 O discurso da verdade,

IV. 69-70 (Celso, 1 989, p. 1 63).

clássica e a outras culturas extraeuropeias . Mais uma vez, uma férrea linha de continuidade conduz do judaísmo à incessante subversão da modernidade. De­ pois de ter feito a sua primeira aparição num "populacho ilimitadamente ambi­ cioso", o antropocentrismo, e um antropocentrismo grosseiro e etnocêntrico, desempenha depois um papel central em Jesus e Saulo: "Os dois achavam que o destino de todo homem e de toda época, no passado e no futuro, junto com o destino da terra, do sol e das estrelas, dependia de um assunto de judeus : esta fé é o non plus ultra do judaísmo" (IX, 80). Assim é elaborada uma estrambótica soteriologia, em cujp âmbito toda a realidade e a história universal são postas ao serviço dos necessitados de emancipação e da redenção de uma ralé insignifi­ cante: ·'Como se pode fazer tanta algazarra das pequenas imperfeições própri­ as, como fazem aqueles homúnculos piedosos! Ninguém pensa nisso; muito menos Deus". Ao contrário, no âmbito do Antigo e sobretudo do Novo Testa­ mento, todo pequeno miserável pretende ser objeto de atenção do ordenamento universal inteiro e do seu criador: "essa gente esmiuça as suas coisas mais pessoais, a sua estupidez, tristeza e preocupações ociosas, como se o em-si das coisas devesse cuidar delas" (GM, III, 22). De novo a polêmica de Nietzsche nos conduz ao mundo revirado pelo triunfo da vi são unilinear do tempo e do messianismo . A denúncia do antropocentrismo está bem presente na polêmica que um autor como Celso desenvolve contra os cristãos e, mais em geral, contra os ambientes judeucristãos . Estes ··afirmam que Deus criou tudo para o homem, mas na realidade cada coisa nasceu não mais para os homens do que para os animais que não falam". Estamos na presença de fenômenos naturais, que "não se verificam certamente para vantagem de nós homens, tendo como fim o nosso alimento, mais que em vantagem das plantas, das árvores, das ervas e dos espi­ nheiros". Zombando do relato bíblico com base no qual Deus entrega ao homem a sujeição da natureza e do mundo animal, Celso observa: "Antes de existirem as cidades, as artes, as atuais relações entre os homens e as armas e as redes, provavelmente os homens eram presa e comida para os animais, ao passo que os animais, de pouco ou nenhum valor, eram capturados pelos homens".971 Como a mundanização da ideia de igualdade, assim a mundanização da visão antropocêntrica desemboca nas desordens da Revolução Francesa. Com a sua teoria dos direitos do homem, ela não só coloca no centro do universo o mundo humano, mas, no âmbito deste último, atribui centralidade e dignidade de fim em si também aos seres mais medíocres e miseráveis. Mas é apenas um nome diferente para o velho bom Deus qualquer "suposta aranha ético97 1 O discurso da verdade,

IV, 74-5 e IV, 79 a (Celso, 1 989, p. 1 65 e 1 67).

finalística" (GM, III, 9); essa aranha é exatamente o fio condutor da fé pro­ gressista e revolucionária num processo do mundo que tende a realizar a felici­ dade para todos e a harmonia universal . Vemos em ação a mesma concepção do tempo que parece ter conseguido ou está para conseguir o seu fim último, a sua plenitudo: ··o 'juízo final ' [ . . ] é a revolução como é esperada também pelo operário socialista, somente que pensada um pouco mais distante" (GD, Incursões de um inatual, 34). Um eminente historiador contemporâneo observou como a visão unilinear do tempo e o "messianismo judeucristão" desempenharam um papel importan­ te em alimentar, também fora da Europa, fermentos revolucionários estranhos a religiões como o hinduismo e o budismo.972 A vida de Nietzsche ocorre num período de tempo que vê nos Estados Unidos a Guerra de Secessão e a "revo­ lução abolicionista" (que às vezes se configura como uma cruzada destinada a eliminar o pecado da escravidão e a construir um mundo novo que realize con­ cretamente os ideais cristãos); na Europa, a Comuna de Paris e o desenvolvi­ mento do movimento socialista; na Ásia, e exatamente na China, a revolução e a consequente tentativa de edificação do "Reino Celeste da Paz", da qual é protagonista o movimento Taiping, também ele profundamente influenciado, como vimos, pelo messianismo cristão.973 Compreende-se então que, a partir já dos anos imediatamente posteriores a 1 789, a crítica da revolução alvej e a expectativa do Novum e a visão antropocêntrica que é o seu fundamento . Chateaubriand põe-se a demonstrar que as pretensas novidades prometidas ou perseguidas pela Revolução Fran­ cesa .. se encontram quase literalmente na história dos gregos de uma certa época" . Não há nada de novo sob o sol : é uma "verdade importante" que não se deve nunca perder de vista; .. o homem [ . . . ] não faz senão repetir-se inces­ santemente, ele gira num círculo do qual busca em vão sair".974 Mais frequen­ temente, a crítica do messianismo revolucionário e da ideia de progresso en­ quanto tal caminha junto com a tomada de distância do cristianismo. Nesse contexto pode ser colocada a própria referência de Schopenhauer a tradições religiosas centradas na doutrina da reencarnação e, em última análise, na rejei­ ção da visão unil inear do tempo. Mesmo quando não é formulada de modo explícito, a doutrina do eterno retorno surge como aspiração na cultura antirrevolucionária. Lapouge invoca o ..testemunho das ciências c,ontra a utopia do progresso". A astronomia liquida, .

Hobsbawm, 1974, pp. 76 epassi111; cf. tmnbém Marx Engels 1955, vol. XXII, p. 450 nota. 1 998. 974 Chateaubriand, 1 978, p. 432.

97:

97' Cf. Spencc,

-

,

junto com o antropocentrismo ("a história do nosso planeta é um simples caso particular da história geral dos astros"), as ilusões perseguidas pelos revolucio­ nários e reformadores: "Incessantemente, de modo mecânico, a vida astral renasce, floresce, apaga-se para renascer, sem que se possa captar uma ten­ dência ao progresso nos seus imensos ciclos".975 Ainda mais perto da teoria do eterno retomo se move Gumplowicz, que insiste na "adaptação cíclica da evo­ lução social no seu conjunto'�976 O alvo polêmico é constituído, também nesse caso, por movimentos políticos que prometem regenerações mirabolantes . Na realidade, "não há nem progresso nem regresso em todo o desenvolvimento do processo natural da história, mas apenas singularmente, em períodos singulares deste ciclo eterno''.977 Na vertente oposta, Kautsky censura a incapacidade dos ideólogos das classes dominantes de compreender não só o progresso, mas também a mudança histórica enquanto tal: "Toda a história aparece assim como um ciclo que volta sempre sobre si mesmo, uma eterna repetição das mesmas lutas, na qual mudam apenas os costumes, sem que a humanidade progrida".978 Como se vê, nem em relação à afirmação do eterno retomo do idêntico (uma doutrina aparentemente tão distante do senso comum) Nietzsche está realmente isolado. Às vezes a sua visão foi assemelhada à de Blanqui, que, encerrado no cárcere por Thiers, abraça também ele a "hipótese astronômica" do eterno retomo. Mas neste caso estamos na presença de um falso parentes­ co. No que diz respeito ao revolucionário francês, estendendo-se num espaço além de um tempo infinito, a repetição inclui agora variantes infinitas na passa­ gem de um mundo para o outro: "talvez os ingleses perdessem muitas vezes a batalha de Waterloo em globos onde os seus adversários" não cometessem os erros que resultaram fatais para Napoleão.979 Não é fácil entender como isto se concilia com a afi rmação da repetição do idêntico, mas o significado político e psicológico do todo não escapa aos contemporâneos de Blanqui. Um autor de resenha observa: "Não é dificil adivinhar o pensamento recôndito do homem cuja vida foi uma série de derrotas e de quedas . Ele não aceita o desmentido dos acontecimentos, o veredicto dos homens; o seu pensamento, que não pôde obter aqui os seus triunfos, sonha com outros lugares, e não entre serafins e arcanjos, mas entre homens de carne e osso, animados pelas nossas paixões", embora colocados num mundo bastante distante da nossa terra. Estamos, por9•1s

Lapouge, 1896, pp. 446-7.

976 Gumplowicz, 1885, p. 2 1 9. 977 Gumplowicz, 1883, pp. 3 5 1 -2. 978

Kautsky, 1 908, p. IX (= Kautsky, 1970, p. 34) .

979 Blanqui, 1973, p. 156.

tanto, na presença de um texto de um revolucionário que foi derrotado e entrou em crise, ainda suficientemente combativo para rejeitar a capitulação, mas pela situação em que foi levado a considerações "melancólicas" e em busca de temas consoladores . 980 Bem diferente é o caso de Nietzsche que, ao formular a tese do eterno retorno do idêntico, radicaliza um tema amplamente difuso, ainda que apenas in nuce, da cultura antirrevolucionária. Agora a negação da visão unilinear do tempo consegue a sua completude, levando em conta, além do socialismo, a própria ideia de mobilidade social: quele a quem a aspiração dá o sentimento supremo, aspire a alguma coisa; aquele a quem a quietude dá o sentimento supremo, se aquiete; aquele a quem o inserir-se numa ordem, seguir, obedecer dão o sentimento supremo, obedeça. Apenas procure adquirir a consciência daquilo que lhe dá o senti­ mento supremo e não deixe de usar qualquer meio ! Está em jogo a eternida­ de! (IX, 505).

Surge assim outro elemento novo. O filósofo, que passou pelo encontro com os grandes moralistas e que é ele mesmo um grande moralista, confere uma forma fascinante de sabedoria de vida a um programa político que gostaria de tornar permanente e natural a divisão do trabalho e a articulação de castas da sociedade. O olhar se volta então para a Europa medieval, quando as profis­ sões e os ofícios eram fixos e predeterminados: Mas há épocas de caráter contrário, aquelas propriamente democráticas, nas quais se desaprende sempre mais esta fé, e aparecem em primeiro plano uma certa crença altiva e um ponto de vista oposto, aquela crença dos atenienses, que se faz notar pela primeira vez no tempo de Péricles, aquela crença dos americanos de hoje, que sempre mais quer tornar-se também crença europeia: há épocas em que o indivíduo é convencido de poder quase tudo, de ser feito, praticamente, para qualquer papel; épocas em que cada um tenta con­ sigo mesmo, improvisa, tenta novamente, tenta com prazer; no qual toda natureza cessa e se toma arte. . . Só depois que os gregos entraram nessa crença dos papéis - uma crença de artistas, se se quiser - passaram gradu­ almente até o fundo, como se sabe, por uma transformação prodigiosa e não sob todos os aspectos digna de imitação: eles se tornaram realmente come­ diantes (FW, 3 56).

De novo a denúncia dos efeitos nefastos da mobilidade social, dos gregos aos estadunidenses, assume tons provenientes da intimidade com os grandes 980 ln Blanqui,

1 973, p. 1 80 (recensão de "Le Temps" de 5 março de 1872).

moralistas, com o recurso a argumentos que se referem mais ao processo de formação da personalidade individual do que à realidade político-social. O mes­ mo se dá com a tese do eterno retomo. Acolhê-la e torná-la própria significa romper com a megalomania antropocêntrica, reconhecendo-se e sentindo-se parte do todo: "A eterna clepsidra da existência é sempre de novo virada e tu com ela, grão na poeira!" (FW, 34 1). Aceitar a condição humana e social na qual se está colocado não é nenhum indício de mediocridade: A minha fórmula para a grandeza do homem é amor fati: não querer nada diferente, nem atrás nem diante de si, por toda a eternidade. Não só suportar o necessário, evitando em todo caso removê-lo - todo o idealismo é uma contínua mentira diante do necessário - mas amá-lo (EH, Porque sou tão inteligente, 1 0).

Sim, é preciso precaver-se contra o abandono ou a indulgência para com a evasão e as fantasias vazias, aceitando o real e reconhecendo-se alegremen­ te nele: "A mor fati : seja este doravante o meu amor ! " (FW, 276). Ficar entediados da vida é uma doença moderna: "Os gregos podiam pedir: 'Seja uma segunda e uma terceira vez tudo o que é belo"' (FW, 339). Para ser mais precisos, trata-se de assumir uma atitude positiva em relação à realidade en­ quanto tal, sem remover os seus aspectos trágicos, trata-se de querer "o eterno retomo de guerra e paz" (FW, 285), liquidando de uma vez para sempre o niilismo implícito na transcendência religiosa ou revolucionária: "o pensamento do eterno retomo [é] a suprema fórmula da afirmação que jamais poderá ser alcançada". Afirmar isto significa proclamar uma verdade que não admite ré­ plica: "nenhuma objeção contra a existência nem contra o seu eterno retomo" (EH, Assim falou Zaratustra, 1 e 6) . O "demônio" que sugere a doutrina do eterno retomo assume tons tanto mais sedutores: "Quanto deverias amar a ti mesmo e a vida, para não desejar mais outra coisa senão esta última eterna sanção, este selo" (FW, 3 4 1 ) . "Dizer sim" deve i r "até a justificação, até a redenção também de todo o passado". Sem renegar ou lamentar nada, o indivíduo se reconhece em cada momento e ato singular da sua existência, conseguindo assim "transformar todo 'assim foi' num 'assim quis que fosse ! "' (EH, Assim falou Zaratustra, 8). Esse exercício de resgate do passado é realizado por Nietzsche também por si mesmo, relendo as etapas precedentes da sua evolução a partir da consciência alegre, agora adquirida, do eterno retorno do idêntico: Quem, como eu, se esforçou muito, numa espécie de ânsia enigmática, em pensar até o fundo o pessimismo e libertá-lo da estreiteza e da ingenuidade, meio cristã e meio alemã, com a qual ele necessariamente se apresentou a

este século, quer dizer, na forma da filosofia schopenhaueriana; quem real­ mente, e com olho asiático e ultra-asiático, perscrutou uma vez bem dentro e fundo neste modo de pensar que é aquele, entre todos os modos possíveis, mais aniquilante em relação ao mundo (weltverneinendst) [ ... ], esse talvez, sem propriamente querê-lo, abriu exatamente com isso os olhos sobre o ideal oposto: o ideal do homem mais arrogante, mais cheio de vida e mais afirmador do mundo, o qlilal não apenas aprendeu a resignar-se e suportar o que foi e o que é, mas quer reaver, por toda a eternidade, tudo isto, assim como foi e é, gritando insaciavelmente bis! não apenas a si mesmo, mas para o inteiro drama e espetáculo, e não apenas para um espetáculo, mas fundamentalmen­ te para aquele que tem necessidade exatamente desse espetáculo - e o torna necessário: pois tem sempre de novo necessidade de si mesmo - e se torna necessário. Como? E isto não seria circulus vitiosus deus'? (JGB, 56).

A cosmodiceia, afirmada e perseguida desde o início, agora assume a forma mais completa, e ela, junto com o mundo, justifica cada etapa singular do processo evolutivo e da vida do teórico da cosmodiceia. Vimos Nietzsche assu­ mir tons iluministas na polêmica contra a visão unilinear do tempo e contra as expectativas e as esperanças que se ligam a ela . Mas a linguagem à qual recor­ re para anunciar a doutrina do eterno retomo é claramente religiosa. Ela visa não só à justificação, mas também à "redenção" da realidade no seu conjunto (EH, Assim falou Zaratustra, 8). Por outro lado, ao dar os primeiros passos para a afirmação do eterno retomo, Nietzsche parecia antes reservar esta sor­ te só aos crentes de tal doutrina: "Os que não acreditarem nisso deverão aca­ bar extinguindo-se, por sua natureza! Só quem mantém a sua existência eter­ namente capaz de repetir-se permanecerá; mas entre estes será possível uma condição que nenhum utopista pôde imaginar" (IX, p. 573). A utopia à qual se faz referência aqui é a da libertação do peso da moral com a afirmação da inocência do devir: é uma utopia que, segundo uma dialética não insólita, tam­ bém à luz da experiência histórica posterior, tende a configurar-se como distopia.

6. Radicalismo aristocrático e nova expulsão dojudaísmo na Ásia A aproximação ao radicalismo aristocrático marca a exacerbação extre­ ma do juízo de N ietzsche sobre o judaísmo (pós-exílio), responsável por ter alimentado e por continuar a alimentar a revolução fornecendo para ela os dois elementos constitutivos da ideologia que a inspiram, a saber, a visão moral do mundo e a visão unilinear do tempo. Agora é evidente que, no que diz respeito

ao juízo sobre o judaísmo, aconteceu uma nova virada em Nietzsche depois da virada "iluminista". Vimos os escritos do período "iluminista" lê-lo em perspec­ tiva racionalista, em contraposição ao fideísmo cristão orientalizante e celebrá­ lo como um elemento essencial da identidade europeia. Mas é uma posição destinada a entrar logo em crise. No que diz respeito ao cristianismo, é claríssimo o elemento de continuidade, a partir pelo menos da quarta Inatual, que, no ocaso da fase "metafisica", o define desdenhosamente como um simples "frag­ mento da antiguidade oriental" (WB, 4; 1, 446). Já é um ponto pacífico. A atitude de compassiva prostemação diante de um Deus, como autoridade que "castiga os que lhe são caros", é "algo de oriental" (M, 75). Estamos na presença de um soberano infinitamente opressor ao qual é bom favorecer em qualquer circuns­ tância e diante do qual convém prostrar-se e humilhar-se, confessando de qual­ quer modo a própria indignidade e pecaminosidade. "Na sua grande potência fará mais facilmente graça a um pecador do que admitirá que alguém tenha razão diante dele". Assim pensa o cristão do seu tirano oriental colocado nos céus (M, 74). Sim, "'demasiado oriental" é um Deus que ameaça terríveis vinganças em relação àqueles que não acreditam no seu "amor" (FW, 1 4 1 ). Contudo, não se pode ignorar a origem do cristianismo, "derivado do juda­ ísmo e de nada mais" (IX, 93). No âmbito do Império romano, a nova religião lançou a palavra de ordem segundo a qual ''a salvação vem dos judeus" (IX, 52). Em virtude desta ligação, fica insustentável a oposição entre cristianismo e judaísmo, quer ela seja declinada em sentido judeófobo, como no período "metafisico", quer seja declinada em sentido filoj udaico, isto é, a fim de subli­ nhar o fato de o cristianismo, mais que o judaísmo, ser estranho à história do Ocidente, como acontece no período "iluminista". Agora, o que tem algo de oriental é o monoteísmo enquanto tal, com o seu culto de um Deus onipotente e perfeito, que humilha e esmaga o homem com as infinitas distância e superiori­ dade que institui em relação a ele. Ainda mais evidentes serão os elementos que associam judaísmo e cristi­ anismo se compararmos ambos com o mundo que eles subvertem ou destroem. Já Humano. demasiado humano observa: Os gregos viam acima deles os deuses homéricos não como senhores e eles mesmos abaixo deles não como servos, como vêem os judeus. Eles viam por assim dizer só a imagem refletida dos exemplares mais bem sucedidos da sua própria casta, ou seja, um ideal, não um oposto da sua natureza. Sentem-se reciproounente aparentados, há um interesse pennutável uma espécie de si maquia [... J. Ao contrúrio, o cristianismo esmagou e despedaçou o homem completamen­ te e o <Úundou como que num pântano fündo: depois, no sentimento de total abjeção, fez brilllar totalmente o esplendor de uma piedade divina (MA, 1 14 ). ,

Quando Nietzsche chega à sua última etapa da evolução, é a tradição judeucristã no seu conjunto que é contraposta nitidamente ao helenismo e, mais em geral, à antiguidade clássica. O despotismo é intrínseco de uma religião em cujo centro sobressai um Deus que vê um crimen /esae maiestatis no pecado e em toda mínima infração da norma dele soberanamente emanada, é intrínse­ co à ideia de pecado e à visão moral do mundo (FW, 1 3 5). Mas acusar a visão moral do mundo significa acusar em primeiro lugar o judaísmo e um povo que encarna o ·'gênio moral" (FW, 1 3 6), o "povo inventor do pecado" (FW, 1 3 8), que primeiro ·'conseguiu inventar o Deus santo e a culpa contra ele" (IX, 80). Aparece assim na cena da história e começa a difundir-se ruinosamente "o sentimento judaico, para o qual tudo o que é natural constitui uma coisa indigna em si" (FW, 1 35); ao contrário dos gregos, Paulo e os judeus olham "para o aniquilamento das paixões" (FW, 1 3 9) e, portanto, se colocam numa relação falsa e perturbada com a natureza. Com uma inversão com respeito ao balanço histórico que, embora de modo um tanto confuso, está em Humano, demasiado humano, agora não apenas a tradição judeucristã representa uma unidade, mas o fato de esta unidade revelar-se decisiva no plano histórico é o primeiro elemento, e ele tende a absorver em si o segundo. Arvo­ rando-se em ')uiz" e pretendendo ao mesmo tempo ser "objeto de amor", o "fundador do cristianismo" revelava que a sua "sensibilidade" não era "bastante refinada": infe­ lizmente ele "era judeu'', antes, "demasiado judeu" {FW, 140). . Desse ponto de vista, com o seu sentimento do pecado, o cristianismo é mais que tudo o veículo de transmissão de uma doença que remete em primeiro lugar ao judaísmo. Contra o despotismo judeucristão é a religião da antiguidade clássica no seu conjunto que se apresenta como um mundo luminoso de liberdade: Acima e fora de si, num ultramundo distante, se podia ver uma multiplicidade de normas: um deus não era a negação ou a blasfêmia de outro deus ! Aqui pela primeira vez foram permitidos indivíduos, aqui pela primeira vez se hon­ rou o direito dos indivíduos. Inventar deuses, heróis e super-homens de toda espécie, como seres semelhantes aos homens, ou subumanos, anões, fadas, centauros, sátiros, demônios e diabos, constituiu a inestimável propedêutica para a justificação do egoísmo e da soberarua do indivíduo: a liberdade que se concedia ao deus contra os outros deuses, atribuiu-se, enfim, a indivíduos contra leis e costumes e vizinhos. O monoteísmo, porém, esta rígida consequência da doutrina do homem normativo e único - a fé, portanto, num deus normativo, comparado ao qual só há deuses falsos e mentirosos - constituiu talvez o maior perigo no curso da humanidade até hoje [... ]. No politeísmo estava como que prefigurada a liberdade de espírito e a multifom1e espiritualidade do homem (FW, 143).

Infelizmente, não foi este mundo de liberdade que conseguiu a vitória. Com a derrota da Hélade e da antiguidade clássica foram a par e passo a humi lhação e a difamação do homem: Os judeus, na medida em que desprezaram o homem e o sentiram mau e desprezível ao mesmo tempo, os judeus, mais que qualquer outro povo, colocaram o seu deus a distâncias sempre mais imaculadas: alimentaram-no com todas as coisas ooas e nobres que moram no peito do homem {IX, 656).

Pareceria ler Feuerbach ou Marx. Na realidade, as diferenças são pro­ fundas . Significaria entender mal o balanço histórico esboçado por Nietzsche se não se tivesse presente que, no seu modo de ver, a tradição judeucristã é sinônimo de despotismo, sim, mas também, e sobretudo, de homologação igua­ litária. Na análise do filósofo se trata de dois lados da mesma moeda. O cristi­ anismo se empenha em "ensinar a completa indignidade, corrupção e menos­ prezo do homem em geral em voz tão alta, que depois o desprezo dos próprios semelhantes não será mais possível" (MA, 1 1 7). Aprofundando exatamente uma infinita distância entre Deus e o homem, aquela tradição religiosa elimina toda distância e toda diferença entre homem e homem . Em termos políticos, afirmando a servidão absoluta do homem em relação ao Deus onipotente e único, o monoteísmo reduz à ínfima plebe os homens no seu conjunto, deslegitimando assim todo ordenamento aristocrático. Nesse sentido, "os ju­ deus sentem pelo seu monarca divino e o seu santo um deleite semelhante àquele que a nobreza francesa sentia por Luís XIV", depois de ter sido espoli­ ada de "todo o seu poder e autocracia" (FW, 1 3 6). O despotismo nivelador da monarquia absoluta (que, humilhando a nobreza e expropriando-a de todo po­ der real, antecipa a obra da Revolução Francesa) encontra uma prefiguração teológica no Deus da tradição judeucristã. O despotismo oriental, denunciado por Montesquieu e outros autores libe­ rais, é agora surpreendido no próprio coração da Europa. Já em Burckhardt podemos ler a denúncia daquele "monstro mais mongólico que ocidental, que se chama Luís XIV".981 Mas Nietzsche introduz duas novidades fundamentais nesse tema. Em primeiro lugar, o Oriente, ao colocar-se em estado de imputa­ ção, remete ao judaísmo: na sua fé, os judeus "se comportaram como os povos asiáticos para com os seus soberanos, com resignação servil e cheios de medo" (IX, 89). É uma cultura estranha ao Ocidente autêntico não só no que diz res­ peito aos valores que a caracterizam, mas já pela geografia: "Somente numa paisagem judia era possível um Jesus Cristo: uma paisagem, quero dizer, sobre 98 1

Burckhardt, 1978 a, p. 68 .

a qual dominava continuamente a escura e sublime nuvem tempestuosa de Javé irado" (FW, 1 37). É uma observação que encontramos já em Renan. Mas em Nietzsche, além da conotação geográfica, o deserto é a metáfora da homo­ logação resultante da ausência ou da destruição de toda grandeza e de toda nobreza. Ao promover a massificação, a religião brotada do deserto reduz a "humanidade" a "areia" (supra, cap. 1 O § 2). E assim chegamos ao segundo ponto. A leitura e a denúncia do despotis­ mo oriental, e da tradição judeucristã, são desenvolvidas a partir do conflito entre plebeus e aristocratas, ou seja, entre servos e senhores. O "prostrar-se" servil dos cristãos é "oriental, não aristocrático" (IX, 1 3 0). Com o fim do mun­ do antigo triunfou uma visão capaz apenas de horrorizar um grego. Ele teria dito: "Este é um sentimento de escravos" {FW, 1 3 5). Com efeito, estamos na presença de uma atitude "não europeia e não nobre" {M, 75). Sim, "é o Orien­ te, o profundo Oriente, é o escravo oriental que desse modo se vinga de Roma" (JGB, 46). Em conclusão: Enquanto grande movimento plebeu do Império romano, o cristianismo é a sublevação dos elementos deteriorados, incultos, oprimidos, doentes, loucos, pobres, escravos das velhas comadres, dos vis, em suma, de todos aqueles que teriam tido raz.ão para suicidar-se, màs não tiveram coragem (IX, 52).

Odiosa a todo espírito nobre pela humilhação que comporta, nos fracassa­ dos da vida, a ideia de pecado se toma um instrumento de luta política exata­ mente contra a aristocracia. Sim, a derrocada da antiguidade clássica e o ad­ vento da detestada modernidade estão marcados pela vitória conseguida pelo ')udeu crucificado" sobre Roma pagã: a vingança sobre essa sociedade aristo­ crática foi consumada "envolvendo num só sentimento Roma, o 'mundo ' e o 'pecado "' e agitando a ideia do fim desse mundo pecaminoso (M, 7 1 ). Como todo movimento plebeu, também o movimento judeucristão é caracterizado pelo fideísmo e pelo fanatismo. A intensidade da fé judaica e cristã era desprezível para os romanos; foi o judeu em Cristo que antes de tudo exigiu a fé. Os homens cultos daquela época, diante dos quais todos os sistemas filosóficos contendiam entre si, acharam insuportável esta exigência de fé. CredatjudaeusApella" (Horácio) (IX, 76) .

Por sua vez, fideísmo e fanatismo remetem ao Oriente, a um mundo es­ tranho à autêntica civilização e ao Ocidente: o "escravo oriental'', que solapa o mundo antigo, está cheio de ódio para com uma cultura superior caracterizada por uma atitude de desapego e de tolerância em relação às várias fés (JGB,

46). Na fé exclusivista e total do escravo de origem judia, ou seja, judaicamente e cristamente doutrinado, se percebe, porém, o "impulso fora de si mesmo à maneira oriental" (JGB, 5 0).

7. Luta contra a tradição judeucristã e reconquista do Ocidente É inegável a aspereza do juízo que atinge o judaísmo. Assistimos à volta da anterior judeofobia nacional-liberal? Na realidade, nítidos e evidentes são os elementos de novidade. Basta pensar na condenação da Reforma e de Lutero, celebrados por O nascimento da tragédia como expressão do renascimento do helenismo trágico em terra alemã. Sobretudo, o momento de virada na histó­ ria do Ocidente é agora identificado no fim não mais da Hélade, da qual a Alemanha era a herdeira, mas do Império romano e da antiguidade clássica no seu conjunto . Vemos opo r-se mundo judeucristão de um lado e mundo grecorromano do outro . Nesse contexto, o judaísmo não remete mais aos inimi­ gos da Alemanha e aos latinos, ao modo "francês-judeu", mas à plebe, ao longo ciclo da subversão que atinge o Ocidente no seu conjunto, inclusive os países latinos e a França, a qual umas vezes se autodefinia e outras vezes era rotulada como a ·'nova Roma". Certamente, já O nascimento da tragédia e os apontamentos da mesma época sublinhavam o caráter plebeu de Sócrates e o seu 'j udaísmo" tendencial. Mas tais temas visavam caracterizar ulteriormente as tendências de fundo plebeias e judias dos inimigos da Alemanha, que esta, enquanto baluarte da luta contra a revolução, era chamada a liquidar. Em conclusão, se poderia dizer que o judaísmo conhece agora uma nova colocação. Se, nos anos de O nascimento da tragédia, estava inserido no âmbito de um conflito nacional e horizontal, agora, porém, é lido dentro de um conflito social que rasga transversalmente tanto o mundo grecorromano como a Europa moderna. Per outro lado, se, nos anos do O nascimento da tragédia, ao socratismo e ao alexandrinismo judaizantes eram contrapostas figuras centrais da história do cristianismo e da cultura cristão-protestante, como Lutero e Bach, agora a condenação do juda­ ísmo vai junto com a condenação do cristianismo, cujas raízes ineÃ1ricavelmente judias já estão esclarecidas, em polêmica com os apaixonados pelo mito genealógico cristão-germânico. Significativamente, mesmo na condenação ge­ ral do cristianismo nas suas diversas confissões, é o catolicismo que é julgado com menor severidade: aqui "o elemento romano chegou a predominar", ao passo que .. o elemento judeu" predomina no protestantismo dos alemães, "mais distantes dos romanos" já por razões geográficas (IX, 93). Sim, "privado da

delicadeza meridional", o "protestantismo inteiro" exprime com particular niti­ dez a alma "oriental" e a atitude de "escravo" (JGB, 50). Sobre este se faz sentir de maneira bem mais forte o peso da cultura veterotestamentária do que sobre o catolicismo. Est{1 claro, portanto, o afastamento em relação ao período "metafisico". Por outro lado, é inegável a retomada, mesmo que em forma nova, de um tema central exatamenté deste período. Agora é a Europa na sua unidade, não mais a Alemanha em oposição aos outros países europeus, que é chamada a desembaraçar-se daquela presença estranha que continua, todavia, a ser o judaísmo. "A Europa deixou-se tornar-se luxuriante dentro de si um excesso de moralidade oriental, assim como os judeus a perceberam e inventaram" (IX, 88-9). Ajudaiz.ação é ao mesmo tempo um fenômeno de asiatiz.ação: "A moralidade é uma invenção asiática. Nós dependemos da Ásia" (IX, 26). E sem superar essa dependência, a Europa não pode recuperar a herança gre­ ga e reencontrar a si mesma. Infelizmente, a ''judaização" que se desenvol­ veu. na onda da difusão do cristianismo penetrou profundamente: Percebe-se do modo mais sutil o grau de estranhei.a que a antiguidade grega um mundo sem sentido de pecado - continua sempre a ter para a nossa sensi­ bilidade, não obstante toda a boa vontade de aproximação e de assimilação que não faltou a gerações inteiras e muitos indivíduos importantes (FW, 1 3 5).

O processo de judaização se apresenta particularmente avançado na Ale­ manha: Em nossas escolas, a história hebraica é ensinada como história sagrada. Abraão é para nós algo mais do que qualquer outro personagem da história grega ou alemã, e o que sentimos pelos salmos de Davi é diferente do que em nós suscita a leitura de Píndaro ou de Petrarca, como a pátria de um país estrangeiro. Essa tendência para produtos de uma raça asiática, bastante distante e excêntrica [ . ] é o efeito póstumo mais importante do cristianismo, que não se destinava aos povos, mas às pessoas, e por isso não levantou suspeita quando o livro religioso de um povo semítico foi posto na mão dos homens de raça indogermânica (IX, 2 1 -2). ..

Para tal propósito devemos fa lar de judeofobia ou diretamente de antissemitismo? Wilhelm Marr, o "patriarca do antissemitismo", que já conhe­ cemos, esclarece deste modo as razões de sua atitude: "Há uma diferença racial grande demais entre germanos (Germanen) e orientais";982 a fim de 982 Marr, 1862, p. 54.

evitar o perigo mortal que a civilização corre, "é preciso desasiatizar o mun­ do". 983 As analogias com Nietzsche pareceriam evidentes. Na realidade, a posição deste último é diferente. Já vimos os escritos do período "iluminista" sublinharem com agrado a obra de decomposição ou de fluidificação do elemento nacional na Europa desenvolvida pelo judaísmo. Tam­ bém nos anos seguintes, aos olhos do filósofo a difusão da religião judaica, ou seja, judeucristã, muito além de sua área de origem apresenta também um elemento decisivamente positivo: "O hodierno sentimento pela Bíblia é a maior vitória sobre a limitação da raça e sobre a presunção pela qual cada um deveria considerar próprio e válido apenas o que o seu avô e o avô do seu avô disseram e fizeram". O fragmento citado, porém, continua denunciando a clamorosa desforra conseguida pela limitação e entrincheiramento provincial: tão forte tomou-se a identificação entre Europa e judaísmo "que quem hoje quiser tomar uma posi­ ção livre e objetiva em relação à história dos judeus, deve esforçar-se muito para libertar-se da excessiva proximidade e confiança, e para sentir novamente como estranho o elemento judaico". Em geral, "o europeu" faz suas, até perce­ be como próprias, a cultura e a "moralidade judaica" e as considera decidida­ mente superiores a todas as outras civilizações que marcaram a história mundi­ al {IX, 22-3). Desse modo, o provincianismo e o etnocentrismo coincidem para­ doxalmente com a escravização a um modelo estrangeiro, cuja importação pro­ vocou no Ocidente consequências catastróficas: O cristianismo conseguiu fazer aparecer na Európa os modelos negativos (Gegentypen) de pura marca oriental, o anacoreta e o monge, como os repre­ sentantes de uma "vida superior"; por isso ele exprimiu uma critica errada sobre todo o resto da vida e tomou impossível o elemento grego na Europa (IX, 89).

O perigo principal de desnaturação da identidade europeia e ocidental é representado pelo judaísmo (e pelo seu ramo cristão) . Estamos, pois, na pre­ sença de um antijudaísmo, que não é certamente menos radical que o de Marr. Tanto mais porque, folheando os fragmentos, topamos com a denúncia da "ati­ tude de escravo no judeu hodierno, também no judeu alemão" (XI, 1 3 0). No entanto, não se pode falar de antissemitismo, pelo fato de que o discurso de Nietzsche se desenvolve em nível mais cultural que racial. Nem a sua posição pode ser confundida com a dos judeófobos, os quais exigiam a dissolução do judaísmo numa identidade cristão-germânica que, do ponto de vista do filósofo, 983 ln Zimmcnnann, 1986, p. 68.

em primeiro lugar é mítica e em todo caso não é menos repugnante do que a identidade judaica. Na realidade, Nietzsche retoma um debate que tem uma longa história no âmbito da cultura alemã. Quando Klopstock, ao zombar da grecomania, fonnula­ va uma pergunta polêmica ("Então a Acaia é a pátria dos teutões?"), o jovem Hegel respondeu com uma pergunta não menos polêmica: "Então a Judeia é a pátria dos teutões?"984 Depois Hegel procurou superar o dilema chamando a Alemanha a reconhecer-se na modernidade e numa filosofia da história entendi­ da como história da progressiva realização da liberdade para todos, por isso num acontecimento histórico-mundial de emancipação, no qual confluíam tanto a he­ rança grega como a herança cristã (e, indiretamente, judaica) . Para Nietzsche, porém, a vitória do judaísmo e do cristianismo sobre o mundo antigo marca não só o início da catástrofe da revolta dos escravos e da massificação moderna, mas também o i1úcio da desnaturação tanto da Alemanha como da Europa.

9x4 Cf.

Losurdo, 1997 a, cap. 1, 3 .

16 Ü LONGO CICLO DA REVOLUÇÃO E A MALDIÇÃO DO NIILISMO 1 . Três ondas de "niilismo " longo ciclo da revolução é também o longo ciclo do niilismo. Se também

O desempenha um papel central no Nietzsche maduro, essa categoria apa­

rece relativamente tarde nos seus escritos, embora ele, de algum modo, se depare com ela bastante cedo. Ainda estudante universitário, ele lê, logo depois de sua publicação, o ensaio que Haym dedica a Schopenhauer, criticado dura­ mente pelo seu "niilismo" .985 Compreende-se o "mau humor" que o jovem leitor tira dele (B, 1, 2, p. 1 28), naquele momento seguidor fervoroso do filósofo venerado como antagonista do "otimismo". Uma ocasião nova, mais importan­ te, de encontro com a categoria em questão é a dura crítica infligida pela pri­ meira Inatual a Strauss, o qual, junto com o budismo e o cristianismo, denuncia também ele o "niilismo" inserido na celebração schopenhaueriana da no/untas e do Nirvana (supra, cap. 7 § I I ). Alguns anos mais tarde, Nietzsche lê O valor da vida de Dühring e o lê polemicamente também como polemicamente leu A velha e a nova fé . Resta o fato de que ele é obrigado a medir-se com um novo diagnóstico do niilismo. Se também, ao contrário de Strauss, não usa esse termo, Dühring todavia não se cansa de pôr em estado de imputação o cristia­ nismo pela sua ··fuga no além, ou seja, no nada". Sim, esta é a saída obrigatória de uma religião fundada na tese da "pecaminosidade e ruína radical do mun­ do". 986 É uma "doutrina inimiga da vida" que inclui "a autoflagelação e a automutilação, o extermínio dos impulsos naturais [ . . . ], a aniquilação do homem assim como foi criado pela natureza ( . . . ], a castração e a tortura da vida intei­ " ra . 987 Junto com o cristianismo, também o budismo pode ser incluído entre as "rei igiões [asiáticas] que castram a natureza" e que, em última análise, indicam como ideal o nada, ainda que o configurando sucessivamente de modo diferen­ te. Infelizmente, essa visão do mundo encontrou uma nova expressão em Schopenhauer, com a sua "metafisica inimiga da vida'', o seu "culto místico do 985 Haym, 1 903 a, p. 273. 986 Dühring, 1875, pp. 3 5 1 e 354. 987 Dühring, 1881 a, pp. 3-5.

nada'', a sua "adoração do nada adornada de enfeites metafisico-religiosos de pouco valor".988 É um "novo culto do nada" que continua a fazer prosélitos e vítimas, como demonstra o caso Wagner. 989 Enfim , em 1 0 de março de 1 8 8 1 , o amigo-discípulo Heinrich Kõselitz (rebatizado Peter Gast pelo Mestre) informa a Nietzsche que a sua virada iluminista é considerada por Edouard Schuré, um admirador alsaciano de Wagner, como expressão de "niilismo repugnante" (nihilisme ecoeuré), ou seja - como traduz o autor da carta - de "niilismo atormentador" (herzbrecherisch). Nietzsche responde com um jogo de palavras; gostaria de ouvir a música do amigo-discípulo a fim de conseguir a "cura", da qual sente a necessidade: "este 'niil ismo' de partir o coração (herzbrecherisch) penetrou meu coração (Herz) profundamente demais" (B, III, 1 , p . 68). Portanto, os primeiros encontros com a categoria e o diagnóstico do niilismo são colocados sob acusação ou pelo Mestre ou os Mestres dos anos juvenis ou pelo próprio Nietzsche. Trata-se, porém, de uma acusação que, conforme o caso, assume significados sensivelmente diferentes e até opostos . Se é por causa da negação da vontade de viver que Schopenhauer e Wagner são afeta­ dos de niilismo aos olhos dos iluministas Strauss e Dühring, é por causa de sua aproximação, alguns anos depois, ao i luminismo que Nietzsche, no círculo de Wagner, aparece nas garras do niilismo: perdidos os amores, os entusiasmos, as esperanças, as crenças que tinham promovido e acompanhado O nascimento da tragédia, "o nosso pobre amigo" - observa Cosima - se encontra numa "situação desconsolada". 990 No mesmo ano em que recebe a carta de Kõselitz, o atentado mortal contra Alexandre II de 2 8 de fevereiro de 1 8 8 1 chama a atenção de uma ampla opinião pública sobre o fenômeno ameaçador do niilismo na Rússia. No mo­ mento em que acontece, o debate sobre o niilismo se enlaça na Alemanha com o debate sobre o programa de reformas sociais promovido por Bismarck e sobre a legislação que continua a golpear os socialistas. Algumas semanas depois da morte do czar, intervindo no Reichstag, Bebei declara que podem caber às reformas, não certamente a violência da repressão, refrear "o socia­ lismo internacional e o niilismo internacional". 991 Quando, na segunda edição, analisa o fenômeno do "niilismo'', A gaia ciência faz referência a Petersburgo e ao movimento revolucionário russo (FW, 988 Dühring,

1 88 1 a, pp. 7 e 1 6. 188 l a, p. 1 8. 99° C. Wagner, 1 977, vol. II, p. 43 1 . 99 1 l n Fenske, 1 978, p. 283. 989 Dühring,

347). E, até o fim, Nietzsche não se cansará de denunciar a presença do niilismo nas diversas manifestações da revolução, cujos inícios, como sabemos, são identificados num passado sempre mais remoto. Contudo, nem por isso desa­ pareceram os significados que a categoria ou o diagnóstico do niilismo têm em Strauss e Dühring, ou no círculo de Wagner. A fim de esclarecer as razões desta polissemia, convém dar um passo a trás, interrogando-nos sobre a história da categoria de niilismo. Se prescindir­ mos das ocorrências que se referem mais propriamente à pré-história do termo ou dos termos em questão, vemos que "niilismo" e "niilista" surgem nas princi­ pais línguas europeias e irrompem no debate filosófico-político a partir do em­ bate ideológico que se desenvolve na onda das lutas para a derrubada do Anti­ go Regime. Durante a Revolução Francesa, uma nova inquietante figura, a do "nihiliste" ou do "rienniste", aparece nas páginas respectivamente de Louis­ Sébastien Mercier992 e Joseph de Maistre. Se este último denuncia o flagelo do "Riénisme", que investe com fúria contra tudo o que há de mais sagrado,993 Anacharsis Cloots, nobre emigrado de origem alemã e revolucionário entusias­ ta, celebra enquanto "niilista" (nihi/iste) "a República dos direitos do homem", que põe a nu a "nulidade dos cultos" e de "todos os rituais" que não são os da razão e do "livre gênero humano".994 Além do Reno, no país mais diretamente atacado pela Revolução Francesa, autores como Jacobi e Baader soam o alar­ me pelo perigo do "niilismo". A segunda etapa e o ulterior alargamento geográfico do debate sobre o niilismo coincidem com a nova onda de lutas que se abatem sobre o Antigo Regime. Na Itália, durante a revolução de 1 848, vemos em particular Gioberti e Rosmini rotular respectivamente o "nullismo" (ou o "nullismo assoluto"), ou seja, o "niilismo" de Hegel e da sua escola,995 enquanto na vertente oposta é Bertrando Spaventa que se empenha em rechaçar a acusação de "nullismo" dirigida ao seu Mestre. 996 Terá um eco em toda a Europa sobretudo a denúncia apocalíptica que Donoso Cortés desferra ao niilismo que, depois de ter produzi­ do as desordens e as devastações de 1 848, ameaça com o socialismo a ruína definitiva da civilização enquanto tal. Enfim, a terceira onda, que vê como protagonista a Rússia. Enquanto sempre mais se difundem as efervescências e as agitações que pouco depois 992 Venturi , 1 969-87, vol. IV,

l , p. 4 1 9; Volpi, 1 996, p. 23. l.

993 Ma istre, 1984, tomo 8, p. 3 16, nota

994 Cloots, 1 980, vol. III, pp. 7 13-4 e 7 17. 995 Gioberti, 1 938-1 942 a, p. 326; Gioberti, 1 938-1942 b, vol XVII, pp. 12-13 e 24 e vol. XVIII, p. 223; Rosmini, 1840-1 857 a, p. 13 9. 996 Spaventa 1 972 a, p. 6 1 6. .

,

levariam à abolição da servidão da gleba, vemos surgir não só das páginas de Turgueniev, mas também na realidade político-social concreta, um movimento decidido a conduzir a fundo a luta contra o czarismo e o Antigo Regime, um movimento rotulado como niilista pelos seus adversários, mas que, por sua vez, assume orgulhosamente essa conotação que quisera ser depreciativa. O movimento revolucionário na Rússia se une ao que se desenvolve na Europa ocidental em seguida à Comuna de Paris e à difusão do movimento socialista. O tema do niilismo se toma central na filosofia (Nietzsche), na litera­ tura (Turgueniev e Dostoievski), até no campo político. Ao conclamar à luta sem quartel contra os niilistas, "assassinos nos pensamentos se não nos fatos", Bismarck aponta o dedo na direção da Rússia, mas volta o olhar também para a Alemanha, onde igualmente se percebem ou se poderiam perceber os efeitos ruinosos da Üb erbildung, de um intelectualismo desenraizado e desenraizador, de uma cultura capaz apenas de estimular "inveja e ódio para com tudo o que é superior e feliz".997 Enquanto se manifesta com particular vivacidade principalmente nos países acometidos pela agitação revolucionária, o debate sobre o niilismo toca de leve a Inglaterra, onde, aliás, parece que ocorre apenas no âmbito acadêmico.9')8 A terceira onda é a decisiva também pelo fato de que ela está bem longe de ter refluído. Nos nossos dias, o balanço histórico do século XX, da era con­ temporânea, até da modernidade enquanto tal tende a se apresentar como o balanço do flagelo do niilismo e das suas origens mais ou menos remotas . Vol­ tando atrás nessa busca, descobre-se que já o pensamento teológico e filosófi­ co medieval debate temas que apresentam uma semelhança ou uma assonância com a problemática hodierna. Dado que Deus é o criador da totalidade do criado a partir do nada, a gente se interroga se esta totalidade está destinada a voltar ao nada com um ato divino de annihilatio que constitui o pendant e a conclusão do ato de creatio. Aparece até a acusação de nihi/ianismus, dirigida àqueles que são suspeitos de reduzir a "nada" a verdade-chave da teologia e, portanto, de tornarem-se responsáveis por uma horrível annihi/atio do edificio da cristandade no seu conjunto.999 Com a ligação entre as categorias de tudo e nada que ela revela, essa pré­ história nos fornece uma chave importante para enfrentar uma questão prelimi­ nar e decisiva: por que a acusação de "niilismo" irrompe prepotentemente no debate político, além de no teológico, durante a Revolução Francesa? s. d., vol. III, p. 50. 1 982, p. 3 1 . 999 Riedel, 1978, pp. 375-6.

997 Bismarck,

998 Goudsblom,

2. "Revolução total " e niilismo (político, "metafisico " e ''poético ") Há um primeiro traço que distingue nitidamente esta revolução das prece­ dentes que, embora bastante diferentes entre si, têm em comum o fato de se apresentarem com uma plataforma ideológica mais ou menos rica de referên­ cias à religião. Isto vale, obviamente, para a Reforma protestante e a revolução antifeudal de Müntzer, para- a revolução puritana na Inglaterra, mas também para a Glorfous Revolution (que no seu Bill of Rights agradece a "Deus Onipotente" por ter querido "libertar este reino do papismo e do poder arbitrá­ rio") e para a própria revolução das colônias inglesas na América que, ao pro­ clamar a independência, apelam para a lei "divina", além de "natural", e para a vontade do "Criador". A Revolução Francesa se apresenta, ao contrário, com uma plataforma leiga; no seu desdobramento se choca com a igreja e vê o surgimento até de correntes ateias, as quais, por outro lado, desempenham um papel significativo já no âmbito do iluminismo, isto é, do movimento que prepa­ rou ideologicamente a ruptura de 1 789. Com o radicalismo religioso se entrelaça o político, e então se compreen­ de bem porque a Revolução Francesa é rotulada como "revolução total" por Burke e por Gentz.1000 Sieyes se associa particularmente a tal condenação. Ele acusa os jacobinos de querer edificar não mais uma "ré-publique", mas uma "ré-totale". 100 1 Um movimento político que nega em bloco, na sua totali­ dade, o ordenamento social e o patrimônio ideal e moral da humanidade só pode ser o nada. De algum modo já surgiu a categoria de niilismo, embora não o termo literal, como resulta da formulação ulterior do tema de acusação feita à Revolução Francesa, a qual, segundo Gentz, "abandona totalmente (ganzlich) o terreno dos direitos determinados e declara que tudo é lícito" (aliesfor erlaubt erkart) .100:!. E assim, aos protagonistas e ideólogos da "revolução total" é atri­ buída uma atitude que é a mesma dos niilistas heróis negativos de Dostoievski, para os quais .. se Deus não existe, tudo é permitido". Também das páginas dos grandes escritores russos do século 1 9 surge com clareza a ligação entre par conceituai tudo/nada e recurso à categoria de niilismo. Bazarov, o protagonista de Pais e filhos, define assim a essência do niilismo do qual quer ser seguidor: "Nós negamos [ . . . ] tudo". 1 003 Dostoievski,

Burke, 1 826, vol. VII, p. 9; Gentz, 1 836- 1 838, vol. II, p. 43. Bastid, 1 939, pp. 17-8. 1002 Gentz, 1 800, pp. 1 16. 1 003 Turgenev, 1988, p. 49. 1000

1001

por sua vez, acusa os "demônios" niilistas pelo fato de "derrubarem tudo", de visar à "destruição universal". 1 004 É interessante ver como a categoria de niilismo abre seu caminho lenta­ mente e com dificuldade. Tendo vivido na Berlim devastada pela revolução de 1 848, Donoso Cortés conhece a contraposição cara ao último Schelling entre fi losofia positiva e filosofia negativa. Em novembro desse mesmo ano, o autor espanhol escreve: A demagogia é uma negação absoluta, a negação do governo no campo político, a negação da família no campo doméstico, a negação da proprieda­ de no campo econômico, a negação de Deus no campo religioso, a negação do bem no campo moral. A demagogia não é um mal, é o mal por excelência, não é um erro, é o erro absoluto, não é um crime qualquer, é o crime na sua acepção mais terrível e mais ampla. 1005

O nada que constitui a essência daquele fenômeno pouco mais tarde defi­ nido por Donoso como "niilismo" é o resultado da "negación absoluta" pró­ pria da revolução total, essa "catástrofe [ . . . ] universal". 1 006 A mesma dialética conceituai se manifesta, já na Alemanha do final do século 1 8, com referência desta vez mais ao debate filosófico ou filosófico-religioso do que ao debate político estrito. Em 1 796, um critico de Kant e do idealismo transcendental, Jenisch, afirma que a tese da "irrealidade total (gãnzlich), absoluta do conheci­ mento humano em relação às coisas em si" produz inevitavelmente "o mais mani­ festo ateísmo e niilismo".1001 Embora por um caminho diferente, Jacobi chega à mesma conclusão: sobretudo em Fichte, o idealismo transcendental conduz com inaudita "força devastadora" ao "niilismo" .10Cl! Esta é a saída fatal de uma filosofia que anula o em-si, o mundo na sua totalidade e que, além da "mera subjetividade", deixa subsistir só o nada dos "fantasmas lógicos". 1 009 Traçando as coordenadas da situação, em 1 828 o alemão Krug distingue os "niilistas sociais ou políticos e religiosos" dos "niilistas filosóficos ou metafísicos". Os primeiros (tendo-se presente o estreito laço entre dimensão teológica e dimensão política do embate que ocorre nesses anos) são "muito mais numerosos" do que os segundos1º1º e constituem um movimento político 1004 Dostoievski, 1953, vol. II, pp. 234, 292 e 76. 1005 Donoso Cortés, 1 946 a, p. 1 84.

1006 Donoso Cortés, 1 946 b, p. 1 92 .

1007 In Põggeler, 1974, pp. 336-7.

1008 Jacobi, 1 980, p. 1 9. 1009 Jacobi, 1 980, p. 1 08. 1010 ln Volpi, 1996, p. 23.

que é debatido nos jornais, nos cafés, nas reuniões de partido, nas praças; os segundos são filósofos que se movem no âmbito puramente acadêmico. A distinção aqui formulada tem a sua plausibilidade. Vejamos o primeiro significado da categoria em questão. "Riénisme" é sinônimo de "déisme" aos olhos de Maistre, o qual faz remontar a Bossuet a prevenção contra essa saída final e inevitável do protestantismo. Em termos análogos, ainda que com maior cautela, se exprime Baader, -segundo o qual é preciso distinguir exatamente entre dois filões provenientes do protestantismo: o pietista e místico é tratado com cuidado, ao passo que é preciso combater decididamente o filão que de­ sembocou num "milismo destrutivo, científico". 1º1 1 Fica claro o nexo entre ne­ gação religiosa e negação política: mãe da revolução, a Reforma é também mãe (ou avó) do niilismo, no qual deságua a revolução. Esse é o niilismo "social ou político e religioso" do qual Krug fala. Todavia, a fronteira entre os dois niilismos se revela tênue. O niilista "filo­ sófico ou metafisico" é entretanto menos inócuo do que pode parecer à primei­ ra vista. O próprio Deus entra no âmbito do em-si removido para uma distância intangível e nesse sentido reduzido a nada pelo idealismo de Kant e de Fichte. Sobretudo, haverá uma relação entre os dois niilismos, o nascido na França da luta contra o Antigo Regime e aquele inserido no sistema dos dois pensadores alemães? Dá que pensar o fato de que, antes ainda de 1 789, é o próprio autor da Crítica da razão pura que define como uma "revolução copernicana" a sua virada transcendental . Mais tarde, Fichte vê na própria filosofia, condena­ da enquanto idealista e niilista por Jacobi, a expressão teórica da revolução em curso na França. Se esta destrói as "cadeias externas", liquidando um sistema político-social consagrado por séculos de história, a doutrina fichteana da ciên­ cia não pretende ser menos radical: propõe-se a libertar o sujeito "dos vínculos das coisas em si, das influências externas", rompendo com "todos os precon­ ceitos" . 101 :-: Mas é exatamente nessa negação total que reside o niilismo censu­ rado à Revolução Francesa por seus críticos. Por isso tendem a unificar niilistas ""metafís icos" e niilistas político-religiosos todos. Se os primeiros elaboram um estranho e inaudito sistema filosófico que faz desaparecer ou põe em dúvida tudo o que há de mais sagrado, os segundos travam uma batalha explícita e frontal contra o sistema vigente de Estado e igreja. A estes dois tipos de "niilista" é preciso acrescentar os "niilistas poéticos" dos quais Jean Paul fala. Também nesse caso, o que define o niilismo é o "egotismo", a dissolução, melhor, o aniquilamento da objetividade e da totalida1º11

Baader, 1 963; p. 74.

1012 Fichte, 1967, vol.

1, p. 449.

de do real, aniquilamento do qual, desta vez, o protagonista não é o político ou o filósofo, mas o poeta. Ou do qual pode ser protagonista, segundo Friedrich Schlegel, o autor de uma tirada espirituosa1013 que, com sua atitude corrosiva parece surpreender e rachar a objetividade do real e dos valores .

3. As posiçl5es possíveis em relação ao niilismo Diante do fenômeno do "niilismo" são possíveis três ou quatro atitudes diferentes . O niilismo pode ser denunciado no adversário, o qual, por sua vez, pode rejeitar a acusação e até devolvê-la. Tomando a defesa do seu Mestre, Rosenkranz observa que só "em algumas correntes o ideal ismo se torna niilismo"; 101 4 ao contrário, deveria se falar de niilismo a propósito de um duro crítico de Hegel como é Stirner. 101 5 Em última análise, esta é a atitude do próprio Hegel, o qual parece querer rejeitar antecipadamente as acusações que mais tarde lhe serão dirigidas. Jacobi exprime todo o seu horror pelo "niilismo" que acredita ler no idealismo de Fichte, 1016 mas não percebe que está afetado pela mesma ..metafisica da subjetividade" que censura no autor por ele critica­ do.1017 Jacobi e os românticos desenvolvem uma dissolução narcisista no sujei­ to de toda objetividade, inclusive a objetividade ética, "a ética e a lei". 1018 Para Hegel, são os seus adversários que exprimem um "ateísmo do mundo ético" 1019 e, portanto, assumem uma atitude niilista ou tendencialmente niilista. Nesse mesmo sentido, Bertrando Spaventa acusa de "ateísmo político" os críticos do hegelianismo.1020 Por outro lado, começa a surgir em Hegel uma acepção positiva de "niilismo". Contrariamente ao que censura em Jacobi, um sistema como o fichteano, que define o eu a partir da sua contraposição ao não-eu, não é capaz de abstrair realmente do não-eu e pensar o "nada absoluto", não é capaz de cumprir com a "a tarefa do niilismo", com a tarefa filosófica do "pensar puro".1021 1 º1 3 ln Volpi, 1996, pp. 15-6. 1 0 1 4 Rosenkranz, 1862, vol. 1, p. 133. 1 0 1 5 Rosenkranz, 1 854, p. 133 1º 16 Hegel, 1969-79, vol. II, p. 4 10. 1 01 1 Hegel, 1 969-79, vol. p. 430. 1 0 1 8 Hegel, 1 969-79, vol. II, p. 3 84. 1 0 1 9 Hegel, 1969-79, vol. VII, p. 16. 1 020 Spavcnta, 1 972 b, p. 785. 1 02 1 Hegel, 1 969-79, vol. II, p. 4 10.

Bem mais nítida é em Herzen a distinção entre acepção positiva e acepção negativa. O revolucionário russo saúda calorosamente o niilismo como sinôni­ mo de racional ismo crítico ousado e de compromisso pela transformação do mundo sem deixar-se intimidar pela autoridade constituída. O racionalismo li­ vre aqui celebrado parece ser o herdeiro do "pensar puro" tão ao gosto de Hegel, da capacidade de abstrair do objeto que agora é sobretudo a objetivida­ de pol ítico-social existente. Ma�se com niilismo se entende o estéril ascetismo, o desespero que desemboca na inação, então as coisas mudam de modo radi­ cal . Em Turgenev, o personagem do seu romance diz que "antes havia os hegelianos, agora há os niilistas"; Herzen, admirador de Hegel, retruca voltan­ do a acusação contra o autor de Pais e filhos e contra o filósofo particular­ mente caro a ele, Schopenhauer. 1º22 Na teorização de um niilismo em sentido positivo já está implícita a ten­ dência para a qual o acusado de niilismo pode assumir e tomar própria, com um gesto de desafio, a caracterização originalmente ultrajosa. É o caso já do prota­ gonista do romance de Turgueniev, o qual com orgulho declara: "um niilista é um homem que não se inclina diante de nenhuma autoridade, que não aceita nenhum princípio às cegas, seja qual for o respeito que o circunda". 1º23 Desse modo acabam comportando-se o movimento niilista propriamente dito e alguns expoentes importantes do movimento revolucionário enquanto tal (Bakunin). Em certo sentido, a categoria de niilista tem uma história semelhante à dos Gueux, também um termo que era originalmente depreciativo e que se trans­ formou numa bandeira de luta dos revoltosos holandeses contra Filipe II. Fica, finalmente, por examinar uma terceira atitude possível, que pode ser ilustrada a partir da vida de Heinrich von Kleist. Embora ele não recorra ao termo em questão, descreve eficazmente a influência niilista que sobre ele exerce a tese kantiana e crítica da inatingi.bi.lidade da coisa em si por parte do sujeito, o qual é obrigado a ficar só consigo mesmo. Toma-se torturante "o pensamento que nesta terra não sabemos nada, absolutamente nada da verdade". A disso­ lução da objetividade na sua totalidade desemboca no domínio do nada. Junto com a objetividade sofrem um terrível "abalo" o "sacrário da alma" e o senti.do da vida: "a minha única e mais alta finalidade desabou, não tenho mais nenhu­ ma [ . . . ]. Busco uma nova meta para a qual minha mente possa tender de novo alegre e ocupada. Mas não a encontro". O resultado de tal estado de espírito é a "angústia", a .. náusea": ·'Não posso dar um passo sem me perguntar: para onde quero ir?" A perda de sentido é radical : 1 022

iov

Walicki, 1 996, p. LII-LIII; Turgenev, 1 988, p� 22. Turgenev, 1 988, p. 2 1 .

Desde que me surgiu esta convicção de que aqui embaixo não é possível encontrar verdade alguma, nunca mais peguei em livro. Circulei indolente pelo meu quarto, sentei-me diante da janela, saí ao ar livre, enquanto uma íntima inquietação me impelia para os pequenos e grandes cafés, frequentei teatros e concertos para distrair-me, cometi, para aturdir-me, até uma besteira [... ]. Certa manhã quis obrigar-me a trabalhar, mas um desgosto interior venceu a minha vontade. Senti um indizível desejo de chorar. 1 º24 Uma visão do mundo que elimina a coisa em si (e a verdade e os valores no seu sentido mais profundo) faz desaparecer a "meta'', a "resposta ao porquê" e, portanto, desemboca no niilismo assim como é definido por Nietzsche (XII, 350). Em conclusão, a falta da objetividade (natural, axiológica ou político-social) pode ser denunciada nos próprios adversários, pode ser orgulhosamente afirmada em sinal de desafio e orgulhosamente vivida como expressão de liberdade, pode ser constatada e dolorosamente vivenciada na própria pele. Temos, assim, três figu­ ras: o antagonista do niilismo, o rebelde niilista, a vítima do niilismo.

4. A rebeldia niilista como critica e como metacritica Na realidade, a segunda figura abrange duas profundamente diferentes . Para compreender esse ponto, convém ter presente a polêmica que Stimer le­ vanta contra os protagonistas da Revolução Francesa e seus admiradores e imi­ tadores nos anos que antecedem a 1 848. Não obstante as transfonnações das quais são ou gostariam de ser protagonistas, eles continuam a colocar-se no âm­ bito de uma tradição de "carolice padresca" (Pfaffentum), de adesão aos ideais e "interesses sagrados"; 1025 animados como estão pela fé de poderem realizar "um belíssimo paraíso da liberdade", revelam que se movem "em campo religi­ oso, na região do sagrado", limitam-se a "proclamar uma nova religião".1026 É o ponto de vista também de Ruge que, no curso da sua polêmica contra o socialis­ mo, contrapõe Stimer a Feuerbach, pois Stimer tem o mérito de ter liquidado a "teologia do humanismo, o qual tem os seus monges, os seus padres, os seus fanáticos, os seus Robespierre, como os tinha a velha religião da ascese". 1027 O "humanismo" de Feuerbach é a crítica destruidora e, nesse sentido, niilista, da 1 0 24

ln Losurdo, 1 997 a, cap. X, 4.

1 025 Stimer, 1981, p. 83 (= Stimer, 1 979, p. 85); cf. Marx-Engels, 1955, vol. III, pp. 1 6 1 -2. 1 026 Stirner, 1 98 1 , pp. 206-7, 268 e 175 ( Stirner, 1979, pp. 1 98-9, 254 e 1 69). 1 02 7 Ruge, 1886, vol. 1, p. 389 (carta a Karl Nauwerck de 2 1 dezembro de 1 844). =

"velha religião da ascese" e da transcendência, mas agora esse mesmo humanismo, rotulado como nova e não menos perigosa "teologia", é submetido, por sua vez, a uma metacritica, comprometida em assumir uma posição de liquidação total e niilista mais da nova fé do que da velha teologia. Um contracanto escarnecedor faz eco ao entusiasmo revolucionário. À desmistificação é contraposta uma metadesmistificação; à critica, uma metacritica que se empenha em sublinhar.tudo o que há de religioso na atitude dos revoluci­ onários. Estes, para poder subverter uma ordem social vivida e sofrida como injusta e intolerável, por um lado são obrigados a dessacralizar a ideologia que legitima as relações político-sociais existentes, por outro lado não podem não fazer apelo à indignação moral, ao entusiasmo pela nova sociedade a construir, ao compromisso e à solidariedade na luta, ao espírito de sacrificio, a uma série de valores que se tomam o alvo da metacritica niilista. Compreende-se então a ironia de Sade (Français, encare un effort . . . ) diante dos seus concidadãos empenhados numa tarefa dificil e cansativa, a tarefa não só de edificar novas instituições, mas também de afirmar novos valores. Mais atrevido do que todos, o aristocrata cético e rebelde, propenso a cavar um abismo intransponível entre ele e os plebeus (que são assimilados, pela "baixeza" da sua origem a "animais", ou seja, a "seres fracos e acorrentados, unicamente destinados aos nossos praze­ res"), só pode desprezar "essa espécie de fraternidade santificada pela religião [ . . . ] e que só pode ter sido imaginada pelo fraco". 1028 Ao observador pouco atento, dessacralização crítica e dessacralização metacrítica aparecem como atitudes idênticas ou contíguas. Aos olhos de Rosenkranz, Proudhon e Stimer são duas expressões de "radicalismo soci­ al". 1 029 Na realidade, as coisas são bem diferentes. Ao revolucionário francês, que denuncia como um "furto" a propriedade burguesa da época, o teórico e cantor do "único" faz notar que a sua indignação moral pressupõe a "perspec­ tiva carola" segundo a qual o furto é "um delito ou, pelo menos, uma falha". 1 030 Agora a crítica se empenha em dissolver também, ou em primeiro lugar, os valores com fundamento em tal perspectiva, e é sobretudo em polêmica com eles que Stimer encerra o seu livro com um gesto de orgulho e desafio: "Funda­ mentei a minha causa no nada". A negação foi depois radicalizada, mas, duran­ te tal processo de radicalização, ela acabou tomando a forma de uma negação da negação do sistema existente. Contestando de modo radical institutos jurídi­ cos milenares e as ideias que lhe foram consagradas, Proudhon proclama que a 1º28 Sade, 1 998, pp. 8 e 1 1 . 1029 Rosenkranz, 1854, p. 1 32.

1030 Stimer, 1 98 1 , p. 84 (= Stimer, 1 979, p. 86).

propriedade é um furto: aparece assim niilista aos olhos da ideologia dominante.

A propriedade é um furto, e então? - responde Stirner. À seriedade apaixonada

do rebelde revolucionário corresponde a calma zombeteira do metacrítico, que procede assim a uma negação radical, niilista, sim, das ideias dominantes, mas também e sobretudo da ideologia revolucionária. Esta última não pode renunci­ ar à arma da indignação moral, e ela se encontra agora no dever de enfrentar não mais a defesa carola da ordem constituída, mas a arma da ironia desencan­ tada. Nesse sentido, Friedrich Schlegel tem razão ao ver o niilismo implícito já na ironia, no dito espirituoso. Compreende-se o embaraço dos revolucionários diante de tais atitudes. A distinção que Herzen sente a necess idade de fazer entre niilismo em sentido positivo e niilismo em sentido negativo corresponde, em última análise, à distin­ ção entre dessacralização crítica, que desemboca no compromisso pela cons­ trução de uma nova sociedade e dessacralização metacrítica, cujo alvo princi­ pal é exatamente esse compromisso. Movendo-se no terreno da reconstrução histórica, Marx não tem dificuldade em ridicularizar a leitura da Revolução Francesa e do movimento socialista como vicissitude fundamentalmente religi­ osa: quem vê nessas lutas uma simples história da "santidade" é um autor (Stimer) ao qual "permaneceu santo, isto é, estranho" o seu "fundamento ma­ terial". Por outro lado, colocar na mesma categoria de "carolice padresca" Inocêncio I I I e Robespierre, Gregório VI I e Sain-Just, significa mergulhar a análise histórica concreta numa noite em que todas os gatos são pardos. 1031 Mas fica sem resposta o problema do fundamento dos valores aos quais os revolucionários se referem. Dessa dificuldade se dá conta o jovem Marx, que vimos distingui r dois tipos contrapostos de crítica da ideologia e indicar Gustav Hugo como modelo do segundo tipo (aquele que destroi as flores ilusórias da ideologia a fim de eternizar e consolidar as correntes reais da opressão) . Este, desmistificando a imagem tranquilizante e harmônica da sociedade capitalista, sublinha como a condição do pobre (e do operário moderno) é ainda pior que a do servo da gleba e do escravo, mas procede de modo tão desconsagrador com respeito às ideias dominantes, não mais para pôr em discussão a condição operária do tempo (a "escravidão assalariada" aos olhos de Marx), mas para legitimar a própria es­ cravidão p ropriamente dita. O que justifica nesse caso as correntes não é uma atitude fideísta em relação à ideologia e às relações sociais existentes, mas um "método" igualmente "sem respeito" (rücksichtslos) do que é caro aos revolu­ cionários . No entanto, essa falta de escrúpulos considera nas "flores" ou valoioJi

Marx-Engels, 1955, vol. III, p. 307.

res vigentes não tanto o momento de transfiguração e legitimação das corren­ tes existentes como o elemento, ainda que i lusório e mistificador, de transcendência que nele está contido; junto com as "falsas flores" do Antigo Regime, essa crítica à ideologia ataca também, e em primeiro lugar, os valores que deveriam ou poderiam presidir à destruição das suas correntes e à edificação de uma nova sociedade. O resultado é claro: "a dúvida filosófica do século XVIII contra a razão do existente" aparece "como dúvida filosófica contra a existência da razão"; agora a crítica "não vê mais nada de racional no positivo, mas apenas para ser autorizada a não ver mais nada de positivo no racional". Comportando-se como "cético completo'', ainda mais coerente que ··outros iluministas", 1º32 Hugo chega a uma justificação da escravidão tan­ to mais dificilmente atacável quanto mais ''imparcial". A conservação político­ social é agora o resultado não de uma atitude de fechamento em relação à crítica, mas do recurso à metacrítica. A preocupação já vista no escrito juvenil continua a agir na evolução pos­ terior de Marx. É por isso que ele rotula como "cinismo de cretino" os tons zombeteiros e desconsagradores aos quais Proudhon recorre com relação às aspirações nacionais dos povos polonês e húngaro, 1033 também nesse caso a imparcial idade se torna funcional para a legitimação das correntes, das cadeias impostas pelo império czarista às nações oprimidas . A distinção dos dois tipos contrapostos de crítica da ideologia emerge também na tradição de pensamento que parte de Marx ou, de qualquer forma, dele deduz motivos de inspiração. Gramsci sublinha que, em relação aos ideais surgidos da Revolução Francesa, é possível assumir duas atitudes críticas in­ conciliáveis entre si: de um lado há "um sarcasmo apaixonantemente 'positivo ', criador, progressivo'', que desses ideais põem em discussão apenas a "forma imediata, ligada a um determinado mundo 'morredouro"'; do outro lado há "um sarcasmo de "direita' , que é raramente apaixonado, mas é sempre 'negativo ', cético e destrutivo não só da forma contingente, mas também do conteúdo humano daqueles sentimentos e crenças".1034 Significativa é também a inter­ venção de Trotski que, em referência exatamente a Nietzsche, analisa a dialética pela qual a crítica à ideologia e a carga desconsagradora desembocam num ··franco cinismo" (cf. infra, cap . 24, § 2). A posição de Horkheimer e de Adorno não é diferente. Na Dialektik der A1�fklarung, que é a dialética do iluminismo, mas também a dialética da crítica 1º3 2 Marx-Engels, 1 955, vol. 1, pp. 79-80. 1033 Marx-Engels, 1955, vol. XVI, p. 3 1 . 1 º34 Gra nlSci 1975, p. 2300. ,

da ideologia, do processo de desilusão e desencantamento do mundo moderno, está contida sim um grande impulso para a liberdade, mas também "o germe daquela regressão que hoje se verifica por toda parte". Seguidor distante da escola histórica do direito contra a qual Marx se ergue, também o nazismo não hesita em assumir tons "iluministas", denunciando como preconceito ou mistifi­ cação qualquer valor universal e submetendo à crítica da ideologia não só o cristianismo, mas também.aquelas que são consideradas as suas versões secu­ larizadas, ou seja, o liberalismo, a democracia e o socialismo. 1 035 "Iluminismo" que consagra as algemas, "cinismo de cretino'', "franco ci­ nismo'', "sarcasmo cético e destrutivo" são as diversas representações da re­ beldia niilista em sentido metacrítico, do qual o marxismo é obrigado a tomar distância, mas talvez sem nunca confrontar-se realmente com ele. Aquele hós­ pede inquietante que para Nietzsche é o niilismo se apresenta no âmbito do movimento revolucionário e da tradição marxista sob a roupagem do iluminista desencantado que, com o seu sarcasmo "cínico", ou seja, "cético e destrutivo", zomba de todo projeto de transformação da sociedade e do estilhaçamento das correntes existentes.

5. Incômodo, fascínio e maldição do niilismo em Nietzsche A absoluta singularidade de Nietzsche reside em primeiro lugar na pre­ sença simultânea nele de todas as diferentes, possíveis atitudes em relação ao niilismo anteriormente citadas. Mais ainda que um hóspede inquietante, ele é o "mais inquietante (unheimlichste) de todos os hóspedes" (XII, 1 25). Quais são os pressupostos , no plano histórico e sociológico, de sua irrupção? "O início do niilismo é a separação, o rompimento com o solo; começa com o despatriamento (unheimisch), termina de modo inquietante" (unheimisch) (XII, 1 44). O tor­ nar-se transitório das fronteiras entre os Estados e entre as culturas marca o início de um processo de crise e de dissolução. Então começa a surgir no hori­ zonte um europeu "excessivamente curioso, múltiplo, amolecido, um caos cosmopolítico de afetos e de culturas" (XIII, 1 7) . Ele parece mover-se, despatriado e perdido, numa espécie de supermercado mundial das culturas, das ideias, das fés ; na realidade, não vive mais nenhum valor, mas só a falta de valor e de sentido. No seu "amolecimento", procede à "degustação cosmopoli­ ta" de tudo e do contrário de tudo; o "historicismo" e o querer "tout comprendre" (XII, 4 1 O) por ele ostentados servem apenas para camuflar o vazio interior e a 1035 Losurdo, 1 9 9 1 , cap. VII, 3.

distância interior de qualquer valor. Ao desaparecimento da objet ividade ontológica, denunciada por Kleist (do qual Nietzsche é leitor atento), se acres­ centa agora a dissipação da objetividade sociológica dos valores, os quais ficam mais do que nunca suspensos no nada. Chegamos assim a nos encontrar "no horizonte do infinito": desaparece­ ram os valores consagrados, as certezas, os pontos de referência. É uma situ­ ação nova, inédita, que pode tQmar-se terrivelmente inquietante: "não há nada mais amedrontador do que o infinito" (FW, 1 24) . Sim, "desde Copérnico, o homem gira do centro para o x" (XII, 1 27). A perda do centro se agrava depois, após a morte de Deus. O "louco", que ousou matá-lo, descreve assim as consequências do seu gesto: O que fizemos nós para libertar esta terra da cadeia do seu sol? Para onde se move agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Nossa condição não é cairmos continuamente? Para trás, para o lado, para frente, em todas as direções? Existe ainda um em cima e um embaixo? Não vagamos como que através de um infinito nada? (FW, 125).

Porém, os golpes desferidos pela maré niilista às certezas consagradas por uma tradição milenar são outros tantos golpes de terríveis coações. O sen­ timento de desconforto e até de angústia começa a entrelaçar-se com uma experiência bastante fascinante: "Deixamos a terra e embarcamos no navio! Cortamos as pontes atrás de nós - e não é tudo: cortamos a terra atrás de nós". À frente se abre um espaço inquietante de nova e imensa l iberdade. Seria inútil e vão querer voltar atrás : "Ai de ti se a saudade da terra te colhe, como se lá houvesse mais liberdade - e não existe mais 'terra' nenhuma! " (FW, 1 24) . É só agora, depois da perda dó centro e da morte de Deus, que pode realmente surgir o indivíduo: Durante o mais longo período da humanidade, não havia nada mais assusta­ dor do que sentir-se indivíduo. Estar sozinho e ter uma sensibilidade indivi­ dual, não obedecer nem mandar, ter significado como indivíduo - isto não era então um prazer, mas um castigo: "ser indivíduo" constituía uma conde­ nação (FW, 1 1 7).

A vítima do niilismo cede progressivamente o lugar ao rebelde niilista. Se a terceira Inatual dedica páginas comoventes a Kleist, a vítima do niilismo que não consegue suportar as consequências da desorientação provocada pela re­ volução copemicana kantiana, A gaia ciência faz prosseguir assim o louco que ousou matar Deus: "Nunca houve ação maior; todos os que vierem depois de nós pertencerão, em virtude desta ação, a uma história mais alta do que todas

as histórias que existiram até hoje" (FW, 1 25). Quem fala desse modo é o rebelde nii lista, que desmascara e acusa todos os valores vigentes e celebra com acentos de suave sedução a libertação da terrível camada de chumbo que, a partir da pregação evangélica, pesa sobre o Ocidente. Por dois milênios, a alegria de viver deste esteve como que turvada e envenenada. Na consciência moral e no próprio imperativo categórico kantiano continua a exprimir-se um terrível legado de furor teoJógico e de ·'crueldade" que submete à impiedosa dissecação a interioridade do sujeito, atormentando-o com a condenação da carne e a aflição do remorso e da autoflagelação. Por outro lado, o sentido do pecado vai junto com o instinto gregário que impede o desenvolvimento de individualidades verdadeiramente autônomas e completas. Contra tudo isso, Nietzsche celebra "o paganismo goethiano vivido com consciência tranquila" (FW, 357) e o celebra rompendo de modo radical com a "Alemanha das velhas tias solteironas, azeda de hipocrisia moral" {WA, 3). Na reabilitação da carne até aqui vista, não surgem grandes diferenças em relação à tradição de pensamento que leva da esquerda hegeliana a Marx. No entanto, à negação dos valores transmitidos se entrelaça agora a metacrítica da negação revolucionária. Melhor, é exatamente esta que se toma o alvo pri­ vilegiado da dessacralização. Já conhecemos a polêmica contra as "alucina­ ções conceituais" que pretendem pôr em discussão a escravidão sobre a qual inevitavelmente repousa a civilização; portanto, junto com tais palavras de or­ dem, é de per si sem sentido a reivindicação da "abolição da escravatura" (MA, 45 7). Como a figura do rebelde niilista em sentido crítico corresponde à do ··1ivre pensador", assim a figura do rebelde niilista em sentido metacrítico corresponde à do "espírito livre": este último, não obstante as semelhanças superficiais, identifica o seu principal antagonista exatamente no "livre pensa­ dor" (cf. supra, cap. 1 4, § 7). Se Sade é o contracanto com respeito à Revolu­ ção Francesa e Stimer com respeito ao Vormarz, Nietzsche é o contracanto com respeito ao incessante ciclo revolucionário francês e ao movimento socia­ lista: o .. niilismo à moda de Petersburgo", que desafia corajosamente o regime czarista, é na realidade um "crer de não crer levado até o martírio"; é a mani­ festação da .. necessidade de fé" de novos "crentes" (FW, 347). A vítima do niilismo transfom1ou-se agora num rebelde que, com a sua radicalidade, leva a cabo a rebelião niilista na sua dupla configuração crítica e metacrítica. Ele debate de modo explícito e orgulhoso o seu "niilismo extremo" (extremst). Certamente, não há uma objetividade ontológica que garante os valores; todavia, o desaparecimento da objetividade não é absolutamente o de­ saparecimento dos valores. Trata-se, ao contrário, de fazer uma espécie de revolução copemicana a nível axiológico: é o indivíduo bem sucedido que "põe

o valor nas coisas". A esse ""valor" não corresponde qualquer realidade, nenhu­ ma coisa ou valor em si; é "só um sintoma de força da parte do impositor do valor" ( Werth-Ansetzer) (XII, 35 1 -2), o qual deste modo pode afirmar a sua potência e vontade de potência. Vemos assim em ação um "niilismo ativo", que é "um sinal de força", da "potência aumentada do espírito". O indivíduo bem sucedido toma consciência do desaparecimento do sentido e do valor dos "fins até agora admitidos" (XII, 3..5 0) não mais para abandonar-se ao desânimo, mas para afirmar confiantemente os valores que coloca e que sabe que é o único que pode colocar: "nesta medida o niilismo, como negação de um mundo verdadeiro, de um Ser, poderia ser um pensamento divino" (XII, 354). O ulterior fascínio (e ambiguidade) de Nietzsche reside no fato de que nele rebelião crítica e rebelião metacrítica estão estreitamente interligadas. Quem li­ quida o cristianismo é, ou o rebelde crítico, que reivindica a emancipação da carne, ou o rebelde metacrítico, que dessacraliza impiedosamente todos os moti­ vos que esta religião fundada na crença da igualdade das almas pode ter histori­ camente fornecido aos movimentos servis e plebeus de revolta. Tanto mais indissolúvel resulta o entrelaçamento pelo fato de que, no âmbito da tradição infausta imposta a partir de dois milênios, são colocados os valores do mesmo movimento revolucionário, apesar da atitude de negação e de desafio assumida por ele. Agora, os temas já vistos em Stimer conhecem uma sistematização e radicalização coerente, pois Stimer, sob a categoria de "carolice padresca" subsume cristianismo e revolução, ambos caracterizados não só pelo espírito de sacrifício e de renúncia, mas também pela abdicação da autonomia individual e, portanto, ambos são capítulos de uma única história religiosa e política infausta. Além da sistematização e da radicalização de temas preexistentes, surge um tema novo. Não só o movimento revolucionário se move no sulco da "caro­ lice padresca", mas uma e outra encarnam valores que não são simplesmente nulos; são antes o nada que esvazia o tudo, que engole e anula o sentido da terra e da vida. Bem considerado, os diversos capítulos dessa infausta história político-religiosa são igualmente capítulos de história do niilismo. Tanto na tradi­ ção judeu-cristã como no movimento revolucionário age uma concepção do tempo que, desvalorizando o presente e o mundano como insuportável vale de lágrimas, asp ira a um totalmente outro futuro, que na realidade é sinônimo de nada. Expectativa do juízo final e expectativa da sociedade futura prometida pela revolução exprimem, em formas apenas diferentes, a mesma negação da vida terrena com os seus limites e conflitos, com as suas profundas, insuperá­ veis, mas profícuas contradições . Zaratustra coloca em estado de imputação estas duas formas de niilismo no seu contradiscurso das benaventuranças cris­ tãs e socia listas :

Eu vos esconjuro, meus innãos, pem1anecei fiéis à terra e não dai fé àqueles que vos falam de esperanças ultraterrenas! São envenenadores. Quer saibam ou não. São desprezadores da vida, moribundos e seus próprios envenenadores, dos quais a terra está cansada: Que desapareçam de uma vez (Za, Prefácio, 3).

O niilismo aqui objeto de condenação não é aquele "ativo" e "divino". É o "niilismo apassivante" (passMsch) (XII, 35 l ), o "niilismo passivo" (passiv), o "niil ismo cansado" (müde) (XII, 35 l ) daqueles que, com a sua fuga do vale de lágrimas, ou seja, do mundo da "exploração" e da "opressão", isto é, das desi­ gualdades, da hierarquia, da escravidão nas suas diversas formas, revelam que estão cansados da vida e do mundo. Os "valores cristão-niilistas" (XIII, 220) se perpetuam no pensamento e na ação dos "sistemáticos do socialismo": querer produzir uma mudança política que remova da existência o negativo ("o vício, a doença, o delito, a prostituição, a miséria") não significa senão "condenar a vida" (XIII, 256). Do ponto de vista de Nietzsche, são niilistas ambos os interlocutores de Turgueniev, tanto os "filhos" como os "pais". Eles representam duas fases diferentes de um único gigantesco ciclo subversivo. Ao opor o cristianismo à revolução, os "pais" não se dão conta de que exatamente o igualitarismo evan­ gélico está na origem da revolta dos escravos, que agora contesta e ameaça destruir tudo: os "filhos", que combatem a ordem existente em nome da utopia socialista, não se apercebem de que se colocam na esteira do cristianismo, da sua condenação do mundo da vida e da sua pregação do nada. Vimos em Nietzsche a passagem da vítima do niilismo ao rebelde niilista. Agora o rebelde niilista "ativo" se toma o grande antagonista de um flagelo que deve ser indagado e enfrentado em toda a sua amplitude e a partir das suas origens mais profundas e remotas.

6. Revolução total, ataque à "grande economia do Todo " e niilismo Ainda que de uma radicalidade sem precedentes, essa denúncia do niilismo não deixa de ter elementos de continuidade com a tradição passada. Quando aborda "o socialista, o anarquista e o niilista" (XIII, 233), ou faz referência a "anarquismo e niilismo" (XII, 4 1 O), ao movimento subversivo russo (FW, 347), Nietzsche parece proceder de modo semelhante a Baader ou Donoso Cortés. Os niilistas são sempre os revolucionários e niilismo é sempre sinônimo de revolução, só que agora essa revolução total revela raízes que afundam num passado bastante remoto. Os dois intérpretes católicos da contrarrevolução

fazem remontar à Reforma protestante o início da desastrosa parábola revolu­ cionária que desembocou no niilismo. Que Lutero deva ser aproximado de Rousseau (o autor chave para compreender o processo de radicalização plebeia e jacobina da Revolução Francesa), Nietzsche não tem dúvidas sobre isso. Mas o que age por trás da Reforma (e da guerra dos Camponeses)? É o mes­ mo católico espanhol que sublinha o fato de que os movimentos revolucionários se referem à seu modo ao cristianismo: Todas as revoluções [ . . . ] são fundamentalmente heréticas; para confirma­ ção, veja-se como todas querem dar-se uma justificação e uma legitimação utilizando palavras e máximas tiradas do Evangelho: o sanculotismo da pri­ meira Revolução Francesa procurava na humilde simplicidade do tranquilo Cordeiro o próprio antecedente histórico e os próprios títulos de nobreza; nem faltou quem reconhecesse em Marat o Messias, ou quem aclamasse Robespierre como seu apóstolo. Da revolução de 1 830 surge a doutrina sansimoniana, cujas extravagâncias nústicas constituíam um evangelho re­ visto e corrigido. Da revolução de 1 848 brotaram, como impetuosas enchen­ tes expressas com palavras evangélicas, todas as doutrinas socialistas. 1036

O próprio Donoso Cortés reconhece que o movimento revolucionário e niilista, durante todo o seu ciclo, agita "palavras evangélicas". E é daqui, por­ tanto, que, segundo Nietzsche, é preciso partir para poder reconstruir na sua .. inteireza a parábola da revolução e do niilismo. Entre católicos e protestantes se verifica uma troca inflamada de acusa­ ções. A Leão XIII, que identifica na "heresia" da Reforma a fonte daquelas "pestes limítrofes que são o comunismo, o socialismo, o niilismo, horrendos males e quase morte da sociedade civil",1037 Stõcker responde que, na realida­ de, são os países católicos que constituem o lugar privilegiado da revolução e, portanto, da negação niilista. 1038 Por outro lado, não faltam autores judeus que, ao contrário, identificam e denunciam no cristianismo enquanto tal a origem da catástrofe. Os católicos censuram Lutero por ter minado o princípio de autori­ dade, mas não foi Jesus ou Paulo de Tarso que primeiro pôs em discussão ou dessacralizou a lei mosaica divina? Olhando bem, Paulo de Tarso revela um "anarquismo" substancial; a sua doutrina pode bem ser comparada com a de Pierre-Joseph Proudhon.1039 Quanto a Jesus, com a sua "vontade de morrer'', 1º36

Donoso Cortés, 1972, pp. 336-7.

1037 ln Giordani, 1956, p. 78 (trata-se da encíclica Diuturnum illud de 29 dejunho de 188 1 ). 103M

Stõcker, 1 890, p. 449.

lú39 Fleisclunmm, 1 970, pp. 98, 1 5 1 -3 e 143.

lli

dá prova clara de "decadência". Os apologetas do cristianismo enquanto tal censuravam os judeus por um apego teimoso à vida terrena e, portanto, um substancial esquecimento do destino ultramundano do homem; mas essa mes­ ma acusação - rebatem os apologetas do j udaísmo - demonstra o desprezo dos cristãos pelo mundo e pela terra, a preferência por estarem mais afinados com a morte que com a vida. A crítica judaica do cristianismo assume assim tons que - foi observado - fazem às vezes pensar nos de Nietzsche. 1040 Não pare­ ce ter havido uma influência direta num sentido ou no outro. Permanece o fato de que, do ponto de vista de Nietzsche, aquela crítica é a confirmação de que o cristianismo é parte integrante da bimilenar parábola subversiva e niilista. Uma linha de continuidade conduz da pregação evangélica ao niilismo russo e à agi­ tação socialista. Como sabemos, é possível e necessário recuar ainda mais na busca das origens da revolução. Mas isto significa recuar ainda mais na busca também das origens do niilismo. Já no judaísmo vemos em ação profetas e "agitadores sacerdotais" que, ao manifestar todo o seu ódio em relação ao poder, à riqueza, à hierarquia, em última análise à vida, se revelam expressão ao mesmo tempo de tendência subversiva anarquizante e de niilismo. Se tivermos presente que, ao contrapor à vida real o mundo das ideias e dos presumidos valores morais, Platão e Aristóteles se revelam cristãos ante litteram e até judeus, então o quadro está completo. Contrariamente ao que pensam Baader e Donoso Cortés, não é possível limitar-se a sublinhar a linha de continuidade de Lutero a Rousseau; o ciclo da negação total parte já de Jesus e Sócrates (mestre de Platão). Temos assim os ""quatro grandes democratas" (exatamente "Sócrates, Cristo, Lutero, Rousseau") (XII, 348}, que são também os quatro grandes niilistas, protagonis­ tas das diversas ondas da revolução total e da pregação do nada. Todos, de um modo ou de outro, podem ser reconduzidos à tradição judeucristã; e é desde a queda da antiguidade clássica, ou seja, do Antigo Regime grecorromano que data o início da catástrofe niilista do Ocidente. Em vi rtude da sua radical carga subversiva, o cristianismo é sinônimo de ""negação do mundo" (XII , 1 20), é "a tentativa de superar, ou seja, de negar o mundo" (XII, 1 1 9). A moral é a arma insidiosa e pérfida dessa subversão niilista que, junto com a riqueza, a hierarquia e o poder, nega a própria vida. Nietzsche não se cansa de insistir sobre isso: ''Enquanto cremos na moral, condenamos a existência"; "os juízos morais de valor são condenações, negações; a moral deu as costas à vontade de existir" (XII, 57 1).

1 04° Flcischmann, 1 970, pp. 38 e 153.

Por outro lado, ·'os juízos cristãos de valor persistem por toda parte nos sistemas socialistas e positivistas. Falta uma crítica da moral cristã" (XII, 1 26). Esta crítica, chamada a liquidar de uma vez para sempre o niilismo de mais de dois milênios de história, é decisiva para a salvação da própria vida. Trata-se de acabar de vez com a "negação do mundo" presente na "interpreta­ ção moral do mundo" (XII, 1 20); sim, "com a interpretação moral o mundo é insuportável" (XII, 1 1 9). A moral e a religião, que para Donoso e Baader cons­ tituem o antídoto para o niilismo, se revelam como um momento essencial, melhor, o verdadeiro ponto de partida da catástrofe do Ocidente. Não se deve esquecer um elemento essencial: não é só a negação total que está no funda­ mento da Revolução Francesa, mas o próprio Terror já está implícito na prega­ ção evangélica (supra, cap. 1 5 § 2). Tal como está enormemente dilafado o sujeito protagonista da revolução niilista total que há dois milênios se alastra no Ocidente, assim está também o seu alvo. Quem corre um perigo mortal é a totalidade da civilização e da soci­ edade enquanto tal. Bloqueado ou invertido o "curso natural da evolução'', sur­ ge o triunfo da '·antinatureza" ( Unnatur) (XIII, 4 70). Também nesse caso, podemos ver a continuidade com respeito a uma tradição de pensamento que acusa a Revolução Francesa de ter a intenção de esmagar a "natureza", ou, para dizê-lo com Schopenhauer, a "aristocracia da natureza". 1041 Outras vezes, em lugar de "natureza", Nietzsche fala de vida. Sobre ela pesa uma terrível ameaça: "a moral do cristianismo", a qual, portanto, constitui o '·delito capital contra a vida" (XIII, 4 1 7). É preciso observar: "os instintos da vida mais presentes e grávidos de futuro foram até agora caluniados, de modo que sobre a vida pesa uma maldição" (XII, 430). Em virtude do seu igualitarismo e do seu espírito de compaixão, que bloqueando a seleção e a expulsão das escórias e dos venenos, tornam impossível o sadio desenvolvi­ mento do organismo social e vital, "o altruísmo do cristianismo é uma concep­ ção que põe a vida em perigo" (lebensgefãhrlich) (XIII, 2 1 9), que antes constitui um ·'delito contra a vida" (XII, 47 1 ). "Natureza", "vida"; veremos Nietzsche remeter à ·'espécie" e à "grande economia do Todo" (infra, cap. 20, § 4): são nomes diversos para indicar a totalidade do real, atacada pela revolu­ ção niilista total iniciada na Palestina e ainda em curso em toda a sua fúria devastadora.

1º41 Schopenhauer. 1 976-82, p. 2 1 8.

7. Negação total, niilismo e loucura Além de niilistas, os revolucionários e socialistas são acusados por seus inimigos de serem loucos . A negação do Todo, na qual consiste o niilismo, não pode não ser expressão de loucura. E de loucura, além de niilismo, fala Donoso Cortés em relação ao "racionalismo"1 042 e, com maior razão, a propósito das ideias subversivas: "O hom�m interiormente purificado não pode tomar-se agen­ te de rebeliões, ao passo que o agitador, pelo simples fato de ser tal, demonstra que não é interiormente são". 1 043 No teórico católico da contrarrevolução, tor­ nam-se uma coisa só o herege, o subversivo, o louco e o niilista. Por trás da acusação de loucura está em ação uma história análoga àque­ la já vista para a acusação de niilismo. Os expoentes das correntes heréticas, com freqüência portadores de esperanças subversivas no plano político-social, são acusados por Tomás de Aquino de serem movidos por uma aliqua phantastica illusio, 1 044 sinônimo ao mesmo tempo de heterodoxia ditada pela "carne", de pecado e de loucura. Este entrelaçamento de significados volta também na polêmica de Lutero contra Müntzer e os seus seguidores: além de hereges, rebeldes e homicidas, eles são rotulados também de "profetas sedici­ osos" (aufrüherisch), "profetas malucos" (tolle Propheten) que excitam a "plebe maluca" (tolle Pobel), como "visionários" (Schwarmerer, Geister, Schwarmgeister). 1 045 Müntzer, que, abolindo a servidão da gleba, quer tomar os homens iguais e fazer do reino espiritual de Cristo um reino temporal e exterior, é ao mesmo tempo um louco que pretende realizar algo impossível e um herege e falso profeta que distorce de modo radical a mensagem cristã. A loucura imputada aos revolucionários continua a estar carregada de significados religiosos ainda em Schelling. Este opõe a autêntica escatologia cristã e paul ina, que acentua a fugacidade deste mundo, à "fantasia (Schwarmerei) apocalíptica" da democracia ou, pior ainda, às "fantasias (Schwarmereien) do comunismo" .1046 A denúncia da Schwarmerei ou do fa­ natismo, que no iluminismo e em Kant e Fichte visava o "obscurantismo", a intolerância religiosa e o Antigo Regime, agora atinge em primeiro lugar os revolucionários, com a sua heresia de total regeneração do mundo.

1 042 Donoso Cortés, l 946 d, p. 606. 1 º43 Donoso Cortés, 1972, p. 260. 1 º44 Sumrna Theologiae, 2, 2, q. l l , art. l , ad tertium. 1 045 Luteor, 1883, vol . XVIII, pp. 296, 301, 3 1 1 , 3 1 6 e 3 1 9 e vol. XXIII, p. 70 s. 1 046 Schelling, 1 856-186 1 , vol. XI, p. 552.

Nietzsche parte daqui, mas identifica no cristianismo a fonte dos "fantás­ ticos (schwãrmerisch) ideais" com os quais os revolucionários se alimentavam {M, 3 77) . Mas o termo em questão só é usado excepcionalmente. Essa lingua­ gem, ainda cheia de ecos religiosos, tende a ser substituída por outra, ao menos à primeira vista, sensivelmente diferente. A polêmica visa agora os "entusias­ tas" (Begeisterten) (Za, II, Das tarântulas), os "fanáticos" (Fanatiker), es­ ses "espíritos doentes" ou "epi-lépticos da ideia" (AC, 54). Agora se recorre em primeiro lugar a categorias tiradas da psiquiatria. Por outro lado, a aborda­ gem psicopatológica é comum aos diversos críticos da revolução, de Burke a Taine, passando por Constant e Tocqueville. É evidente que para N ietzsche a revolução se inicia muito antes de 1 789 e que os loucos protagonistas desta interminável subversão total são igualmente niilistas. Pendant teórico da Revolução Francesa ou, nas palavras de Friedrich Schlegel, da "política negativa" deduzida da pura razão, 1047 a "filosofia negati­ va" (para usar a expressão de Schelling) sofre as mesmas acusações: sendo algo ·'artificioso", 1048 ela repugna a todo ''homem interiormente sadio". 1049 Ao sublinhar a lógica da ·'anulação" total como fundamento da dialética hegeliana (que reduz o ser a um "negativo absoluto"), Rosmini a condena como contami­ nada ao mesmo tempo por "niilismo" e "alucinação".1050 Segundo Radowitz (íntimo do rei da Prússia Frederico Guilherme IV), além de "niilismo", as ideias subversivas dos intelectuais revolucionários são expressão também de "puro egotismo" e de estranheza do "senso comum normal".1 051 O "egotismo puro", ou o apego doentio ao "conceito vazio", com a consequente perda de sentido da realidade, que o conservadorismo prussiano censurará à escola hegeliana: tudo isso leva a pensar1º52 na acusação de subjetivismo extremo e de niilismo já dirigida a Fichte por Jacobi . Fichte é depois inserido por Constant entre os "doidos" seguidores de Robespierre1053 e, portanto, entre aqueles jacobinos acometidos, como sabemos, de "delírio". Segundo Donoso Cortés, o que faz profissão de panteísmo ou ateísmo é um partido imerso nas trevas do "paganismo político", do satanismo, da loucu­ ra, em última anál ise da "morte" com a qual, segundo o católico espanhol, se há 1 041 Schlegel, 1963 , p. 575.

1048 Schelling, 1 972, p. 100.

1 049 Schelling, 1972, p. 80.

1050 Rosmini, 1 840- 1 857 a, pp. 135 e 1 39 e Rosmini, 1840- 1 857 b, pp. LVI e XLVIII. 1 05 1 ln Goudsblom, 1982, pp. 1 9-20. 1052 Losurdo, 1997 a, p. 553. 1053 Losurdo, 1996, p. 39.

de comparar a revolução. 1 054 A dicotomia tudo/nada aparece aqui como a dicotomia vida/morte no sentido, em primeiro lugar, da teologia da salvação. Dostoievski procede de modo análogo, como resulta das palavras por ele colo­ cadas na boca de um desertor do niilismo: "fujo de um delírio, de um sonho febril, corro em busca da Rússia", símbolo da ortodoxia e da ansiada regenera­ ção cristã (e es lavófila) do mundo, 1 055 "acabaram o antigo delírio, as infàmias e as coisas mortas".1 056 Tal como a acusação de niilismo, assim a acusação de loucura se separa progressivamente da acusação de ateísmo e de heresia. A loucura que se alas­ tra é reconduzida, segundo Burke, à pavorosa "abstração" própria da Revolu­ ção Francesa, essa revolução total que pretende negar tudo. No romance de Turgueniev, um representante da geração dos pais se dirige deste modo aos niilistas: "Veremos como vos segurareis no nada, no vazio". 1 º57 Na análise da gênese da loucura revolucionária e niilista, a denúncia do "caráter abstrato" se entrelaça primeiro com a denúncia da heresia e do ateísmo e depois, progressi­ vamente, acaba se substituindo. No mesmo Dostoievski podemos ler que é "uma terrível abstração, um monstruoso e obtuso desenvolvimento W1ilateral"1 058 que caracteriza o niilista. Na esteira de Taine, Cochin sublinha como o pensa­ mento iluminista e revolucionário, dominado pelo caráter abstrato, é "pobre de instituições, totalmente separado do real [ . . . ] , orientado para o vazio"; 1 º59 é por isto que inclui "a negação de toda fé [ . . . ], a negação de toda regra" e, portanto, o ''niilismo" do qual os próprios filósofos se gabam. 1 060 A crítica do caráter abstrato da teoria revolucionária conhece em Nietzsche, ainda uma vez, uma radicalização extrema. Como a revolução total, assim o total caráter abstrato certamente não apareceu pela primeira vez em 1 789. Já com o judaísmo e com a agitação dos sacerdotes judeus, a moral passa por um processo de autonomização, desnaturalização e superfetação, mas perde qualquer ligação com a vida e se torna pavorosamente "abstrata" (supra, cap . 1 5 § 2). O "atentado de delírio" recebe um impulso ulterior, deci­ sivo, do cristianismo (XII, 1 1 9), empenhado, como sabemos, numa louca "nega­ ção do mundo". A dicotomia vida/morte que vimos em Donoso Cortés retorna também em Nietzsche, mas o "partido da vida" por ele invocado para a luta 1054 Donoso Cortés, 1 946 e, p. 2 1 2 ; Donoso Cortés, 1 946 b, p. 1 9 1 . 1055 Dostoievski, 1953, vol. II, p. 2 17. 1 056 Dostoievski, 1 953, vol. II, p. 278. 10.s7 Turgenev,

1988, p. 22.

1 058 Dostoievski, 1 953, vol.

1059 Cochin, 1 979, p. 79. 106° Cochin, 1 978, p. 1 3 .

II, p. 361.

contra o nii lismo (EH, O nascimento da tragédia, 4) não só não tem um fim­ damento teológico cristão, mas se opõe a um ciclo de loucura e de morte inici­ ado exatamente com a tradição judeucristã.

8. Uma categoria polêmica Podemos agora sintetizar os elementos de continuidade e de novidade deste balanço histórico com respeito à tradição "antiniilista" que está por trás . Uma parte bastante importante de tal tradição, a própria religião oficial do Oci­ dente, é agora acusada de niilismo. Assim, é nítida a distância que separa Nietzsche da ideologia dominante. Fica claro, porém, que em ambos os casos o niilismo é denunciado como produto da revolução total, embora de uma revolu­ ção total datada de modo bastante diferente. Chegou-se a criar uma situação paradoxal . Com o seu cristianismo fervo­ roso, Baader, Danoso Cortés e Dostoievski são niilistas do ponto de vista de Nietzsche, que por sua vez, em virtude do seu ateísmo e imoralismo, seria sinônimo de niilismo mais repugnante aos olhos dos três autores cristãos. Tam­ bém quando há acordo em denunciar um adversário niilista, as motivações adotadas são frequentemente inconciliáveis entre si. Acometido, segundo Haym, de .. niilismo declarado", enquanto fundamentalmente ateu e estranho e indife­ rente à vida política e religiosa da nova Alemanha, 1061 Schopenhauer é niilista, para o Nietzsche mais maduro, por causa dos seus persistentes laços com o budismo e com o cristianismo (e, indiretamente, com o ciclo revolucionário que parte deste último), e é niilista - na opinião final de Herzen - pela passividade e pela inação que recomenda frente à sociedade existente. Mesmo querendo considerar separadamente os diversos autores e ambien­ tes culturais, vemos que cada um deles liga a acusação de niilismo com outras, cujas compatibilidades com a primeira são pelo menos problemáticas. Os adver­ sários irredutíveis da França revolucionária, se às vezes denunciam os seus ideólogos e protagonistas como niilistas (e ateus), outras vezes os rotulam como acometidos de fanatismo mais ou menos religioso. Na primeira fila a bradar con­ tra o niilismo dos revolucionários, Friedrich Schlegel aceita em seu "Concordia" artigos empenhados em condenar esses mesmos revolucionários como visionári­ os em expectativa mística do "advento dos tempos messiânicos". 1 062 Como sa­ bemos, esse último tema é o centro da reprimenda de Gentz (supra, cap. 7 § 9). 1061 Haym, 1 903 a, p. 273 . 1 062 Bucholtz. 1 967, p. 239 nota.

Em conclusão, a acusação de ateísmo e niilismo se alterna ou se entrelaça com a de fanatismo religioso. São estas duas acusações conciliáveis entre si? Do ponto de vista de Donoso Cortés (assim como de Maistre e Baader), dado que já a Reforma é a "grande heresia" que representa "um perigo mortal para a sociedade" e uma primeira manifestação de niilismo, 1063 pode-se acusar um adversário ao mesmo tempo de niilismo e de fanatismo religioso, com a condi­ ção, porém, de que niilismo seja tomado como sinônimo de doutrina que põe em perigo a sobrevivência da Igreja e do cristianismo (a totalidade dos valores, o Todo do ponto de vista de um católico fervoroso). Indo abertamente para trás, Nietzsche vê o niilismo brotar, não de uma heresia que distorce e desnatura o cristianismo "autêntico", mas exatamente do cristianismo, ou melhor, da tradição judeucristã enquanto tal. Também nesse caso, a acusação de fanatismo religioso Gudeucristão) não é incompatível com a de niilismo (agora sinônimo de negação da totalidade dos valores vitais encarnados pelo paganismo). Resta o fato de que nos encontramos diante de uma categoria na qual podem ser incluídos os autores mais diversos e com as mais diversas motivações e mediante a qual um autor pode excomungar e rotular o outro. Nietzsche tem consciência do problema, pois faz algumas distinções es­ senciais. Mas antes de concentrar a atenção apenas no niilismo "passivo", vejamos que sob esta categoria, como sob a categoria de "carolice padresca", cara a Stirner, são subsumidos tanto os budistas como os cristãos, tanto os revolucionários como - é preciso acrescentar agora - aqueles que, tendo per­ dido toda fé, sentem dolorosamente a perda do sentido da vida. Para poder contrastar a crítica de Marx a Stimer (a noite em que todas os gatos são par­ dos), se deveria fazer intervir outra distinção, em Nietzsche talvez implícita, mas que remete em primeiro lugar a Hegel . Poder-se-ia dizer que o cristão e o revolucionário são niilistas em si, mas não para si, ainda não tomaram consciên­ cia do nada intrínseco dos seus valores. Mas com frequência é exatamente a dimensão subjetiva, a experiência dolorosa da carência de valor e de sentido da existência que define o niilismo em Nietzsche. Mesmo se sentido da existência devesse significar sentido da existência terrena, a categoria de niilismo em si poderia eventualmente ser válida para o cristão e o budista, mas não para o revolucionário, o qual, pela crítica do tema do vale de lágrimas, está perfeita­ mente de acordo com o autor do Anticristo. Fichte é niilista? Na realidade, estamos na presença de um filósofo que tem muito da figura do missionário (pensar no uso obsessivo do tema da Bestimmung), e até do sacerdote (é mais ou menos em tal roupagem, como 106�

Donoso Cortés, 1972, pp. 336-7.

weltlicher Staatsredner ou Feldprediger, que se propõe a participar das guer­ ras antinapoleônicas), mas do sacerdote que se propõe realizar a sua missão neste mundo, contribuindo para a causa da Revolução Francesa e, depois, para a causa da luta contra a ocupação napoleônica e contra a traição aos ideais revolucionários debitada a Bonaparte.1� O filósofo alemão acaba nos antípodas do niilismo, se com isto se entende o desaparecimento do sentido da vida. Con­ siderações análogas podem §er feitas a propósito de Cloots. Bem mais que a categoria de niilismo é apropriada a de "missionário armado" atribuída a ele por Robespierre, empenhado em denunciar as incongruências e os perigos dos pro­ jetos de exportação universal da Revolução Francesa, das suas ideias e dos seus valores. No que se refere ao movimento niilista russo, foi observado com justeza: Não foi difícil descobrir imediatamente que a palavra era mal escolhida. Se havia gente que acreditava cegamente, violentamente nas próprias ideias, eram exatamente os "niilistas". A sua fé positivista e materialista podia ser acusada de fanatismo, de falta juvenil de espírito crítico, não certamente de indiferentismo.

Já aos contemporâneos não fugia o fato que "aquele era um 'vocábulo sem sentido, capaz menos do que qualquer outro de caracterizar a jovem geração, na qual se podia discernir todo gênero de ' ismos', mas não certamente o niilismo'". 1 065 Bazarov, o niilista por excelência no romance de Turgueniev, pretende empenhar­ se, mediante a superação da "má educação", na regeneração da sociedade; morre por causa do tifo contraído curando gratuitamente um camponês, um represen­ tante daquela classe, oprimida e desprezada pela aristocracia, mas da qual o jovem revolucionário espera "a nova fase da história".1� Na melhor das hipóteses, a categoria de niilismo pode acabar tendo uma certa util idade para compreender as figuras da vítima do niilismo ou do rebelde niilista em sentido metacrítico, ou seja, de um lado autores como Kleist, do outro lado autores como Sade, Stirner ou como o próprio Nietzsche. Nesse último caso, somando-se à negação crítica e revolucionária, a negação metacrítica produz algo semelhante a um nada de valor e de sentido. Todavia, é preciso não perder de vista a problemática que continua a existir também nesse caso: a afirmação exaltada do indivíduo (ou melhor do indivíduo e-grégio, estranho à 1 064

Fichte, 197 1 , vol. VII, p. 507; Fichte, 1 967, vol. II, pp. 600-1 (carta de abril de 1 8 1 3 a Nicolovius). 1 065 Venturi, 1 972, vol. II, p. 2 1 5. 1 066 Turgenev, 1988, pp. 83 e 1 86.

grei) e da sua superioridade com respeito a qualquer norma pode também ser expressão de cinismo, mas dificilmente pode ser identificada com o nada. De fato, quem celebra em tal afirmação a própria antítese da pregação do nada é o próprio Nietzsche, em veste, desta vez, não de rebelde metacrítico, mas de antagonista do niilismo. Portanto, querer fazer uma história do niilismo seria como querer fazer uma história da heresia ou da imoralidade: heresia e imoralidade com respeito ao quê, com respeito a qual norma? Também o niilismo pode ser definido ape­ nas em relação ao outro, como negação de um conjunto de instituições, ideias e valores que, aos olhos daqueles que com eles se identificam até o fundo, repre­ sentam a totalidade. Se quisermos reencontrar o terreno debaixo dos pés, de­ vemos voltar à gênese histórica e política da categoria de niilismo. A crítica do niilismo não pode ser separada da crítica da revolução, e é em primeiro lugar a extrema diversidade das leituras do ciclo revolucionário que explica a extrema diversidade nas leituras do niilismo. Quem leva mais a fundo a análise desse flagelo é o autor empenhado a levar mais a fundo a diagnose da doença revo­ lucionária, é o teórico do radicalismo aristocrático.

9. Nas origens do niilismo: classes dominantes ou classes subal­ ternas? Em confirmação do caráter polêmico da categoria de niilismo convém fazer uma última reflexão. Vimos Dühring denunciar o cristianismo pela sua hostilidade mortal contra a vida e a natureza e denunciá-lo com expressões não diferentes daquelas mais tarde utilizadas por Nietzsche que, entretanto, leu O valor da vida. Porém, há uma diferença fundamental. Aos olhos de Dühring, o niilismo cristão afunda as suas raízes em última análise no esbanjamento e na decadência das classes dominantes do Império Romano: "a dissolução produz o desgosto", ..o culto do nada próprio da decrepitude". 1 067 Embora procedendo de modo diferente, também um dirigente de primeiro plano da socialdemocracia alemã como Bebei acaba colocando "o aniquilamento da carne" próprio do cristianismo na conta das classes dominantes : ele é uma reação polêmica e extremista ao "bestial materialismo que dominava entre os grandes e os ricos do Império Romano". 1 068

1º"7 Dühring, 1881 a, pp. 1068 Bebei, 1 964, p. 83.

7 e 1 2.

Esse modo de argumentar está presente também em Dühring. Mas ele vai além, afirmando que uma veia de niilismo substancial acompanha a história das classes dominantes muito além do desabamento do Império Romano. Na onda da luta contra a Revolução Francesa surgiram de novo "tendências hostis à vida". Basta pensar em Malthus que "de modo autenticamente sacerdotal descobre um pecado no crescimento sexual natural". 1 069 É sempre no curso dessa onda contrarrevolucioné\_ria que se desenvolve a "santificação celeste do nada" (Nichtsverhimmelung) cara a Wagner e, antes ainda, a Schopenhauer. Uma tendência niilista pode ser lida no próprio socialdarwinismo: "fundamentar a existência própria no aniquilamento da vida do outro" significa minar a coe­ xistência entre os homens e, portanto, promover uma "corrupção que compro­ mete a vida". 1 070 Em última análise, o niilismo remete constantemente às clas­ ses dominantes: impelidas pelos seus festins, acabam às vezes elas mesmas perdendo o gosto e o prazer da participação no "banquete da vida", do qual pretendem de qualquer modo excluir a massa da população. 1 º7 1 São, pois, as classes opulentas e dominantes que exprimem um niilismo parcial ou total, que compromete a reprodução da vida e a vida enquanto tal, e, com a vida, a espé­ cie e a civilização . Não poderia ser mais nítido o contraste com respeito a Nietzsche. Se Dühring descobre e denuncia no egoísmo, na rapacidade e na corrupção das classes opulentas e dominantes a origem das doutrinas "hostis não só ao povo, mas também à viàa", 1 º7:: Nietzsche vê brotar o ni ilismo do ressentiment e do rancor dos miseráveis e dos mal sucedidos que, junto com a riqueza, o poder e a hierarquia, colocam em discussão e negam a vida enquanto tal.

Dühring, Dühring, 1º71 Dühring, 1012 Dühring,

io69 1010

l 88 l a, pp. 20 e 22. 1 8 8 1 a, pp. 1 7 e 25 1 88 1 a, pp. 59 e 23. 1 88 1 a, p. 22.

17 Ü ÚLTIMO NIETZSCHE E O SONHADO GOLPE DE ESTADO CONTRA A "MONARQUIA SOCIAL" DE GUILHERME II E STôCKER 1 . A Alemanha como foco do contágio revolucionário

Ualastra pelo Ocidente; mas onde pode ser identificado o seu epicentro? A ma devastação subversiva e niilista, cujo fim não se consegue ver, se

partir da fase "iluminista", Nietzsche mostra crescente ressentimento e hostili­ dade em relação à Alemanha, que se tomou - assim ele se exprime numa carta de 24 de fevereiro de 1 8 87 a um amigo - "uma verdadeira escola de estupidificação nos últimos 1 5 anos" (B, III, 5 , p . 3 1 ). É hora de acabar com as mistificações: ... Espírito alemão' : há dezoito anos até agora uma contradictio in adiecto" (GD, Máximas e dardos, 23). Retrocedendo para o período de tempo aqui indicado, remontamos à fundação do II Reich, mais exatamente às amargas ilusões que, depois das enfáticas esperanças e os entusiasmos da véspera e do início, rapidamente intervêm diante do espetáculo da real configu­ ração do novo Estado, este "verme do Reich" (WA, Segundo pós-escrito). Como explicar um julgamento tão impiedoso? A Alemanha considerada por Nietzsche colocou-se na vanguarda em matéria de obrigação escolar e de difusão da instrução, aos olhos do filósofo sinônimo, como sabemos, de "comu­ nismo"; é o país no qual mais fortes se apresentam a organização sindical e o movimento feminista, e mais enraizada e capilar a presença do partido operá­ rio; o país no qual Bismarck, depois de ter introduzido para a eleição do Reichstag o sufrágio universal (masculino), ainda desconhecido pela Inglaterra, toma medidas para prevenir uma revolução de baixo mediante uma revolução do alto que introduz os primeiros vagos elementos de seguridade social. São os anos em que Marx formula a tese segundo a qual ''o centro de gravidade do movi­ mento operário da Europa ocidental" se deslocou da França para a Alema­ nha. 1 073 Sim - sublinha por sua vez Engels - a função da vanguarda revoluci­ onária desempenhada pela França até à terrível repressão que se abateu sobre a Comuna de Paris compete agora à Alemanha, que já se configura como o 101�

Marx-Engels, 1 955, vol. XXXIII, p. 5.

"setor central do movimento socialista" a nível internacional, 1 074 e não só por razões de força numérica e de eficiência organizativa: os operários alemães dão prova de um "senso teórico" e de um rigor revolucionário exemplares. 1 075 É uma tese reforçada no início do século XX por Lênin, tanto mais porque na Alemanha o movimento socialista soube superar vitoriosamente a "rude pro­ va das leis de exceção". 1 076 Por causa da sua disciplina e da sua capacidade de luta, nas condições da legalidade e ilegalidade, a social democracia em ativi­ dade no II Reich constitui um modelo: "Eis os alemães [ . . . ] . Mas os alemães receberam com ironia desdenhosa aquelas tentativas demagógicas [ . . . ] . Olhai os alemães [ . . . ]. Eles compreendem perfeitamente . . . " 1 077 Ainda em 1 909, à Rússia, que sofre passivamente o atraso e o despotismo asiáticos, Trotski opõe a Alemanha perpassada por frêmitos revolucionários, "na qual o operário soci­ alista se considera participante ativo da política mundial e segue atentamente os aconteci mentos dos Bálcãs ou os debates no Reichstag" alemão, no curso dos quais faz constantemente ouvir a sua voz o partido socialista mais forte e mais organizado da Europa e do mundo. 1 ms Também fora dos círculos culturais e políticos que se vinculam a Marx a imagem da Alemanha não é diferente. Se Herzen, em meados do século XIX, celebra a dialética hegeliana como a "álgebra da revolução", 1079 na Itália, Cavour, com o olhar voltado semp re para aquela corrente de pensamento, previne con­ tra um fenômeno inquietante: "vemos hoje sair muitos comunistas das universi­ dades alemãs " . 1 080 Trata-se de grito de alarme que transpõe o Atlântico e chega aos Estados Unidos, onde um eminente teórico da escravidão chama a atenção para o fato que "a Alemanha está cheia de comunistas". 1º81 Sim reforça Mehring no final do século XIX do outro lado da barricada - "a luta pela emancipação da classe operária moderna é a maior e mais gloriosa luta de libertação que a história conhece, e o fato de a socialdemocracia conduzir na vanguarda esta luta resgata séculos de vergonha alemã".1 082 Em todo caso, a partir da Comuna de Paris e até o começo da primeira guerra mundial, e da 1 º74 Marx-Engels. 1 955, vol. XXII, p. 462. 1 º75 C( Marx-Engels, 1955, vol. XVIII, pp. 5 16-7. 1 º76 Lên.in. 1955. vol. V. pp. 34 1-3. 1 º77 Lênin, 1 955. vol. V, pp. 426 e 436. 1 º7x Trotsky, 1 969, p. 45. 1 079 Cf Herzcn, 1950, p. 579. 1 08° Cavour, 1 970, pp. 1 2-3 . i oxi 10x2

Filzhugh. 1 854, p. 44. Mehri ng, 1 96 1 b, vol. II, p. 707.

traição chauvinista de que a socialdemocracia alemã é acusada, é para a Ale­ manha que se voltam em primeiro lugar o olhar e as esperanças do movimento operário e revolucionário europeu de inspiração marxista. Essas fervorosas expectativas são a outra face da terrível angústia e do crescente desgosto com que Nietzsche olha os acontecimentos do II Reich. A virada do período "iluminista" é exatamente a tomada de consciência do fato de que o Estado que passou ,pelo batismo de uma fulgurante vitória militar, longe de ser o baluarte da Civilização contra a subversão moderna, constitui na realidade o seu epicentro : os alemães "um dia terão a revolução"; "o socialista alemão é exatamente por isso o mais perigoso, porque nenhuma necessidade determinada o impele" (VM, 324 ), mas só uma ideologia, quer dizer, o "senso teórico" celebrado por Engels. Este, na onda da profunda desilusão provocada pelo triunfo da reação após a fogueira de 1 848, procura de novo infundir coragem ao movimento re­ volucionário, convidando a redescobrir o seu glorioso passado: "Também o povo alemão tem a sua tradição revolucionária".1 083 Demonstram isso em particular três momentos centrais . Comecemos pelo último em ordem temporal: a filoso­ fia clássica alemã é o pendant teórico da Revolução Francesa e, portanto, só o "proletariado" pode ser o seu "herdeiro". 1084 Nietzsche, por sua vez, a partir da experiência traumática da massificação e da vulgaridade moderna do I I Reich, empenha-se em encontrar as origens dessa catástrofe. Eis então a denúncia das "duas farsas nefastas, a revolução e a filosofia kantiana, a prática da razão revolucionária e a revolução da razão 'prática"' (XIII, 444 ) Delineia-se assim um balanço histórico que, deixando de lado o j uízo de valor diferente e oposto, apresenta pontos de contato significati­ vos com o de Engels . Vimos Nietzsche sublinhar a profunda influência que sobre Kant exerce Rousseau, o intelectual plebeu e canalha por excelência, não por acaso particu­ larmente caro aos jacobinos; e sabemos também da relação que Nietzsche estabelece entre revolução e socialismo, por um lado, e pathos moral, indigna­ ção moral em relação à vida e às suas desigualdades e seus conflitos, por outro lado (supra. cap. 8 § 1). Infelizmente, não é só a época filosófica que começa com Kant que se mostra cheia de humores plebeus e subversivos. Tome-se a música alemã: .

Apenas nela a transformação sofrida pela Europa através da Revolução con­ seguiu se exprimir: só os compositores alemães sabem dar expressão a massas 1 010

Marx-Engels, 1955, vol. VII, p. 329. 1955, vol. XXI , p. 307.

1 084 Marx-Engels,

de povos em movimento, àquele enonne barulho artificial, que não tem sequer necessidade de ser muito forte; ao passo que, por exemplo, a ópera italiana conhece apenas coros de servos e de soldados, mas nenhum "povo". Além disso, em toda a música alemã se pode ouvir uma profunda inveja burguesa da nob/esse, em particular do esprit e da élégance, enquanto expressões de uma sociedade cortesã, cavaleresca, antiga, segura de si mesma.

Estamos na presença de um capítulo de história de modo nenhum acaba­ do: ''Está progredindo aquele esmorecimento do sentido melódico nos alemães, como uma incivilidade democrática e um efeito póstumo da Revolução" (FW, 103). Obviamente, Nietzsche se dá conta da mudança radical ocorrida em re­ lação a O nascimento da tragédia. De fato, ele se autocrítica por ter no seu tempo deturpado "a última música alemã", pondo de novo "esperanças lá onde não há nada a esperar, onde tudo indica claramente demais um fim !" (GT, Tentativa de uma autocrítica, 6). A denúncia do contágio plebeu e socializante em curso na Alemanha se encarniça em particular contra o autor da Critica da razão prática: ele "des­ cobriu ademais também uma faculdade moral do homem"; não obstante as poses real-politisch, os alemães se revelam "no fundo cheios de aspiração devocional" (JGB, 1 1 ); em última análise, são os apaixonados pela "organiza­ ção moral do mundo" (EH, O caso Wagner, 2). Exatamente por isso eles se revelam particularmente surdos à pesquisa psicológica, que traz à luz tudo o que há de turvo na reivindicação da justiça e nas palavras de ordem morais brandidas pelos movimentos subversivos e plebeus: "censuram os alemães por estarem enganados a respeito de Kant", por não terem compreendido que a sua filosofia não é certamente caracterizada pela "honestidade intelectual" (GD, Incursões de um inatual, 16) . É totalmente estranha aos alemães a capacida­ de de aprofundamento e de penetração. Zaratustra é "o primeiro psicólogo dos bons" (EH, Por que eu sou um destino, 5), mas não é por acaso que ele não é ouvido na Alemanha. Por isto Nietzsche contra Wagner é "um ensaio para psicólogos, não para alemães" {NW, Prefácio) . Portanto: O "espírito alemão" é ar viciado, para mim: tenho dificuldade de respirar no meio dessa sujeira que in psychologicis se tornou instinto, que se revela em

cada palavra. em cada expressão de um alemão. Nunca passaram através de um Século XVII de dura autoprovação como os franceses [ . . . ]; até agora não houve um só psicólogo. Mas a psicologia é quase o metro da limpeza ou sujeira de uma raça (EH, O caso Wagner, 3).

Em conclusão : ·'os alemães são canaille"; constituem o povo igualitário por excelência; ..o Alemão nivela" (EH, O caso Wagner, 4 ) . Como é depois confirmado pelo empenho da Alemanha nas guerras antinapoleônicas: com o seu apelo às massas e à unidade do povo sem distinções, eles são profunda­ mente influenciados pela Revolução Francesa, que até declaram em geral que­ rer combater. E de novo surgem a analogia e o contraste (pelo que diz respeito ao juízo de valor) com Engels, o qual identifica exatamente nas guerras antinapoleônicas o início da revolução burguesa na derrocada do Antigo Regi­ me na Alemanha. 1 085 Ao lê-las como um momento essencial da subversão moderna, Nietzsche aumenta a dose porque vê enfrentarem-se de um lado uma massa fanatizada, que frequentemente agita palavras de ordem cristãs, do outro lado o herói intimamente leigo (Napoleão), que teve o mérito de derrotar a hidra da revolução, de restaurar a escravidão nas colônias e de inspirar-se na Roma imperial pagã. Voltando atrás, encontramos na Reforma e na Guerra dos Camponeses o primeiro golpe duro - sublinha Engels - ao Antigo Regime e ao poder da aris­ tocracia feudal, tomados de assalto pelo canto de corais que são "a Marselhesa do século XVI". 1 086 A opinião de Nietzsche não é diferente, ainda que a partir de um j uízo de valor mais uma vez diverso e oposto. Quem, senão Lutero, devolveu vitalidade ao cristianismo, e nos seus aspectos mais plebeus, salvan­ do-o da morte por eutanásia que o Renascimento e a volta da antiguidade clás­ sica lhe estavam preparando? ''No momento em que uma ordem dos valores superiores, os valores aristocráticos" parecia ter levado a melhor sobre os "va­ lores opostos do declínio" (EH, O caso Wagner, 2), no momento em que o paganismo estava subindo até a soleira dos papas, eis o fanatismo do monge alemão a arruinar tudo com as suas pregações moralizantes e o seu apelo ao ressentiment plebeu contra a aristocracia romana e os senhores da esplêndida civilização do Renascimento. Em conclusão, os três momentos (Reforma protestante e a Guerra dos Camponeses ligada a ela, sublevação e levée en masse antinapoleônica, idea­ lismo alemão) que, aos olhos de Engels, marcam a tradição revolucionária da Alemanha, se configuram aos olhos de Nietzsche como os estágios da doença democrática e subversiva que há certo tempo devasta aquele país. Mas é possível recuar mais ainda. Em muitas ocasiões, Engels faz uma analogia entre cristianismo original e socialdemocracia revolucionária. Assim também Nietzsche, que nesta analogia encontra, porém, um motivo a mais para 1 085 Marx-Engels, 1955, vol. VII, p. 539. 1 086 Marx-Engels, 1 955, vol. XX, p. 3 12.

a sua condenação da Alemanha. O país que, com Lutero, salva o cristianismo da recuperação pagã do Renascimento é responsável por ter contribuído, mais de um milênio antes, para o triunfo da nova religião, plebeia e subversiva, sobre a antiguidade clássica: Não teria havido cm geral nenhuma cristianiz.ação da Europa, se a civilização do mundo antigo no Mediterrâneo não tivesse sido gradualmente barbariz.ada por uma exorbitante mistura de sangue germânico bárbaro e não tivesse ficado sem o seu predomínio cultural (FW, 1 49).

E, antes ainda de cristianizar um Sul naturalmente e felizmente pagão, os germânicos contribuíram de modo decisivo para a derrota de Roma e da ordem hierárquica representada por ela: "Com relação ao Imperium romanum, são os portadores da liberdade" (EH, O caso Wagner, 2). Não há porque se admirar do papel desempenhado pela Alemanha. Seu povo sempre esteve na primeira fila para falsificar a realidade, para querer a todo custo moralizá-la, é o mestre de algum modo do credo quia absurdum, uma atitude que "para todo latino verdadeiro constitui um pecado contra o espírito" (M, Prefácio, 3). Antes ain­ da dos alemães modernos, já "os germanos representam na história a 'organi­ zação moral do mundo"' (EH, O caso Wagner, 2). Somos levados a pensar nos judeus, o povo moral por excelência e portanto protagonista privilegiado de uma subversão de longa duração. Compreende-se então porque os alemães se revelam particularmente surdos em relação a Nietzsche, "aquele primeiro espí­ rito" que ousa pôr em discussão quatro milênios de "moeda falsa" judeucristã (infra, cap. 29 § 1 2). Na história da Alemanha, uma férrea linha de continuidade conduz do primeiro cristianismo a Lutero, à sublevação "cristômana", além de "teutômana", contra Napoleão, ao moralismo de Kant, pendant teórico da Revolução Fran­ cesa e do socialismo. Nesse ponto, Alemanha e ciclo da subversão moderna tendem a ser a mesma coisa, tendo se desenvolvido na onda do cristianismo ou da tradição judeucristã. Acabamos de ver que "o Alemão nivela" (stellt gleich); mas é preciso não esquecer que é em "Cristo" que o "rebanho" manifesta de modo eminente ·'o seu instinto a favor dos niveladores" (Gleichmacher) e o seu ódio ··contra a hierarquia" (XII, 379-80). Ademais, ao contrário de outros países, na Alemanha uma alternativa à deriva democrática e plebeia custa a tomar forma. A Inglaterra teve o mérito, com Galton, de chamar a atenção para a fisiologia e a eugenia (infra, cap. 1 9 § 1 ) , em contraste nítido com o teimoso "idealismo" alemão e com a supersti­ ção democrática ligada a ele, segundo a qual tudo dependeria do ambiente e da educação. No que se refere à França, basta comparar Tocqueville e Taine com

Sybel. É este último que se sai bastante mal por causa da indulgência que mostra em relação à Revolução Francesa. Leia-se este trecho: "É do regime feudal e não de sua queda que surgiram o egoísmo, a avidez, as violências e a crueldade que conduziram aos terrores dos massacres de setembro". E eis o comentário de Nietzsche a estes ""soberbos pensamentos", como são sarcasti­ camente definidos: "Creio que tal atitude se sinta e se considere como 'libera­ lismo"'; é todavia repugnante �·um tal ódio posto à mostra contra toda a organi­ zação social da Idade Média" (B, III, 5 , p. 28). É o historiador alemão que manifesta a preocupação ou a obsessão de colocar os crimes da ideologia re­ volucionária e da Revolução Francesa na conta do regime social por elas contes­ tado e derrubado. Não há dúvida. Do seu ponto de vista, Nietzsche tem razão. Como foi ob­ servado, Sybel avalia positivamente "o traço antifeudal de 1 789" e, ao analisar a Revolução Francesa, mesmo fazendo, como é óbvio para um liberal conservador, uma nítida condenação do jacobinismo, se abstém de liquidá-la em bloco e de querer pôr em discussão todos os seus resultados. Sobretudo, o historiador ale­ mão procura compreender as perturbações na França prestando a devida aten­ ção à ''história social". 1 IB7 Bem mais que na história social, Nietzsche está inte­ ressado em fazer intervir a psicopatologia, a psicologia criminal e até a psicologia do criminoso hereditário. Sente-se, portanto, mais próximo de Taine e do próprio Tocqueville, também ele fortemente comprometido no diagnóstico psicopatológico em particular do jacobinismo. Até no que diz respeito à historiografia, a cultura alemã se revela mais contagiada pelas ideias modernas.

2. Entre Frederico III e Guilherme II Nos últimos anos e meses da sua vida consciente, Nietzsche tem a im­ pressão de assistir a uma aceleração dramática da deriva democrática e plebeia da Alemanha. Estamos na véspera da fundação da II Internacional, ou da "re­ novação da Internacional em escala ampliada e aumentada". Quem se expri­ me assim é Mehring, que sublinha o papel de primeiro plano da socialdemocracia alemã, que se prepara para assumir "a direção do movimento operário intema­ cional".1 088 O partido parece atravessar um período de graça: "todo mês via surgir novos jornais operários", enquanto aumentavam as obras teóricas de intelectuais eminentes. A cultura socialdemocrática se difundia de modo capilar 10lC7 10�x

Seier, 1973, pp. 142-3. Mehring, 1 96 l b, vol. II, pp. 663 e 647.

nos mais diversos estratos da população: na capital do Reich vinha à luz a "'Biblioteca operária berlinense' , uma série periódica de opúsculos populares, nos quais Clara Zetkin se apresentou como a combatente mais dotada das operárias alemães com um excelente trabalho sobre a questão feminina". E não é tudo: "Também no campo literário despontavam novos rebentos [ . . . ] . Depois vieram os almanaques de partido [ . . . ] . O ardor criativo da primavera animava de tal modo a classe operária", ainda mais porque "um movimento geral de greves" possibilitava despertar vastíssimos estratos do proletariado, ainda não atingidos pelo movimento operário, para a consciência de classe".1089 A fundação da II Internacional é também "o centenário da grande Revolu­ ção Francesa": a sua lembrança parece estimular mais a outra revolução que, segundo Mehring, está amadurecendo; em ambos os casos "ocorreu com inexorável força uma necessidade histórica". O protagonista dessa nova época histórica só pode ser o partido operário, que na Alemanha avança de vitória em vitória, sem que ··nenhuma potência deste mw1do" esteja em condições de bloqueá­ lo. 1c.oo ·'Em nenhum outro país - nota com pesar Stõcker em 1 8 87-88, ou seja, nos mesmos anos em que a reprimenda antialemã de Nietzsche adquire a sua extrema aspereza - os princípios socialdemocráticos se difundiram tão ampla­ mente, penetraram tão profundamente". Demonstram-no os resultados eleitorais sempre mais inquietantes1001 ou, do ponto de vista desta vez de Engels, sempre mais encorajadores, melhor, tão estimulantes que levam fazer crer em uma subi­ da pacífica ao poder do movimento operário e socialista. Este sabe servir-se de modo magistral do "sufrágio universal"; "a mão do Estado" está como que "para­ lisada"; as classes dominantes "esgotaram todos os seus meios, sem utilidade, sem finalidade, sem sucesso"; a sua "impotência" já está manifesta. t m Também Nietzsche começa a crer (e temer) que na Alemanha as classes dominantes não estejam em condições de resistir eficazmente à ofensiva políti­ ca e ideológica da revolução, tanto mais porque exatamente nesse momento surge uma crise política e até dinástica bastante aguda. Enquanto ainda se arrasta o longuíssimo reinado de Guilherme 1, já nonagenário, ficam evidentes os sinais da doença mortal que está devorando o príncipe herdeiro, o qual por isso parece destinado a ceder o lugar ao filho jovem, ambicioso e inexperiente, já em conflito, por um lado, com a mãe (filha da rainha Vitória, da Inglaterra), e por outro lado, com Bismarck. Assistimos à luta de três "partidos" que se reú1 0�9 Mehring, 1 96 1 b, vol. II, pp. 664-667. 1090 Mehring, 1 96 1 b, vol. II, pp. 663 e 706. 1 09 1 Stõcker, 1 890, p. 1 6 1 . 1 092 Marx-Engels, 1 955, vol. XXII, pp. 5 1 7-8 e 525.

nem, respectivamente, em torno do príncipe herdeiro (já condenado pela doen­ ça) e da sua esposa, do jovem filho e do velho chanceler. Antes de analisar as diversas plataformas políticas e ideológicas, convém entretanto notar que o filósofo tem a possibilidade de acompanhar a crise dis­ pondo, pelo que parece, de informações de primeira mão. Numa carta de 5 de março de 1 8 88 à mãe, a propósito das intrigas que se desenvolvem em torno do príncipe herdeiro tomado de um mal incurável, o filósofo escreve: "Por acaso, estou muito bem informado sobre as intima innmissima dessa horrível histó­ ria" (8, III, 5, p. 269). E duas semanas depois, sempre numa carta à mãe (8, III, 5, p. 273), refere alguns particulares bastante interessantes: a sua "vizinha de mesa é a baronesa Plãnckner, nascida Seckendorff", parente, portanto, do "conde Seckendorff", chefe do cerimonial da Corte e em boas relações como conhecido e como paciente do "conselheiro secreto von Bergmann", um dos médicos que cuidam do príncipe herdeiro, sendo que este último no momento tenta encontrar cura na Riviera lígure, não muito longe de Nice, onde está o filósofo. A carta conclui assim: "Estou, pois, muito bem informado sobre os acontecimentos em Sanremo. Tenho até entre as mãos folhas escritas pelo príncipe herdeiro dois dias antes da sua partida" (para Berlim onde, após a morte de Guilherme 1, subiu ao trono com o nome de Frederico III). Portanto, Nietzsche tem a possibilidade de acompanhar as lutas, as mano­ bras, os rumores que se desenvolvem e se seguem no período de tempo que, passando através da agonia e do breve reinado de Frederico III, vai desde a morte de Guilherme 1 aos primeiros atos de governo de Guilherme II, o período de tempo que coincide com a precipitação do filósofo na loucura. Vejamos de que modo Nietzsche reage ao desenrolar dos acontecimentos, voltando à pri­ meira das duas cartas à mãe antes citadas: As notícias de Sanremo não têm nada de tranquilizador. Esse sistema de mentiras e de deformação arbitrária dos fatos, de mês em mês levado adiante por essa inglesa de acordo com um médico inglês inepto, indignou até os estrangeiros, para não falar do médico alemão, da fanúlia imperial inteira e de Bismarck (B, III, 5, p. 269).

O médico inglês, decididamente contrário à intervenção cirúrgica imedia­ ta recomendada pelo colega alemão, tinha feito um diagnóstico bastante tranquilizador, prontamente aceito pela princesa Vitória não só por razões afetivas, mas talvez também por um cálculo maquiavélico: embora gravemente doente, o herdeiro ao trono de Guilherme 1, rejeitando os convites à abdicação que lhe eram feitos de muitas partes, daria de algum modo tempo para se preparar para uma adequada atuação da consorte. lli

Nesse momento, a opinião do filósofo não é diferente da de Treitschke, o qual, logo após a subida de Guilherme II ao trono, manifesta o seu desgosto pelas precedentes "manobras mentirosas do médico inglês" e do círculo que girava em torno dele. 1 093 Nietzsche continua a ser severo também na carta seguinte à mãe, de 20 de março de 1 8 88. Poucos dias depois, Frederico III está no trono dos Hohenzollem; ao referir que dispõe de informações reservadas graças à sua "vizinha de mesa", o filósofo acrescenta que se trata de uma parenta do "conde Seckendorff, o qual, como é sabido, é a ' mão direita' e ainda algo mais da nova imperatriz" (B, III, 5 , p. 273). Certamente, esta alusão aos amores extraconjugais da soberana vinda de Londres não lança uma luz favo­ rável sobre ela, amores consumados enquanto a sombra da morte se projeta sempre mais profunda sobre o novo imperador. Este último também não se sai bem: os seus adversários censuram-no por sofrer influência demasiada da consorte e, portanto, de ambientes e interesses estranhos ou potencialmente hostis à Alemanha. Um quadro nitidamente diferente surge de uma carta subsequente, de 20 de junho de 1 88 8, a brevíssima distância da conclusão dos 99 dias de reinado de Frederico III: ··A morte do imperador me comoveu : enfim, era um pequeno raio de luz de pensamento livre, a última esperança para a Alemanha. Agora inicia o regime Stõcker - ti ro as consequências disso e já sei que enfim a minha Vontade de potência será logo confiscada na Alemanha" (B, III, 5 , p. 33 8-9) . Quem é visado aqui é mais o pregador da Corte do que o imperador, de qual­ quer maneira culpado por ter mantido com ele relações comprometedoras. Também nesse caso Nietzsche se revela bem informado. Em 28 de novem­ bro de l 887se desenrolara na casa do conde e general Waldersee (mais tarde chefe do estado-maior do exército) uma iniciativa em apoio da Berliner Stadtmission, a "Missão berlinense" (em favor dos pobres) dirigida por Stõcker: o príncipe Gui­ lllerme não só participou dela pessoalmente, mas também pronunciou uma breve alocução durante a qual exprimiu o seu apreço pelo "pensamento social cristão" do pregador da Corte. Foram enormes o barull10 e o escândalo. O próprio Bismarck se exprimiu com dureza numa longa carta ao príncipe Guilllerme: era inadmissível que um membro da Casa Real se identificasse com um partido político, e ademais um partido político tão discutido e tão desacreditado. 1 004 Essa é substancialmente a opinião expressa por Nietzsche na carta citada acima, de 20 de junho de 1 88 8 . Numa carta ainda posterior, porém, datada de 14 de setembro de 1 88 8 , o filósofo parece introduzir um elemento de cautela: 1 093 Treitschke,

1978, p. 4 1 5. 1 094 Rõhl, 1993, pp. 7 1 5-734.

Aos poucos, este jovem imperador é apresentado sob uma luz mais favorá­ vel do que se poderia esperar; recentemente se exprimiu em termos fortemen­ te antissemitas e agora manifestou publicamente o seu profundo reconheci­ mento pelos dois (Bennigsen e o barão von Douglas) que no momento oportuno, com tato, o tiraram da companhia comprometedora de Stõcker e seu gmpo. Foi-me dito até que seu comportamento em relação à sua mãe é cem vezes mais respeitoso do que poderia desejar a paixão partidária na Alemanha e na Inglaterra (B, III, 5, p. 433-4). Dois dias depois, em 16 de setembro, a cautela parece até ceder o lugar à plena identificação : o "o nosso jovem imperador alemão - escreve Nietzsche agrada cada vez mais; quase toda semana dá um passo para mostrar que ele não quer ser confundido nem com a ' Kreuzzeitung' nem com o 'antissemitismo' [de Stõcker]" (B, III, 5, p. 439). Como se pode observar, pela referência a órgãos de imprensa e a pessoas bem determinadas, Nietzsche refere-se a acontecimentos concretos. O "barão von Douglas", do qual a carta de 14 de setembro fala, fora elevado por Guilher­ me II três semanas antes, 20 de agosto, à dignidade de conde. Em todo caso, trata-se de uma personalidade que exprime uma orientação e uma linha política bem diferentes das de Stõcker. Como é clamorosamente confirmado pelo dis­ curso que o conde Hugo von Douglas pronuncia algum tempo depois, em 4 de outubro de 1 8 8 8, e que imediatamente conhece uma amplíssima publicidade e difusão promovida pelas altas esferas. Neste texto (O que podemos esperar do nosso imperador) auspicia-se o "reforço e consolidação do princípio monárquico" em nítida polêmica contra "os partidos democráticos e que têm em vista objetivos democráticos", os quais gostariam de reduzir o imperador a "uma figura meramente representativa". 1 095 É claro o contraste com Stõcker que, como veremos, não hesita cm apelar para a Revolução Francesa e até em reivindicar uma .. democracia política e social". Mas voltemos a Nietzsche. A espera confiante em relação a Guilherme II, que substituiu as dúvidas e perplexidades iniciais, é de breve duração. Uma carta do início de dezembro de 1 8 88 insere o "imperador alemão" entre os braune ldioten (B, III, 5, p. 501 ). Não há dúvida sobre o significado do substanti­ vo. Mas ao que faz referência o adjetivo braun, "escuro"? De qualquer forma, o que aconteceu de tão importante, no período que vai de setembro a dezem­ bro, para provocar um juízo tão áspero?

1 095 Rõhl, 200 1 , pp. 3 2-6.

3. A emancipação dos "escravos domésticos negros " e Guilherme II, o "idiota escuro " Em busca de elementos concretos que nos permitam dar resposta a essa pergunta, folheando Ecce Homo, que Nietzsche começa a escrever a partir de meados de outubro, eis que nos deparamos com uma acusação precisa: "O imperador alemão pactua com o papa, como se o papa não fosse o represen­ tante da inimizade mortal contra a vida!" (EH, Porque sou tão inteUgente, 1 0). De fato, em setembro de 1 888, Guilherme II, por ocasião de uma viagem sua a Roma, tinha visitado e homenageado Leão XIII, o pontífice que, poucos anos depois, com a encíclica Rerum novarum e com a atenção dedicada à questão social, se arvorará como defensor autêntico das legítimas reivindica­ ções camponesas e operárias, procurando estender a influência da Igreja Cató­ lica entre as massas populares, em concorrência com a II Internacional. Mas este encontro não basta para explicar a polêmica de Nietzsche. Conti­ nuando a foll1ear Ecce homo, eis que surge uma nova acusação precisa: "Neste momento, o imperador alemão afirma que é seu 'dever cristão' libertar os escra­ vos na África" (EH, O caso Wagner, 3). Uma pergunta se impõe: há uma rela­ ção entre as duas anotações polêmicas? Elas ocorrem num momento em que a campanha abolicionista encontra um grande eco na Europa. Ela fora lançada a partir de Paris, pelo cardeal Charles Lavigerie. A expansão das grandes potênci­ as europeias e cristãs na África é chamada a promover a libertação dos escravos negros do inferno da sua condição. Oficialmente apoiada pela Santa Sé, essa campanha parece obter particular sucesso na Alemanha. Em 26 de outubro de 1 888, seguindo-se a um breve discurso papal de alguns dias antes, a oficiosa "Norddeutsche Allgemeine Zeitung" escreve: "A ação magnânima do chefe su­ premo da Igreja Católica, ditada por um sublime amor cristão pela humanidade, deixa esperar que ela não ficará isolada, mas, ao contrário, encontrará nos outros corações uma viva ressonância e uma fecunda imitação". WJ6 Enquanto, por um lado, "quer libertar os escravos domésticos negros por amor aos escravos" (XIII, 643), por outro lado, a Alemanha de Guilherme II, na sua agitação chauvinista, procede a uma polêmica tão aguda contra a França até o ponto de excluí-la do número dos países civis. O desdenho de Nietzsche é irresistível: ·'A 'Norddeutsche Zeitung ' [ ] vê nos franceses um povo 'bár­ baro' - da minha parte procuro o continente negro, lá onde se desejaria libertar ·os escravos', na Alemanha do Norte" (NW, Onde Wagner está colocado) . São os anos em que Bismarck rotula nestes termos os franceses, irremediavel. . .

1º96 Renault.

1 97 1 . vol. II, p. 149.

mente afetados pelo espírito gregário e inimigos desde sempre do país que representa de modo eminente a civilização: "São trinta milhões de bobos igual a negros (Ka.ffer) e nenhum deles é dotado de valor e qualidade". 1097 Significa­ tivamente, quem é particularmente visado por Nietzsche é o diário que vimos na vanguarda em apoio à campanha do abolicionismo cristão católico. Aos olhos do filósofo, considerando bem, é exatamente o país de Guilherme II que remete à África, ao "continen te negro". A essa altura estamos em condições de compreender a inclusão de Guilherme II entre os braune ldioten, entre os "idiotas escuros". De modo análogo, nos Estados Unidos, os "democratas" do Sul decidiram defender antes a escravidão e depois a white supremacy, rotu­ lando como black republicans os republicanos comprometidos na frente da luta pelo abolicionismo e a igualdade racial. Voltando à Alemanha, é um fato que entre os mais decididos (e imparci­ ais) sustentadores do cardeal Lavigerie estão Bismarck e Guilherme II. En­ quanto ajudam o chanceler a conseguir no Reichstag o apoio também do Zentrum católico, 1 098 as palavras de ordem abolicionistas e cristãs podem tornar-se par­ ticularmente úteis a um país que entrou tarde na expansão colonial. Tudo isso não deixa de levantar suspeitas no plano internacional. Traçando o quadro da situação num livro publicado em 1 8 89, um ex-diplomata francês observa: "O grão-chanceler alemão tinha dirigido uma carta ao Santo Padre a favor da ação de um francês, o qual parece esquecer os interesses do seu país em nome de uma vaga ideia humanitária". Como se vê, morno e até hostil é o juízo expresso sobre o cardeal Lavigerie. 1 099 Do ponto de vista de Nietzsche, a França tem o mérito de mostrar-se menos santarrona e menos cristã que a Alemanha. Nesse contexto, são lidos os insultos lançados contra o "papa-hóstias" que guia o II Reich e que em vão procura camuflar-se sob o "escarlate" do uniforme de hussardo (EH, Porque sou tão inteligente, 5). Podemos assim compreender a furibunda polêmica contra os "idiotas escarlates" (scharlachne ldioten) (B, III, 5, pp . 5 65-6) ou os "idiotas em púrpura (gepurpurten ldioten) (XIII, 64 1 ) que dominam Berlim. S e o substantivo remete inequivocamente àquele "'idiota na cruz", que é Cristo (XIII, 644), os dois adjetivos parecem sugerir a ideia de que, sob a aparência falsa do uniforme hussardo, se esconde uma espécie de púrpura cardinalícia semelhante à que Lavigerie vestia. Ambas animadas por "hostilidade mortal contra a vida", "instituição dinástica" e "instituição sacerdo­ tal" parecem ser a mesma coisa na Alemanha (XIII, 645). Em polêmica contra 1091 1098

ln Herre, 1 983, p. 167.

Wehler, 1985, p. 363.

1099 Renault,

1 97 1 , vol. II, pp. 222-3. 535

um II Reich que se tomou agora sinônimo de cristianismo, Nietzsche se define "antialemão e anticristão par excellence (B, III, 5, p. 537). No fim da sua parábola, o filósofo parece voltar ao ponto de partida: inici­ ara prevenindo, com o olhar voltado para os operários da Comuna de Paris, contra o terrível perigo representado por uma "categoria bárbara de escravos" em revolta; agora, mais do que nos operários de Ultrarreno, este perigo parece tomar corpo na desgraçada. Corte cristã, que eleva e agita a bandeira da eman­ cipação dos escravos negros. A campanha abolicionista em curso se apresenta às vezes como uma cruzada contra o mundo muçulmano, acusado de promover ou favorecer o tráfico dos escravos negros na África. 1 100 E é um motivo a mais a provocar a indignação de Nietzsche que, de fato, depois de ter evidenciado os "instintos aristocráticos, viris" próprios daquele mundo, lança uma palavra de ordem de­ cididamente provocadora: "Guerra sem quartel a Roma! Paz, amizade com o islã" (AC, 60). Agora o quadro está claro: "os alemãs são estúpidos demais e vulgares demais para a altura do meu espírito" {B, III, 5, p. 543); não estão em condi­ ções de compreender o radicalismo aristocrático. Depois de ter encontrado na Alemanha o seu lugar de eleição, a devastação moderna e democrática conhe­ ce aqui uma ulterior aceleração dramática com a ascensão de um imperador cristão e abolicionista ao trono, o "idiota em púrpura" ou o "idiota escuro".

4 . A "mo narquia social " de Stó cker e Gu ilherme II e a

contrarrevolução auspiciada por Bismarck Mas não são apenas razões de política internacional que explicam a virada de Nietzsche e o seu ódio irreprimível para com Guilherme II. Em Crepúsculo dos ídolos podemos ler: "o trabalhador exausto e de respiração dificil" é a figura tomada como modelo "na idade do trabalho (e do 'Reich')" (GD, Incursões de um inatual, 30). Não só no II Reich não há lugar para o otium (MA, Prefácio, 8), mas o frenesi e a celebração do trabalho contagiaram a própria Coroa. Conhece­ mos já a ironia e o desdém do filósofo pelo esforço profuso por Guilherme 1 em apresentar-se como um "trabalhador" igual aos outros (supra, cap . 1 0 § 2). Ainda mais radical, porém, é o seu neto Guilherme II, que, antes ainda de subir ao trono, reservara atenção e simpatia ao projeto "cristão social" de Stõcker, susci­ tando assim uma onda de escândalo, ulteriormente engrossada pela atitude de 1 1 00

Renault, 1 97 1 , vcl. II, pp. 368-9.

Bismarck. Em duas cartas endereçadas exatamente ao chanceler, mesmo dando um pequeno passo para trás e garantindo não querer identificar-se com o partido do pregador da Corte, o príncipe Guilherme tinha acentuado, todavia, o seu empe­ nho, inspirado pelo "amor cristão", a favor das classes pobres do nosso povo", dos ..estratos humildes de trabalhadores da sociedade". 1 1º1 Uma vez cingida a coroa dos Hohenzollern, ele se mostra decidido a de­ senvolver uma ação de mediação nos ásperos conflitos sociais do tempo: "rom­ pendo com todos os precedentes - sublinha um historiador americano dos nos­ sos dias - Guilherme II permite que uma delegação de [mineiros] grevistas se dirija ao Palácio para apresentar a ele as suas reivindicações de uma jornada de trabalho de oito horas". Não contente com isso, dois dias depois convida os proprietários de minas a fazer o "contrato mais estrito possível" com os seus empregados, sem nunca esquecer o direito destes últimos a serem de algum modo participantes dos frutos do seu trabalho. Estimulado certamente, em pri­ meiro lugar, pelo desejo de conquistar popularidade, mas talvez também por "algum fraco vestígio de responsabilidade cristã", ele esboça um programa de reformas que prevê a "proteção dos operários", a abolição do trabalho domini­ cal e outras medidas em favor das mulheres e das crianças. Desse modo, Guilherme II consegue, com efeito, ganhar "considerável popularidade entre a classe operária", tanto que é saudado como o "rei dos trabalhadores" durante suas visitas aos "bairros mais pobres de Berlim". 1 102 Compreende-se, então, o sentimento de horror sentido por Nietzsche: o rei dos "escravos domésticos negros" na África é ao mesmo tempo o "rei dos trabalhadores" na Alemanha. Traçando uma linha de continuidade de Guilher­ me 1 a Guilllerme II, o filósofo observa que "a maldita dinastia" dos Hohenzollem agita sempre a bandeira da "bênção ao trabalho" (XIII, 645). Nas palavras de Mehring, é o momento em que "ecoava de todas as torres oficiais o toque de trombeta da monarquia social". 1 103 É a palavra de ordem de Stõcker. Este sintetiza seu projeto político num escrito que vê a luz em 1 8 9 1 , pouco tempo depois da precipitação de Nietzsche na loucura, e que leva o título, bastante significativo, de Socialdemocracia e monarquia social. Depois de ter expressado a própria satisfação pela superação ocorrida, nesse meio-tempo, da legislação antissocialista, o pregador da Corte se pronuncia por uma ..democracia política e social". 1104 No que diz respeito ao p rimeiro ponto, 1 101

ln Bismarck, I 9 19, pp. 586-7 e 598. Cecil, 1989, vol. I, pp. 133- 135. 1 10J Mehring, 1 96 1 b, vol. II, p. 659. 1104 Stõcker, 1 8 9 1 a, pp. 1 7, 26 e 2 1 . 1 102

ao fazer uma avaliação positiva da monarquia constitucional e ao condenar o "cesarismo" (talvez uma alusão polêmica referida a Bismarck), ele saúda a chegada do ·'sufrágio universal, igual e direto" e a "igualdade jurídica e política dos homens" que surgiu da Revolução Francesa. No que diz respeito ao segun­ do ponto, o socialismo autêntico, que Stõcker pretende promover e que, ao contrário do ''comunismo vulgar", respeita a "liberdade da personalidade", é a "aspiração a conduzir à vitória também no terreno econômico o movimento histórico mundial da igualdade".1 1 05 Ao "Estado do povo", sonhado ou amea­ çado pela socialdemocracia, Stõcker contrapõe a ideia de "Estado social", rea­ lizado e dirigido por uma "monarquia social" inspirada pelo cristianismo. 1 1 06 Se o socialdarwinismo - observa o pregador da Corte - tem a tendência a fazer valer "para nós homens e cristãos" as leis do "mundo animal", se os liberais manchesterianos podem permanecer indiferentes diante do drama da miséria da massa, a "consciência da cristandade", não; 1 107 mesmo rejeitando firme­ mente a revolução e a violência, "o cristianismo é social como nenhum outro sistema de pensamento que existe no mundo". 1108 São temas que Stõcker retoma e desenvolve também em outras interven­ ções. O movimento histórico-mundial de realização da igualdade não pode não abranger a relação homem/mulher. Ao se opor à exploração excessiva sofrida no local de trabalho, as mulheres não devem hesitar em recorrer à "organiza­ ção sindical" (Koalinon) e à "agitação" e à "greve": "para melhorar as suas condições de trabalho, as operárias devem formar as suas associações exata­ mente como os homens; do contrário não darão um passo em frente". 11 09 As mulheres têm de qualquer modo o direito de acesso à instrução e às profissões, a começar pela profissão médica. Stõcker parece não excluir sequer o sacer­ dócio feminino. Olha para os Estados Unidos como para um modelo, embora dificilmente alcançável na Alemanha, de "plena emancipação" feminina e de "completa igualdade com os homens". É claro que o movimento de emancipa­ ção das mulheres é "uma corrente totalmente irreprimível". 1 1 1 º As reformas sociais aqui expostas e auspiciadas estão inseridas no âmbito de uma filosofia da história cristã social. De uma sociedade cujo lema era Noblesse oblige! Passou-se para uma sociedade que tem por lema Richesse 11 05

Stõcker, 1 89 1 a, pp. 25 e 1 8.

1 106 Stõcker, 1 89 1 a, pp. 1 3 e 1 9. 1 107 Stõcker, 1 89 1 a, p. 10. 1 10� Stõcker, 1 89 1 a, p. 1 6.

1 1 º9 Stõcker, 1 89 1 b, p. 7; Stõcker, 1899, p. 45. 1 1 10 Stõcker, 1 899, pp. 48-9.

oblige! Mas também esse ordenamento "desafia Deus e, justamente, os ho­ mens".1 1 1 1 Depois de ter posto em movimento o processo que "aboliu a escra­ vidão", o cristianismo inspira o socialismo autêntico, esta "ideia que move o mundo" e que é chamada a realizar também a "equação das diferenças econô­ micas". 111 2 No plano mais propriamente político, tal como a monarquia absolu­ ta cedeu o lugar à monarquia constitucional, assim os "empregadores absolu­ tos" devem tomar-se "constitucionais", aceitando ''discutir com os seus operá­ rios a organização da fábrica e a assistência social". Nesse caminho, depois de ter abolido a servidão da gleba durante a luta contra Napoleão, Prússia e Ale­ manha se colocaram na vanguarda. Com a sua mensagem de 1 8 8 1 , Guilherme 1 decretou que ·'as classes trabalhadoras" têm direito não mais à esmola, mas a uma ·'ajuda estatal organizada"; Guilherme II não só retomou e enriqueceu depois a herança do avô, mas, a partir de Berlim, procurou desenvolver um movimento ''internacional" para a realização das medidas necessárias de pro­ teção dos operários. 1 1 13 É exatamente tal filosofia da história que Bismarck censura no jovem imperador. Este desejaria p romover a "emancipação dos operários" à imitação de seus avós, que realizaram a emancipação dos camponeses ; mas é uma atitude ditada pela dificil busca de uma problemática "popularidade entre as massas da população" e cujo resultado pode ser apenas a difusão da suspeita e do alarme entre "todas as classes proprietárias". 1 1 1 4 O ex-chanceler não es­ conde o seu desprezo pela "chamada lei de proteção aos operários". Na reali­ dade, mais que a "proteção aos operários" (Arbeiterschutz), ela persegue a "coação dos operários" (Arbeiterzwang), obrigados pelo alto a "trabalhar me­ nos ". Além de encontrar a motivada hostilidade do mundo da indústria, a "limi­ tação legal do trabalho das mulheres , das crianças e dominical" comete o erro de violar "a independência do operário na sua atividade econômica e nos seus direitos como chefe de família". Ele certamente não será "grato" por essas limitações e imposições. A vantagem irá apenas para a "agitação" socialista, que pretende descarregar sobre os empresários os custos dessa lei infeliz, reivindicando uma redução do horário de trabalho com o mesmo salário. Tudo isso não fará senão alimentar depois "as crescentes expectativas e a avidez nunca satisfeitas das classes socialistas". 1 1 1 5 1111

Stõcker, 1 89 1 b, p. 1 2. Stõcker, 1 89 1 a, pp. 1 6-8. 11n Stõcker, 1 89 1 a, pp. 22-3. 1114 B ismarck, 1 9 1 9, p. 623; B ismarck, s. d., vol. II, p. 567. B ismarck, 1 9 1 9, pp. 6 1 7-8 e 62 1 .

1 1 12

1 1 15

Compreende-se então a chamada de atenção, na carta ao príncipe Gui­ lherme, contra o perigo representado por Stõcker. Este exprime sua admiração e seu desapontamento pelo fato que, depois de ter promovido um início de legislação social, agora Bismarck guie a oposição contra o projeto de continui­ dade dessa legislação, levado avante pelo neto de Guilherme 1. Segundo o pre­ gador da Corte, uma "atitude sadiamente social ista" teria cedido o lugar no chanceler a uma "visão de f1Jndo manchesteriana".1 1 1 6 Esta análise é funda­ mentada? Na realidade é o próprio Stõcker quem evoca o motivo principal da mudança ocorrida em Bismarck quando interpreta a legislação social aprovada ou a ser aprovada como reconhecimento do fato que "as classes trabalhadoras têm um di reito legítimo à ajuda do Estado" e quando insere tal reconhecimento num quadro de filosofia da história para que à limitação constitucional do poder do monarca devesse logicamente segui r-se a limitação constitucional do poder do proprietário. 1117 Aqui estamos muito além daquele mínimo de assistência octroyée, graciosamente concedida do alto a partir do amor cristão, do "cristi­ anismo prático", do qual Bismarck fala em 1 8 8 1 . Agora, porém, o chanceler sente o mau cheiro de revolução: "Os padres podem ser bastante minosos e ser de escassa ajuda; os países mais devotos ao clero são os mais revolucionários". É preciso não fazer concessões, a partir de uma posição de fraqueza, a um movimento subversivo que se engrossa amea­ çadoramente . Antes que sofrer a desnaturação da monarquia, um soberano deveria estar p ronto a ''morrer com a espada em punho enquanto luta pelo seu direito nas escadas do seu trono". Em todo caso, "há o tempo do liberalismo e o tempo da reação e até do domínio fundado na violência" (Gewaltherrschaft). É uma espécie de invocação da guerra civil preventiva. E para quem ainda não o tivesse entendido, o chanceler de ferro lembra a palavra de ordem da contrarrevolução em 1 848: "Contra os democratas só os soldados podem servir de aj uda" (Gegen Demokraten helfen nur Soldaten). 1 1 18 Bem longe de querer atenuar ou anular a legislação antissocialista, Bismarck exige o seu prolongamento por tempo indeterminado e um maior aperto do mecanismo da repressão. Em caso de necessidade está até pronto a proclamar a lei marcial e a dobrar a eventual resistência do Parlamento com uma espécie de golpe de Estado. Ele formula a tese segundo a qual '.'a socialdemocracia implica para a monarquia e o Estado um perigo de guerra mais agudo do que a presente situação internacional e deve, portanto, ser con1 116 Stõcker, 1890, p . 1 8 1 . 1 1 1 7 Stõcker, 189 1 a, p. 23. 1 1 1 M Bismarck, 1 9 1 9, pp. 593 e 595.

siderada por parte do Estado, não como uma questão de direito, mas como uma questão de guerra e de força". 1 1 1 9 É preciso tomar nota disto: "a questão social não pode ser resolvida superficialmente; sangue e ferro se impõem"; "em últi­ ma análise, a questão socialista é [ . . . ] uma questão mil itar". 1 1 2º Não se trata apenas de palavras . Bismarck se propõe a acabar com a greve dos minei ros enviando o exército para abrir fogo contra eles. O derrama­ mento de sangue e as agitações ligadas a isso teriam depois sido a ocasião para proclamar o estado de exceção e passar para um ajuste de contas definitivo com a socialdemocracia sem deixar-se atrapalhar por escrúpulos constitucio­ nais. Em todo caso, os "agitadores", os expoentes e os militantes do partido socialista deviam ficar privados do direito eleitoral ativo e passivo e até serem expulsos do país . 11 21 O chanceler - observa uma testemunha dos aconteci­ mentos - aspira tomar-se "'salvador exclusivo" das "classes proprietárias". 1 1 22 Na conclusão da sua análise sobre a irresistível ascensão da socialdemocracia na Alemanha, Engels denuncia a inclinação das classes dominantes a tomar próprio o lema de Odilon Barrot: ·'La legalilé nos tue, a legalidade é a nossa morte". 1 1 23 É a convicção amadurecida por Bismarck nos últimos meses em que dirige o II Reich. A essa altura, é interessante notar a consonância objetiva entre o programa amadurecido pelo chanceler de ferro na véspera da sua derrota e as ideias de Nietzsche. Como vimos (supra. cap. 10 § 3), um parágrafo de Crepúsculo dos ídolos lamenta o fato de que foram concedidos direitos políticos ao operário. Bismarck pretende agora pô-los de novo em discussão. Nietzsche condena tam­ bém ··o direito de associação sindical" (Coalitions-Recht), o direito teorizado e defendido por Stõcker. Além de odioso ao filósofo, o pregador da Corte é odioso também ao chanceler, decidido agora a esmagar manu militari greves e agita­ ções operárias . Independentemente também dos projetos ulteriores de virada radical, a fase final do período de permanência de Bismarck na direção do país é caracterizada por ataques furiosos ao movimento sindical e à "liberdade de coa­ liZ:'lo". 1 1 24 Tanto mais necessário é o recurso a medidas drásticas pelo fato que as concessões não conseguem de modo algum aplacar "a avidez nunca satisfeita das classes socialistas". Mas esse é o ponto de vista também de Nietzsche, sob 1 1 19 Bismarck, 1919, p. 6 1 l .

1 1 2º

Bismarck, s. d., vol. II, p. 564 e vol. III, p. 7 1 . Rõhl, 200 1 , pp. 298-302 e 329-33 1 ; Gall, 1 980, pp. 690-700. 1 1 22 Gall, l 980, p. 696. 1 m Marx-Engels, 1955, vol. XXII, p. 525. 1 1 24 Mchring, 196 1 b, vol. II, pp. 634-5. 1 121

cujos olhos o operário aproveita-se de toda concessão para "pedir sempre mais, imoderadamente". Não estamos mais na presença de reivindicações materiais um tanto excessivas. O fato é que o operário sente agora a sua condição como uma ·'injustiça" e, para modificá-la, está pronto à violência e à revolta. Assim conclui o parágrafo aqui citado de Crepúsculo dos ídolos, mas esta é também a conclusão a que chega o chanceler de ferro, segundo o qual a ameaça represen­ tada pela socialdemocracia pode ser evitada só com a força. É necessário acabar com o "sentimentalismo hurrranitário" (Humanittitsdusel), do qual também Gui­ lherme II foi acometido. Pretender "transformar os operários em homens felizes graças a intervenções legislativas" é um sonho que nem sequer é belo, dado que a "satisfação universal" levaria consigo o fim de toda "ambição", de todo esforço e energia e o triunfo da "estagnação". 1125 A luta contra o Estado social assume aqui acentos que poderíamos definir como nietzscheanos.

5. "Liga antialemã " e golpe de Estado contra Guilherme li Nos últimos meses de vida consciente do filósofo as contradições do II Reich aproximam-se do ponto de mptura. À crise interna se entrelaça a crise no plano internacional . Enquanto o reinado de Guill1erme 1 se prolonga além de qualquer expectativa, um príncipe herdeiro (o futuro Frederico III) se prepara para subir ao trono, mas na realidade impossibilitado para desempenhar suas funções por causa da doença que o devora. Segundo Bismarck, a esposa "o influencia e domina de modo completo". 1 126 Em tais condições, não teria sido exatamente ela, a filha de Vitória da Inglaterra, a assumir em última análise o controle do trono dos Hohenzollem? Com o seu comportamento "a Inglesa'', como é chamada com des­ prezo pelos seus adversários, 11 27 (e, como vimos, na carta de 5 de março de 1 888, pelo próprio Nietzsche) autoriza as mais graves suspeitas. Primeiro minimiza a doença do herdeiro ao trono. Quando a sua gravidade e irremediabilidade se tor­ nam evidentes, empenha-se com todas as suas forças para impedir a abdicação sugerida por muitos. Depois de tomar-se imperatriz, justifica o papel político de primeiríssimo plano que pretende exercer com declarações bastante singulares: se sua mãe cm Londres pode estar na frente de um império mundial, não há razão para que ela, em Berlim, não dirija um simples Estado europeu! 1 1 28 ln Ceei!, 1 989. vol. 1, pp. 1 35-6 e Bismarck, s. d., vol. III, p. 53. Bismarck, s. d. vol. II, p. 424. 1 1 27 Para esta definição desdenhosa cf. Mehring 1 96 1 b, vol. II, p. 658. 1 128 Sobre este ponto cf. Cecil, 1989, vol. 1, p. 1 1 3 . 1 1 25

1 1 26

Em tais circunstâncias, o marechal de campo Waldersee, bastante próxi­ mo do futuro Guilhenue II, não só acena para "ásperas lutas" como, no seu diário, chega até a acariciar a ideia de um golpe de Estado. 1 1 29 Esta parece ser a melhor solução porque a situação internacional está cheia de perigos. Do outro lado do Reno, a crescente popularidade do general Boulanger demonstra a capacidade de revanchismo na França, a qual parece preparar-se para fazer uma al iança com a Rússia com finalidade antialemã. Aparece o perigo da guer­ ra em duas frentes. Talvez con\1iesse malográ-la com um ataque preventivo. Poder-se-ia tirar proveito das "desordens internas" ou das "perturbações na França ou na Rússia", que surgem no horizonte ou, de qualquer modo, não seria dificil estimular também desde o exterior. Este é o projeto que o marechal de campo Waldersee cultiva ou a tentação que sente em particular. 1 1 30 Nietzsche segue com atenção o desenrolar da situação. De Nice, depois de ter relatado a chegada, casual ou prevista, de membros do primeiro plano da família imperial russa, ele acrescenta: '"É a última estação antes da guerra' assim todos afirmam" (B, III, 5 , p. 54). É l º de janeiro de 1 8 87. O filósofo se limita aqui a registrar a crise sem tomar posição. Mas é possível ler uma dura crítica à Alemanha numa carta sucessiva de l 2 de fevereiro: sob a liderança de Bismarck o país "está empenhado com febril virtude no seu rearmamento e apresenta em tudo e por tudo o aspecto de um caracol tomado de um estado de espírito heróico" {B, III, 5, p. 249). No entanto, ainda não estamos na presença de uma condenação unívoca e exclusiva do II Reich . O filósofo continua a manifestar incertezas ainda em 1 4 de setembro de 1 888, na carta já citada na qual atribui a Guilherme II o mérito de assumir em relação com sua mãe (a filha de Vitória da Inglaterra) uma posição ·'cem vezes mais cuidadosa do que a paixão partidária na Alemanha e na Inglaterra poderia desejar". Nesse mo­ mento, o chauvinismo do qual é preciso manter distância se manifesta em Lon­ dres não menos que em Berlim. Mas eis que, poucas semanas depois, o julgamento sobre o novo impera­ dor se toma tão azedo que envolve toda a dinastia dos Hohenzollem. Um frag­ mento imediatamente precedente ao colapso de 3 de janeiro de 1 88 9 censura uma dupla culpa ao ·'bando cristão" de Berlim. Ele, por um lado, toma posição a favor dos escravos negros, por outro lado, "semeia os malditos dentes de dragão do nacionalismo entre os povos" (europeus), perseguindo uma política expansionista sem escrúpulos que data já ·'da época de Frederico o Grande Ladrão" (XIII, 643). Sobre o primeiro ponto não há dúvida. O compromisso de 1129 Rõhl, 1 993, p. 6 1 5. 11.1o ln Rõhl, 1993, p. 603.

Guilherme II, em nome do cristianismo, em favor da abolição da escravatura na África, além do melhoramento da condição das massas populares na Alema­ nha, não pode não suscitar a indignação de Nietzsche. O novo imperador faz referência a Frederico o Grande e à sua tese segundo a qual o rei é o primeiro servidor do Estado.1 131 É a confirmação do triunfo da ideologia do trabalho na Corte de Berlim, com a submissão a essa ideologia de um grande líder militar. Em relação ao grande líder Nietzsche exprimiu sua admiração (infra, cap. 2 1 § 6), mas eis que agora, exatamente por causa das suas batalhas vitoriosas e das suas conquistas, Frederico II se toma "o Grande Ladrão". E chegamos assim ao segundo aspecto. A condenação e o alarme pela agitação chauvinista que aumenta na Europa agora ataca em primeiro lugar, ou de modo quase exclusivo, o II Reich, e esse juízo de condenação projeta retro­ ativamente uma luz bastante negativa sobre Frederico II . O fato é que a Ale­ manha não só se prepara para a guerra, mas prepara-se perseguindo projetos bastante preocupantes . Obcecado pelo perigo da guerra em duas frentes, Waldersee pensa que, sobretudo, contra a Rússia czarista, se poderia ou se deveria apelar para o clero católico, eventualmente doutrinado por uma oportu­ na "'diretiva proveniente de Roma" para levar a Polônia a insurgir-se. 1132 Nietzsche, que já no período "iluminista" denunciou os métodos adotados por Bismarck para enfraquecer a França (o encorajamento às correntes de es­ querda mais radicais, de modo a agravar a divisão interna do país e isolá-lo no plano internacional) e que nesse meio tempo abandonou a precedente russofobia (que o induzia a sugerir em relação ao império czarista uma Realpolitk seme­ lhante àquela criticada no chanceler em relação à França) (supra, cap. 7 § 2 e 1 1 § 7), agora, logo após a opção pau-europeia se tomar precisa e radicalizada, não pode não ficar horrori zado pela crescente imparcialidade da política exter­ na do II Reich. Agora mais do que nunca a Alemanha coloca em primeiro plano mais a rivalidade com os países vizinhos do que o conflito realmente decisivo para o filósofo, o conflito que contrapõe a élite europeia, a raça dos senhores no seu conjunto, à ralé socialista e aos bárbaros das colônias. Por responsabili­ dade em primeiro lugar dos dirigentes alemães, vai surgindo na Europa um conflito pensado segundo modalidades revolucionárias, ou seja, semeando a subversão nas fileiras inimigas. De fato, a guerra teorizada e desejada por Waldersee, mas também por outros expoentes do estado-maior,1133 desembo­ caria, algumas décadas depois, numa gigantesca maré revolucionária. 1 13 1

Rõhl, 200 1 , p. 3 1 . Rõhl, 1 993, pp. 609-6 10. i m Ritter, 1 967. pp. 48 1-2.

1 1 32

Em última análise, é o espectro da revolução que angustia Nietzsche, que com lucidez previne contra o perigo representado pelos exércitos de massa, pelo armamento do povo. Imutável é a sua admiração pela figura do guerreiro aristocrático, que, no entanto, está para ser suplantada pela figura social e po­ liticamente bem diferente do soldado recrutado que evoca o espectro do servo armado (infra, cap. 22 § 5). O perigo é grave. Como evitá-lo? Ao opor-se à política de -concessões e reformas sociais apresentada por Guilherme II, o chanceler desenvolve uma manobra que tem uma dimensão internacional. Se o ambicioso imperador se põe à frente da cruzada para a "abolição da escravatura" nas colônias e procura promover de modo análogo uma campanha internacional que chame a atenção, em nome sempre dos valo­ res cristãos, sobre a dureza da condição operária na Europa, Bismarck, ao contrário, tenta até levar · 'os governos alemães e estrangeiros" a tomar posi­ ção contra a iniciativa de Guilherme II para a "proteção dos operários". 1134 Acalentada secretamente em Berlim, primeiro por Waldersee contra a filha da rainha Vitória da Inglaterra e depois por Bismarck contra a socialdemocracia, a ideia de golpe de Estado se apresenta como uma perspec­ tiva concreta na França tomada pela crise p rovocada pelas ambições bonapartistas do general Boulanger. Nietzsche não só parece estar informado dessas manobras, mas também auspicia claramente o seu sucesso, como se segue do epistolário: "Penso que terei necessidade de Vitório Bonaparte como imperador da França" (B, Ili, 5, p. 569). O misterioso líder bonapartista cha­ mado a pôr fim à Terceira República, e ao longo ciclo revolucionário nascido dela, talvez pudesse desempenhar um papel importante na luta também contra a subversão dominante em terra alemã. É nesse contexto que é preciso colocar o apelo de Nietzsche às "cortes europeias" para se unirem numa "liga antialemã" (B, Ili, 5, p. 5 5 1 ). Agora campeã da subversão "trabalhadora", cristã, humanitária e nacionalista, a Ale­ manha faz pesar sobre a Europa e sobre a civilização enquanto tal uma grave ameaça. É preciso frustrá-la de uma vez por todas. A partir da vitória obtida sobre a França, o que deixava Bismarck inquieto era o cauchemar des coalitions; agora esse pesadelo é chamado a tomar corpo numa "liga" pensa­ da no modelo das coalizões em seu tempo constituídas contra a França revo­ lucionária e posteriormente renovada pela doutrina e pela prática da Santa Ali­ ança; só que o alvo agora é constituído pelo II Reich de Guilherme II, que nesse meio tempo se revelou o foco mais perigoso do contágio subversivo.

1 134 Treue, 1958, p. 644; Rõhl, 200 1, pp. 298-30 1 e 329-33 1 .

Mas não basta confiar na sabedoria e no que resta de instinto aristocrático nos países vizinhos. É preciso agir resolutamente na própria Alemanha. Em várias cartas, as últimas escritas por ele, Nietzsche persegue a esperança de que de algum modo deslanche um processo que leve à destituição, captura e até o fuzilamento de Guilherme II (B, III, 5, p. 55 1 e 568 etc.). Não há dúvida: a vida do filósofo chega agora ao fim. No entanto, mais do que liquidar esses pensamentos em bloco como insensatos, trata-se de descobrir o método pre­ sente na loucura incipiente. O emaranhado de contradições em que nesse mo­ mento se debate o II Reich leva Nietzsche a acalentar a ideia de um golpe de Estado que ponha fim não só ao reinado daquela espécie de imperador cristão­ socialista que é Guilherme II, mas também ao longo ciclo subversivo iniciado com o cristianismo e ao próprio cristianismo. O filósofo se pergunta também pelo bloco político-social que poderia levar a termo a contrarrevolução anticristã e antissocialista por ele auspiciada. Con­ vém citar por extenso uma longa passagem do esboço de uma carta a Brandes do início de janeiro de 1 8 88: Dado que se trata de u m golpe mortal (Vernichtungsschlag) contra o cristi­ anismo, é claro que a única potência internacional que tem um interesse instintivo na aniquilação (Vernichtung) do cristianismo são os judeus: aqui estéÍ a inimizade instintiva, não aquela "imaginária" dos "espíritos livres" e dos socialistas - não dou a menor importância aos espíritos livres. Por con­ seguinte, devemos poder contar com todas as potências decisivas dessa raça na E11ropa e na América; além do mais, tal movimento dispõe do grande capital do qual precisamos. Aqui está o único terreno naturalmente prepara­ do para a maior guerra e a maior decisão da história: o resto dos partidários pode ser levado em consideração só depois de ter feito o golpe. Essa nova potência, que se fonnará, poderia imediatamente se tomar a maior potência mundial: supondo que inicialmente as classes dominantes tomem posição a favor do cristianismo, elas já estão ameaçadas na raiz pelo machado, dado o fato que todos os indivíduos fortes e vitais irão se afastar necessariamente delas. Não é necessário ser psicólogos para compreender que, em tal oca­ sião, todas as raças espiritual mente doentes sentirão o cristianismo como a fé própria dos dominadores e, consequentemente, tomarão posição a favor da mentira. O resultado é que, nesse ponto, a dinamite fará saltar aos ares qualquer organizaÇéio militar, qualquer Constituição; de modo que a frente inimiga ficará desarticulada e despreparada para a guerra. Tudo somado, teremos ao nosso lado os oficiais em virtude já dos seus instintos: que seja sumamente desonroso, vil e sujo ser cristão, tal julgamento resultará inevita-

velmente da leitura do meu Anticristo [.. ] . Em relação ao imperador alemão, sei como tratar tais idiotas escuros (braune ldioten); aqui se mede um oficial bem sucedido (B, III, 5, p. 500- 1 00). .

Portanto, o sucesso deste golpe de Estado estaria garantido pelo apoio daquelas que, aos olhos de Nietzsche, são as duas forças anticristãs por exce­ lência. Vejamos a primeira: ··se procuro quais são os meus aliados naturais, eles são antes de tudo os ofici áis: com o instinto militar no corpo não se pode ser cristão; de outro modo seriam falsos cristãos e também falsos soldados" (XIII, 642). Se ainda houvesse inibição ou hesitação em golpear uma religião que, de qualquer modo, está nos antípodas dos seus sãos instintos guerreiros, os oficiais poderão encontrar na leitura do Anticristo um suplemento de consciên­ cia e de energia. Colocada nesse contexto, a febril atitude desenvolvida por Nietzsche para levar adiante os textos projetados por ele adquire um significa­ do a mais : trata-se de reforçar também no plano teórico o "partido da vida" para que esteja à altura das provas decisivas que o aguardam. Mas junto com o corpo dos oficiais, o grande capital judeu é chamado a desempenhar um papel de destaque. Nessa sugestão se percebe o eco do con­ flito que se está iniciando entre o programa "social" de Guilherme II e os inte­ resses e as resistências da grande indústria: os ambientes influenciados pelo cristianismo são menos confiáveis . A religião à qual eles se referem, por um lado, os convida à obediência para com a autoridade constituída; por outro lado, os toma propensos ao acolhimento da ideologia favorável aos pobres ostentada por Guilherme II. O grande capital judeu, porém, é duplamente anticristão: por um lado, remete a um componente essencial do mundo aristocrático e, por outro lado, a uma cultura e a uma comunidade que, por quase dois milênios, tiveram de chocar-se com o cristianismo, a um povo cujo indomável espírito guerreiro é testemunhado pelas páginas de história consagrada nas partes pré­ exíl icas do Antigo Testamento. Por isso Nietzsche insiste com força: "Para o meu movimento internacional preciso de todo o grande capital judaico" {B, III, 5, p. 5 1 5). Os judeus não tinham visto com simpatia a tentativa de Juliano de acabar com o cristianismo?1 13 5 Agora, a um milênio e meio de distância, são chamados a desempenhar um papel central na luta contra aquela espécie de Constantino em versão cristão-socialista que é Guilherme IL

ms

Sobre isto cf. Gager, 1 985, pp. 94-5.

6. Grande capital judeu, "oficialidade aristocrática " prussiana e cruzamento eugênico Convém logo especificar que Nietzsche fala com respeito e até com ad­ miração só do judeu capitalista. E esta figura merece respeito e admiração apenas na medida em que se afasta de tudo o que no judaísmo cheira a plebe e subversão : ."Desejo sempre mais que os judeus cheguem na Europa ao poder, de modo que, não tendo mais necessidade dele, percam as características em virtude das quais até agora se afirmaram como oprimidos" (B, III, 5, p. 82). Graças à participação no poder, as classes altas do judaísmo poderão finalmen­ te deixar de lado todo resíduo de ressentiment e de messianismo e fornecer uma contribuição válida para a luta contra a subversão. Em Além do bem e do mal podemos ler: ·

A religião oferece também a uma parte dos governados uma orientação e º uma ocasião para preparar-se a fim de dominar (herrschen) e comandar um dia, isto é, para aquela classe e aquelas camadas em lenta ascensão nas quais, graças a felizes costumes matrimoniais, a força e o prazer da vontade, a vontade de autonomia vai continuamente se potenciando - e a essas pessoas a religião oferece suficientes impulsos e atrativos para percorrer o caminho de uma espiritualidade superior, para experimentar os sentimentos da grande superação de si mesmos, do silêncio e da solidão - ascetismo e rigor puritano (Puritanismus) são, de fato, meios quase indispensáveis para educar-se e enobrecer-se, quando uma raça quer triunfar sobre a sua origem _ plebeia e se esfor�a para elevar-se ao domínio que um dia exereerá (JGB, 6 1).

As grandes famílias judias transmitem hereditariamente não só a riqueza, o refinamento dos costumes, o amor pelas artes, o poder e a capacidade de domínio e autodomínio, mas também uma visão da vida e um senso do espaço e do tempo que vão bem além da "pequena política", com a angústia provinci­ ana e os ódios mesquinhos sem grande perspectiva que a caracterizam. Aque­ las grandes famílias não conhecem limites estatais e nacionais e do alto da sua existência e experiência seculares podem olhar com suficiência as contendas cotidianas que encrespam a superfície da vida política. Portanto, elas são parte integrante e eminente da "nova nobreza" e da elite pan-europeia da qual Nietzsche está em busca; mas são tudo isto sob a condição de sacudir das costas, de uma vez para sempre, o pó plebeu que caracteriza a maior parte da história do judaísmo. Satisfeito pelo fato de que a sua filosofia foi caracterizada por Brandes como "radicalismo aristocrático", ao se referir a respeito dela a Peter Gast,

Nietzsche comenta: "Isto é bem formulado e bem percebido. Ah, esses ju­ deus !" (B, III, 5, p. 2 1 3). Uma definição tão feliz talvez seja um indício do fato que os judeus melhores e mais bem sucedidos, entre os quais está colocado o próprio Brandes, percebem uma certa afinidade eletiva com a causa do "radi­ calismo aristocrático" e com a filosofia que soube exprimi-la. A luta contra a ralé não pode renunciar à contribuição dos judeus ocidentais, pelo menos dos que se integraram na sociedade,.na cultura e no sistema de valor�s da Europa entendida no seu sentido mais forte e mais autêntico: frequentemente alçados a posições bastante eminentes, eles são parte integrante daquela classe dos se­ nhores que, ao exercer o seu domínio, não deve deixar-se paralisar pelas brigas míopes e ruinosas. A gravidade do desafio subversivo e revolucionário impõe a unidade das elites dominantes. Se Stõcker lamenta que os capitalistas de origem judia tendem a fündir-se com a grande propriedade de terra prussiana, seja porque controlam uma sua parte sempre mais importante, seja porque conseguem, graças também à sua potência financeira, adquirir sempre mais frequentemente a dignidade de nobreza, 1 1 36 o último Nietzsche, ao contrário, depois de ter superado a preceden­ te atitude de desconfiança e hostilidade, saúda com entusiasmo tal processo. Ele poderia ser depois consolidado e tomado irreversível promovendo o encontro e o enlace também familiar entre os dois componentes decisivos da formação aristo­ crática. É necessário resolver de uma vez por todas o "problema da fusão da aristocracia europeia, ou antes do Junker prussiano, com a judia" (XI, 5 69). É uma "receita" que poderia ser assim sintetizada: "garanhões cristãos e reprodutoras judias" (XIV, 3 70). Esta política matrimonial não serviria só para reduzir a tensão entre as classes superiores. Trata-se de um verdadeiro programa eugênico que visa "unir e enxertar (hinzuzüchten) a arte hereditária de comandar e de obede­ cer", que constitui a melhor característica da "oficialidade aristocrática da mar­ ca" de Brandenburgo, "ao gênio do dinheiro e da paciência", exatamente dos judeus (JGB, 25 1). A luta contra a modernidade e a democracia não pode passar sem as qualidades e os dotes dos Junker, mas estes poderão continuar a ser uma força importante apenas se conseguirem fazer frente também no plano econômi­ co ao desafio dos tempos novos: Os alemães devem criar (züchten) uma casta dominante. Confesso que nos judeus são inatas qualidades que são ingredientes indispensáveis para um raça que quer conduzir uma política mundial. O sentido do dinheiro deve ser aprendido, herdado e herdado mil vezes: ainda hoje o judeu está em condi­ ções de competir com o americano (XI, 457). 1 1 36

Stõcker, 1 890, pp. 48 1 -2.

Há de se acrescentar que, além do dinheiro e do sentido do dinheiro, os judeus levariam em dote algo ainda mais importante, "um pouco do espírito e da espi ritualidade" da qual há "grande penúria" em um corpo caracterizado pela rudeza soldadesca e estreiteza provinciana (JGB, 25 1). Por sua vez, os judeus teriam muito a ganhar: não tendo sido nunca "uma casta dominante" nem se­ quer ··na sua pátria", não são capazes de "representar o poder". Sim, é preciso tomar nota: O seu olho não convence, a sua língua facilmente se toma rápida demais e se enrola, a sua cólera não combina com o profundo e respeitável rugido leonino, o seu estômago não aguenta os grandes banquetes, nem o seu intelecto, os fortes vinhos, os seus braços e pernas não permitem a eles as paixões altanei­ ras (nas suas mãos palpita frequentemente não sei qual lembrança); e, final­ mente, o modo como um judeu monta a cavalo [. . . ] não é sem dificuldade, e deixa entender porque os judeus nunca foram uma raça de cavaleiros {XI, 568).

Sabemos que a ''nobreza da forma" é essencial para incutir respeito e temor reverencial na plebe. Infelizmente, os financistas judeus continuam a conservar algum hábito reprovável. Tendem a "fazer um ninho de parasita em alguma parte" . Ademais, o h{ibito de gastar, também por lucros núnimos, muita inteligência e perseve­ rança, deixou no caníter deles um sulco fatal: de modo que também os mais respeitúveis financistas do mercado monetúrio judeu não sabem renunciar, quando as circunstâncias o comportam, a estender os dedos, a sangue frio, para abusos pequenos e mesquinhos que fariam um financista prussiano ficar vermelho de vergonha (XI, 569).

Mas, para o último Nietzsche, trata-se de inconvenientes superáveis gra­ ças à fusão social e ao cruzamento eugênico entre os dois componentes essen­ ciais da ""casta dominante" a ··criar". Podemos agora percorrer de novo a evolução de Nietzsche a esse respei­ to. Nos escritos juvenis, vimo-lo denunciar a aristocracia apátrida e judaica do dinheiro como artífice da subversão e até do complô revolucionário (cf. supra, cap. 3, § 5-6). Humano, demasiado humano continua, apesar de tudo, a con­ denar o ')ovem judeu da Bolsa" como "a invenção mais revoltante da raça humana em geral" (cf. supra, cap. 7, § 7). Enfim, ainda a quarta parte de Assim falou Zaratustra chama a tradicional aristocracia proprietária de terra a manter distância das finanças judaicas (cf. infra, cap. 1 8, § 5). No entanto, o processo de repensamento já se iniciou . Quanto mais ameaçador é percebido o perigo da subversão plebeia, tanto mais se impõe a busca de um bloco social

capaz de bloqueá-la e rechaçá-Ia. A partir sobretudo de Além do bem e do mal, Nietzsche acaba recomendando a fusão da aristocracia prussiana com as fi­ nanças judias : só assim se poderá resolver um problema essencial para a for­ mação e a consolidação de uma casta de senhores à altura da situação, a do enlace entre representação do poder e da nobreza da forma de um lado e a força do dinheiro e a amplidão dos horizontes do outro.

7. O "radicalismo aristocrático " e o partido de Frederico III Tanto mais urgente é a solução desse problema porque a virada cristã socialista de Guilherme II faz a casta dos senhores e a civilização enquanto tal correrem um perigo mortal. Em relação a esta virada, o próprio Bismarck é decididamente hostil, mas se trata de um aspecto que Nietzsche ignora. Com­ preende-se então a condenação áspera e conjunta da corte e do chanceler. Depois de ter oscilado no seu juízo sobre Guilherme II e sobre o próprio Frederico III (pensar nas críticas destinadas à esposa), o filósofo toma enfim posição pelo partido que era rotulado pelos seus adversários como antinacional e filoinglês, mas que os atuais intérpretes de Nietzsche tendem a transfigurar sob uma luz liberal e progressiva. Convém analisá-lo concentrando a atenção em primeiro lugar sobre a figura de Vitória, esposa do príncipe herdeiro (que se toma depois Frederico III) e filha de Vitória da Inglaterra. Não obstante a nova posição adquirida em consequência do matrimônio celebrado em 25 de janeiro de 1 858, já a décadas de distância, a mulher do herdeiro designado ao trono dos Hohenzollern se define "uma inglesa, uma britânica nascida para a liberdade". Cabe à Grã­ Bretanha, em primeiro lugar, a tarefa de "civilizar outros países"; a sua potên­ cia é ·'uma bênção para a humanidade" e, portanto, - conclui - "de tudo o que diz respeito ao meu país, estou muito orgulhosa". E voltando-se para o filho ainda jovem: '"Para vós, não é de primeira qualidade nem a forma de governo, nem o desenvolvimento do vosso comércio e da vossa agricultura, nem as relações sociais; até no que diz respeito à arte não podeis bater os outros; sois atrasados em muitíssimas coisas nas quais as nações civis modernas devem ser perfeitas, se acalentam o pensamento de serem guias para as outras!" Em vão o preceptor do futuro imperador previne contra a ''insistência na superioridade inglesa". 11 37 A descendente da dinastia mais distinta, que reina 1 137 RõhL

1993, pp. 282-3.

no país industrialmente mais desenvolvido e militarmente mais poderoso do mundo, não perde nenhuma ocasião para acentuar o atraso da Alemanha. Logo depois do casamento, ao exprimir desapontamento pela modéstia ou mediocri­ dade das suas novas instalações, observa a Bismarck que há mais pratos de prata em Birmingham que em toda a Prússia. Muitos anos mais tarde, se como­ ve com a sorte de um diplomata que perdeu o chapéu enquanto ia visitá-la: "Pobre sir Edward! Nem sequer se poderia comprar-lhe outro num país como este" . 1 138 Sim, a Alemanha ·conheceu um impetuoso desenvolvimento, mas permanece sempre uma parvenue acometida de vulgaridade plebeia. Demonstra isso o fenômeno do "comunismo que se espalha como mancha de óleo"; levará anos para extirpar as "doutrinas selvagens" das quais está fundamentalmente imune a ilha feliz. 1 139 A legislação social promovida por Bismarck em 1 8 8 1 é a confirmação dos piores temores: "Se ele conseguir realizar os seus planos escreve a princesa herdeira à mãe - a Alemanha cairá um dia vítima do comu­ nismo". 1 1 40 Por sua vez, o chanceler visa exatamente o círculo do príncipe herdeiro e o partido filoinglês, enquanto condena o "grupelho dos políticos manchesterianos, os representantes desapiedados da carteira", que gritam es­ candalosamente a qualquer intervenção do Estado na economia. Estes - ob­ serva Bismarck em 1 8 8 1 - não sabem olhar além das "suas sociedades por ações" e do andamento dos títulos na Bolsa e esperam, por isso, pela morte de Guilherme 1, nesse momento já além dos oitenta, e pela subida do príncipe herdeiro (o futuro Frederico III) ao trono, para liquidar de uma vez para sempre a legislação social que para eles tem cheiro de socialismo ou comunismo. 1 1 41 Para a filha da rainha Vitória da Inglaterra, a missão civilizadora daquele que ela continua a considerar o seu país não se detém nos limites da Alemanha. · Aliás, não menos duros são os juízos sobre a Rússia e sobre a França. No que diz respeito à primei ra, basta ler os romances de Dostoievski: "repugnantes e horríveis, mas [ . . . ] verdadeiros como uma fotografia"; "graças a Deus, não creio que vá morar na Rússia". No que diz respeito à segunda: "Como Paris parece pequena para quem vem de Londres ! O Sena é estreito em relação ao Tamisa, e a vista de Westminster é bem mais grandiosa do que a vista de Notre Dame". É claro que Berlim se sai ainda pior: é apenas uma "gaiola". 1 142 O que deve ser olhado com complacência ou desprezo é o continente europeu no seu ms

Balfour, 1 968, pp. 93-4. 1 993, p. 278. 1 1 40 Rõh.l, 1 993, p. 409. 1 1 4 1 Bismarck, s. d. vol. II, pp. 33 9 e 364. 1 1 4 2 Rõhl, 1 993, p. 408. 1 139 Rõh.l,

conjunto. Certa vez, ao chegar à Inglaterra, junto com o esposo, para ir atrás da ilusão da cura dele, a princesa herdeira exclama: "Estamos de fato felizes de estar no braço do canal da Mancha que para mim será sempre o certo". 1143 Nesse momento, na comparação entre o futuro Guilherme I I e a mãe, é provavelmente esta última que é acometida pelo chauvinismo mais exaltado; em todo caso, ao chauvinismo anglômano de uma se contrapõe o chauvinismo teutômano do outro. O antagonismo que depois desempenhará um papel decisivo no desencadeamento da primeira guerra mundial se manifesta já com diversos anos de antecedência na relação conflituosa entre a filha da rainha Vitória e o futuro Guilherme II; a tragédia europeia e mundial de 1 9 1 4- 1 8 tem um prólogo tragicômico no âmbito da família do príncipe herdeiro, na corte de Berlim. No entanto, em relação à política interna, não há motivo para desconhecer que o projeto, promovido por Guilherme II sob a influência de Stõcker, de supe­ ração da legislação antissocialista e do desenvolvimento da "proteção dos tra­ balhadores " seja mais equilibrado e de maior visão do que a aspiração de Bismarck ao golpe de Estado antissocialista e antipopular. Falando exatamente de Guilherme II, um autor socialdemocrata contemporâneo dele, e crítico im­ placável da dinastia dos Hohenzollern, deixa escapar esse reconhecimento. O jovem imperador "não permanecera indiferente ao desenvolvimento histórico" e aos desafios do tempo: Ele de modo algum era alheio a pensar, como as mentes mais claras das classes dominantes eram induzidas sempre mais a pensar, que exatamente no interesse destas classes era urgente abolir a lei contra os socialistas e aper­ feiçoar a proteção legal dos operários. O fato de ele mesmo não poder dar um passo sem estar cercado por uma nuvem de espiões, que ele soube por um discurso socialdemocrata no Parlamento, deve ter prevenido o Kaiser tam­ bém pessoalmente contra a lei antissocialista. 1144

Embora relutante à força do último Bismarck, também o "partido do Kronprinz", o futuro Frederico III, se revela surdo à questão social. Não por acaso, os seus "pilares" são, em primeiro lugar, "os grandes armadores e os grades comercian­ tes", alarmados com os projetos de reforma social de Guilherme 11. 1 145 A História da socialdemocracia alemã aqui citada é publicada por Mehring em 1897-98. Est.ão ainda por vir a revolta dos Boxer e o discurso truculento do imperador alemão às tropas que se preparam para partir a fim de sufocá-la no sangue; sobretudo ainda está longe a primeira guerra mundial. Isto explica o 1 1 4) Rõhl, 1993, p. 651. 1 1 44 Mehring, 1 96 1 b, vol. II, pp. 668-9. 1 1 45 Mehring, 1 96 1 b, vol. II, p. 598.

julgamento equilibrado que acabamos de ver, que é confirmado pela historiografia contemporânea. A propósito de Bismarck, o historiador estadunidense muitas vezes citado observou que ele "não estava disposto a adaptar-se às visões pro­ gressistas de Guilherme sobre a questão operária". 1 146 No que diz respeito a Frederico III, esta é a conclusão formulada ou subscrita por um historiador inglês : "Ele pretendia governar com e para a burguesia, mas ficava perplexo diante da contínua ascensão dos traballµ.dores: as suas teorias não previam esse fenôme­ no''. 1 14í Damos agora a palavra a um historiador alemão. Distinguindo-se tanto do seu predecessor como do seu chanceler, e dando expressão para uma ampla opinião pública, Guilherme II busca um "ainda que parcial compromisso com a classe operária e as forças que a representam"; só desse modo se podia evitar a "catástrofe" e as '"perturbações políticas e sociais". 1 148 É um compromisso decididamente rechaçado por Nietzsche. Este, depois das incertezas e oscilações, se coloca ao lado ''do inesquecível Frederico III" (XIII, 643 e 646) e condena com palavras de fogo a prisão arbitrária por "traição" de Heinrich Geffecken, próximo da viúva do defunto imperador, suspeita por sua vez de querer furtar para a Inglaterra a massa de documentos deixada pela esposa e considerada por ela como sendo propriedade privada. O filósofo torna assim posição decidida a favor do partido filoinglês, o partido que, com a princesa Vitória, já em 1 88 1 tinha bradado contra o perigo comunista representado pelo ainda tímido programa de "'cristianismo prático" de Bismarck e Guilherme 1. A admi ração pela ilha aristocrática, pouco afetada pela maré da democra­ tização e massificação, e em relação à qual o chanceler alemão é apenas um ··compadre parvenu" (XIII, 646), está nesses anos amplamente difundida. A orientação de Nietzsche não é diferente daquela assumida pelos seguidores do '·radicalismo aristocrático" do qual ele pretende ser o intérprete. À luz dessas considerações, não há dúvidas sobre o fato de que a "liga antialemã" e o golpe de Estado sonhados pelo filósofo são de sinal reacionário, e de sinal reacionário é também o projeto eugênico, já visto, que visa claramente salvar e reforçar o bloco social do Antigo Regime.

1 146

Ceei!, 1 989, vol. 1, p. 149 e, mais cm geral, pp. 1 47- 1 70. Balfour, 1968, p. 127. 1 148 Gall, 1980, p. 689. 1 1 47

18 " ANTISSEMITISMO" E EXTENSÃO DA LEGISLAÇÃO ANTISSOCIALISTA AOS CRISTÃOS E AOS "ANTISSEMITAS " 1. Polêmica antijudaica dos cristãos e polêmica anticristã dos judeus



omo explicar então ª gra�1de ;�ntade de neut �alizar e até de "expul �� r", e

_ _ , . todos os ant1ssenutas ,Junto com ··Gmlherme, Bismarck e Stocker' ? C ··fuzilar

Na verdade, esta lista é incompleta e, por ser incompleta, corre o risco de ser enganosa. Há uma outra personalidade ilustre que o último Nietzsche, já toma­ do pela loucura, gostaria de atingir: ··prendo o papa no cárcere" (B, III, 5 , p. 5 72, 575 e 579). Vimos Leão XIII, a quem se faz referência aqui, promover, através do cardeal Lavigerie, a campanha para a libertação dos "escravos ne­ gros": dois anos depois, com a Rerum novarum, buscará uma relação com o movimento operário, mas já em 1 8 78 ele tinha feito as primeiras tentativas nessa direção . A encíclica Quod apostolici muneris previne contra o perigo de que ··a máxima parte da humanidade deva recair na torpíssima condição de escravos, que esteve por muito tempo em uso entre os gentios" e admoesta os ··ricos" de que, ··se não vierem em ajuda da indigência, serão com eternos suplícios punidos". 1 1 •19 No que se refere a Guilherme II, sabemos que o que o torna odioso aos olhos de Nietzsche é, em primeiro lugar, a política, inspirada por Stõckcr, de compromisso com a socialdemocracia, sendo que o imperador já mudou a sua ideologia plebeia da abolição da escravatura e da celebração do trabalho, dos trabalhadores e dos "mendigos". Daí os insultos contra a "raça gregária por excelência", a "estúpida raça" alemã {B, III, 5, p. 568-9), guiadas por ··idiotas cm púrpura" ou por "idiotas escuros". Pelo menos os adjetivos "idiota" e ··estúpido" remetem de modo inequívoco à figura de Jesus . Não é o antissemitismo que constitui o alvo das iras do filósofo, como comumente se afirma, mas um projeto cristão-social, contra o qual o filósofo pronuncia uma implacável requisitória que inclui também a acusação de antissemitismo. É uma acusação que obviamente lembra em primeiro lugar Stõcker. Vi­ mos até agora a face simpática do pregador da corte; o empenho como reformador social. É necessário agora analisar a sua face odiosa: o virulento 1 1 4 9 l n Giordani, 1956, p. 36.

ataque contra o judaísmo. São duas faces da mesma moeda, mas duas faces da mesma moeda são também a polêmica antijudaica dos ambientes cristãos e a polêmica anticristã dos ambientes judeus, os quais, conquistada a emancipação e não sendo mais obrigados como na Idade Média a sofrer em silêncio as pregações e as acusações dos seus adversários, estão agora decididos, por sua vez, a "pôr a nu" a natureza real e repugnante daquela heresia do judaísmo que se tomou a religião domina�te no Ocidente. 11 50 No que diz respeito em particular à Alemanha, "nos anos setenta e oiten­ ta" do século XIX vemos as publicações e a "imprensa judaica" lançar "com grande zelo e muitas vezes com espírito agressivo e provocador" uma campa­ nha cuj o alvo é ··o monoteísmo impuro e inconsistente do cristianismo", e mes­ mo o seu ''paganismo" substancial, que "repugna ao homem moderno"; a fim de ridicularizar "muitas tradições do Novo Testamento" não se hesita em re­ correr a "uma linguagem injuriosa e difamatória". 1 151 O motivo, tradicional na literatura talmúdica, da ironia sobre a virgindade de Maria e sobre a real iden­ tidade do Espírito Santo, conhece agora ulteriores desenvolvimentos . Voltando as costas para o monoteísmo� o cristianismo inventa um mediador entre o ho­ mem e Deus : é o Filho. Mas depois Nossa Senhora passa a interceder a favor dos pecadores e, portanto, a mediar com Jesus; a Virgem Mãe acabaria se tornando uma Avó igualmente celeste?11 52 No âmbito dessa campanha se distingue o historiador Graetz, visado por Treitschke e não por acaso definido, pelos ambientes liberais do judaísmo ale­ mão, como "um Stõcker da sinagoga". 1 1 53 Agora se trava uma troca cerrada de acusações e contra-acusações . O cristianismo é a revelação última e defini­ tiva, ou "'Israel é chamado a levar a salvação ao mundo inteiro, e está próximo o tempo em que a cruz cairá em pedaços e a meia-lua se apaga­ rá"'? Quem é o ·'favorito de Deus": o povo cristão ou o povo de Israel? Qual das duas religiões mais contribuiu para o desenvolvimento da tolerância e para a superação da Idade Média e está em condições de resistir mais eficazmente' à onda de secularização e de materialismo? E, em relação à história das perse­ guições religiosas, pode-se verdadeiramente reduzir toda a história do cristia­ nismo, a partir de sua separação do judaísmo, a um "rio de sangue"? E pode­ se considerar correta a tese segundo a qual "só os cristãos são culpados, ao passo que Israel é sempre a parte sem culpa"? Ou, ao contrário, ao fazer um 1 1 5° Flcischmann, 1 970. 11 5 1 Tal, 1 975, pp. 209-2 1 1 . 1 1 52 Fleischmann, 1 970, pp. 1 1 9- 1 20. 11 53 Bamberger, 1 965, p. 1 53.

correto balanço histórico, é preciso ter presentes as perseguições anticristãs sanguinolentas que os judeus fizeram nos raros momentos em que detiveram o poder (por exemplo, no Iêmen do século VI) e a colaboração deles oferecida ao islã no momento em que este combatia e ameaçava a cristandade? As me­ didas para introduzir um mínimo de segurança social para as classes trabalha­ doras estão inspiradas - declara Bismarck - pelo cristianismo; mas - objeta-se no lado judeu - acaso a ideia.de justiça social não está presente, e com força, já no Antigo Testamento? A figura odiosa de Shylock encontra a sua expressão no judaísmo ou, ao contrário, no cristianismo, como Graetz afirma ou reforça, não obstante a indignação de Treitschke? 1 154 Na realidade - responde por sua vez Stõcker - "em Berlim e em toda parte o judaísmo se tomou rico e podero­ so, Nathan o sábio cedeu lugar para Shylock". 1 1 55 A controvérsia nacional se entrelaça com a controvérsia teológica e teológi­ co-política. Dada a calorosa adesão de Treitschke, Stõcker e tantos outros ao mito genealógico germânico-cristão, a polêmica anticristã acaba atingindo tam­ bém a Alemanha. Eis então Graetz que sublinha "a limitação do espírito alemão" e classifica os alemães como os "inventores da servidão da gleba, da nobreza feudal e do vulgar espírito servil", 1 156 suscitando a indignação óbvia de Treitschke. Este acusa os judeus de "arrogância", como demonstra também a sua rejeição à assimilação, e até de "obstinado desprezo em relação aos goyim alemães". Graetz responde convidando-o provocadoramente a se preocupar com Disraeli, o qual celebrou os judeus como uma "raça pura", antes, como uma "raça superior [que] não pode ser absorvida ou destruída por uma raça inferior".1 157 Disraeli reivindica a hegemonia para os j udeus também no plano musical: "A Europa musical é nossa [ .. .]. Quase todo grande compositor, todo musicista entendido, quase toda voz que encanta [ . . . ] provém da nossa gente". Para essa finalidade são citados os nomes de Meyerbeer, Mendelssohn e de Rossini, to­ dos de "raça judia", todos exemplos luminosos do "gênio judeu". 1 158 Além da resposta e da retaliação de Wagner, que já conhecemos, isso provoca a perma­ nente indignação dos ambientes judiófobos e antissemitas, os quais citam esta louvação como prova ulterior da "arrogância" do "povo eleito". A troca de acusações entre cristãos e j udeus, ou entre cultores do mito genealógico cristão-alemão (com a reivindicação de uma missão peculiar para ln Treitschke, 1 965 b, p. 40; Graetz, 1 965 b, p. 49. Stõcker, 1 890, p. 48 1 . 1 1 56 ln Treitschke, 1 965 b, p. 4 1 . 1 1 57 Treitschke, 1965 a, pp. 8-9 e Graetz, 1965 a, p. 3 1 . 1 1 5x Disraeli, 1 982, p. 222 (livro IV, cap. 1 5); sobre isto c( Vincent, 1 990, p. 30- 1 .

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a Alemanha enquanto campeã do cristianismo) e cultores do mito da eleição divina do povo judeu, assume às vezes aspectos grotescos. Foi um alemão ou um judeu que inventou o pó do disparo? E é verdade que "o esplendor da Alemanha se dissolve no judaísmo"'? 1 1 59 Neste parágrafo destaquei em itáli­ co as declarações que Stõcker tira da imprensa j udaica e que o enchem de particular indignação. Por outro lado, ele não tem dificuldade em prestar calo­ rosa e respeitosa homenagem ao Antigo Testamento. "O que há de verdadeiro no socialismo" já está contido na "legislação mosaica": graças à '"proibição do empréstimo a juros" o trabalho era .. protegido da exploração"; se tivermos presentes outras normas, como a obrigação do repouso semanal, devemos con­ cluir que encontramos aqui a '·magna charta de todos os trabalhadores e de todos os oprimidos". Uma linha de continuidade conduz de Moisés até a vibran­ te condenação da riqueza que os profetas fazem. 1 1 60 Como definir então, no seu conjunto, a posição de Stõcker? É completa­ mente diferente da posição, por exemplo, de Dühring, que faz da ''questão judai­ ca" uma questão de raça à qual certamente não se pode pôr remédio mediante o batismo ou a conversão para uma religião, o cristianismo, ele mesmo profunda­ mente e irremediavelmente judeu. Bem diferente é a posição do pregador da corte, o qual, como foi observado, "toma posição até de modo áspero contra o antissemitismo racial". 1 1 61 Não por acaso é muitas vezes criticado, e duramente, pelas colunas da "Antisemitische Correspondenz". Wilhelm Marr, que o rotula como "para-raios" bastante útil para os judeus (ASC, N. l , P. 6), prossegue assim na sua polêmica: "Se o seu ponto de vista é o certo, então renunciemos totalmen­ te ao antissemitismo e fundemos uma abstrata 'Sociedade para a Conversão dos Judeus' e, mediante o batismo, façamos destes últimos 'cristãos sociais'". Diante de tal atitude, ''Sem rejubilar-se", não pode não alegrar-se. Ele j á chegou a esta conclusão: ·'Se Stõcker não existisse, seria preciso inventá-lo" (ASC, n. 8, p. 5). Nietzsche odeia o pregador da corte, mas não há muita diferença entre um e outro aos olhos dos antissemitas autênticos (os raciais). Ao alimentar a ilusão de poder assimilar os judeus (o estrato superior) no âmbito da comunidade alemã ­ ironiza Thomas Frey (pseudônimo de Theodor Fritsch) - o autor de Além do bem e do mal se revela '·um dogmático igualmente obstinado como aqueles pastores que querem cuidar dos judeus mediante o batismo" (ASC, n. 20, p. 1 3). Como nada há a fazer com os antissemitas anticristãos ao modo de Dühring, assim Stõcker tem pouco ou nada em comum com os antissemitas cristianizantes 1 1 59 Cf.

Stõcker, 1 890, pp. 361-7, 386 e 395. Stõcker, 1890, pp. 1 85-8. 1 1 61 Broszat, 1 952, p. 35. 1 1 6º

ao modo de Wagner, empenhados em demonstrar a origem ariana de Jesus. Em referência aos judeus, ele não hesita a declarar: ''Nós os respeitamos como cidadãos e os amamos como o povo dos profetas e dos apóstolos dos quais proveio o nosso Redentor". 1 1 62 Do mesmo modo, Stõcker não tem dificuldade em reconhecer os méritos conseguidos, como precursor da monarquia social, por Lassalle, de quem sublinha a ascendência judia. 1 1 63 A obra do pregador da corte em Berlim acontece mais ou menos no mes­ mo período de tempo em que a nível europeu, a partir do desafio colocado pelos desenvolvimentos da democracia e do movimento operário, o cristianismo pro­ cura redefi nir-se em sentido democrático e social. Stõcker pode, pois, ser com­ parado com o italiano Murri ou com aqueles expoentes do "catolicismo social" francês que, também eles lutando por uma "democracia cristã" e um "socialis­ mo cristão", se sentem comprometidos em "refazer a França cristã". 1 164 Aqui está o foco da tentação antijudaica ou judeófoba·dos cristão-sociais: no esforço de absolver o cristianismo da responsabilidade pela questão social e das acusa­ ções do movimento operário, eles responsabilizam a descristianização ou a cristianização incompleta da sociedade pela miséria da massa . Na Alemanha, o cardeal Ketteler, enquanto celebra a luta do cristianismo contra a "nova es­ cravidão", condena ··esses pagãos modernos" que são os "liberais". 1 1 65 Do ponto de vista de Stõcker, não é grande demais a distância que vai do paganis­ mo ao judaísmo. A partir da obsessão da conversão e da assimilação, ele se aproxima daj udeofobia. Reivindica medidas de descriminação negativa contra os judeus: na magistratura não deveriam estar presentes em medida superior ao seu percentual em relação à população total; seria oportuno negar a eles a possibilidade de ensinar nas '·nossas escolas elementares", de modo que não corrompam o "espírito cristão-germânico" dessa instituição. 1 1 66 Os judeus de­ vem certamente ser tratados de modo absolutamente humano", mas como "es­ trangeiros", aos quais não pode ser reconhecido o gozo dos direitos políticos. 1 167 Não há dúvida, a j udiofobia de Stõcker é odiosa, mas ela não pode ser separada do seu compromisso cristão-social sincero e positivo, do qual constitui o subproduto e o aspecto secundário.

1 1 62 Stõcker, 1890, p. 36 1 . 1 16J Stõcker, 1 89 1 a, p. 20. 1 1 64 Mayeur, 1973, pp. 1 95-6. 1 1 65 Ketteler, 1 970, pp. 64 e 68. 1 1 <'6 Stõcker, 1 890, p. 369. 1 1 67 Stõcker,

1 890, p. 482.

2. Stacker e Disraeli: o entrelaçamento de inclusão e exclusão entre Al�manha e Inglaterra Analogamente, a oposição radical de Nietzsche não pode ser compreendida sem ter claro o conjunto do programa político do pregador da corte. Também ele sente horror pela Comuna de Paris, onde a "sanguinolenta revolução social" deu suas horríveis mostras, 1 168 - e é enérgica também nesse caso a prevenção contra os "agitadores" socialistas. Mas, se Nietzsche os áproxima e assimila aos agita­ dores dos movimentos religiosos, colocando uns e outros na categoria de "visio­ nários" e "fanáticos", Stõcker se preocupa em especificar que são "falsos profe­ tas" 1 169 aqueles que atiçam as massas contra a ordem existente. Estes censuram os cristãos por prometer "a mudança no céu" enquanto deixam intactas a fome e a inanição ''na terra". Mas - objeta por sua vez o pregador protestante, voltando­ se para um auditório de trabalhadores - "aquilo que eles vos prometem, isto sim é uma mudança num futuro imprevisível". 1 170 E somos de novo reconduzidos a Nietzsche, o qual também compara a expectativa da futura sociedade sem explo­ ração e injustiça a uma visão apocalíptica, só que, no caso do filósofo, revolução socialista e juízo final, apocalipse revolucionário e apocalipse cristão são, em últi­ ma análise, a mesma coisa. Stõcker, porém se esforça por demonstrar à "respei­ tável classe operária"1 171 que, exatamente ao se distanciar nitidamente dos so­ nhos apocalípticos de regeneração mundana caros ao socialismo, os cristão se revelam em condições de promover e realizar um programa concreto e incisivo de "reformas práticas" já nesta terra: A existência dos operários deve ser tutelada [... ] . Também os seus inválidos devem ser tratados; também as suas viuvas e os seus órfüos devem ter pão. Considero essa tutela da existência operária como a coisa mais importante e mais necessária na sua condição. Mas, além disso, há numerosas feridas a curar. É preciso limitar o trabalho das mulheres, proibir o trabalho dominical, criar um direito do trabalho, vir ao encontro de outras reivindicações legítimas deste gênero. 1 1 72

No conjunto, impõe-se "uma organização pacífica do trabalho e dos traba­ lhadores". 1 173 Para demonstrar a praticabilidade desse programa, o pregador da 1 1 6M

Stõcker, 1 890, p. 4. Stõcker, 1890, p. 5. 1 1 70 Stõcker, 1 890, p. 4. 1 1 71 Stõcker, 1 890, p. 3. 1 1 72 Stõcker, 1 890, p. 4-5. i m Stõcker, 1 890, p. 5. 1 1 69

corte observa que aos trabalhadores "o Reich alemão concedeu por sua iniciativa o sufrágio universal". 1 1 74 Stõcker não hesita em retomar as palavras de ordem da Revolução Francesa ("liberdade, igualdade, fraternidade"), que, esvaziadas de sua carga revolucionária, são deduzidas "do Evangellio de Cristo". 1 1 75 Os que fazem referência a ele são chamados a passar de um "cristianismo abstrato", que fecha os olhos diante da miséria da massa, para um cristianismo concreto. Não basta a caridade individual: "se uma classe social é oprimida, é a classe social inteira que precisa fornecer ajuda"; "o Reino de Deus é um Reino social. Ele não pertence só ao além, mas também ao aquém". 1 1 76 Surge com clareza o "elemento novo e revolucionário" desse cristianis­ mo. Ele aspira a uma espécie de "socialismo de Estado" e "se volta mais contra o liberalismo do que contra os judeus". 1 177 É explícita e declarada a tentativa de Stõcker de afastar os trabalhadores da socialdemocracia revolucionária ape­ lando para os valores da pátria e do cristianismo, ou seja, ao sentido de pertencimento a uma comunidade definida em termos ao mesmo tempo nacio­ nais e religiosos. Trata-se, portanto, de integrar estratos sociais em poder da agitação revolucionária numa comunidade germânico-cristã. Então se compre­ ende a judeofobia, ou seja, o ataque furibundo contra um grupo suspeito tanto no plano ético como no religioso e acusado de constituir "um povo no povo, um Estado no Estado, uma estirpe separada sob uma raça estrangeira". 1 178 A posição, ou melhor, o programa de Stõcker revela aquela dialética e aquela inter-relação de inclusão/exclusão, emancipação/desemancipação que, mais ou menos nesse mesmo período de tempo, se pode observar também em outros países. Pensemos particularmente na Grã-Bretanha. Quem introduz a segunda Reform Bill, que pela primeira vez estende os direitos políticos a seto­ res consistentes das massas populares e aprova uma legislação social significa­ tiva (com intervenções sobre o trabalho em fábrica, os bairros insalubres e as moradias operárias) é o conservador Disraeli, já desde algum tempo empenha­ do em opor-se à agitação revolucionária, insistindo na dignidade do "trabalho" e no fato que "os ricos e os pobres" fazem parte da mesma comunidade, pensada esta, porém, em oposição às raças inferiores que habitam os territórios sempre mais conquistados por essa comunidade superior e vitoriosa. A dialética de inclusão/exclusão atinge aqui os povos coloniais, não mais os judeus, e não 1 1 74 Stõcker, 1 1 75 Stõcker,

1 890, p. 5. 1 890, pp. 5-6. 1 1 76 ln Brosz.at, 1 952, pp. 29-30. 1 1 77 Assim em Broszat, 1952, pp. 29 e 32. 11 78 Stõcker, 1 890, p. 367.

tanto pelo fato de Disraeli ser de origem judia e cantor da "raça pura" e "supe­ rior" à qual pertence. Bem mais importantes são outros dois fatores: de um lado a realidade da expansão ultramarina, do outro lado o mito genealógico anglossaxão-judaico, bem enraizado na tradição inglesa (e estadunidense), que justifica e celebra essa expansão em nome da missão que compete a um país e um povo herdeiro do "povo eleito" do Antigo Testamento. 1 1 79 Na Alemanha, porém,. na ausência de uma expansão colonial, ainda por vir, e na presença do mito genealógico cristão-germânico, a comunidade na qual são chamadas a se integrar as massas populares, que estavam até esse momento excluídas, é definida em contraposição ao judaísmo. Em condições diversas, vemos desenvolver-se nos dois países aqui comparados a agitação e a realização de dois programas, em cujo fundamento age uma dialética análoga de inclusão/exclusão ou emancipação/desemancipação. Acentos racistas res­ soam eventualmente no primeiro ministro inglês: a tese cara a ele, segundo a qual ""a raça é tudo" (infra, cap. 20, § 2), seria em vão procurada no pregador da corte. Por isso, nesse caso, convém falar de judeofobia. Para caracterizar corretamente a posição de Nietzsche não basta subli­ nhar a sua opos ição ao "antissemitismo" de Stõcker; é necessário especificar que ele rejeita o conjunto das medidas de inclusão e de exclusão propostas por Stõcker. Poucos meses antes de auspiciar o fuzilamento dele, o filósofo censu­ ra o pregador da corte por agitar as "ideias mais gastas e mais odiosas", aque­ las da "igualdade dos direitos e do sufrágio" (XIII, 92-3). É claro que ainda mais gasta e mais odiosa é, aos olhos do filósofo, a ideia do Estado social.

3. A Alemanha, a França, a Rússia e os judeus Deve-se acrescentar que a polêmica antiantissemita de Nietzsche tem uma característica peculiar sobre a qual convém refletir. Ela é desenvolvida com o olhar sempre voltado para a Alemanha e nunca para os dois países (França e Rússia) onde nesses anos o flagelo se alastra de modo particular. No que diz respeito ao primeiro país, vimos que da correspondência surge um j uízo positivo indireto sobre o general Boulanger, em tomo do qual se vai formando um bloco político-social certamente não imune à judeofobia e ao antissemitismo. Mas, nesse caso, a escassa informação de Nietzsche desempenha um papel importante: Nietzsche parece olhar com simpatia sobretudo para o aspecto antiparlamentar e bonapartista do movimento. 1 1 79 Losurdo,

1 993, cap. 2 § 5 e 3 § 9.

No entanto, é preciso concentrar a atenção na Rússia. Segundo as palavras de Engels de 1 8 78, ·'o ódio contra os judeus, do qual o Sr. Dühring dá mostra em toda ocasião", está realmente difundido na Prússia, mas é sobretudo "uma carac­ terística típica dos países a leste do Elba". 1 180 É exatamente no Império czarista que, a partir de 1 88 1 -82, o antissemitismo assume as formas mais odiosas, explo­ dindo em pogroms sangrentos e alimentando ulteriormente uma onda migratória já estimulada pela exigência de.fugir da miséria, dirigida sobretudo para os Esta­ dos Unidos, mas com uma parte que chega também na Alemanha. 1 181 Nietzsche desconhece a agitação dos "antissemitas da Europa oriental", da qual fala Engels em 1 890? 1 18:? A referência, que logo veremos, aos "judeus poloneses" e à onda migratória judia proveniente do Oriente pareceria demonstrar o contrário. E não se trata do único indício. O filósofo não ignora o movimento niilista na Rússia, lê Dostoievski, um autor certamente não isento de acentos judeófobos; no que diz respeito à Alemanha, segue com atenção um debate que mostra às vezes os antissemitas mais fanáticos referirem-se ao Império czarista como um modelo. É o caso de Marr, 1183 mas também da Antisemitische Corresponde no seu con­ junto. Quase em cada número, a revista se refere com entusiasmo ao crescimen­ to da ""poderosa corrente antissemita" (ASC, n. 1 3, p. 9): "Na Rússia, o governo age de modo sempre mais enérgico contra o judaísmo, obrigando à emigração muitos desses elementos imundos" (AS C, n. 9, p. I ); "plenamente consciente do perigo judeu, o governo msso continua a impor em todos os campos enérgicas limitações ao judaísmo" (ASC, n. 1 7- 1 8, p. 1 2). Quando as classes altas da soci­ edade alemã decidirão seguir este exemplo (ASC, n. 1 5 , p. 1 0)? Mas quem fala com particular ardor da Rússia é exatamente o último Nietzsche, o qual está, sobretudo, empenhado na polêmica contra o antissemitismo alemão. Cerca de 20 anos antes, em 1 869, ao se lamentar da "agitação judaica", desencadeada e encarniçada contra ele e difundida, graças ao controle judeu da imprensa, nas diversas capitais da Europa ocidental, Wagner encontrava confor­ to na exceção representada pela Rússia: "só em Petersburgo e em Moscou" o musicista podia experimentar o "milagre" dos jornais e de um "público" ainda não instigado contra ele pela "comunidade judaica". São considerações dirigidas não por acaso numa carta aberta a uma danm mssa de alta linhagem.1 184 Agora é Nietzsche quem contrapõe a atenção e a simpatia reservadas a ele pela aristo1 18º

Marx-Engels, 1955, vol . XX, p. 104. Frankel, 1990, pp. 78- 1 70. 1 182 Marx-Engels, 1955, vol. XXII, p. 50. 1 1K\ Zi nunennmm, 1986, pp. 79 e 88. 1 1 84 Wagner, 1 9 1 0 e, pp. 248-9. 1 18 1

cracia russa ao silêncio e hostilidade que circundam a sua obra na Alemanha. O filósofo se exprime em termos eufóricos pelo fato de que seus livros são acolhi­ dos com favor pelos círculos aristocratas russos e pelos "apreciadores da socie­ dade russa" (B, III, 5 , p. 506), os quais, portanto, se revelam bem superiores, no plano cultural e político, à nobreza e ao público alemães. São Petersburgo é uma das cidades onde o teórico do radicalismo aristocrático é compreendido e apreci­ ado por numerosos leitores: ':Todas as inteligências requintadas, caracteres pro­ vados, educados para as altas posições e para os altos deveres", às vezes "ver­ dadeiros gênios" (EH, Porque escrevo livros tão bons, 2). É exclusivamente com os "franceses e russos mais ricos de espírito" que Nietzsche se sente afma­ do (B, II, 5 , p. 70). Em Nice, o filósofo parece esperar, também, a chegada da "imperatriz russa" e, no entanto, se alegra pela presença do "herdeiro russo ao trono" (B, III, 5, p. 4), portanto, do futuro Nicolau II que, em relação ao antissemitismo, não é certamente menos zeloso que Guilherme II! Aos olhos de Nietzsche, o sucesso concedido na Rússia a seus livros e suas teses é o sintoma de algo mais profundo. O filósofo, que durante sua vida soube tolerar situações e ambientes considerados "quase insuportáveis", vê algo de inato no "fatalismo russo", "este fatalismo sem revolta", que imuniza contra o ressentiment e tem uma "grande razão": "Considerar-se a si próprio como uma fatalidade, não querer-ser 'de outra forma' - em tais condições está a grande razão de ser" (EH, Porque sou tão sábio, 6). Dir-se-ia até que Nietzsche faz seu um lema que circulava naqueles anos entre os eslavófilos: o povo russo "é um povo que não gastou ainda as suas forças, como a maior parte dos povos europeus, nem as forças da sua vontade nem as do seu coração" (B, III, 5, p. 39). Em Além do bem e do mal é possível ler uma posição ainda oscilante e contraditória em relação à Rússia. Por um lado, augura-se o desmembramento desta potência ainda fundamentalmente asiática, que faz pesar uma séria ameaça sobre a Europa; por outro lado, se percebe o fascínio de um país ainda amplamente imune aos estragos da modernidade, da civilização, do parlamentarismo, que grassam no Ocidente. "A doença da vontade não se difundiu na Europa de maneira uniforme; ela se manifesta com maior imponência e multiplicidade de aspectos onde a cultura já tem um longuíssimo tempo de casa"; se "a vontade está doente de maneira verdadeiramente grave", sobretudo "na França contemporânea", sinais de maior vitalidade ela dá na Alemanha e, sobretudo, na Rússia (JGB, 208). Um fragmento de abril-junho de 1 8 85 vai além: Parece-me que entre os eslavos, graças a um regime absoluto, a capacidade inventiva e a acumulação de força de vontade são grandes e intactas mais do que nunca. Um governo mundial alemão-eslavo não entra entre as hipóteses

mais improváveis. Os ingleses não são capazes de superar as consequências da teimosia da sua soberba autoconsciência. Com o tempo, sempre mais homines novi chegarão ao poder e enfim as mulheres entram no Parlamento. Fazer política é, porém, afinal, também questão de herança. Ninguém, que inicia como homem privado, se toma homem de horizontes infinitos (XI, 457).

Estamos nos anos em que ocorre a renovação do pacto dos três imperado­ res (Alemanha, Rússia, Áustria=Hungria) de 1 8 8 1 e o tratado de contrassegurança alemão-russo de 1 887. Nietzsche deve ter olhado essa aproximação entre as duas potências com simpatia, como resulta de um de seus motivos de acusação feitos depois por ele contra Guilherme II: ele "abre abismos entre as nações em devir" (werdende Nationen) (XIII, 644). De qualquer modo, é grande a espe­ rança colocada em "Petersburgo, onde se intuem coisas que nem em Paris são cogitadas ! " e onde talvez o "instinto" é menos "enfraquecido", e a "décadence europeia", menos desenvolvida (WA, 5). A "capacidade de ver longe" sem limi­ tar-se ao presente, nesse sentido, a presbiopia, torna comum o czar ao Zaratustra de Nietzsche (EH, Além do bem e do mal, 2). Mas associa também, paradoxalmente, Rússia czarista e judaísmo. Raça "forte" e "tenaz", os judeus não se dobram "diante das 'ideias modernas "'; sim, ''eles se transformam, quando se transformam, sempre e apenas do mes­ mo modo com que o império russo faz as suas conquistas - como um império que tem o tempo diante de si e não é de ontem". Um sentido análogo da acu­ mulação da potência nos séculos, ou nos milênios, tem essa raça aere perennius que são os judeus : "se quisessem - ou se fossem obrigados a isso, como os antissemitas parecem querer obrigá-los - poderiam já neste momento ter a preponderância, ou o verdadeiro domínio sobre a Europa" (JGB, 25 1 ) . Assim como as grandes famílias da aristocracia russa, também as grandes famílias das finanças judias são caracterizadas por uma continuidade da riqueza, do poder, da cultura e das boas maneiras que desafia os séculos; nem umas nem as outras são afetadas por aquela espécie de paralisia da vontade que se espa­ lha pela Europa ocidental

4. Nietzsche e as três figuras do judaísmo Como conciliar a denúncia do antissemitismo na Alemanha com a simpa­ tia em relação à Rússia czarista (e antissemita)? A atitude de N ietzsche é menos contraditória do que parece à primeira vista. Naqueles anos, o judaísmo toma corpo em três figuras sociais sensivelmente diferentes entre elas: o pe-

queno proletário-artesão, que frequentemente engrossa a onda migratória, o intelectual subversivo ou considerado tal e, enfim, o capitalista. No que diz respeito à primeira figura, Além do bem e do mal chama a atenção sobre uma realidade. A Alemanha tem ') udeus o bastante", já tem dificuldade em "digerir apenas esse quantum de 'judeu "' . Bem ou mal, uma regra se impõe: "Não permitir mais a chegada de outros judeus! E, especialmente, fechar as portas para o Leste (também do lado da Áustria)" (JGB, 25 1 ) . Sobre esse ponto não há grande diferença com respeito a Treitschke e a Stõcker, um e outro contrários à imigração dos judeus provenientes do império msso, muitas vezes tomados - observa o pregador da corte - de um "entusiasmo selvagem", 1 1 85 ou seja, de ideias revolucionárias bastante perigosas para a ordem constituída. O Anticristo dá prova do ilimitado desprezo em relação aos Ostjuden. Faz-se bem em colocar as luvas quando se lê o Novo Testamento. A presen­ ça de tanta sujeira praticamente nos obriga a isso. Não escolheremos a com­ panhia dos ..primeiros cristãos" como sequer dos judeus poloneses: não que se sinta a necessidade tampouco de uma única objeção contra eles . . . Tanto uns como outros não exalavam bom cheiro (AC, 46).

Em relação a Stõcker, que nesse caso argumenta em termos sociológicos e políticos, Nietzsche se mostra muito mais drástico, com a sua transparente alusão ao terna, caro a Schopenhauer, do foetor judaicus. 1 186 Mas há uma diferença ainda mais importante. Os judeus maltrapilhos provenientes da Polônia que, segundo a análise do pregador da corte, tendem a alimentar as fileiras do socialismo revolucionário, não são menos repelentes, aos olhos do filósofo, do que os judeus maltrapilhos, "maduros para todo tipo de manicômio'', que na Palestina engrossavam as fileiras da subversão cristã, definindo-se "os bons e justos" (AC, 44), como mais tarde farão socialistas, anárquicos e a "Liga dos Justos" (supra, cap. 8 § 1). No que diz respeito a Treitschke, à "estirpe judia espanhola" ele contra­ põe a .. estirpe judia polonesa" que, por causa das profundas "cicatrizes de uma plurissecular tirania cristã", está bem longe de integrar-se, ao contrário da pri­ meira, na cultura e nos costumes "ocidentais". Infelizmente, a Alemanha tem a ver exatamente com esta segunda estirpe, estranha à Europa. 1 1 87 Nietzsche argumenta de modo análogo: ·'entre os portugueses e os mouros se conserva a raça superior do judeu", ao passo que o oriental "judeu pmssiano deve ser uma 1 1 x5

Stõcker, 1 890, p. 363. Schopenhauer, 1 976-82 d, p. 786. 1 1 x7 Treitschke, 1 965 a, p. 8.

1 1 x6

espécie esgotada e decadente de judeu"; além do clima - é o único acréscimo em relação à análise de Treitschke - o que influi negativamente é "a vizinhança dos eslavos sem graça e oprimidos" (XI, 5 68-9). O judeu oriental lembra a ralé, aos olhos do teórico do radicalismo aristo­ crático, que nesse caso assume uma posição não diferente da posição da Antisemitische Correspondez, mais uma vez plenamente satisfeita com a ati­ tude do governo czarista: ·�umentam as medidas severas contra os judeus estrangeiros que comerciam na Polônia" (ASC, n. 1 6, p. 7). São os emigrados que depois são rechaçados ou expulsos também da Alemanha. Ainda depois da dura carta endereçada a ele por Nietzsche, Fritsch nota que pelo menos nesse ponto há acordo entre ele e o filósofo: como Além do bem e do mal reconhece, em terra alemã há ')udeus o bastante" (ASC, n. 20, p. 1 3). Refere-se à ralé, em última análise, também a segunda figura do judaís­ mo, alvo de uma polêmica que, embora entre altos e baixos - a maré baixa é representada pelo período "iluminista" - se toma sempre mais áspera. Se "os filhos dos pastores protestantes" partem do pressuposto de que "se acredite neles", bem diferente se comportam, não podem não se comportar, aqueles que se encontram em oposição à religião dominante: Um judeu, no entanto, de acordo com a esfera de atividade e o passado do seu povo, está pouquíssimo habituado a ser acreditado; considerem-se a respeito os emditos judeus - todos co1úerem uma grande importância à lógica, ou seja, visam arrancar o consentimento mediante motivações; eles sabem que com ela deverão necessariamente vencer, mesmo onde existe contra eles repugnância de raça e de classe (Rassen- und C/assen­ Widen11i/le). onde não se acredita neles de bom grado. Pois nada é mais democrático do que a lógica: ela não dá atenção à pessoa e não faz distinção entre narizes curvos e retos (FW, 348).

Os judeus começam a ser identificados como os intelectuais racionalistas e revolucionários por excelência. Eles ''ensinaram a distinguir mais sutilmente, a deduzir com mais agudeza, a escrever mais claro e limpo: a sua tarefa foi sempre a de conduzir um povo 'a raison"' (FW, 348). Nesse momento - per­ siste o eco ·'iluminista" - o juízo de valor não é univocamente negativo, mesmo se já se notam distintamente os tons críticos. O intelectual ou o artista rebelde é uma espécie de "comediante", sobretudo se provém das "famílias do povo baixo, que sob as vicissitudes da opressão e da coação tiveram que passar a sua vida numa extrema dependência". Agora se compreende que sejam exata­ mente os judeus que constituem "uma espécie de organização histórico-mundi­ al para a criação de comediantes, uma verdadeira incubadora de comedian-

tes"; o judeu é um "literato congênito" e, enquanto tal, "é essencialmente co­ mediante" (FW, 3 6 1 ). Vale a pena notar que essa é a opinião também de Fritsch, segundo o qual "representar comédias" é uma espécie de "missão" para os judeus: é o "único talento positivo" do qual eles dispõem. 1 1 88 Genealogia da moral esclarece de que comédia se trata, durante a polê­ mica contra os intelectuais tomados de sagrado desdém contra a ordem social existente e empenhados em "representar (darstellen) as 'almas belas'", a "representar" a causa da 'justiça", a "representar uma forma qualquer de superioridade", a encenar "a comédia da 'nobre indignação"' e da "nobre eloquência", assumindo uma "insidiosa mímica-de-mártires�resignados". Na realidade, estão em ação "os ávidos de vingança disfarçados de juízes" e prontos a recorrer a outras "mascaradas da vingança" (GM, III, 1 4). Não fogem do "momentâneo fazer-se pequenos, fazer-se humildes", para atingir e envenenar os aristocratas e os bem sucedidos (GM, 1, 1 O). Na sua "incapacida­ de de representar (reprasentieren) a potência", por causa da condição servil que caracterizou permanentemente a sua história, os judeus dão mostra de um ''histrionismo" de tipo particular: são os "atores" próprios de "uma época de­ mocrática" (XI, 568-70); o povo protagonista da revolta dos escravos na moral especializou-se na representação da comédia e da indignação moral. O intelectual judeu está propenso também a agitar a palavra de ordem da "aristocracia do espírito" em polêmica contra a nobreza de sangue (supra, cap. 1 1 § 4); e, mais uma vez, desempenha um papel subversivo. No curso da evolu­ ção de Nietzsche, quanto mais a razão e a dialética se levantam como sinônimo de revolução, tanto mais o Íntelectual judeu se configura como o veículo do con­ tágio democrático e socialista que devasta a Europa. O arquétipo do intelectual subversivo é identificado em Paulo de Tarso, no qual encontram expressão "o instinto sacerdotal dos judeus" (AC, 42) e a carga de ressentiment de um povo, primeiro protagonista, com as armas refinadas da ideologia e do discurso moral, da revolta servil. Ou, ao reconstruir a história da figura do intelectual subversivo, Nietzsche remonta até Sócrates, este roturier, que faz da dialética uma arma mortal de luta e de vingança contra a aristocracia. Mas exatamente nisso ele trai a sua origem não grega e, em última análise, hebraica: "O judeu é dialético, e também Sócrates o era. Tem na mão um instrumento terrível: refuta o adversário comprometendo o intelecto - submete-o a um interrogatório, tomando-o inofen­ sivo - deixa-se para a vítima a tarefa de demonstrar que não é idiota" (XIV, 4 1 4). Portanto, o juízo sobre as primeiras duas figuras do judaísmo é aspera­ mente crítico. Quando, ao compará-lo aos niilistas e aos revolucionários russos 1 18�

Fritsch, 1 893, pp. 26 1 -2.

do tempo, afirma, como vimos, que um Jesus redivivo seria justamente conde­ nado à deportação na Sibéria, O Anticristo de fato legitima o tratamento im­ posto a muitos judeus, processados como subversivos e suspeitos de subversão mais do que qualquer outro grupo ético-religioso: são eles em primeiro lugar denuncia a Antisemitische Correspondenz - que alimentam o movimento niilista (ASC, n. 22, p. I I ). Deve-se acrescentar que em Nietzsche falta qualquer aceno ao movi­ mento sionista, que, depois de ter encontrado uma primeira vaga expressão em Moses Hess, nestes anos começa a ser alimentado sobretudo pelos judeus orientais, principalmente interessados em fugir ao mesmo tempo da opressão nacional e da miséria. O filósofo deve ter olhado tal movimento com o mesmo desprezo que reservara para a teutomania (também ela duplamente plebeia em razão da sua base social e dos seus objetivos), tanto mais porque, estando pelo menos nos escritos do período "iluminista'', os judeus desenvolvem um papel positivo apenas na medida em que constituem um "resíduo nacional" (supra, cap. 7 § 7). É claro que os judeus, os quais agora puseram "fim à sua vida nômade" e se despediram da figura do "judeu errante", precisam ser bem aco­ lhidos, pondo fim de uma vez para sempre à falta de "benevolência para com os judeus", que, infelizmente, caracteriza a Alemanha� porém, esta "boa acolhida" deve ser harmonizada "com toda cautela, com sentido da escolha" (JGB, 25 1), prestando muita atenção às duas figuras em que o plebeísmo e a subversão moderna encontram expressão. A teorização do cruzamento social e eugénico entre oficialidade prussiana e finanças judaicas não põe fim à polêmica contra as outras duas figuras do judaísmo. Pelo contrário. Enquanto por um lado se toma sempre mais áspero em relação aos antissemitas social istizantes, ou suspeitos de o serem, por outro lado Nietzsche faz um ajuste de contas sempre mais radical com o judaísmo e com a figura em particular do sacerdote-intelectual judeu, rotulado como a fonte primeira da revolta servil. A própria Genealogia da moral, que, como veremos, solicita a deportação dos antissemitas, lê toda a história do Ocidente como a história da catástrofe que se verificou com a vitória da Judeia sobre Roma. Neste sentido, os judeus continuam a ser "o povo mais fatal na história do mundo". A sua influência se faz notar por toda parte: "Nos seus efeitos póstumos falsificaram a tal ponto a humanidade que ainda hoje o cristão pode sentir de maneira antissemita, sem se compreender a si mesmo como a última consequência do judaísmo" (AC, 24 ) Nietzsche ridiculariza o cristianismo antissemita acusando-o que é, com o seu ressentiment plebeu e com a sua visão abrangente do mundo, ele mesmo expressão, se não instrumento, do juda­ ísmo. .

5. Zaratustra e o aplauso dos antissemitas Compreende-se bem o eco simpático que a agitação de tais temas suscita nos ambientes antissemitas . Com base no testemunho de Joseph Paneth, um jovem cientista vienense de origem judaica, em janei ro de 1 884 Nietzsche lhe relata tentativas repetidas e prementes daquele ambiente para atraí-lo para o seu lado (KGA, VII, 4/2, p. l �. Folheemos agora a correspondência do filóso­ fo: ··oo Zaratuslra não foram vendidos sequer 1 00 exemplares (quase todos a wagnerianos e antissemitas)"; por isso o filósofo deve aguentar a "brincadeira" de ver-se elogiado "lado a lado com o horrível anarquista e focinho venenoso Eugen Dühring" (8, III, 3, p. 1 1 7-8). O autor da "brincadeira" é um certo Paul Heinrich Widermann: ·'o seu livro termina de acordo com o pensamento de Zaratustra, e na última página Dühring e eu aparecemos com grandíssima sole­ nidade e glória" (8, III, 3, p. 7 1 ). Estamos diante de um admirador bastante insistente: "O senhor Widermann exprimiu à minha mãe o desejo de poder passar alguns anos perto de mim; confesso que tinha as minhas reservas" (8, III , 3, p. 1 3 7). Essas reservas não impedem uma interlocução amável com o interessado direto : "Prezado amigo, com a sua carta e o envio da sua obra me prestou uma honra não pequena, para não falar da última página, onde o senhor exprimiu, de modo solene e festivo, o primeiro reconhecimento público pelo meu filho Zaratustra. Não poderei nunca esquecê-lo" (8, III, 3 , p. 74). Além de Widermann, personal idades também importantes do movimento antissemita mostram um interesse simpático por Assimfalou Zaralustra e o seu autor. É o próprio Theodor Fritsch, redator de Antisemitische Correspondenz que es­ creve ao filósofo na tentativa de ganhá-lo completamente para a sua causa. Enquanto isso, começa a enviar-lhe a revista, a qual, comumente, "é enviada só privadamente e apenas a 'companheiros de partido de confiança' ". A observa­ ção é de Nietzsche que, numa carta a Overbeck de 24 de março de 1 8 87, acrescenta: ··o meu nome aparece quase em cada número" da revista; não há dúvida, Assim falou Zaratustra "agrada aos antissemitas" (8, III, 5, p. 48). Basta folhear a revista para se dar conta do elemento de contente exage­ ro dessa afimmção. Porém, é real o interesse simpático dos ambientes judeófobos e antissemitas. Para explicar isso procuremos ler o Zaratustra colocando-nos no ponto de vista dele. A virada decisiva na história do Ocidente é representada pela vitória da Judeia sobre Roma, desde o momento fatal em que "Roma decai para prostituta e prostíbulo [é a 'Roma judaizada' que já conhecemos], o César de Roma decai para besta [alusão à conversão de Constantino ao cristianismo e, portanto, em última análise, ao judaísmo], Deus mesmo se fez judeu!" Inicia assim uma parábola minosa que desemboca na vulgaridade e no horror da

modernidade. Domina a "mixórdia plebeia: nela tudo está em tudo e com tudo misturado, santo e assassino, Junker e judeu e toda sorte de animal saído da arca de Noé" (Za, IV, Colóquio com os reis, 1). Salta aos olhos a dicotomia Junker/judeu. Ainda neste momento, Nietzsche não está absolutamente propenso à füsão matrimonial e eugênica que pouco mais tarde apresentará como antídoto à ameaça socialista e à deriva plebeia de Guilherme II . Nesse momento se compreende a atenção simpática dos ambi­ entes antissemitas . A virada decisiva é representada por Além do bem e do mal, com a cooptação nele recomendada do capital judeu na raça dos senhores (cf. sZLpra, cap . 1 7, § 6) . À "nova nobreza" da qual invoca o advento, Zaratustra, porém, contrapõe uma desprezível pseudonobreza que se deixa "comprar" pe­ los .. mercadores" e com "ouro de mercadores". A referência aos judeus é transparente, como se toma evidente pela polêmica contra um "espírito" que se pretende '·santo" e que faz referência a uma ''terra prometida": na realidade aqui (na Palestina), onde das raízes judias ''cresceu a pior de todas as árvores, a cmz" (uma religião ela mesma judia), não há "nada de promissor" (Za, III, De tábuas antigas e novas, 1 2). É sem limites o desgosto de Zaratustra "para com os obcecados pela riqueza, que vão à cata da própria vantagem em todo monte de lixo, com olhos frios, pensamentos cobiçosos, para esta canalha cujo fedor sobe até o céu, para esta plebe revestida de ouro e falsificada, cujos pais tinham as mãos longas ou eram abutres ou trapeiras" (Za, IV, O mendigo voluntário). Des­ taquei em itálico as alusões antijudias . Conhecemos já o motivo do foetor judaicus . Os "'trapeiros" (Lumpensammler), cujos filhos ou descendentes trans­ bordam de dinheiro, fazem pensar nos imigrantes judeus contra os quais Treitschke se lança: iniciam como ·'rapazolas ativamente empenhados na ven­ da ambulante de calças" (strebsam hosenverkaufende .lünglinge), mas cujos ·'fi lhos e netos " acabam depois "dominando as bolsas e os jornais da Alema­ nha". 1 1 89 Se o historiador insiste sobretudo no aspecto da diligência e da capa­ cidade de trabalho, Zaratustra faz referência também aos enganos ou à usura que estes parvenZLs fazem com suas vitimas à maneira de "abutres". O termo aqui usado, Aasvogel (literalmente, a '·ave da carniça") é um sinônimo pejora­ tivo de Geyer; em outra ocasião Nietzsche sublinha que os sobrenomes que designam voadores e em particular o sobrenome Geyer revelam uma ascen­ dência judia (supra, cap. 5 § 2).

11 x9 Treitschke,

1 965 a, p. 7. lli

A polêmica contra os mercadores judeus, estranhos à autêntica nobreza, desempenha um papel importante no Zaratustra: Olhai estes supérfluos! Adquirem riquezas e com elas se tornam apenas mais pobres. Querem o poder e, antes de tudo, a chave do poder, muito dinheiro estes pobres impotentes ( Unvermogenden) . Olhai estes ágeis maca�os a trepar [ ... ]. Todos querem chegar ao trono: é a sua loucura [ . . . ] . Loucos são todos para mim e macacos trepadores e manía­ cos; fede para mim o seu ídolo, o frio animal: para mim todos fedem, estes adoradores de ídolos. Meus irmãos, quereis, pois, sufocar no hálito dos seus focinhos e das suas ganas? [... ] Fugi do mau cheiro (Za, 1, Do novo ídolo).

Ao estereótipo do foetor judaicus se acrescenta agora a acusação de utilização da riqueza com o fim de controlar o poder estatal, que surge como novo ídolo. Conhecemos a ligação instituída já por Schopenhauer entre judaís­ mo e "apoteose do Estado" (supra, cap . 6 § 2). Esse tema é agora reinterpretado, na cultura do tempo e no Zaratustra, como denúncia da escala­ da despreocupada da riqueza (judaica) ao cume do poder. É preciso não dei­ xar-se enganar pelas aparências . Não são os reis que exercem o domínio real. Voltei as costas aos dominadores quando vi o que eles agora chamam dominar: traficar e mercadejar pelo poder - com a canalha! Entre os povos de língua estrangeira vivi com os ouvidos tapados; para que a língua do seu tráfico permanecesse estrangeira para rrúm e assim o seu mercadejar pelo poder (Za, II, Da canalha).

O segundo parágrafo torna transparente a referência aos judeus, dos quais, já nos anos da sua juventude, Nietzsche, nas pegadas de Wagner, censurara a estranheza à língua e à essência alemã. Agora a acusação se torna mais expli­ citamente política. Exprime o incômodo do radicalismo aristocrático para com a vantagem da riqueza industrial e financeira sobre as classes tradicionais do Antigo Regime: ''Chamo de desgraçados [ . . . ] a todos os exatores, os mercado­ res e o rei e os outros guardas de países e negócios" (Za, III, Do espirita de gravidade, 2). Além do peso das suas finanças, o judaísmo é visado também pelo grande controle que exerce sobre a imprensa. Remonta aos anos de Basileia a denún­ cia da "imprensa judaica" como sinônimo de "socratismo" dissolutivo e subver­ sivo. Embora tenha assumido uma nova configuração, esse tema não desapa­ receu: "Cuida desses supérfluos ! Estão sempre doentes, vomitam a sua bílis e

chamam-na de jornal" (Za, 1, Do novo ídolo). Estamos na presença de uma ''ralé que escreve" ou de uma "ralé que domina, escreve e goza" (Macht- und Schreib- und Lust-Gesindel). Ao judaísmo que agita a palavra de ordem da "aristocracia do espírito" (supra, 1 1 § 4) Zaratustra responde: "Ah, muitas vezes me cansei do espírito, quando encontrei cheia de espírito também a ralé" (Za, II, Da canalha). O "espírito" é muitas vezes a característica do "comedi­ ante" (Za, 1, Das moscas da feira), essa figura que, como sabemos, tende a encarnar-se no judaísmo: "Revirar significa para ele demonstrar. Enlouquecer significa para ele convencer". E de novo somos reconduzidos à denúncia do caráter subversivo e dissolutivo da dialética judaica. Enfim, Zaratustra visa o papel do judaísmo no movimento socialista e re­ volucionário . A acusação feita às "tarântulas", aos agitadores empenhados em estimular o ressentiment das massas, parece envolver também a maçonaria: "Benvinda, tarântula! Tens nas costas o teu triângulo (Dreieck) e emblema negro, e sei também o que tens na alma". Na obra de pregação da vingança se distingue ''um povo de má espécie e origem" (Volk schlechter Art und Abkunft) (Za, II, Das tarântulas), um povo desde sempre veículo do ressentiment e do rancor plebeu. Se a esses ataques e alusões judeófobas acrescentarmos o fato de Assim falou Zaratustra imitar a linguagem bíblica, a linguagem do livro cujo lugar é chamado a ocupar, o interesse, a simpatia e, às vezes, o entusiasmo dos círcu­ los antissemitas não constituem motivo de espanto algum. Ainda depois das indignadas explicações do fi lósofo, esses círculos continuam tranquilamente a referir-se a Zaratustra. 1 1 90

6 . Zaratustra, o macaco e Dühring Nietzsche procura manter distância, se não do antissemitismo enquanto tal, em todo caso do antissemitismo socialistizante já na terceira parte do livro. É a polêmica contra ''o macaco de Zaratustra" ou o seu "porco que grunhe" (é uma provável alusão a Dühring). Não obstante sua aspereza, porém, essa polê­ mica não nega os pontos de contato. Zaratustra o reconhece, apostrofando assim o seu suposto discípulo: "'A tua palavra de louco me causa dano até onde tens razão". A acusação feita pelo "macaco" contra a "cidade grande" domi­ nada · pelos ''mercadores" não é certamente contradita por Zaratustra, o qual, por sua vez, reforça: "Não gosto dessa grande cidade". Considerando bem, o 1 1 9º

Weichclt 1 922, p. 249.

"'macaco" parece repetidamente ecoar Zaratustra: '·Aprendera a arremedar um pouco do ritmo e da entonação do seu discurso e tirava também bom pro­ veito do tesouro da sua sabedoria" (Za, III, Do passar além). Sabemos que foram os ·'abutres e trapeiros" (Lumpensammler) que fim­ daram as fortunas dos mercadores modernos. E eis o "macaco" a exprimir assim o seu desgosto pela "cidade grande": "Não vês as almas pendentes como trapos (Lumpen) moles e nojentos? Destes trapos (Lumpen) fazem ainda jor­ nais". O macaco partilha também o desprezo já conhecido pela presumida "aris­ tocracia do espírito": ·'Não percebes que aqui o espírito se tomou um jogo de palavras? E derrama um repugnante lixo de palavras? E desse lixo fazem ainda jornais" (e de novo, repetidamente, somos remetidos ao controle do jornal cen­ surado ao judaísmo). São os "mercadores" que dominam: com efeito, "também o príncipe gira em tomo daquilo que há de mais terrestre, o ouro dos mercado­ res". Mas quem são estes? ·'Há muita devoção e muita devota )ambição e adulação e uma produção contínua de lisonjas diante do deus dos exércitos" (o deus da religião nacional judaica) . À primeira vista, esse deus não deveria estar contra a visão do mundo própria da aristocracia guerreira. Mas trata-se apenas de uma aparência: ·'O deus dos exércitos não é um deus das barras de ouro assim pensa o príncipe, mas o príncipe propõe e o mercador dispõe! " (Za, I II, Do passar além). Sobre essa repugnante representação do judaísmo e da "ci­ dade grande" - a referência é claramente à capital da Prússia e do Reich, 1 191 à '" Berlim judaica" visada por Nietzsche já na sua primeira juventude (supra, cap . 3 § 1 -2) - Zaratustra não faz objeções; limita-se, como veremos, a acusar o macaco de incongmência no plano prático. Também à parte de Assim falou Zaratustra, são evidentes os pontos de contato entre Nietzsche e Di.ihring. Analisemos as acusações que este último faz contra o judaísmo. É uma religião monoteísta fundada no "despotismo" de uma divindade ciumenta e exclusivista, que não deixa nenhum espaço para "homens livres" e para ··sentimentos de liberdade". 1 192 É a religião oriental de um povo que tem por trás a escravidão no Egito. É uma "religião servil", "a forma servil da religião", que "'não conhece homens livres" e "sentimentos de liberdade". 1 193 Dessa religião provêm a ··moral dos servos" (Knechtsmoral) e o "senso servil par excellence". 1 194 Mas tudo isto foi herdado plenamente pelo cristianismo, ele mesmo intrinsecamente judeu. Sim, vindo à luz com o judaísmo, a "religiosidade 1 1 91

Wcichclt. 1922, p. 13 9. Diihring. 188 l b. pp. 30- 1 . 1 19� Diihring, 188 1 b, pp. 24, 30- l e 47. 1 1 94 Diihring, 1 88 l b, pp. 24 e 32. 1 1 92

oriental servil" invade profundamente o cristianismo. 1 195 Temos assim "o antigo e o novo judaísmo, isto é, o judaico e o cristão"1 196 De nada serve ir atrás da hipótese da origem ariana de Jesus. Embora não possa ser excluída a priori, de qualquer modo ela é irrelevante, não pode "apagar o que de essencialmente judeu há no espírito da pessoa" e da religião por ele fundada. 1 197 Além do servilismo, o que caracteriza o "cristianismo produzido pelo juda­ ísmo" 1 198 é um nii lismo de fimdo, que está ligado a uma "ânsia de vingança" frequentemente sem .. medida" e com a ·'crueldade mais abjeta" contra os ini­ migos: para perceber isso, leia-se o inferno dantesco com a condenação aos tormentos eternos dos supostos pecadores . É preciso não se deixar enganar pela judaica "hipocrisia do amor ao próximo e da compaixão". 1 1 99 No curso da história, houve tentativas no Ocidente de sacudir das costas esse peso funesto. No Renascimento e ainda em Tasso, vemos "o lugar da dependência do cristianismo judeu ser substituído por empréstimos sempre mais numerosos da antiguidade clássica"; em seguida, assistimos ao desgraçado res­ surgimento do ..cristianismo retomado pela Reforma" e da sua "essência judai­ ca" . 1200 Agora, estamos num ponto de virada: não bastam "meras transforma­ ções da religião existente [as quais] seriam para sempre algo asiático"; é ne­ cessário ter ..a força para encerrar a velha era religiosa" . 1 201 Dado que o cristianismo é essencialmente judaísmo, a depuração do judaísmo, que se im­ põe para o Ocidente, é ao mesmo tempo a depuração do cristianismo. Trata-se de pôr fim a "dois milênios de erros" - pensam por sua vez, Fritsch e a Antisemitische Correspondenz (n. 8, p. 8 e n. 9, p. l ) -, com uma afirmação que podia ter sido tranquilamente assinada tanto por Nietzsche como por Dühring. Também Dühring convida o devoto de uma religião fundada na escravização e na humilhação a substituí-la pelo "espírito livre". 1 '.!01 É um homem que conse­ guiu a plena maturidade, um "homem sólido", estranho ao dogmatismo em qual­ quer de suas formas. Ele sabe que não pode ser uma doutrina completa e sem dúvidas ou .. problemas" que assumirá a herança da religião. Ao contrário de Lassalle e do socialismo de inspiração marxista, animados pela certeza do futu­ ro luminoso, ..ele não avança a pretensão, de modo tolo, do monopólio da verda1875, pp. 438-9. 1 897, p. 22. 1 1 97 Dühring, 1897, p. 22. 1 1 9M Dühring. 1 88 l a, p. 3. 1 1 99 Dühring, 1897, pp. 23-4 e 42 . 1 2Jo Dühring, 1 897, p. 45. 1 20 1 Düh ring; 1 897, pp. 260- 1 . 1 202 Dühring, 1 897, p. 5. 1 195 Dühring. 1 196 Dühring,

de e da antecipação do futuro": é preciso o descaramento judeu para cortar de tal modo o direito dos futuros indivíduos e povos". 1 203 Então, não é de admirar que Widemann aproxime desse texto de Dühring Assim falou Zaratustra, o "profundo evangelho do super-homem". 1204 E compreende-se porque numa das suas últimas cartas, aquela que acaricia a ideia de golpe de Estado contra o projeto de monarquia social atribuído a Guilherme II, Nietzsche se preocupe em distinguir claramente o "espírito livre", caro a ele, daquele errônea e instru­ mentalmente agitado pelos socialistas (supra, cap. 1 7 § 5). Por outro lado, alguns anos depois, também um autorizado historiador ju­ deu do antissemitismo aproxima Nietzsche de Dühring, para colocar ambos sob a categoria de "antissemitismo anticristão", cujo alvo é "a moral judaica e cris­ tã" (ela mesma de origem judia), a tradição religiosa judeu-cristã no seu con­ junto. 1205 Para esse fim convém citar sobretudo um amigo de velha data como é Overbeck, que, em suas memórias, chega a dizer do filósofo: "Quando fala com franqueza, os juízos que ele exprime sobre os judeus vão além, pela sua severidade, de qualquer antissemitismo. O fundamento do seu anticristianismo é essencialmente antissemita". 1206

7. A "questão judaica " como "questão social " (Dühring) ou a "questão social " como "questão judaica " (Nietzsche) Todavia, apesar dos pontos reais de contato, também no plano imediata­ mente ideológico-político são enormes as diferenças que existem entre Nietzsche e Dühring. A condenação da "cidade grande" por parte do macaco resulta incoerente aos olhos de Zaratustra: "Por que demoraste tanto tempo no pânta­ no, para tu mesmo te tomares rã e sapo? [ . . . ] Porque não foste para a floresta? Ou não araste a terra? O mar não está cheio de ilhas verdes?" (Za, III, Do passar além). A alternativa para a cidade corrupta e corruptora é identificada na volta à terra (do que os judeus não parecem capazes); ou na expansão colonial (que é outra forma de volta à terra) . E então se compreende que tam­ bém o colonialismo sej a celebrado em oposição ao espírito mercantil (e judeu): Mesmo que o mercador reine lá onde tudo o que resplandece é ouro de mercador! Não é mais tempo para rei: o que hoje se chama povo não merece nenhum rei. 1 203 Dühring. 1 897. pp. 265-6. 1 204 Widemann, 1 885, p. 239. A referência é a Dühring, 1 897. 1 205 Lazare, 1969, p. 1 24.

i wc,

Overbeck, 1 906, p. 222.

Vede como esses povos imitam, eles mesmos, os mercadores: apanham a mínima vantagem para si de toda varredura! Annam ciladas uns para os outros, sempre arrancam uma coisa do outro - e os chamam de "bons vizinhos". Ó feliz tempo passado quando um povo dizia a si mesmo: "Quero ser senhor de outros povos! " (Za, III, De tábuas antigas e novas, 2 1).

Com a sua rivalidade mesquinha e as suas contendas territoriais mesqui­ nhas (por exemplo, para a Alsácia e a Lorena), os países europeus dão prova de espírito mercantil (próprio do judaísmo). Deveriam, ao contrário, lançar-se em vigorosas ações de expansão além-mar. É o que o "macaco" não compre­ ende. Ele pode denunciar a "grande cidade" como "a grande cloaca onde se reunem as sujeiras escumantes" (Za, III, Do passar além), mas não está em condições de formular uma alternativa. Berlim, considerada a cidade judaica por excelência já desde o Nietzsche jovem e por seu círculo dos amigos, e nesses termos rotulada permanentemente por Dühring, 1 207 é também a capital da socialdemocracia. Em vez de estimular a população excedente a "emigrar para selvagens e frescas regiões do mundo", os socialistas de todas as seitas preferem pescar nas águas turvas do "pântano" ou da "cloaca"; nesse sentido, revelam aquela mesma incapacidade de ter uma relação com a "terra" e com o "bosque" que censuravam nos judeus. Ademais, desviando-os da expansão colonial, o macaco dühringuiano e socialista acaba estimulando entre os povos europeus uma rivalidade insensata, segundo um espírito estreito de acumulação territorial, de um espírito mercantil que lembra em última análise o judaísmo. Mas não é tudo. Vimos o macaco condenar de modo indiferenciado o deus dos exércitos e o deus dos mercadores. O ponto de vista de Nietzsche é bem diferente. Se, por tim lado, também ele despreza o espírito mercantil que atribui ao judaísmo - e nisto está de acordo com Dühring -, por outro lado, não tem dificuldade alguma em se identificar com a estirpe judaica dos senhores que, forte por causa da sua religião nacional, conquista Canaã. E o mesmo deus dos mercadores suscita desdém só na medida em que pretende subordinar a si o deus dos exércitos, liquidando o ideal antigo e nobre do otium et bel/um. O quadro, porém, muda radicalmente se o deus dos mercadores reconhecer a preeminência ideal do deus dos exércitos, se, em termos políticos, a fusão social e eugênica entre finanças judaicas e "oficialidade aristocrática" serve para infundir novo sangue e vigor na classe chamada a opor-se à vulgaridade e aos desvalores da modernidade, também com um vigoroso programa de expansão colonial. 1 207

Dühring, 188 l b, pp. 6 e 20.

Mas Dühring remete exatamente aos acontecimentos de Canaã para de­ monstrar, não só a brutalidade sem escrúpulos, mas também e sobretudo a inconfi a bilidade nacional de um povo, como o judeu, "cuja ultima ratio [ . . ] são o poder e o domínio". 1 208 Mas aos ouvidos de Nietzsche essa acusação soa como o mais alto reconhecimento: é a confirmação de que a criação da raça dos senhores não pode passar sem a contribuição judia. Sintetizando, poderemes dizer que, entre as três figuras do judaísmo, a que é mais odiosa a Dühring é aquela que a seus olhos conduz do desapiedado conquistador de Canaã ao capitalista e financista sem escrúpulos que conquis­ tou a Bolsa e a imprensa de Berlim. É a única figura que Nietzsche olha com admiração, no que concerne ao conquistador de Canaã, e com atitude afinal possibilista no que se refere ao financista. O filósofo reserva seu ódio em par­ ticular à figura do profeta judeu, que continua infelizmente a se manifestar na roupagem do agitador socialista. Evidentemente, é a antítese com relação a Dühring, que mostra uma certa indulgência exatamente em relação aos profe­ tas, aos quais caberia o mérito de ter tentado uma autocrítica dos aspectos mais odiosos (a desmedida vontade de poder) do judaísmo.1209 E de novo surge o antagonismo, não obstante os pontos de contato, entre as duas personalidades aqui comparadas. Dühring faz uma afirmação lapidar: "A própria questão judaica é uma questão social". 1 21 0 Invertendo a sentença anterior, Nietzsche poderia ter dito: "A própria questão social é uma questão judaica". Se no primeiro caso se trata de atingir o grande capital judeu a fim de integrar as classes populares, abran­ dando ou calando o seu protesto, no segundo caso se trata de observar que a suposta questão social é apenas uma invenção do ressentiment e do espírito de vingança alimentados pelo judaísmo ou pela tradição religiosaj udeucristã. Bem longe de querer atingi-los, Nietzsche, sobretudo nos últimos anos da sua vida consciente, está obcecado pela ideia de cooptar capitalistas e financistas ju­ deus na raça dos senhores, e de cooptá-los de modo completo e irreversível, intervindo no plano eugênico além de no plano político-social. O reforço do bloco dominante deveria depois abrir o caminho para uma ofensiva generaliza­ da contra as pretensões loucas das classes populares e contra o movimento socialista, sem poupar as outras duas figuras do judaísmo, antes exacerbando mais a polêmica e a luta contra agitadores que transpiram judaísmo. .

1208

Dühring, 1 8 8 1 b, pp. 33-4. Dühring, 1 88 1 b, pp. 26 e 28 . 1210 Dühring, 1 88 1 b, p. 1 54. 1 209

8. Antissemitismo feudal, antissemitismo "anticapitalista " e "so­ cialismo feudal " A essa altura, convém reler a polêmica de Nietzsche. Poucos anos depois do fim da vida consciente do filósofo, em 1 894, intervindo no Reichstag, Caprivi observará que o antissemitismo "é o germe da social democracia". Ao colocar em estado de imputação em párticular "o antissemitismo contra o capital" (Kapitalantisemitismus) e ao se dirigir aos deputados influenciados pelo antissemitismo, o chanceler prossegue assim: O ódio e a aversão se voltam contra o capital enquanto tal; se o movimento continuar, não estareis em condições de limitá-lo ao capital judeu - o movi­ mento irá contra o capital como tal! Por isto digo que o vosso partido está em conexão com o partido da extrema esquerda desta Câmara. 1211

É o "p artido da extrema esquerda", nos seus diversos e opostos com­ ponentes que constitui o alvo da polêmica de Nietzsche. Vimos o ataque a Stõcker:. pela sua tomada de posição a favor do sufrágio universal e igual . Também aqueles que merecem realmente a acusação de antis semitismo são condenados, em primeiro lugar, por estarem acometidos, de um modo ou do outro, pela superstição democrática ou, pior ainda, pela superstição socialista ou socialistizante. Bernhard Fõster é um "agitador" que, em vir­ tude das suas tendências igualitárias, repugna ao "gosto" de Nietzsche: "São sentimentos aristocráticos demais para colocar-me no mesmo nível, no p la­ no j urídico e social, de 20 famílias de camponeses, como ele tem em pro­ grama". Além do mais , esse agitador é um "vegetariano" (B, III, 3, p. 5 4) e os vegetarianos, com a sua tendência a colocar em discussão a ordem na­ tural e a luta que a caracteriza, são expressão de decadência (GM, Ili, 1 7 e WA, 5 ) . Não esqueçamos que já numa carta de 1 8 69 Nietzsche, sob a influ­ ência de Wagner, aproxima "doutrina vegetariana" e "socialismo" (cf. su­ pra, cap . 1 , § 9). À fraqueza e às extravagâncias do cunhado, o filósofo contrapõe o exemplo dos ingleses, decididamente "carnívoros" que, melhor do que qualquer outra "raça'', souberam desenvolver a expansão colonial (B. II, 3, p. 54). É um argumento da ideologia imperial bastante difundido naquele período e às vezes tornado próprio, como frequentemente aconte­ ce em circunstâncias do gênero, pelas próprias vítimas. Na sua autobiogra­ fia, Gandhi refere que nos anos de sua inflincia e adolescência "estava na moda uma cantiga", composta por um poeta, que dizia o seguinte: "Vej a o 121 1

ln Ferrari Zumbini, 200 1 , p. 405.

poderoso inglês, / Domina o pequeno indiano, / Porque sendo carnívoro, / Tem cinco cúbitos de altura" . 1 212 Leiamos agora os motivos da imputação contidos na acusação pronuncia­ da por Nietzsche contra Dühring: também ele é um "pobre diabo de agitador que grita" e, ainda pior, um "pobre comunista" (XIV, 3 82); não é por acaso que está entre ··os defensores e sustentadores" da "Comuna de Paris" (XI, 586). E não é tudo, é um "homem da plebe" (XI, 494), um "proletário" (X, 363), uma ''canalha venenosa e biliosa", que, entre os seus seguidores, além da "species anarchistica dentro do proletariado culto", não consegue atrair "uma só pes­ soa por bem" (XIV, 422; GM, III, 26). Pode-se fa�er um discurso de caráter mais geral: "o 'inconsciente' estender dedos longos, longos demais, o engolir propriedade alheia me pareceram sempre mais evidentes em todo antissemita do que em qualquer judeu" (XIII, 6 1 1 ) . Somos levados a pensar na denúncia do ''proletariado ladrão de Weitling" (Weit/ings stehlendes Proletariat) que volta em Schelling1213 e na cultura antissocialista do tempo, inclusive Nietzsche: nós o vimos censurar o movimento operário por não querer respeitar "o sétimo mandamento", que obriga a "não roubar", enunciado por um respeitável "judeu da antiguidade" (supra, cap . 1 § 1 O). Certamente, Dühring é realmente um antissemita. Mas o antissemitismo considerado por Nietzsche se refere ao protesto social que alimenta o socialis­ mo, à ralé ou à canail/e (XIII, 92 e B, III, 5, p. 2 1 8), que constitui a base social ou a massa de manobra da revolução. Aquele "socialismo dos imbecis" que, segundo a definição de August Bebei, ou melhor, tomada célebre por ele, 1214 é o antissemitismo, é condenado por Nietzsche com uma atitude cheia de despre­ zo em relação aos imbecis, certamente, mas sobretudo ao socialismo enquanto tal . Melhor, poderia se acrescentar que, se para o discípulo e colaborador de Engels a imbecilidade consiste em exprimir de modo grotesco e bárbaro um

1212

Gandhi, 1 974, pp. 3 1-2. Nos nossos dias, ao contrário, são os fundamentalistas e chauvinistas hindus que propagam a dieta vegetariana, de modo a recuperar os costu­ mes da população ariana originária e não contaminada (Sengupta, 2002); Talvez um processo ideológico análogo se verifique também em Hitler que, nos critérios e no consumo de carne, junto com as preocupações com a saúde faz, às vezes, valer o argumento dos presumidos hábitos alimentares dos "soldados da antiga Roma" (Hitler, 1 989, p. 24 1 ; 25 de abril de 1 942). 1213 ln Pareyson, 1 977, p. 645. 1214 Sobre a história desta fórmula, cf. Massara, 1 972, p. 1 05.

protesto social ao qual, todavia, é preciso prestar atenção, no teórico do radica­ lismo aristocrático ele reside exatamente nessa atenção simpática às classes subalternas: "A questão social é uma consequência da decadência" (XIII, 265). Façamos uma comparação mais aproximada entre o antissemitismo de Nietzsche e o dos ambientes socialdemocratas. Engels observa que "quem forma o coro antissemita" são ou artesãos "esmagados pela concorrência do grande capital" (não poucas vezes judeu) e que assim sofrem o fascínio de um antissemitismo lido como uma espécie de "socialismo feudal", ou "a pequena nobreza, a classe dos Junker" que, na sua dissipação, pretende continuar a viver acima das suas possibilidades e acaba assim endividando-se junto ao ca­ pital judeu. Ao alertar contra o ''socialismo feudal" e antissemita, Engels subli­ nha a grande contri buição fornecida pelos judeus para a causa da luta anticapitalista, como demonstra, por um lado, a intensificação na Inglaterra das "greves de operários judeus", frequentemente "entre os mais miseráveis e os mais explorados ", por outro lado, a presença na vanguarda do movimento soci­ alista de intelectuais como Lassalle, Bernstein e tantas outras "pessoas" das quais - acrescenta Engels - "tenho orgulho de ser amigo". Para não falar de Marx, que ··era um judeu puro sangue". O próprio capital judeu desempenha ·'uma obra meritória" na medida em que coloca em crise "classes reacionárias de cima abaixo" como são a pequena burguesia e, sobretudo, a nobreza feu­ dal . 1 2 1 5 Esta última é o alvo principal da polêmica antissemita dos ambientes socialdemocratas . A ela - segundo a denúncia contida já no Manifesto do partido comunista remonta também a tentativa de enfraquecer e desviar o protesto popular com a miragem do "socialismo feudal". 1 21 6 Bebei argumenta de modo análogo. Ao notar a difusão do antissemitismo entre os "círculos dos oficiais", os "nossos Junker" e a "nobreza feudal" endividada, ele acrescenta que ·'isto não impede naturalmente que uma parte dos nossos nobres se aproxi­ me para pescar um peixinho de ouro judeu, a fim de poder dourar de novo com o seu dinheiro, o antigo brasão, salvando ao mesmo tempo a própria existência que agora se tomou insegura". A alusão irônica é a aspiração do nobre e do oficial, que não querem renunciar à sua opulência tradicional, a se casarem, não obstante as suas convicções cristãs e judeófobas, com "alguém pertencen­ te à raça judia" desde que ricamente dotada. 1217 É a política matrimonial recomendada por Nietzsche, o qual é bem consci­ ente de que os antissemitas encontram adeptos também entre as classes altas da -

Marx-Engels, 1 955, vol. XXII, pp. 49-5 1 . Marx-Engels, 195 5, vol. IV, pp. 482-4. 1217 Bebei, 1 972, pp. 280- 1 . 1215

1216

sociedade: "'parece-me que por eles se entusiasma a nobreza prussiana inteira" observa uma carta a Overbeck de 1 6 de outubro de 1 8 85 (B, III, 3, p. 97). Mas, nesse caso, o juízo do filósofo é decididamente menos severo. A sua indignação visa círculos políticos e sociais bem diferentes : "Não tenho sofrido uma ofensa tal como a aproximação dos nomes 'Dühring' e 'Zaratustra"' (B, III, 3 , p. 1 20). Aparentemente, o antissemitismo leigo e anticristão de Dühring deveria ser mais tolerável para Nietzsche do que o antissemitismo ou a judeofobia cristianizante dos Junker. Mas não é assim. Em vão se procuraria nele urna polêmica contra o antissemitismo feudal análoga, pela sua aspereza, àquela desenvolvida contra o antissemitismo "anticapitalista". Explica-se assim o silêncio sobre a Rússia e até a admiração expressa por ele pela aristocracia daquele país. Em conclusão, Engels exprime um julgamento positivo, embora de modo diferenciado, sobre as três figuras do judaísmo. Sabemos, porém, da hostilidade de Nietzsche pela figura do judeu proletário e, sobretudo, do judeu intelectual subversivo. No que diz respeito à terceira figura, a do capitalista e financista, se ao primeiro se atribui o mérito objetivo de minar o poder e o prestigie da classe aristocrática e militar, o segundo espera que possa contribuir para o reforço social e eugênico exatamente dessa classe. À imprensa antissemita, que às vezes rotula a ele próprio como judeu, Engels responde: "Melhor judeu que fidalgo provinciano feudal".1 21 8 Dificilmente esta conclusão poderia ter sido subscrita pelo teórico do radicalismo aristocrático, que odeia o socialismo até na sua forma "'feudal" e "imbecil", e que atribui ao intelectual judeu uma res­ ponsabilidade de primeiro plano em alimentar esse movimento político ruinoso.

9. Denúncia do antissemitismo anticapitalista e ajuste de contas com os socialistas, os cristão-socialistas e os subversivos em geral Em Nietzsche, a caracterização do antissemitismo assemelha-se a uma gota de água para a caracterização do socialismo: "Os antissemitas não perdo­ am os judeus pelo fato de os judeus terem 'espírito' - e dinheiro (antissemitismo: um nome dos 'falidos ')" (XIII, 3 65). "Os falidos, os decadentes de todo gêne­ ro" têm necessidade de ocultar também perante si mesmos o seu fracasso, andando à caça de "culpados'', de um "bode expiatório": "ou o sistema social, ou a educação e a instrução, ou os judeus, ou os nobres, ou em geral os privile­ giados de qualquer espécie", ou até o bom Deus (XIII, p. 423). Porém, bem além de Stõcker ou Dühring, quem quer que ouse pôr em discussão as relações 121N

Marx-Engels, 1 955, vol. XXII, p. 5 1 .

sociais existentes "inventa responsabilidades para arranjar para si um senti­ mento agradável - a vingança" (XIII, 423). Vejam-se os judeus ou as relações político-sociais concretas, o protesto contra a desigualdade de qualquer manei­ ra não tem razão de ser a expressão de ressentiment e de inventar responsabi­ lidades que não existem. Como em todo fracassado, partícipe da "revolta dos escravos na moral", também em D ühring vemos "ul}l esbanjamento de desdenhosos comportamen­ tos morais". Ele gostaria de encenar uma espécie de ')uízo universal" contra a vida e a história e pretenderia "que as suas babas significassem a própria justi­ ça" (XIV, 3 8 2). Mas também os miseráveis 'judeus", que inventam o cristia­ nismo, pretendem ser "o juízo final de todo o resto" (AC, 44) . Mesmo devora­ dos pela '"sede de se tomarem carrascos", antissemitas e socialistas de toda laia ·'têm sempre na boca a palavra 'justiça' como baba envenenada", preten­ dem ser ·'os bons, os justos" (GM, III, 1 4); e, ao fazer isto, tomam uma atitude semelhante, mais uma vez, aos j udeus e aos 'j udeu-cristãos", os quais, como sabemos, pretendem também ser "os bons, os justos" (AC, 44). É preciso não perder de vista um ponto essencial: "O princípio fantástico 'amai os vossos inimigos ' precisou ser inventado pelos judeus, os maiores odiadores que jamais existiram" (M, 377). Mas, de modo análogo, os socialistas de toda espécie (inclusive os antissemitas) escondem o seu desejo de vingança contra os pode­ rosos, os ricos, os bem sucedidos sob palavras de ordem que proclamam a fraternidade, a filantropia, o amor universal. Enfim, Dühring é um "cheio de requebros" do mesmo modo que aqueles "homens superficiais, invejosos e em três quartos comediantes" que alimentam o '·socialismo" (XI, 5 8 6). Mas isto vale - já vimos - também para o intelectual judeu subversivo, esse comediante por excelência da indignação moral. O ressentiment plebeu e a carga subversiva dos fracassados da vida associam agitador socialista, judeu subversivo e . . . antissemita socialistizante! Sabemos que os próprios antissemitas devem ser incluídos entre os fra­ cassados da vida, esses "depositários dos instintos reprimidos e desejosos de compensação" são "os descendentes de toda escravidão europeia e não europeia de toda população pré-ariana em particular" (GM, 1, I I ). Somos levados a pensar nos judeus, o povo pária por excelência que, a partir do exílio babilônico, sofreu milênios de subjugação. Em todo caso, ao pronunciar a sua acusação contra os antissemitas e os fracassados de todo tipo, Nietzsche não hesita em recorrer à mitologia ariana, ou seja, àquela mitologia que começa a visar os judeus . Medidas enérgicas se impõem: seria preciso poder se "libertar da vista enjoativa dos mal sucedidos, dos mesquinhos, dos entristecidos e intoxicados (GM, 1, 1 1 ). São as mesmas medidas invocadas pelos antissemitas. Se ainda

Além do bem e do mal se exprime em termos problemáticos ("talvez fosse útil e justo banir os antissemitas berrantes do país" JGB, 25 1 ), Genealog;a da moral não parece ter mais dúvidas. Trata-se apenas de ver quantos ·'antissemitas" e ··quantos comediantes do ideal cristão-moral deveriam ser exportados hoje da Europa a fim de que o ar desta tome a ter um odor mais limpo" (GM, III, 26). Portanto, os antissemitas são chamados a partilhar a sorte dos subversivos, frequentemente de origem servil e não ariana, entre os quais certamente não faltam os judeus. O ajuste de contas com o antissemitismo tem o resultado paradoxal de tornar mais perigosa e precária a condição dos própri­ os judeus, que certamente não faltam entre as fileiras dos socialistas e dos subversivos. O fato é que, bem consideradas, as medidas radicais contra "todos os antissemitas" invocadas por Nietzsche se configuram como uma extensão e uma exacerbação das leis especiais em ação contra os socialistas e contra os subversivos. Além de "Stõcker" e do seu séquito de "antissemitas", é necessá­ rio atacar com rigor os "padres" enquanto tais, todos acometidos da "loucura criminosa". Estamos na presença de uma figura de maneira nenhuma inofensi­ va: "Não subestimemos o padre!", esse "animal vingativo e sutil". Não seja consentida nenhuma fraqueza em relação à "instituição sacerdotal, que com astúcia horripilante procura destruir desde o início" os homens melhores, "os mais fortes, bem sucedidos, magníficos" (XIII, 645-6). É necessário saber ir até o fundo: "Contra o padre - escreve Nietzsche a Brandes no início de de­ zembro de 1 8 88 - não é preciso argumentos, mas apenas o cárcere" {B, III, 5 , p. 5 02). É uma tese desenvolvida depois n o Anticr;sto: "Contra o padre não se deve argumentar, mas recorrer ao cárcere [ . . . ] . O padre é o nosso chandala seja proscrito, esfomeado, expulso para toda espécie de deserto". Além dessa figura, que é a "mais viciosa variedade de homem", se trata de destruir, como sabemos, a "instituição sacerdotal". Portanto, "quem come na mesma mesa com um padre seja banido", as igrejas sejam destruídas. É preciso ter em vista o cristão enquanto tal, sem distinguir entre católicos e protestantes, ou entre cristãos de orientação fundamentalista e cristãos de orientação liberal e moder­ nista; eventualmente, é esse ponto exato que se deve atacar com força. Em última análise, trata-se de reconhecer o "elemento criminoso no ser cristão" e tratá-lo de acordo (AC, Lei contra o cristianismo). Aj usta indignação pelajudeofobia de Stõcker não deve embaçar a lucidez do juízo, fazendo-nos perder de vista o caráter decididamente mais inquietante do "antissemitismo" de Nietzsche. A "lei contra o cristianismo", com a qual se encerra O Anticristo, é a extensão aos cristãos da legislação já em curso con­ tra a socialdemocracia. Esta gosta de comparar a sua condição no II Reich

com a dos cristãos perseguidos na Roma imperial. É uma comparação de al­ gum modo subscrita por Nietzsche, ainda que com um valor contrário: é preciso saber ler "a cruz como sinal de reconhecimento para a mais subterrânea conju­ ração que jamais existiu" (AC, 62), uma conjuração que continua a desenvol­ ver-se há quase dois milênios em âmbito socialista e cristão-social. A "lei contra o cristianismo", que traz a data de "30 de setembro de 1 888 da falsa cronologia", conhece,uma ulterior radicalização no momento em que surge a loucura. Trata-se de proceder, além da prisão do papa, ao fuzilamento não só de Stõcker e de "todos os antissemitas", mas também de Bismarck e de Guilhenne II. No entanto, o chanceler é inimigo declarado do pregador da corte e tem ótimas relações com o banqueiro judeu Gerson von Bleichrõder, de cujo conselho ele tira indubitável vantagem também para o que diz respeito às suas finanças pessoais. 1 2 19 Mas, aos olhos de Nietzsche, Bismarck é responsável por ter avalizado ou promovido em 1 88 1 , em nome do "cristianismo prático", a ideologia do trabalho e as medidas de legislação social, que conhecem uma dilatação ulterior, ruinosa, com Guilhenne II. Por isso, o chanceler é definido como .. o idiota por excelência entre os homens de Estado", com uma termino­ logia que ainda uma vez lembra o cristianismo e o "idiota na cruz" ridicularizado poucas linhas depois (XIII, 643 -4). Um ódio todo particular é votado contra o jovem imperador. Além de ser, como sabemos, um ·'idiota escuro", é um "cristão em unifonne de hussardo (christlichen Husaren von Kaiser) ou "o aborto (MifJgeburt) mais miserável de homem que até hoje chegou ao poder" (XIII, 643). O objeto de condenação já não é, claramente, o hussardo, mas o cristão, que, enquanto tal, é um mal sucedido, um aborto. Com a sua aspiração à emancipação dos escravos negros na África e dos proletários ou escravos brancos na Alemanha, o jovem impera­ dor leva avante um programa que ele declara ser cristão, mas que, aos olhos do filósofo, deveria ser mais exatamente definido como cristão-socialista. Em conclusão, o último Nietzsche aspira a uma radicalizaçlío ex1rema da legislação antissocialista, de modo a atingir também os cristãos-sociais, os cristãos enquanto tais e todos aqueles que são suspeitos de simpatias cris­ tãs ou socialistas. Nesse mesmo âmbito devem ser colocados "todos os antissemitas".

19 "Novo PARTIDO DA VIDA " , EUGENIA E "ANIQUILA­ MENTO DE MILHÕES DE MAL SUCEDIDOS " 1. Naturalização do conflito e abordagem da eugenia que levou na direção de um definitivo ajuste de contas não foi só a evolu

Oção da situação política interna e internacional, mas foram também as

convicções cada vez mais maduras de Nietzsche. No decorrer de sua evolução se assiste a uma progressiva acentuação da tendência a ler em perspectiva naturalista a história e o conflito. Já nos anos de O nascimento da tragédia, o filósofo acentua a dimensão de algum modo também fisiológica da degenera­ ção representada por Sócrates, o qual não por acaso se distingue também pela feiura do rosto e do corpo. Mas agora leiamos Crepúsculo dos ídolos: Pelas suas origens, Sócrates pertenceria ao povo miúdo: Sócrates era ralé . É sabido, e se pode ver ainda hoje, como ele era feio. Mas a feiura, uma objeção cm si mesma, é entre os gregos quase uma refutação. Sócrates era então de fato um grego? A feiura é bastante frequentemente a expressão de um desen­ volvimento híbrido, dificultado pelo cmzamento. Em outros casos, ela apare­ ce como uma involução do desenvolvimento. Os antropólogos que se inte­ ressam pela criminologia nos dizem que o delinquente típico é feio: monstrum in fronte, 111onstr11111 in animo. Mas o delinquente é um décadent. Era Sócrates um delinquente típico? (GD, O problema Sócrates, 3).

O surgimento do peso decisivo da fisiologia impõe uma virada na cultura: ··nevemos ser fisicos [ . . . ] enquanto até hoje todas as avaliações e os ideais foram edificados sobre a ignorância da tisica ou em contradição com ela" (FW, 335). A tisica aqui é sinônimo de fis iologia ou de ciências que partem da natu­ reza e do corpo. Descuidar dela já é um sintoma de falta de honestidade: "A tisica seja louvada, e mais ainda aquela que nos obriga a ela: a nossa retidão" (FW, 335). Por sua vez, a falta de honestidade, implícita na remoção da física, remete, para além da psicologia e mais ainda da ética, a uma dimensão que é, em última análise, fisiológica: 'Tudo o que até agora a humanidade considerou sério não são sequer realidades, são simples produtos da imaginação, ou mais exatamente mentiras que derivam dos maus instintos de naturezas doentias, prejudiciais no sentido mais profundo" (EH, Porque sou tão inteligente, l O). 587

É preciso acabar de uma vez para sempre com "a ignorância in physiologicis o maldito idealismo". Para começar, trata-se de indagar "a influência do clima sobre o metabolismo" (EH, Porque sou tão inteligente, 2). Já a partir do período "iluminista", a "inocência do Sul " pagã (FW, Apêndice, -

No Sul), que se manifesta em particular no "luxo do Renascimento", se contra­ põe à "estouvanice nórdica", toda invadida de moralismo, que age também em Rousseau (XIV, 274). Mas não basta a referência ao clima. Também não se deve perder de vista a alimentação: A mim interessa um problema do qual depende a "salvação da hummúdade" muito mais do que de qualquer curiosidade de teólogos: o problema da alimen­ tação. Grosso modo, ele pode ser formulado assim: "Como deves alimentar-te para alcançar o teu máximo de força, de vigor em sentido renascentista, de virtude sem moralismo?" (EH, Porque sou tão inteligente, l).

A dieta parece desempenhar um papel decisivo na explicação da história universal (a esse respeito falou-se de "santificação da questão da alimenta­ ção").1220 Se não a "origem'', em todo caso "a difusão do budismo [ . . ] depen­ de em boa parte da quase exclusiva, excessiva alimentação de arroz entre os indianos, e do consequente amolecimento geral". Por outro lado, o tétrico cris­ tianismo da Idade Média germânica não pode ser compreendido sem a "intoxi­ cação alcoólica" (e talvez um papel desempenhado também pelo "veneno dos aquecedores nas moradias alemãs"). Pode-se formular uma regra de caráter geral : "Onde predomina um profundo tédio da existência, vêm à luz as reper­ cussões de um grande erro dietético do qual o povo se tomou responsável por longo tempo" (FW, 13 4). Enfim, a hereditariedade: ·Todo bem é herança: aquele que não é herda­ do, é incompleto, é começo" (GD, Incursões de um inatual, 47). Com seu livro Heredilary Genius, Francis Galton tem o mérito de ter lançado luz não só sobre a figura do "gênio hereditário", mas também sobre a do "delinquente hereditário", bem como sobre a "história das famílias de delinquentes" (B, III, 5, p. 5 08). Ao autor inglês parece fazer alusão um fragmento de outubro de 1 8 88 segundo o qual só a partir de "20 anos" são realmente levados a sério "os primeiros problemas da vida" (XIII, 6 1 O). Se retrocedermos ao período de tem­ po aqui indicado, encontramos a publicação do livro que acabamos de citar, que vê a luz em primeira edição exatamente em 1 869. Compreende-se então a importância crescente atribuída por Nietzsche aos temas da "doença" fisica e .

122º

Bernoulli, 1 908, vol. II, p. 3 93 .

psíquica e da ·'inclinação à doença" (que se transmite hereditariamente), da ''fraqueza hereditária'', da "decadência das raças e das famílias", em consequência também da "alimentação insuficiente", da "precocidade erótica" (que é "a maldição sobretudo da juventude francesa e em primeiro lugar dos parisienses"), do "alcoolismo" (XIII, 250, 456 e passim). Acabando com o maldito "idealismo", é necessário descobrir ou redescobrir as ciências naturais ("daquele momento em diante, de fato, pratiquei apenas fisiologia, medicina, ciências naturais", EH, Humano, demasiado humano, 3); a "fisiologia", a "estatística", a "higiene", (graças aos "progressos" consegui­ dos por elas) "o nosso sentimento em relação às ações e aos juízos morais poderia no futuro tomar-se compreensível", XIV, 259). Assim Nietzsche faz própria a palavra de ordem Nature and Nurture, que sobressai como subtítulo de um outro livro de Galton e se difunde ampla­ mente na cultura do tempo. 1221 A partir da atenção reservada ao clima, alimen­ tação, hereditariedade, uma conclusão se impõe: "Nenhum estudo me parece mais essencial do que aquele das leis da criação". Trata-se de i nvestigar e combater não só os "modos de viver", mas também as "uniões contraprodu­ centes" (XI, 480). É o problema da "eugenia", a nova "ciência" inventada exatamente por Francis Galton (um primo de Darwin) , ao qual Nietzsche se refere com ardor nas cartas endereçadas a Overbeck e a Strindberg, sendo que este último chama, por sua vez, a atenção para a importância da genealogia do .. criminoso" traçada por Lombroso (B, III, 5, p. 347 e 508 e III, 6, p. 376). A luta contra as ideias nascidas da Revolução Francesa e contra os projetos de transformação social agitados pelo movimento operário e socialista desembo­ cou na naturalização do conflito social e do processo histórico. Agora é possível definir leis gerais válidas tanto para o mundo humano como para o mundo animal. Por exemplo, "uma alimentação superabundante, como também todo "excesso" de proteção e de assistência, pode levar a consequências negativas ou catastró­ ficas . A decadência é uma emboscada onde faltam totalmente o esforço, a ten­ são e a "dureza". Sabem muito bem disso aqueles que estudam a história de uma "comunidade aristocrática" (por exemplo Veneza ou uma polis grega), mas es­ tão igualmente conscientes disso os "criadores". Uns e outros topam com uma verdade fundamental: "Uma espécie (Art) surge, um tipo (Typus) se consolida e se reforça, na longa luta contra condições desfavoráveis substancialmente iguais"; a decadência e a ·'variação do tipo", com o surgimento "de fenômenos inusitados e de monstruosidade (além de vícios monstruosos)", são o resultado de uma ..criação" errada (JGB, 262). Sabemos que uma aristocracia "como fundamento 1221

Galton, 1874.

e condição, tem necessidade da escravidão, seja qual for a sua forma e seja qual for o seu nome": pois bem, impõe-se "uma criação sistemática, artificial e cons­ ciente" seja da casta ou raça dos senhores, seja da casta ou raça dos servos; só desse modo se poderá evitar a ·'revolta dos escravos" ou a "conspiração global do rebanho" (XII, 7 1 -4).

2. Otimismo/pessimismo; ser/devir, razão/arte; consciência his­ tórica / mito supra-histórico; doença/saúde A partir dessa nova consciência da importância da fisiologia, Nietzsche percorre de novo a sua evolução anterior e analisa criticamente as dicotomias por ele sempre mais formuladas no esforço não só de ler a realidade, mas de agir sobre ela. Diagnosticadas e denunciadas desde O nascimento da tragé­ dia, a mediocridade e a subversão modernas são o alvo constante da sua polê­ mica. Podem ser realmente impedidas enquanto expressões de otimismo fátuo e, portanto, a partir da dicotomia otimismo/pessimismo? Ao buscar novas cha­ ves interpretativas, A gaia ciência sublinha a continuidade política substancial da luta travada a partir dos anos da juventude: Alguém deve lembrar, pelo menos entre os meus amigos, que desde o come­ ço me lancei contra este mundo moderno não sem alguns grandes erros e sobreestimações, mas, em todo caso, como aquele que tem uma esperança. Talvez a partir de algumas experiências pessoais, via no pessimismo filosófi­ co do século x1x o sintoma de uma energia superior do pensamento, de uma valentia mais ousada, de uma plenitude mais vitoriosa de vida, maiores do que aquelas que caracterizaram o século xvm, a época de Hume, Kant, Condillac e dos sensualistas (FW, 370).

De modo análogo, a música de Wagner foi lida "como a expressão de uma pujança dionisíaca da alma alemã": "Acreditei ouvir nela - observa Nietzsche - o terremoto com o qual uma força primigênia, acumulada desde a antiguida­ de, encontra finalmente saída - indiferente, aliás, aos eventuais sobressaltos de tudo o que estamos acostumados a chamar de civilização" (FW, 370). O dese­ jado "pessimismo dionisíaco", pronto a aceitar a vida e a gozá-la até nos seus terríveis conflitos, infelizmente era trocado pelo "pessimismo romântico'', me­ droso e chorão, em última anál ise, negador da vida, que caracteriza Schopenhauer, Wagner e o século x1x em geral. Sobretudo a leitura de Dühring fornece a demonstração de que a dicotomia até aqui utilizada é inadequada e equivocada. Dühring professa ao mesmo tem-

po o ·'otimismo cósmico" (a confiança de poder agir positivamente no mundo realizando nele a 'justiça") e de "pessimismo da indignação" (Pessimismus der Entrüstung) (a revolta moral contra as inumeráveis injustiças de fato exis­ tentes, que impedem a maioria dos homens de gozar do seu direito a uma vida digna e à felicidade) . 1222 O "pessimismo da indignação" (Entrüs tungs­ Pessimismus) se toma um dos alvos preferidos do último Nietzsche . Ele é sinônimo de atitude ''democrática" e "socialista": sim, os "pessimistas da indig­ nação [ . . . ] se atribuem a missão de santificar a sua imundície sob o nome de 'indignação "' (XIII, 424-6). ''Pessimismo da indignação" tende até a tomar-se sinônimo de "anarquismo da indignação" (supra, cap. 8 § 1 ) . Em todo caso, a bandeira do pessimismo não pode mais ser agitada contra a subversão, como acontecia em O nascimento da tragédia. Compreende-se a conclusão a que Nietzsche chega: ''De uma palavra arbitrária e casual, a palavra 'pessimismo', se fez um abuso que se espalha como uma epidemia: e assim se descuidou do problema no qual nós vivemos, que nós somos" (XI II, 398). Eis que agora se ap resenta, como ''há muito tempo mais evidente" e mais persuasiva, a dicotomia ser/devir. Por um lado, "o desejo de fixar de forma imutável, de eternizar, de ser", por outro lado, "o desejo de destruição, de mu­ dança, de inovação, de futuro, de devir" (FW, 370). Nos anos de O nascimen­ to da tragédia, a "metafisica da arte" é também a celebração da "alegria do artista pelo devir", que encontra a sua esplêndida expressão na Hélade (GT, 9; 1, 68). Exatamente por isso é fundamentalmente estranho à Grécia um filósofo como Parmênides, cujo pensamento se volta "para a rígida quietude mortal do mais frio e vazio conceito, do ser" (PHG, l l ; 1, 844). Quem exprime, porém, a essência do helenismo trágico é Heráclito. A realidade e a vida se revelam no seu significado autêntico: "Um nascer e um morrer, um construir e um destruir, que sejam sem qualquer imputabil idade moral e se desenrolem numa inocência eternamente igual" (PHG, 7; 1, 830). E como o pessimismo, também o devir parece por algum tempo encontrar o seu lugar de eleição na Alemanha, herdeira também nisso do helenismo trági­ co. Se alcança a sua expressão mais acabada na sociedade chinesa, o imobilismo não é certamente estranho aos povos latinos. A aspiração a "organizações ide­ ais definitivas" e a uma 'j ustiça" que ilumine a terra à guisa de um "arco-íris imóvel" é própria dos revolucionários (supra, cap. 9 § 3) e, portanto, remete particularmente à França e ao ·'otimismo" que caracteriza a sua cultura. Exa­ tamente porque encarna a ideia de devir, o povo alemão se toma estranho a essa utopia ou distopia de uma condição de perfeição imóvel e de perfeita 1222 Dühring, 1 875, pp. 346-7.

imobilidade. Ele "quer sempre reformar e nunca revolucionar", sem nunca per­ der a inquietação, "o incômodo mais nobre, aquele da ação renovadora", uma prova disso - observa a quarta Inatual - é a música de Wagner, o qual, por sua vez, já tinha escrito: ·'O alemão não é revolucionário, mas reformador". 1 223 Também na Gaia ciência podemos ler: Nós alemães somos hegelianos. mesmo se Hegel nunca tivesse existido, ' pelo fato que nós (ao contrário de todos os latinos) atribuímos por instinto ao devir, ao desdobramento, um sentido mais profundo e um valor mais rico do que a tudo quanto "é" - cremos com dificuldade na justificação do con­ ceito de "ser" (FW, 357).

No entanto, também essa segunda dicotomia não deixa de ter inconveni­ entes . A exaltação do "progresso" ou do "movimento" pode ser significativa e oportuna "para quem vive entre os eg' cios", em sociedades caracterizadas pelo imobilismo, como a egípcia (ou chinesa) . A situação na "volúvel Europa" (M, 554) é bem diferente. Aqui o devir pode também ser sinônimo de falta de olium (MA, 285). Para contrastar essa tendência pode de novo ser invocada a Hélade. Se tomarmos os atenienses, vemos que eles não eram certamente estranhos à "inaudita atividade" que caracteriza a tradição judeucristã (supra, cap . 9 § 5), "sentiam-se como os gregos mais inquietos; mas, com respeito a nós, como aparecem cheios de si e de outras boas coisas !" (IX, 89) Além de carência de otium, o devir pode também ser sinônimo de abandono à fugacidade do instante e à corrente do momento, com a renúncia de qualquer fim superior, de qualquer ambição de deixar a marca na história (SE, 4 ; 1, 3 74-5). Em conclusão, as categorias de devir e de ser também não constituem uma chave adequada de interpretação do mundo e das visões do mundo. Os dois termos desse par dicotômico podem assumir significados bastante diferentes entre si: .

O desejo de destmição, de mudança, de devir pode ser a expressão da força superabundante, grávida de futuro (o meu terminus para tudo isso é, como é sabido, a palavra "dionisíaco"), mas pode também ser o ódio da criatura mal sucedida, indigente, fracassada, que destroi, deve destmir, porque aqui­ lo que existe, melhor, todo o existir, todo o ser remexe o seu desdém, e atiça a sua ferocidade; para compreender esse modo de sentir observem-se de per­ to os nossos anarquistas (FW, 370).

Quem agita a ideia de devir pode também ser a louca esperança de resga­ te dos escravos e dos mal sucedidos, chamados porém à ordem e ridiculariza•m

Wagner, 1 9 1 O f, p. 85.

dos pela teoria do eterno retomo do idêntico. Por sua vez, também "a vontade de eternizar", o pathos do ser pode revestir significados opostos: "pode brotar da gratidão e do amor", estimulando uma arte "que difunde um clarão homérico de luz de glória sobre todas as coisas (neste caso, falo de arte apolínea)". Mas o pathos do ser pode também ser a expressão do tormento do mal sucedido que, com "vontade tirânica'', quisesse impor "o selo de uma lei vinculante e de uma força coercitiva", igualiz;i.dora e imobilizante, à riqueza do real, fazendo assim ''vingança de todas as coisas" (FW, 370). Nem resultam mais adequadas as outras dicotomias cada vez mais expe­ rimentadas por Nietzsche no curso da sua evolução: arte e mito contra racionalismo socrático? Na realidade, os escritos do período "iluminista" con­ denam a "loucura" revolucionária e religiosa em nome também das luzes e da razão : é mérito do ''homem de ciência" opor-se à tendência ao "sobrenatural" e ao "inexplicável" (MA, 1 3 6). O mito supra-histórico é realmente um antídoto com respeito a uma consciência histórica comprometida com a legitimação da modernidade? Na realidade, elemento essencial da subversão moderna é uma moral que, no seu fanatismo prescritivo, ignora a história que existe. Não se trata de uma inversão de posições. As diversas dicotomias adquirem um signi­ ficado unitário e coerente se forem relidas à luz da dicotomia que caracteriza a última fase da evolução de Nietzsche: de um lado, a saúde inserida na afirma­ ção da vida com os seus conflitos e a sua carga de negatividade; do outro, a doença da transcendência religiosa e revolucionária que, fugindo da carga de negatividade, acaba negando e pondo em perigo a própria vida. A gaia ciência insiste sobre isto, ao tratar do percurso_ feito: Toda arte, toda filosofia pode ser considerada como um meio de cuidado e de �uuda ao serviço da vida que cresce e que luta: elas pressupõem sempre sofrimentos e sofredores. Mas há duas espécies de sofredores: aqueles que sofrem da superabundância da vida, os quais, portanto, querem uma arte dionisíaca e, também, uma vida e um conhecimento trágico da vida, e aqueles que sofrem do empobrecimento da vida, os quais procuram repouso, quietu­ de, mar plácido, libertação de si mesmos através da arte e do conhecimento, ou, ao invés, a embriaguez, o espasmo, o aturdimento, a loucura (FW, 370).

Do alto dessa nova perspectiva, as dicotomias precedentes podem ser compreendidas no seu significado autêntico e ser recuperadas. Portanto, o pes­ simismo pode ser de novo celebrado, se com isso se entende o "pessimismo dionisíaco", nos antípodas do pessimismo de Schopenhauer e da sua negação da vontade de viver. Também o devir volta ou continua a ser um ponto de referência, sob a condição de não perder de vista que "a alegria eterna do devir

[ . . . ] compreende em si também a alegria do aniquilar". Visão do mundo funda­ da no devir e .. pessimismo dionisíaco" são a mesma coisa. Ambos significam o mesmo: ·'A afirmação do fluir e do aniquilar, que é o caráter decisivo numa filosofia dionisíaca, o sim ao contraste e à guerra, ao devir, com uma recusa radical até do conceito de 'ser "' (EH, O nascimento da tragédia, 3). Pode ser recuperada também a crítica da razão contida n'O nascimento da tragédia, que censurava*no racionalismo e no ''otimismo socrático" o fato de desenvolverem uma eficácia "corrosiva para a vida" (supra, cap. l § 1 6). Ecce Homo continua a atribuir à obra juvenil o mérito da "compreensão do socratismo": nela Sócrates aparece "como instrumento da desagregação gre­ ga" e é "reconhecido pela primeira vez como décadent típico"; ao se opor ao "mstinto", "a 'racionalidade' a todo custo" acaba sendo uma "violência perigo­ sa, que mina a vida!" (EH, O nascimento da tragédia, 1). Sim, "um instinto está enfraquecido se racionaliza a si mesmo: com o racionalizar-se, de fato, se enfraquece" (WA, Pós-escrito). Mas isto não impede o último Nietzsche de condenar, em nome também da ciência, todos os que, rejeitando a doutrina do eterno retorno, acabam regredindo a uma visão teísta e criacionista e, portanto, a uma tradição religiosa hostil à vida. Analogamente, é mérito da segunda Inatual ter compreendido "quanto há de perigoso, de corrosivo e de venenoso para a vida" num ''modo de praticar a ciência", e a ciência histórica em particular, que consagra a modernidade e paralisa toda ação destinada a pô-la em discussão (EH, As considerações inatuais, l ). Mas, ainda uma vez, isso não impede que o último Nietzsche amplie e aguce a consciência histórica ao ponto de historicizar e pôr em discussão a própria visão unilinear do tempo (supra, cap . 15 § 4). A dicotomia pessimismo/otimismo e as outras sempre mais elaboradas não estão em condições de captar o problema essencial: "Não se trata de esta­ belecer quem tem razão; a questão é estabelecer de que lado estamos, se do lado dos condenados, dos produtos da decadência . . . Neste caso, j ulgamos de maneira niilista" (XIII, 3 98-9) . E ainda: "Não se trata absolutamente do melhor ou do pior dos mundos possíveis: 'não' ou 'sim', este é o problema. O instinto niilista diz não" (XIII, 528). Trata-se, em última análise, de escolher entre doença e niilismo, de um lado, e reafirmação da vida, do outro; ou então, com uma linguagem mais diretamente pol ítica, entre a subversão que se alastra há dois milênios, por um lado, e partido da vida e do radicalismo aristocrático, por outro. Em termos religiosos, "o mais empobrecido de vida" tem necessidade de "um deus de doentes, um 'salvador '" (FW, 370). O que opta pela religião de Dioniso é um homem totalmente diferente: Aquele que é mais rico de plenitude vital, o deus e o homem dionisíaco, não só pode conceder-se o espetáculo do horror e da precariedade, mas até a ação

terrível e todo luxo de destruição, de dissolução, de aniquilação; malvadeza, absurdo, deformidade lhe parecem em certo sentido permitidos em consequência de um transbordamento de forças geradoras e fecundantes que podem fazer de todo deserto de novo uma terra fértil e fecunda (FW, 370).

3. limitação dos nascimentos, "castração " dos mal sucedidos e outras medidas de eugenia Quanto mais forte se toma a persuasão da gênese psicopatológica e até fisiológica da suposta "questão social", tanto mais a eugenia se impõe como a solução verdadeira e definitiva. Nas metrópoles europeias, escórias demais se acumularam. A emigração para as colônias pode servir para dar vazão a elas. Por útil e necessária que seja essa válvula de escape, porém, para a "velha Europa, hoje com superpopulação" (M, 206), ela não é suficiente. Convém agora recorrer a uma política de regulamentação dos matrimônios e da procri­ ação. A preocupação de Malthus encontra acentos bastante encantadores na boca de Zaratustra: És jovem e desejas filhos e casamento. Mas eu te pergunto: és um homem a quem é lícito desejar um filho? [ ... ] O que os muitos chamam de casamento, esses supérfluos - ah, como eu o chamo? Ah, essa pobreza de espírito a dois! Ah, essa imundície a dois! Ah, esse miserável prazer a dois ! [... ] Que filho não teria motivo de chorar pelos própri­ os pais? (Za, 1, Do casamento e dosfilhos). O problema da limitação dos nascimentos, pelo menos para certos estratos da população, é aos olhos de Nietzsche tão importante que faz sentir a sua presença não só na elaboração teórica, mas também na reconstrução histórica do passado: os gregos .. promoveram a pederastia para impedir a superpopulação (a qual gera círculos inquietos e empobrecidos, também no seio da nobreza)" (IX, 5 1 4). É um tema no qual o filósofo se detém difusamente sobretudo na última fase da sua evolução. Nos últimos meses de vida consciente faz uma série de prescrições às vezes de caráter até minucioso: tendo tomado nota do fenômeno inquietante pelo qual os homens de natureza inferior •'têm a vantagem de uma fecundidade comprometedora" (XIII, 3 1 7), se trata de desencorajar o celibato dos elementos sadios da população mediante aumento de impostos fiscais e ·'prolongamento do serviço militar" bem como mediante concessões de "vanta­ gens de toda espécie para os pais" de uma prole numerosa (sobretudo mascu-

lina). A fim de evitar a reprodução e a multiplicação dos elementos degenera­ dos, se poderia pensar na introdução de "um relatório médico antes de cada matrimônio e assinado pelas autoridades da comunidade, no qual os noivos e o médico devem responder a várias perguntas determinadas (' história da famí­ lia')" (XIII, 495). Sim, as ..uniões contraproducentes" não podem ser evitadas simplesmen­ te infl igindo aos culpados o "desprezo" e uma "declaração social de desonra". É um "desejo piedoso'' pensar neutralizar de tal modo, no doente ou no delinquente, o "impulso sexual"; tanto mais porque ele "apresenta frequente­ mente, nos mal sucedidos do gênero, uma repugnante excitabilidade" . Também não basta infligir "a perda da ' liberdade "' no caso de infração das normas eugênicas . As penas de detenção certamente são necessárias e devem ser cominadas com rigor; além disso, não devem limitar-se a atingir os responsá­ veis diretos. Como sabemos, o "cárcere" se impõe também para o "padre". Este, com os seus sermões sobre a castidade aos sadios e a compaixão em favor dos mal sucedidos, é o ideólogo e o agitador por excelência do partido da "contranatureza" que se opõe ao "partido da vida". Todas essas medidas são úteis e necessárias, mas outras mais radicais se impõem. Se realmente se quer evitar o perigo de que o delinquente contribua para formar uma "raça da delinquência", não se deve hesitar em "castrá-lo". Do mesmo modo é preciso agir também "com os doentes crônicos e neurastênicos de terceiro grau", com os ..sifilíticos": trata-se, em suma, de impedir a procriação "em todos os casos em que um filho seria um delito" (XII, 4 79; XIII, 40 1 -2). A política eugênica invocada por Nietzsche para aqui? Quem influencia sobre ele, independentemente também de Galton, é o modelo helênico: na Grécia "a reli­ gião não pregava a moral, por isso deixava em geral livres os costumes"; assim como a escravidão, também "a morte do embrião, a eliminação dos frutos de uniões infelizes, etc." (IX, 476) não constituía um problema. Pelo menos nesse ponto, Nietzsche está em plena consonância com Platão e com as suas insistentes recomendações eugênicas para que se mantenha "pura a raça dos guardiões", a polis, a "manada" humana em geral, e não se demore a tomar "longa e miserável ao mesmo tempo" a vida dos "corpos internamente enfermos em continuação".1 224 De resto, é também por essa razão que Galton celebra com termos entusiásticos a Grécia clássica que, "graças a um sistema de seleção, em parte inconsciente, constroi uma magnífica estirpe de animais humanos". 1 225 Para o naturalista inglês como para o filósofo alemão, foi o cristianismo que fez esquecer essa lição. 1224

República, 459 e, 460 e, 407 d-e (Platão, 1 98 1 , vol. 1, pp. 1 75-6 e 1 08).

1225

Galton, 1 869, pp. 340- 1 .

Até onde se pode ir, agora que essa religião contrária à natureza se enca­ minha para o fim? Infelizmente, "a terra está cheia de supérfluos, a vida está corrompida por causa dos demais; poder-se-ia atraí-los para fora desta vida aliciando-os com a 'vida eterna "' (Za, 1, Dos pregadores da morte). Sim, seria melhor que o supérfluo "nunca tivesse nascido". Poderia de qualquer modo despedir-se o mais rapidamente possível de um mundo que ele, no seu niilismo, é incapaz de apreciaf e no qual não consegue reconhecer-se. É um tema ao qual Zaratustra dedica quase por inteiro o seu discurso: 1226 Para alguém a vida malogra: um verme venenoso lhe roi o coração. Dê tx!lo menos a impressão que morrer será melhor para ele. Alguém nunca chega a ficar doce, apodrece já durante o verão. É a covardia que o mantém pendurado em seu ramo. Muitos vivem e por tempo demais permanecem em seus ramos. Possa vir uma tempestade que sacuda da árvore todos esses frutos podres e bichados! Possam vir os pregadores da morte rápida ! Seriam para mim as verdadeiras tempestades e os verdadeiros sacudidores da árvore da vida ! Mas ouço apenas pregar morte lenta e paciência para com tudo o que é "terreno". Ah, pregais a paciência para com aquilo que é "terreno". É esse "terreno" que tem paciência demais convosco, bocas maldizentes! (Za, 1, Da morte voluntária).

Mais do que ser desencorajada ou prevenida, a "morte livre" dos fracas­ sados da vida, daqueles que são incapazes de aceitar e gozar a existência terrena com a sua carga de alegria e de negatividade, deve ser consciente e ativamente promovida: "Ó irmãos, sou acaso cruel? Mas eu vos digo : ao que está parar cair se deve dar um empurrão [ . . . ] . A quem não ensinais a voar, ensinai a cair mais depressa" (Za, III, De tábuas antigas e novas, 20).

4. "Morte livre ", "niilismo ativo " e "niilismo em curso " O último Nietzsche sustenta que as condições históricas para a solução apresentada por Zaratustra estão amadurecendo. O Ocidente encontra-se di­ ante de uma virada decisiva. O cristianismo está agora em crise nos seus pró­ prios seguidores ou ex-seguidores, que não parecem mais acreditar numa fé 1226

A este respeito Bernoulli, 1 908, vol. I, p. 405 fala de "capítulo do suicídio".

abalada pelos desenvolvimentos da cultura e da sociedade moderna. Certa­ mente, o cristão forte em suas certezas já era um niilista em si, mas não o era para si: acreditava exprimir a plenitude dos valores sem se dar conta de que essa plenitude ultraterrena é o nada. A história do Ocidente é caracterizada pela passagem do niilismo em si para o niilismo para si. Paradoxalmente, esta passagem é facilitada, antes imposta, por aquilo que resta de uma religião mes­ mo exangue e moribunda. Dç qualquer modo, permaneceu no sangue dos euro­ peus a educação moral cristã que impõe a veracidade (XII, 1 25-6 e 571). Ten­ do desaparecido as antigas e enganosas certezas da fé e dos seus substitutos, tal veracidade é obrigada a olhar o nada de frente, a tomar consciência de que ela mesma é o nada. Nesse sentido, o "niilismo europeu" é a "consequência necessária dos ideais até agora vigentes". Uma terrível realidade está debaixo dos olhos de todos : "Absoluta falta de valor" (XII, 339). Até agora ''o homem não fez nada senão inventar Deus para não se ma­ tar" (XIII, 144 ) mas Deus desapareceu ou está em vias de desaparecer da consciência dos homens. O ''niilismo incompleto" se transformou agora em "niilismo radical" (radikale Nihilismus), ou no "último niilismo", caracterizado pela ··convicção da absoluta insustentabilidade da existência" (XII, 5 7 1 ). E en­ tão? O único ato concreto ao qual o niilista passivo pode lançar-se é o suicídio, o "ato (That) niilista" por excelência (XIII, 222). É esse o "niilismo posto em ato" (Nihilismus der That) (XIII, 22 1). 1227 A visão do mundo terreno como vale de lágrimas, a incapacidade de aceitar a existência mundana com as suas contradições desemboca, ou deveria desembocar, na negação real da própria vida. Já ao declinar do mundo antigo, muitos entre os fracassados e os mal sucedidos eram propensos a ir até o fundo. O cristianismo os conteve, bloque­ ando-os no meio do caminho: ,

Não se pode condenar bastante o cristianismo por ter desvalorizado, com a ideia da imortalidade da alma, um semelhante grande movimento niilista pu­ rificador, que talvez estivesse a caminho, e de o ter desvalorizado mesmo com a esperança da ressurreição - em suma afastando do ato niilista, ou seja, do suicídio . . . Ele o substituiu porum suicídio lento (XIII, 222). ...

A religião dominante no Ocidente desempenhou uma função funesta: "Em vez de encorajá-los à morte e à autodestruição, sustenta todos os fracassados e os doentes e os induz a se reproduzirem" (XIII, 222). Mas uma situação nova 12�7 Traduzo Nihilis11111s der That (esta forma radical e consciente do "niilismo passivo") por ·'niilismo posto em ato" para evitar qualquer confusão com o "niilismo ativo" (aktiver Nihilismus), que cm Nietzsche tem um significado bem diferente e até oposto.

interveio. O fim da moral significa também o desaparecimento da condenação moral do suicídio, ao qual agora podem sentir-se impelidos os fracassados da vida e aqueles que não encontram mais nenhum sentido na existência. "Essa é a forma europeia do budismo, o ato negativo (das Nein-Thun), depois que toda a existência perdeu o seu 'sentido'" (XII, 2 1 6). Chegamos a um ponto em que a crise mortal pode finalmente tornar-se o seu contrário: A moral protegia osfracassados (schlechtweggekommenen) do niilismo [ra­ dical e para si], atribuindo um valor infinito a cada um, um valor metafisico [. . . ]. Supondo que a crença nessa moral se arruina, os fracassados não teriam mais a sua consolação e se arruinariam (zu Grunde gehen). A rruinar-se (zu Grunde-Gehen) se apresenta como um condenar-se sozi­ nhos à morte (Sich-zu-Grunde-richten). Sintomas dessa autodestruição dos

fracassados são: a autovivissecção, o envenenamento, a embriaguez, o ro­ mantismo, sobretudo a instintiva coação a realizar atos com os quais se tornam poderosos os próprios inimigos mortais (quase criando os seus próprios justiceiros), a vontade de destruição como vontade de um instinto ainda mais profundo, do instinto da autodestruição, da vontade de aniqui­ lamento (Wil/en in Nichts) (XII, 2 1 5).

Já vimos Zaratustra sublinhar que "a terra está cansada" dos cansados da vida. O fragmento que acabamos de citar acentua que o arruinar-se voluntário dos fracassados e cansados da vida é uma espécie de "seleção instintiva" (instinktives Auslesen) daquilo que a natureza "deve destruir". Assumindo formas radicais e passando do em si ao para si, o niilismo cansado e passivo tem uma espécie de impulso de dignidade, realizando com o seu gesto suicida o desígnio mesmo da natureza e da vontade de viver da vida mesma. Expressão de um niilismo radical e consciente de si, a vontade de suicídio e de autodestruição se manifesta nas formas mais diversas. A própria rebeldia extrema dos fracas­ sados da vida poderia ser uma espécie de suicídio indireto e adiado: "niilismo como sintoma do fato de que os fracassados não têm mais nenhuma consola­ ção: que destroem para serem destruídos" (XII, 2 1 5-6). Mas quem encoraja os fracassados da vida a passar de um niilismo passi­ vo chorão para um niilismo mais viril em ato só pode ser uma élite capaz de romper de modo radical e definitivo com os valores dominantes, com os valores ou desvalores que se afirmaram na onda da revolução niilista total, que grassa no Ocidente há dois milênios . O contramovimento com respeito a esse ciclo ruinoso se exprime inicialmente nas "tentativas de fagir do niilismo sem mu­ dar os valores". Assim, porém, se permanece para sempre no âmbito do niilismo:

é um "niilismo incompleto" (unvollstãndig) que, parando no meio do caminho, torna mais agudo o problema e acaba produzindo "o efeito oposto" (XII, 476). Como remediar tal situação? A parábola ruinosa do niilismo deve ser percorrida até o fundo para poder ser depois bloqueada e, enfim, superada. Só o niilista ativo e consciente da sua divina força e vontade de potência é capaz de chegar a isso. Que posição deve assumir o niilista extremo e ativo diante da virada dramática em ação? É o tempo da "decisão" (XII, 1 20) . Até agora bloqueadas pela moral e a religião cristã, eis no horizonte "grandes crises de seleção e purificação" (XIII, 222), provocadas pela radicalização do niilismo passivo, pela sua configuração agora como "niilismo radical". É preciso satisfazer e favore­ cer de todo modo, como altamente benéficas, essas crises: Nada seria mais útil e mais digno de ser promovido do que um coerente niilismo em ato (Nihilismus der That). Como os entendo, todos os fenôme­ nos do cristianismo, do pessimismo, dizem: "estamos maduros para não ser; para nós é racional (vernünflig) não ser". Essa linguagem da "razão" (Vernunjl) seria em tal caso também uma linguagem da natureza que seleciona (selektive Natur) (XIII, 22 1 ).

Não só é preciso não bloquear, mas é necessário promover a difusão em larga escala do "niilismo em ato" ao qual tendem agora a se aproximar os fracassados da vida. Portanto, "Com quais meios se poderia realizar uma for­ ma rigorosa de grande niilismo contagioso, uma forma de niilismo que com curiosidade científica ensinasse e pusesse em prática a morte voluntária (e não o fraco vegetar em vista de uma existência póstuma)?" (XIII, 222).

S.

Da "supressão " dos mendigos ao "aniquilamento " dos mal sucedidos

Com o encoraj amento da "morte livre" chegamos a um l i mite intransponível? Entre "todas as coisas que merecem ser tratadas com serieda­ de na vida", não só os "problemas da alimentação, da habitação, da alimenta­ ção espiritual", mas também "da limpeza, do clima", Ecce Homo indica ainda o "tratamento dos doentes" (Krankenbehandlung). O significado desta expres­ são de per si sibilina é logo esclarecido pela polêmica que segue imediatamente: "No conceito do homem bom se tomou o partido por tudo o que é fraco, doente, mal sucedido, sofredor em si mesmo, de tudo o que deve morrer (zu Grunde gehen sol/); a lei da seleção se inverteu" (EH, Porque sou um destino, 8). Além disso, Zaratustra intervém para evitar qualquer resto de dúvida: "Não se

deve exercer a medicina sobre os incuráveis" (Za, III, De tábuas antigas e novas. 1 7). E de novo fazemos a pergunta: atingimos um limite intransponível? Com­ preende-se a hesitação de que Zaratustra dá provas: "Perguntei uma vez, e a minha pergunta quase me sufoca: Como? Para a vida é necessária também a canalha? São necessários poços envenenados e fogos fedorentos, e sonhos emporcalhados e vermes no pão da vida?" (Za, II, Da canalha). Já no fim do período "iluminista" começam a surgir em Nietzsche sugestões radicais, que vão bem além dos costumeiros remédios eugénicos: "Os mendigos devem ser suprimidos (ahschaffen); porque quando se lhes dá alguma coisa, nos irrita­ mos, e nos irritamos quando não se lhes dá nada" (M, 1 85). É preciso tomar nota: ''O desenvolvimento do gosto [ . . . ] sente a necessidade de contemplar homens belos, alegres". Portanto: "Selecionamos aqueles que nos dão alegria, e favorecemos o seu desenvolvimento, enquanto fugimos dos outros - esta é a verdadeira moral ! " (IX, 250). Estamos num período de tempo em que numero­ sas vozes se levantam na Europa para exigir uma purificação da paisagem urbana. Na Inglaterra, o Manchester Guardian publica a carta de uma delica­ da senhora que se lamenta por ter de assistir, exatamente nas ruas principais da cidade, o espetáculo de uma "multidão de mendigos", inclusive com suas "cha­ gas e deformidades repugnantes". O pagamento dos impostos deveria garantir "o direito de ser preservado de tais incômodos desagradáveis e desavergonha­ dos ". É uma carta - comenta Engels, indignado - publicada pelo jornal "sem ulteriores comentários, como uma coisa totalmente natural e racional" . 1228 Marx nota, por sua vez, a difusão, a partir de Napoleão, de "casas de reclusão" para os pobres e os enfermos, chamados a libertar o público da "image dégoútante des infirmités et de la honteuse misere".1229 Não obstante as suas margens de ambiguidade, o programa enunciado por Nietzsche é sem dúvida mais radical do que o denunciado por Marx e Engels, exige bem mais que a simples segregação dos fracassados da vida. Entretanto, convém encorajá-los ao suicídio, mas talvez se possa ir ainda mais longe. Se neles o niilismo radical tende a configurar-se como niilismo posto em ato, nos espíritos fortes o niilismo ativo, rompendo até o fundo também na prática com a moral tradicional, toma-se um "niilismo estático". Ele pode "inspirar o desejo (das Verlangen) do fim para quem quer degenerar e morrer'', mas pode também agir como "um martelo com o qual despedaçar as raças em via de degeneração e que estão morrendo, com o qual tirá-las do meio para abrir o caminho a uma 1228 Marx-Engels, 1229 Marx-Engels,

1955, vol. II, pp. 488-9. 1955, vol. 1, pp. 399-400.

nova ordem vital" (XI, 54 7). Temos visto no jovem Nietzsche a teorização de um momento dionisíaco e "estático", que inclui o esquecimento da singularidade, com a absorção numa unidade cósmica das vítimas sacrificais da civilização. A "satis­ fação estática da unidade originária" transforma o homem em "mármore" para as ..marteladas do artista cósmico dionisíaco" (supra, cap. 1 § 1 4 e 1 9). É a superação do principium individuationis, que agora assume uma configuração mais densa até ser sinônimo de aniquilamento. É já "a honestidade para conosco" - sublinha Nietzsche - a impor uma ·'seleção" rigorosa: Fazer perecer os que se lamentam, os deformados, os degenerados, deve ser a tendência. Não conservar a todo custo! [ . . ] É preciso sempre construir sobre os instintos naturais: "causar alegria a quem alegra, dor a quem nos incomoda". Nós destruímos os animais selvagens e criamos aqueles man­ sos: este é um grande instinto (IX, 250-1 ). .

É preciso, finalmente, tomar plena consciência do significado da vida: Viver - eis o que isto significa : rechaçar sem trégua de si tudo o que quer morrer; viver - quer dizer ser cruel e desapiedado contra tudo o que em nós e não apenas em nós se torna fraco e velho. Viver - quer dizer: ser sem piedade para com os moribundos, os miseráveis e os velhos? Ser sempre de novo assassinos? Porém o velho Moisés disse: "Não matar!" (FW, 26).

Mas, para responder a Moisés, o fundador da tradição judeu-cristã que domi­ na no Ocidente, Nietzsche chama um santo que, numa parábola da Gaia ciência, recomenda que se mate um recém-nascido "mísero, disforme" e que "não tem vida bastante para morrer"; a quem acha "cruel" o conselho para eliminar o pequenino, o santo, por sua vez, objeta: "Não é mais cruel deixá-lo viver?" (FW, 73). Alguns anos mais tarde, Zaratustra convida o espírito livre ainda hesitante a não se deixar embaraçar pelas "tábuas antigas" e obsoletas : "'Não roubar! Não matar! ' - estas palavras um dia proclamadas santas [ . . .]. Na própria vida, em toda vida, não há rapina e homicídio? E ao proclamar santas estas palavras não se mata, talvez, a própria verdade?" (Za, III, Das tábuas antigas e novas, 10). É um motivo que volta de forma radicalizada e com insistência obsessiva nos apontamentos dos últimos meses de vida consciente: A lei suprema da vida, formulada por Zaratustra pela primeira vez, quer que se seja sem compaixão por todo rebotalho e refugo da vida, que se destrua o que para a vida ascendente seria apenas obstáculo, veneno, conspiração, subterrânea hostilidade, numa palavra, cristianismo . É imoral, é contra a natureza no sentido mais profundo dizer "não matar''. .

.

A proibição bíblica "não matar" é uma ingenuidade em comparação com a minha proibição aos decadentes de "não gerar" é algo ainda pior... Com relação ao rebotalho e ao refugo da vida há apenas um dever, destruir; ser aqui compassivo, querer aqui conservar a todo custo, seria a forma suprema da imoralidade, a verdadeira contranatureza, a inimizade mortal contra a pró­ pria vida (XIIl, 6 1 1 -2). -

Estamos na presença, em última análise, de uma doença: "O europeu se disfarça com a moral, já que se tomou um animal doente, enfermiço, estropiado [ . . . ] . Não é a terribilidade do animal de rapina que precisa de um disfarce moral, mas é o animal do rebanho, com a sua profunda mediocridade, medo e tédio de si mesmo" (FW, 352). Deixar-se dominar pela compaixão e pela fraqueza não só é um erro, mas é também minoso. É muito pior: significa tomar-se cúmplice de uma ·'conspiração" que, além do sistema social, visa à própria vida. É obsessiva a insistência do último Nietzsche sobre a necessidade da amputação das partes doentes do organismo social e sobre o caráter em última análise criminosa das resistências à obra de higiene que se impõe. Aqueles que ainda tivessem qualquer resquício de escrúpulos morais são chamados a ter em mente esta verdade: "Pôr um filho num mundo em que ele mesmo não tem o di reito de estar, é pior que tirar a vida de alguém" (XIII, 402). Convém deter-se um instante neste trecho: matar não é necessariamente a ação mais reprová­ vel : os mal sucedidos dos quais se fala não só não têm o direito de procriar, mas não podem sequer reivindicar para si mesmos o direito à vida. Nietzsche é explícito: ''aos mal sucedidos não reconheço sequer o direito" à existência (XI, 1 02). E ainda: "Aniquilamento dos mal sucedidos - para isto é preciso emanci­ par-se da moral hodierna" (XI, 75). Não se deve mais deixar-se paralisar por escn'.1pulos sem sentido: "Os fracos e os mal sucedidos devem perecer [ . . . ]. E para tal finalidade se deve também dar ajuda a eles" (AC, 2)� o necessário e benéfico ''atentado a dois milênios de contranatureza e deturpação do homem" inclui "o inexorável aniquilamento de todo elemento degenerado e parasita" (DH, O nascimento da tragédia, 4) . Repetidamente ecoa a palavra de ordem do "aniquilamento". 1 230 Exatamente porque é a vida que está em jogo, e o inimigo a atingir é a "contranatureza" e o ''vício" na sua forma mais abjeta, a guerra no horizonte e até já em curso é uma guerra total, uma "dureza sem piedade" se impõe. A ·'grande política [ . ] põe fim inexoravelmente a tudo o que é degenerado e parasitário" (XIII, 638). . .

123º Taureck, 1 989, pp. 34 e 255, ji1 chamou a atenção para isto.

O programa aqui enunciado é de um radicalismo tal que não encontra nenhum precedente nem em Galton nem, obviamente, em Platão. Um frag­ mento da primavera de 1 8 84 dirige uma significativa sugestão aos "grandes homens" que "querem imprimir a própria forma a grandes comunidades ": Conseguir aquela energia enorme da grandeza a fim de formar o homem futuro, por um lado mediante a sua criação, por outro mediante o aniquila­ mento de milhões de n1al sucedidos: e não se deve desfalecer por causa da dor que se cria, uma dor como nunca se viu até agora (IX, 98).

"'Milhões de mal sucedidos"! A categoria de doença conhece em Nietzsche uma pavorosa dilatação: "É preciso compreender a conexão recíproca de todas as formas de corrupção, sem esquecer a corrupção cristã" e "a corrupção socialista-comunista (uma consequência daquela cristã)" e tirar as suas devi­ das consequências : "aqui não pode haver pactos: aqui é preciso destruir, ani­ quilar, fazer guerra" (XIII, 220). E não se deve esquecer que, com fundamento na "contranatureza" cristã e socialista, age uma tara fisiológica. Por outro lado, não há só indivíduos mal sucedidos, "há também povos mal sucedidos" (XI, 1 02), ou seja, como vimos, "raças em via de degeneração e moribundas". Também ness caso Nietzsche não é a favor das meias medidas: "Aniquilamento das raças decadentes"! (XI, 69). Há naturalmente também as raças úteis, das quais a civilização tem necessidade para garantir o otium aos melhores. Mas como é preciso comportar-se em relação a elas? ·

Com quais meios devem ser tratados os povos rudes, e que a "barbárie" dos meios não seja nada de arbitrário e artificial, se pode na prática tocar com mão quando, com toda a nossa afetação europeia, se venha a encontrar-se na necessidade de manter, no Congo ou onde quer que seja, o domínio sobre os bárbaros (XII, 47 1).

O exemplo aqui aduzido é significativo . Um ano depois do fim da vida consciente do filósofo, Joseph Conrad faz a sua viagem pela África e pelo Congo, recolhendo informações e sugestões que depois são reunidas em O coração de trevas e na descrição aqui contida dos horrores da expansão e do domínio coloniais: lembrem-se as "cabeças [dos rebeldes] postas a secar em estacas debaixo das janelas do senhor Kurtz", o escravista que é a personagem chave do romance. 1 231

1231

Conrad, 1 996, p. 85.

6. Eugenia, utopia e distopia Os intérpretes tendem em geral a remover a brutalidade dessas declara­ ções que, de qualquer modo, são expressão de um clima espiritual bastante difundido naqueles anos. Mas limitar a análise do niilismo em Nietsche às pági­ nas que o descrevem como hóspede ao mesmo tempo encantador e inquietante significa favorecer uma leitura em perspectiva edificante . O rebelde nii lista, que escreve páginas que emitem uma sedutora e irresistível carga emancipadora de milênios de opressão moralista, não pode ser separado do antagonista do niilismo, decidido a acabar de qualquer modo com um flagelo que no seu modo de ver ameaça a própria vida. Nietzsche se dá conta da extrema radicalidade da visão por ele amadurecida e das perturbações morais que ela pode provo­ car. Ele mesmo parece hesitar, como demonstra a comparação de dois textos mais ou menos idênticos . Leiamos A gaia ciência: o movimento em curso na Europa "facilmente poderia pôr as gerações futuras diante de um espantoso aut-alJI: ·ou suprimis as vossas venerações ou então a vós mesmos ! ' Esta última opção seria o niilismo, mas também a primeira não seria o niilismo? Esta é a nossa interrogação" (FW, 346). É sem dúvida niilista uma visão do mundo que mina a vida, a "espécie", a "grande economia do Todo"; mas ela mesma não corre o risco de ser atingida por niilismo, uma transvaloração tão radical que, para romper realmente com a visão anterior do mundo, não deve hesitar em aniquilar tudo o que é degenerado? Num fragmento posterior a interroga­ ção desaparece: "Torna-se clara a antítese entre o mundo que veneramos e o mundo que vivemos, que somos . Não nos resta senão cancelar as nossas vene­ rações ou a nós mesmos. Essa última atitude é o niilismo" (XII, 1 29) . Na Gaia ciência, se também o acento é colocado no perigo da eliminação da existência, ambos os lados do dilema são olhados com horror e são considerados expres­ são de niilismo. No segundo texto, o niilismo que é importante derrotar é aquele que quer ou sofre o cancelamento da existência; o outro, aquele disposto a recorrer a remédios extremos para salvar a civilização e a própria existência, o niilismo ativo-estático não é mais propriamente niilismo, parece já anunciar a superação desse flagelo. Como é posteriormente confirmado por um fragmen­ to do outono de 1 8 87, '"Niilismo' como ideal da suprema potência do espírito, da vida superabundante: em parte destruidor, em parte irônico" (XII, 353). As aspas indicam que esta potência destruidora, não refreada pelos valores domi­ nantes, já está além do niilismo. Certamente, com declarações não só inquietantes, mas decididamente repugnantes, se enlaçam outras que, à primeira vista, parecem tranquilizadoras e até sedutoras. É o momento em que a loucura já ameaça. Uma vez levado a

cabo o golpe de Estado contra Guilherme II, com a inevitável brutalidade que ele inclui (o fuzilamento dos principais responsáveis pela subversão cristã-soci­ alista), parece abrir-se uma fase completamente nova, descrita por Nietzsche e celebrada nos seus apontamentos e no seu epistolário com tons utópicos incomuns: ''Se vencermos, teremos nas nossas mãos o governo da terra, inclu­ sive a paz mundial. Teremos superado os limites absurdos da raça, da nação e das classes" (Sttinde) (B, III, �5 , p. 5 02) . Junto com os ódios provinciais, chauvinistas e raciais, parece dissipar-se a política e até o poder enquanto tal : "'O conceito de política dissolveu-se totalmente numa guerra dos espíritos, to­ dos os centros de poder foram para os ares" (B, III, 5, p. 503-4). Mas de outra carta surgem perspectivas bem diferentes : "Duas décadas de crises histórico­ mundiais". Não teremos apenas "guerras" (B, III, 5, p. 5 1 5), mas "guerras como jamais houve" (B, III, p. 5 04). Eis que a utopia tende a transformar-se em distopia. As guerras no hori­ zonte não serão travadas "entre povo e povo" (XIII, 637). A linguagem parece ser tranquilizadora, mas é só aparência. O "aniquilamento das raças decaden­ tes" ou a imposição do "domínio sobre os bárbaros" (a exemplo do Congo) visando não um "povo", mas, exatamente, "raças decadentes" ou "bárbaros": nem as primeiras nem os outros podem aspirar à dignidade de "povo", que cabe apenas aos povos europeus. As guerras invocadas por Nietzsche à beira da precipitação na loucura não se travam sequer "entre classes" (XIII, 637). E, de novo, a linguagem soa tranquilizadora. Na realidade, nesse momento a preocu­ pação eugênica se tornou tão obsessiva que não quer poupar nem sequer as tradicionais zonas francas: é necessário atingir a degeneração e a doença "sem consideração à posição social, à categoria e à cultura" (XII, 402). A história mostra as consequências catastróficas às quais leva "a degeneração dos domi­ nantes e das classes dominantes ": é essa dialética que provocou o triunfo do cristianismo (XI, 1 02-3). Uma dialética análoga está aplanando o caminho na Alemanha com o advento do cristianismo social: é necessário saber reagir com a energia que a situação impõe. Não devemos deter-nos - declara o filósofo nem sequer diante das "nossas 'classes superiores '", quando elas tiverem de tomar o ..partido da mentira" (cristão-socialista): "não é escolha livre sua - não podem não fazê-la" (XI II, 637). Isto é, também eles estão, como milhões de mal sucedidos, irremediavelmente arruinados. Pela sua colocação social, eles "até agora foram honrados como os primeiros entre os homens". Mas Nietzsche objeta: ··Eu não incluo esses pretensos ·primeiros' sequer entre os homens em geral - para mim eles são refugos da humanidade, criaturas abortadas pela doença e pelos instintos de vingança: são todos monstros funestos e, no fundo, incuráveis, que se vingam da vida" (EH, Porque sou tão inteligente, l O). É

neste contexto que amadurece a aspiração ao fuzilamento do próprio Guilherme II. A categoria dos mal sucedidos tende a dilatar-se sempre mais, bem como a guerra eugênica que o "partido da vida" é chamado a travar contra eles. Trata-se de fazer valer, com força multiplicada, a "hierarquia entre ho­ mem e homem", de fazer respeitar a "escala hierárquica infinitamente longa" que caracteriza tanto o mundo natural como o humano (B, III, 5 , p. 5 02). Pelo que respeita a este último, no nível mais baixo encontramos os "materiais de refugo e de separação" (infra, cap. 20 § 4), os fracassados da vida, os mal sucedidos, os chandala (AC, 5 8 e 60), "as camadas ínfimas, a escória" da sociedade (AC, 22), tanto mais carregados de ressentiment em relação aos melhores e à sociedade enquanto tal, quanto mais são bichados e podres já na sua constituição fisiológica interna. Nesse sentido, a "escala hierárquica" é uma escala que discrimina também os diversos graus de saúde ou doença. Temos, pois, a ver com "uma guerra que passa através de todos esses casos absurdos como povo, classe, raça, profissão, educação, instrução : uma guerra tal como entre a ascensão e a decadência, entre vontade de vida e sede de vingança contra a vida, entre probidade e pérfida mentira" (XIII, 637). O "novo partido da vida" ou o ·'partido da vida" desejado por Nietzsche deve ser "bastante forte para fazer a grande política" (XIII, 63 8), a "grande política par excellence" (B, III, 5, p. 502), que tem no seu centro, exatamente, um programa eugênico de um radicalismo extremo. É necessário saber "aniquilar com olho divino e sem empecilhos (XII, 3 1). O estado de espírito aqui auspiciado parece ter sido já alcançado em Nietzsche, que, como teórico e inspirador do "partido da vida" e da "grande política" por ele propugnada, não hesita em declarar: "nunca houve homem que tenha tido mais direito à aniquilação do que eu" (B, III, 5, p. 5 1 2). E, todavia, "não consigo perder a minha felicidade nos momentos das decisões terríveis" (XIII, 639).

Quarta parte Além da "metáfora" e da "antecip ação". Nietzsche numa p ers p ectiva comp arada Se quisermos escravos, é tolice educá-los como senhores. GD, Incursões de um inatual, 40 Junto com os seus colegas, ele [o privilegiado} se considera membro de uma ordem exclusiva, como uma nação eleita na nação. Sieyes Nós somos, além disso, os "eleitos de Deus ". FW, 379 Os privilegiados conseguem até ser considerados como outra espécie de homens. Sieyes O que serve de alimento e de restauração para uma espécie superior de homens deve ser quase um veneno para uma espécie humana bastante diferente e inferior .JGB, 30. .

Quanto ao homem, declaro que não o tenho nunca encontrado em minha vida; se existe, é sem eu saber. Maistre A superstição da alma [ . .} como superstição do sujeito e do eu, até hoje não cessou de criar desordens . JGB, Prefácio A essência sobrenatural da alma é servida como ponto de apoio para a teoria dos direitos do homem, anteriores e superiores à natureza e à sociedade. Vacher de Lapouge

20 " METÁFORA", " ANTECIPAÇÃO " E " TRADUTIBILIDADE DAS LINGUAGENS " 1 . A "metáfora " como remoção e o atalho da "antecipação " requentemente ignorados ou removidos, os apelos cada vez mais frequen

Ftes e insistentes na '"barbárie' dos meios" em relação aos povos coloniais, no

·'aniquilamento das raças decadentes", no "aniquilamento de milhões de mal su­ cedidos", nos colocam diante de um problema: é a visão do mundo própria de um profeta do III Reich? Naturalmente, não faltam as téch icas de remoção. O filó­ sofo insiste obsessivamente na escravidão como fundamento imprescindível da civilização? Que ninguém ouse perturbar o encanto da metáfora mediante refe­ rências históricas vulgares à situação no Sul dos Estados Unidos antes da Guerra de Secessão ou à prática do trabalho coagido nas colônias! Devemos então supor que Nietzsche fosse totalmente ignorante do debate que se espalllava no seu tempo e em redor dele sobre essa instituição concreta? Os seus apologetas ten­ tam proteger o filósofo de toda contaminação, atribuindo a ele uma incapacidade ou uma capacidade bastante limitada de entender e de querer no plano político da análise histórica e política. Ele é assim gratuitamente suspeito de ter feito recurso à palavra de ordem e à "metáfora", ficando completamente inconsciente do seu significado concreto, do qual todos os seus contemporâneos estão cientes. Ou então se tome o tema da "criação" (Züchtung), que desempenha um papel sempre mais importante em Nietzsche. Não há porque se preocupar intervém longo de modo tranquilizador uma série de intérpretes -, "este biologismo é alegoria"; o termo é sinônimo de "autodisciplina", ou seja, há de se entender em sentido ''moral". 1232 Na realidade, Crepúsculo dos ídolos declara de modo ex­ plícito que "tanto a domesticação do animal homem, como a reprodução de uma determinada espécie humana" são dois "termos zoológicos"; é o "sacerdote que não quer saber de nada disso" (GD, Aqueles que "melhoram " a humanidade, 2). Falando da "transformação do homem", Nietzsche observa: Por que não devemos realizar no homem aquilo que os chineses conseguem fazer com a árvore - de modo que ela de um lado produza rosas, do outro 1 232

Vattimo, 1983, p. 1 82; Kaufrnann, 1 950, p. 269; Ottmann, 1 999, p. 263.

peras? Esses processos naturais de reprodução (Züchtung) do homem, por exemplo, que até agora foram exercidos de modo infinitamente lento e de­ sajeitado, poderiam ser conduzidos pelos homens (XI, 546-7). Por outro lado, como explicar as repetidas referências a Galton? Neste autor, o problema da reprodução desempenha um papel central. Favorecendo a geração e a proliferação das naturezas mais vulgares, os homens de Igreja se comportaram como "criadores" (breeders) sádicos, com a intenção de produ­ zir uma raça monstruosa de animais ou de homens. É preciso reagir a tudo isto: através de "casamentos ajuizados por mais gerações sucessivas" é possível conseguir também para os homens melhoramentos semelhantes aos que se obtêm com a "criação (breeci) permanente de cães ou cavalos". 1 233 Conforme os hermeneutas em chave metafórica, Nietzsche não teria entendido nada do teórico inglês sobre a eugenia, do qual, porém, sublinha a importância e reco­ menda a leitura; e nada teria percebido da polêmica relativa aos "criadores da raça humana", que nesses anos se alastra por todo o Ocidente.1234 E mais uma vez é necessário defender o filósofo contra os seus advogados defensores. Ele compreendeu perfeitamente Galton: invoca um "partido davida", que se com­ prometa em primeiro lugar com a realização de um programa eugênico; exige a introdução de controles minuciosos antes que seja autorizado um novo casa­ mento; com o olhar voltado para os mal sucedidos, contrapõe o mandamento eugênico "não gerar" à "proibição bíblica de 'não matar "' (supra, cap. 1 9 § 5). A passagem inclui medidas dolorosas ou até drásticas, que se impõem, "da espécie (A rt) à superespécie" ( Üb er-Art) (Za, I, Da virtude dadivosa, 1). A propósito, de que coisa seria metáfora o apelo à castração e até à aniquilação dos mal sucedidos além das "raças decadentes"? E como explicar que essas supostas metáforas estejam amplamente presentes na cultura e nas publica­ ções do tempo, também e sobretudo em autores e em "cientistas" não habitua­ dos a recorrer a figuras retóricas? Nenhuma dúvida é introduzida para pôr obstáculo à obra de implacável anulação de todo possível elemento . de perturbação com relação ao mundo encantado da metáfora. E, assim, a celebração da guerra se toma a "negação nietzscheana da unidade do ser" ou a "insistência no conflito, no caos, no cará­ ter interpretativo do todo"; 1235 tratar-se-ia apenas de "uma luta 'sem pólvora de disparo"'. ; 236 E as "guerras socialistas", essas guerras "terríveis" contra o 1 233 Galton, 1 869, pp. 357 e 1 . 1234 Colajanni, 1 906, p. 1 3 nota 3 . 1 235 Vattimo, 1 983, p. 1 84, nota 1 1 . 1 236 Ottmann, 1 999, p. 264.

movimento operário e socialista? E as guerras com as quais a Europa é chama­ da a tomar-se senhora da terra (supra, cap . 1 1 § 7)? Os intérpretes em chave alegórica não explicam se a sua leitura vale igualmente para os contemporâne­ os de Nietzsche, propensos também eles a transfigurar como uma aventura espiritual as guerras coloniais do tempo. Fazendo abstração completa da se­ gunda metade do Século XIX, prefere-se evocar a figura de ... Jesus Cristo. Também este não declarou que veio ao mundo trazer a "espada" e não a "paz" (Mt 1 0,34)? 1 237 Aquele que convida a oferecer a outra face ao agressor (Lc 6,29) pode assim ser tranquilamente comparado com o filósofo que rotula como "idio­ ta" o promotor de uma religião imbele e servil, que celebra Alexandre, César, Napoleão e que, em particular, recomenda o "militarismo" deste último como ''cura" necessária contra a "civilização", interiormente bichada e contagiada de cristianismo por causa do seu apego à segurança e à paz (XIII, 273 e 427)! No âmbito da hermenêutica que estamos examinando, a história não reconstruída nem sequer é interrogada. Estamos na presença de uma leitura que, em contraposição àquela em branco e negro censurada, às vezes não sem razão, por Lukács, poderia ser definida como leitura tendente ao rosa, pelo fato de evitar como uma intolerável contaminação e violência de toda investigação voltada a reconstruir o significado histórico-político de uma proposição filosófi­ ca: os conflitos que marcam uma época histórica esvaecem e calam como por encanto, uma vez que for atingida a esfera da filosofia ou da arte. É uma historiografia tanto mais singular pelo fato de ser aplicada a um mestre da escola da suspeita, que consegue farejar o conflito político-social não só, como vimos, na pregação evangélica, mas também no silogismo socrático, na lógica e na ciência enquanto tais (cf infra, cap. 2 1 , § 1 -2), em suma, em todos os fenômenos cultu­ rais, inclusive aqueles que aparentemente se movem numa esfera totalmente rarefeita. Agora está claro: para poder apreciá-lo como grande filósofo, Nietzsche deve ser em primeiro lugar defendido contra os seus apologetas. Lukács tem plenamente razão em recusar-se a ler como uma metáfora inocente e encantadora a celebração da escravidão. Devemos então concluir que Nietzsche é o profeta do trabalho servil de massa ao qual o III Reich recorre? Na realidade, como vimos, a vida do filósofo se coloca num período de tempo totalmente atravessado não só pelo debate sobre a escravidão e sobre a abolição da escravidão nos Estados Unidos, no Brasil, nas colônias, mas tam­ bém pela difusão, apesar do abolicionismo, do trabalho servil de massa na onda da expansão colonial do Ocidente. Com uma esquematização divertida, mas não demais, poderemos formular nestes termos o dilema do intérprete que dei1 237 Kaufmann, 1 950, p. 340.

xou para trás a hermenêutica da metáfora e da inocência: Nietzsche e o III Reich ou, então, Nietzsche e o II Reich (o tempo histórico e o contexto interna­ cional em que se coloca o II Reich)? Entre as duas chaves de leitura surge um Reich de diferença, e não é pouco. É certamente legítimo e justo perguntar pela eventual linha de continuidade entre afirmação da eternidade e fecundidade da escravidão por um lado e a celebração da Herrenrasse por outro. Mas é em primeiro lugar do Século Xl-X que é preciso partir. O que pode contribuir para facilitar o desvio do percurso longo e cansativo da contextualização histórica para o atalho cômodo do recurso à categoria de antecipação é a tendência, bastante difundida nas costumeiras análises do pro­ cesso de preparação ideológica do III Reich, que isola a Alemanha da Europa e do Ocidente. Ao se perguntar sobre os antecedentes do tema nietzscheano do caráter iniludível e benéfico da escravidão, Lukács chama justamente a atenção sobre a Filosofia da mitologia de Schelling. Aqui lemos "uma apolo­ gia da escravidão dos negros na África, tortuosa na forma, mas claríssima no sentido". 1 238 Devemos ver na Alemanha o lugar privilegiado ou exclusivo da celebração da escravidão, a partir do último Schelling, passando através de Nietzsche para chegar enfim ao III Reich? Na realidade, as declarações da Filosofia da mitologia, às quais A destruição da razão faz referência, são contemporâneas ao debate que, nos Estados Unidos, precede o estouro da Guerra de Secessão. E Schelling faz referência expl í cita à república estadunidense quando sublinha o caráter em última análise benéfico da "expor­ tação dos negros" (Negerausfuhr) da África para o outro lado do Atlântico, onde, apesar da persistência das correntes, passam a usufruir de uma condição melhor do que aquela sofrida na pátria. 1 239 E, ao contrário, exatamente contra a escravidão negra nos Estados unidos se ergue Schopenhauer com palavras de fogo. De um lado, a densa realidade da escravidão nos Estados Unidos e, em forma diferente, nas colônias (que nesse momento são, na maioria, inglesas e francesas}, por outro lado, a tomada de posição abolicionista de uma figura chave da história lukácsiana da destruição da razão: tudo isso demonstra que não é historicamente plausível um quadro, cm cuja base o irracionalismo, por um lado, e a teorização e transfiguração ideológica da escravidão, por outro lado, procederiam na Alemanha passo a passo, até à completa destruição da razão e da comunidade política no III Rcich. Também no que diz respeito à temática da "criação", a alternativa à sua remoção não é a afirmação de uma linha sem solução de continuidãâe até a 1 238

Lukács,

1 974, p. 1 79; cf. Schelling, 1856-186 1 , vol . XI, p. 498-5 1 3 .

1 239 Schelling, 1 856- 1 86 1 , vol. XI, p. 5 13.

higiene racial nazista. Tanto mais porque o autor ao qual Nietzsche se refere é, como sabemos, um inglês e que a "ciência" teorizada por ele encontra sucesso muito além da Alemanha e da Europa. Mais em geral, "não há palavra de ordem" belicista ou darwiniana, circu­ lando na Alemanha, que não se encontre na Inglaterra, na Europa e nos Esta­ dos Unidos. 1 240 Ao intervir na inflamada polêmica que se desenrola durante a primeira guerra mundial e durante os anos imediatamente seguintes, Weber responde aos teóricos da "culpa" exclusiva da Alemanha observando a forte presença também nos Estados Unidos de uma "ideologia da guerra": no início do século, tinha sido um ilustre sociólogo estadunidense (Veblen) que formulara ou apoiara a "teoria completamente errada da presumida necessidade natural de uma guerra comercial". 1241 E Weber poderia ter acrescentado que em Veblen é possível ler também uma sutil apologia da "estirpe dolicocéfala loura" que, mais do que qualq11er outra, encarna o espírito guerreiro e, ao mesmo tempo, a imaginação científica e a eficiência industrial .1242 Sim, a mitologia ariana cele­ bra os seus triunfos também do outro lado do Atlântico, além de na Alemanha e na Europa. Não é difícil identificar os homólogos estadunidenses do angloalemão Chamberlain. 1243 E essa mitologia não fica absolutamente limitada ao círculo dos ideólogos. Para nos limitarmos a um exemplo, em 1 902, Arthur MacArthur, governador militar das Filipinas, reivindica para os Estados Unidos o direito ao domínio em razão também de sua pertença ao "magnífico povo ariano". 1 244

2. Nuremberg ideológica, princípio do tu quoque e mito do Sonderweg alemão A tendência a convocar Nietzsche perante uma espécie de Nuremberg ideológica começou a manifestar-se já antes do advento do III Reich, e não só na Europa, a partir do primeiro conflito mundial. Veremos a influência exercida pelo fi lósofo também do outro lado do Atlântico, em particular sobre o socialdarwinismo americano. Mas, já no simples aparecimento do choque com a Alemanha, esta é atacada em todo nível por opiniões que não acreditam nela em bloco e que são parte integrante de verdadeiras operações bélicas : "Com a �

1240 Ritter. 1967, pp. 477-8.

Weber, 1 97 l , pp. 495 e 585; e( Veblen, 1 904, pp. 292 seg. Veblen, 1 904, pp. 3 96-7, nota l e 354, nota l . 1 243 Bracher, 1 999, pp. 5 1 -2. 1244 ln Kamow, 1 989, p. 17 l . 1 24 1

1242

ajuda da imprensa diária, o nome de Nietzsche começa a tomar um significado sinistro para o homem comum". Mas isto não vale só para ele. 1245 São o país inimigo e a sua cultura enquanto tal que se tornam o alvo de uma campanha, melhor de uma cruzada, que, mesmo no seu caráter indiscriminado, aparece tanto mais racional e justificada quanto mais se levanta a sombra do III Reich. Por isso a Nuremberg ideológica é a conclusão de um movimento que se de­ senrola durante décadas. No âmbito desse procédimento j udiciário não faltam os tons e os aspectos grotescos, até em historiadores contemporâneos autorizados. Em Mosse pode­ mos ler: "O que diferenciava a Alemanha de então de outras nações era um estado de espírito enraizado, uma concepção particular do homem e da socie­ dade, que parece estranha, até diabólica, ao intelecto ocidental"; e essa barbárie oriental, essa estranheza satânica com respeito ao lugar sagrado da civilização constituído pelo Ocidente teria começado a manifestar-se no Século XIX, tal­ vez já antes do ''fim do Século XVIII", quando tomam pé o "romantismo germânico" e uma funesta visão organicista e essencialista do "povo" (Volk) . 1 246 A essa opinião se pode opor aquela expressa por Arnold Toynbee, o qual cha­ ma a atenção para o fato de que o fascismo e o nazismo "não eram prosélitos recentes da nossa civilização ocidental, mas membros da família por nascimen­ to".1247 Por outro lado, é o mesmo Mosse que sublinha a influência que Disraeli e sua tese segundo a qual "a raça é tudo" 1248 exercem sobre Langbehn, inclu­ ído por Mosse entre os mestres do movimento ideológico que desemboca no nazismo. A essa visão se refere Chamberlain, que censura ao estadista inglês (e ao judaísmo) de enfatizar ao contrário de modo unilateral o motivo da pureza da raça, esquecendo a função positiva que pode ter a "mistura do sangue" entre raças de igual valor e dignidade. 1249 E os exemplos dessa "circulação do pensamento" de um país ao outro po­ deriam ser multiplicados . 1 250 Não tem sentido contrapor uma mítica "essência" alemã a uma não menos nútica "essência" ocidental. Nessa base, sem abando­ nar-se de modo algum à hermenêutica da alegoria da inocência, é possível acer­ tar as contas de uma vez para sempre com a distorção historiográfica que preten­ de colocar Nietzsche numa relação imediata com o regime hitlerista, com o 1 245 Hofstadter, 1 944-45, pp. 1 70-1. 1 246 Mosse, 1 968, pp. 9 e 1 3 . 1 247 Toynbee, 1992, pp. 36-7. 1 24M Mosse, 1968, p. 67.

1 249 Chamberlain, 1 937, pp. 322 e 328. 1 250 Para esta categoria, contra as tentações ou o perigo dos deslizes naturalistas, cf.

Losurdo, 1997 b, cap. VI.

resultado de transformar reação antidemocrática do final do Século XIX, socialdarwinismo e nazismo num acontecimento totalmente interno à Alemanha. Nem sequer a cultura de inspiração marxista conseguiu subtrair-se ao mito de um diabólico Sonderweg alemão. Veremos Bloch rotular como inequi­ vocamente fascista a teoria do super-homem, que, porém, ressoa, e com tons inquietantes, também no âmbito da cultura inglesa (infra, cap . 24, § 4). No que diz respeito à Destruição da razão, é verdade que se abre com um denso prefácio sobre o "irracionalismo como fenômeno internacional no período do imperialismo". Mas a tarefa assim evocada é mais enunciada do que realmente enfrentada. Certamente, é explícita a afirmação pela qual "a sociologia alemã, na sua crítica da democracia", "elaborou de modo variado os resultados do Ocidente adaptando-os às finalidades especificamente alemãs". 1251 Lukács, porém, observa que, no conjunto, a sua exposição, "exceto poucas interpolações, como Kierkegaard e Gobineau", é "limitada ao irracionalismo alemão". O fato é - ele afirma em sua justificação - que "só em casos extremamente raros, isolados e esporádicos" \esse "fenômeno internacional" conseguiu ter em ou­ tros países a penetração e as consequências que obteve em terra alemã. 1 252 É plenamente compreensível a atenção particular concedida à evolução da filosofia na Alemanha, cujo peso, nesse campo e nesse período de tempo, está fora de discussão. Todavia, por uma ação empenhada em reconstruir, além dos nexos especulativos, os processos históricos reais, é um motivo de espanto não encontrar, sequer no índice dos nomes, nem o americano Emerson nem o inglês Galton. O perigo agora é que os motivos nietzscheanos da celebração do gênio e do super­ homem ou da necessidade da intervenção eugénica sejam lidos olhando exclusiva­ mente para o aparecimento no horizonte mais do III Reich do que serem aproxima­ dos em primeiro lugar a motivos análogos, circulando amplamente na cultura europeia e americana do final do Século XIX. Também Disraeli está ausente do índice dos nomes . A sua leitura da história é muito mais rigidamente e univocamente racial do que aquela que pode ser censurada em Nietzsche. Além deste ou daquele autor, é percebida negativamente na Destruição da razão a ausência de aconteci­ mentos históricos densos como a escravidão nos Estados Unidos e nas colônias. E de novo, a escravidão velha ou "'nova", invocada por Nietzsche, corre o risco de ser separada do seu real conte:\.1o histórico para ser aproximada de modo imediato do trabalho forçado imposto pelo III Reich aos povos "coloniais" do Leste europeu. O fato é que Lukács procura compreender Nietzsche a partir de um ba­ lanço histórico discutível: "O fascismo é o herdeiro de todo o desenvolvimento 1 251 Lukács, 1 974, p. 29.

1 25 2

Lukács, 1 974, pp. 1 6-7.

reacionário da Alemanha [ . . . ] . O nacionalsocialismo é um grande apelo aos piores instintos do povo alemão".1253 Devemos considerar o horror do III Reich inscrito já na deriva reacionária e "irracionalista" da cultura alemã? Na realida­ de, o quadro ideológico da Alemanha na segunda metade do Século XIX não é muito diferente do quadro de outros países ocidentais. E, então, para explicar o advento do nazismo é preciso referir-se a fatores que vão além do desenvol­ vimento filosófico e cultural: derrota na primeira guerra mundial e humilhação de Versailles ; contiguidade territorial com a Rússia soviética e particular vim­ lênc ia da campanha contra o bolchevismo ou contra o ''complô" judeu­ bolchevista; efeitos devastadores da crise econômica internacional de 1 929; necessidade de redobrar os esforços, e a bmtalidade, para superar o atraso na conquista das colônias e do "espaço vital'', etc. Mais ainda que a Nietzsche, o erro de avaliação diz respeito à história da Alemanha enquanto tal. Também ao querer concentrar-se exclusivamente no desenvolvimento ide­ ológico, seria preciso fazer intervir de modo sistemático a contribuição extra­ alemã para o processo de barbarização cultural que desembocou no III Reich. Algum estímulo nessa direção pode vir da leitura de Hannah Arendt, que se refere em particular à tradição cultural (e política) inglesa. Na segunda metade do Século XIX, o sucesso de Galton foi enorme com a sua teoria do "gênio hereditário" e com a sua tese de ..que a aristocracia é o produto não da política, mas da seleção natural � ; a versão inglesa da ideologia racial foi quase obceca­ da pelas teorias hereditárias e pelo seu equivalente moderno, a eugenia"; 1 254 a ideia de superioridade racial conduz um teórico do imperialismo a opor o povo inglês ·'Super-homem" ao resto da humanidade ou sub-humanidade; não se deve, aliás, esquecer que, entre os mais "devotos sustentadores da ' raça'", além de Gobineau, deve ser incluído Disraeli. 1255 Por outro lado, já no início do Século XIX um liberal inglês de esquerda sublinha como na Grã-Bretanha a expansão colonial vai passo a passo com a homenagem na teoria e na prática ao ··templo de Jano", com a condenação das "ideias de 1 789", a "reação contra o humanitarismo [ . . . ] , agora posto de lado como sentimentalismo", e com a difusão do ''evangelho nu do sangue e do ferro".1256 Uma atenção não menor deveria ser reservada aos teóricos estadunidenses da aniquilação dos peles­ vermelhas e da "solução final" da questão negra. 1 25 7 1253 Lukács, 1 974, pp. 726-7; o itálico é meu. 1 254 Arendt, 1 966, pp. 1 79-80 e 1 76 (= Arendt, 1 989, pp. 25 1 e 246). 1 255 Arendt, 1 966, pp. 177-83 (= Arendt, 1 989, pp. 248-56). 1 256 Hobhouse, 1 909, pp. 28, 59 e 6 l -2. 1 257 Para estas teorias cf. Losurdo, 1 998, cap. l .

Como se sabe, a Nurcmberg real, chamada a julgar os crimes do III Reich, se recusou a fazer valer o princípio do tu quoque invocado pelos acusados . E, dadas as circunstâncias, se compreende bem . No fundo, tratava-se de uma espécie de tribunal revolucionário, de um tribunal instalado no fim de uma revo­ lução mundial (que, no que diz respeito à Alemanha, chegava à vitória a partir do exterior) e à qual cabia a tarefa legítima e iniludível de dar uma resposta aos crimes horrendos em que' tinha desembocado a tentativa hitleriana de contrarrevolução global, desde a colonização do Leste europeu (com a reintrodução, cm formas novas, da escravidão racial) até a liquidação sistemá­ tica do bacilo da revolução, identificado na figura do judeu. Mas hoje, a déca­ das de distância, recusar o princípio do tu quoque também para a Nuremberg ideológica que se obstina a querer encenar seria inadmissível no plano ético e enganoso no plano historiográfico. Contra a hermenêutica da inocência é justo chamar atenção sobre as declarações em que Nietzsche prediz o aniquilamen­ to das --raças decadentes" e o ajuste final de contas com os chandala e mal sucedidos de todo tipo. Contudo, antes de chegar a conclusões precipitadas e unilaterais, é necessário fazer uma pergunta preliminar: as declarações, as ex­ pressões, os motivos que se acabaram de ver remetem de modo exclusivo a Nietzsche e à Alemanha ou estão presentes também na cultura e nas publica­ ções europeias e americanas da segunda metade do Século XIX? Quer dlzçr, é preciso colocar o discurso do filósofo no seu contexto histó­ rico (alemão e ocidental) e só em seguida se pode situar o problema dos even­ tuais elementos de continuidade entre esse contexto e a sucessiva ideologia e prática do III Rcich . Infelizmente, o julgamento de Nuremberg, com exclusão do princípio do tu quoque, continua a pesar negativamente na crítica histórica e filosófica. Se a Lukács se pode censurar o fato de se concentrar quase exclu­ sivamente na cultura "'irracionalista" alemã, a Arendt, embora empenhada em reconstmir um quadro abrangente do desenvolvimento do imperialismo, se pode censurar o silêncio quase total sobre as correntes socialdarwinistas, sobre as práticas eugênicas e sobre as tentações genocidas que se manifestam nos Es­ tados Unidos entre os séculos XIX e XX. No que diz respeito particularmente a Lukács, ele soube ver quanto de fran­ cês e de inglês (em sentido progressivo) há em Hegel, mas não quanto de inglês, francês e cstadunidense (em sentido reacionário) há em Nietzsche. A análise com­ parada dos processos ideológicos é chamada a pôr remédio a essa lacuna. Trata-se de partir da crítica da revolução e dos processos de democratização e "massificação" originados dela; enquanto acompanha as convulsões subsequentes que tiveram o seu epicentro na França, tal crítica conhece um momento de radicalização extrema no período em que se situam a vida e a reflexão de Nietzsche.

3. "Jnatualidade " e gesto aristocrático de distinção A perspectiva comparada é uma constante deste trabalho. Agora se trata de colocá-la no centro da atenção. Emergiram os numerosos pontos de conta­ to, mas também um radicalismo político, um rigor teórico e uma finura psicoló­ gica que conferem à figura de Nietzsche um papel e um destaque totalmente particulares. Contudo, essa abórdagem se choca logo com a constante reivindi­ cação que ele faz da sua extrema "inatualidade". A seu ver, seria essa caracte­ rística que define o filósofo enquanto tal . O pensador autêntico teria a obriga­ ção de "superar dentro de si o próprio tempo, tornar-se 'sem tempo'", travando "a luta mais dura" para não se deixar contaminar pelo que é atual; ele deveria impor-se "um estranhamento, um resfriamento profundo por tudo o que perten­ ce ao tempo, ao tempo de hoje" {WA, Prefácio). Por outro lado, vimos Nietzsche seguir com constante participação e tre­ pidação os acontecimentos históricos e políticos da Alemanha e da Europa. Bem longe de retirar-se para a esfera da interioridade a fim de evitar toda contaminação com o mundo exterior, em várias ocasiões ele polemiza contra os intelectuais que não são capazes de enfrentar a realidade. É verdade que nada há nele de um ideólogo que se empenha com diligência em justificar e legitimar as escolhas políticas imediatas e as viradas sucessivas do II Reich e está, por­ tanto, disposto a renunciar à própria autonomia teórica. Orgulhosamente cons­ ciente da distância abissal que o separa da massa dos ideólogos, Nietzsche crê explicar sua posição recorrendo à categoria de "inatualidade". Mas essa categoria é realmente adequada? Mais uma vez, o intérprete não pode nivelar-se à consciência do autor interpretado. Voltemos os olhos para a evolução de Nietzsche. Ele se aproxima da filosofia na esteira do entu­ siasmo por Schopenhauer. São os anos em que, depois do fracasso da revolu­ ção de l 848, a burguesia alemã volta decic.iidamente as costas para Hegel e se joga nos braços exatamente de Schopenhauer. 1258 Quando estoura a guerra franco-pmssiana, o jovem professor de filologia clássica está entre os voluntá­ rios. Embora viva naquele momento em Basileia, na Suíça neutra, participa tanto da paixão nacional que não hesita em abandonar a cátedra. Pouco mais tarde, O nascimento da tragédia, não obstante "parecer muito inatual" ao seu autor (EH, O nascimento da tragédia, l }, dá voz ao entusiasmo geral que acompanha a fundação do II Reich, bem como, ao denunciar a ruinosa carga subversiva da ideia de felicidade, retoma um tema amplamente difundido na cultura do tempo. É o próprio filósofo que revela alguma incerteza na reivindi1 258 Mehring, 1 96 1 a, vol. XIII, p. 1 5 9.

cação da "inatualidade" de O nascimento da tragédia, "este livro problemáti­ co": "O tempo em que ele nasce, apesar do qual nasce [é] o tempo emocio­ nante da guerra franco-alemã de 1 8 70-7 1 ". É polêmica apenas a relação com o clima daqueles anos? Na realidade, estamos na presença de "um livro que em todo caso satisfez 'os melhores do seu tempo"' e que está todo atravessado por "esperanças impetuosas" postas de novo na "essência alemã" e pelas suas "'ap l icações errôneas aos .asp ectos mai s imediatos do presente" (auf Gegenwartigstes) (GT, Tentativa de uma autocrítica, l , 2 e 6). É com o ataque contra Strauss que a ''inatualidade" se toma uma espécie de profissão de fé, à qual Nietzsche se mantém firme até o fim, como atestam particularmente as Incursões de um inatual, que sobressaem no centro de Crepúsculo dos ídolos . Mas, como vimos, no momento em que se desenvolve o ataque contra A velha e a nova fé, quem está em dissonância com respeito às orientações então dominantes é muito mais o autor do texto ridiculaÍ'izado do que o protagonista da zombaria. Este último se move em consonância substan­ cial com os círculos nacional-liberais, embaraçados ou indignados com a decla­ ração de guerra contra as igrejas cristãs e com a tentativa de elevar à condição de ídeologia oficial da Alemanha uma visão do mundo leiga e materialista, toda centrada na ideia, perigosa e potencialmente subversiva, de felicidade terrena. O fato é que os ideólogos do novo Reich, além do político, "não podiam suportar o radicalismo religioso". Daí a sua reação, descrita assim por Mehring: Com fúria se precipitaram sobre Strauss, estando na frente ainda uma vez os velho-católicos e os protestantes; também o bravo Nietzsche conseguiu galões nessa caça às bruxas com o "grunhido de uma manada de porcos" . que garantiu ao agredido as simpatias de todas as pessoas honestas. O próprio Strauss, no posfácio à nova edição do seu livro, fez referência aos jornais da socialdemocracia que, embora rejeitando suas posições políticas, ao contrúrio da imprensa burguesa "culta", tinham sabido apreciar com objeti­ vidade suas argumentações filosóficas. 1259

Na tentativa de desembaraçá-la do abraço sufocante dos ambientes orto­ doxos, um recenseador simpático da primeira Inatual sente a necessidade de especificar que ela não é ditada pelo ''furor theologicus"; 1 260 mas mesmo se é justo distinguir seu autor do círculo empenhado em aplaudi-lo, resta o fato de que ele está bem longe de ser uma voz que prega no deserto. Algum tempo antes, Rudolf Haym, diretor dos Preussische .Jahrbücher, o órgão oficioso da 1259 Mehring,

1 96 1 a, vol. XIII, p. 1 22. 1 892, p. 282. '

1260 Hillebrand,

cultura nacional-liberal e, portanto, da ideologia dominante, tinha visado direta­ mente Hegel, ao qual debitara uma desajeitada tentativa de racionalização e .. secularização da religião sob o domínio da filosofia". 1 261 O termo usado aqui, Stikularisierung, faz pensar em Nietzsche, empenhado também ele em de­ nunciar aquela .. mundanização" (Verweltlichung) da cultura, que encontraria em Strauss a sua expressão mais repugnante e que, fora da Alemanha, consti­ tui o alvo polêmico também de Kierkegaard (supra, cap. 4 § 7) . Não é menos difícil considerar "inatuais" os dois ensaios respectivamente dedicados a Schopenhauer e a Wagner. O musicista tinha alcançado ou estava para alcançar o auge da glória. Por outro lado, quanto ao filósofo indicado como "educador" da nação alemã, é o próprio Nietzsche que sublinha que ele está agora se impondo à atenção geral : ''nesta época sem vigor", dir-se-ia até que Schopenhauer seja servido "como uma droga estupefaciente e excitante, quase como um espécie de pimenta metafisica"; em todo caso, "aos poucos, ele se tomou conhecido e famoso e creio que hoje haja mais pessoas que co­ nhecem o seu nome do que o de Hegel" (SE, 7; 1, 406) . Sim, houve um tempo em que "em todos os prados prosperava a bela e verde hegelianaria", mas é agora irremediavelmente passado: ''Esta seara foi destruída pelo granizo" (SE, 8; l, 423). É um processo concluído há pouco, a julgar pelo menos por um apontamento de N ietzsche da primavera de 1 8 68: "a hegelianaria e o seu co­ lapso" (KGA, 1, 4, 578). No que diz respeito a Sobre a utilidade e o dano da história para a vida, é o resenhista simpático, que já vimos, que afinna que se trata de um texto zeitgemtij3, atual, ou seja, que reflete certos humores do tempo. "Nietzsche fala em nome de uma classe inteira de alemães e fala contra uma classe inteira de outros alemães".1262 Mesmo colocando-se de um ponto de vista teórico mais alto, também a segunda Inatual tem como alvo privilegiado Hegel e a "hegelianaria", cujo descrédito, posto em evidência pelo escrito de Nietzsche dedicado a Schopenhauer, já fora observado, no dia seguinte da revolução de 1 848, por Haym : "Ninguém, a menos que seja totalmente cego ou retardado, ousaria afinnar que esse sistema domine a vida e a ciência como dominou no passado"; até os discípulos pateticamente fiéis ao mestre no máximo "se per­ mitem a afinnação segundo a qual Hegel 'apesar de tudo, não foi inútil ' para a evolução da filosofia". 1263 Dissolvidos o encanto do encontro com Schopenhauer e Wagner e o entu­ siasmo das esperanças na missão metafisica da Alemanha, Nietzsche olha com 1261

Haym, 1974, p. 402. Hillebrand, 1 892, p. 300. 1 263 Haym, 1 974, pp. 3-5.

1 262

interesse para certos filões iluministas e positivistas. Essa virada tampouco significa uma mptura com a cultura do tempo. Valendo-nos sempre do teste­ munho de Haym, o fracasso da revolução de 1 848 marca na Alemanha a crise ou o início da crise da ''metafísica".1264 "A experiência - observa o eminente historiador das ideias, além de prestigioso expoente nacional-liberal - ensinou a ser ..um pouco mais práticos, um pouco mais realistas e históricos e um pouco menos dogmáti cos ". 1 2 65 Por .outro lado, nesse tempo são exatamente os ·'Preussische Jahrbücher" que promovem o conhecimento e a difusão do pen­ samento de Comte.1266 O positivismo é chamado a liquidar a "metafísica" re­ volucionária que, em 1 8 48, tinha encontrado um eco amplo e preocupante na própria Alemanha. No plano mais propriamente político, o nítido distanciamento em relação à política de Bismarck, por Nietzsche considerada coparticipante e co-responsável pelo desvio subversivo e plebeu, contém certamente um elemento de forte con­ tradição com relação à ideologia dominante. No entanto, nem sequer nesse caso é persuasiva a categoria ·de "inatualidade": a realidade do II Reich é medíocre demais com respeito às esperanças que haviam acompanhado o seu nascimento; e eis que, pela vulgaridade moderna, dominante também na Alemanha a despeito de todas as promessas e ilusões, a reação aristocrática busca segurança no es­ plendor da antiga Grécia e até da escravidão antiga (infra, cap. 25 § 4). Verifica-se um fato paradoxal. Quanto mais Nietzsche, radicalizando as suas posições, insiste na sua "inatualidade", tanto mais os seus leitores evidenci­ am o conhecimento do seu discurso contra o espírito do tempo. Por exemplo, aproximam-no de Carlyle. E eis a resposta do filósofo: certos "burros doutos [ . . . ] têm até encontrado vestígios daquele 'culto dos heróis ' , por mim tão duramente rejeitado, daquele grande falsificador inconsciente e voluntário, Carlyle" (EH, Porque escrevo livros tão bons, l ). De fato insuperável é a distância entre o filósofo alemão e o escritor inglês. Do ponto de vista do primeiro, o segundo representa um "idealismo" exaltado e, ademais, na sua configuração mais odiosa, a cristã ou cristianizante. O ciclo de conferências sobre o culto dos heróis termina com uma eloquente invocação ao público: "Deus esteja convosco ! " A celebração de Platão ("a natureza era para aquele homem como é em todo tempo para o pensador e para o profeta: sobrenatura/")1 261 se enlaça com aquela de Lutero ("o coração mais corajoso que houvesse então no mundo", sim, "o mais corajoso, Haym, 1 930, p. 134 (carta a Max Duncker de 30 março de 1 852). Haym, 1 930, p. 142 (carta a Friedrich Theodor Vischer de 2 1 de outubro de 1857). 1 266 Simon, 1980, pp. 24 1-266. 1 267 Carlyle, 1990, p. 20. •2M 1265

nem que seja um dos mais humildes e dos mais pacíficos'', inflamou-se de indig­ nação contra o "pontífice paganizante" e esclareceu "a todos os homens que o mundo criado por Deus não se fundava nas aparências, mas sobre a realidade, que a vida era uma verdade e não uma mentira"). 1268 É sobretudo a fé que define em Carlyle a per�onalidade de exceção, fé que encontra a sua expressão mais alta no cristianismo: é uma religião que tem "o próprio germe" exatamente "neste culto dos heróis"; não é.por acaso que "o maior de todos os heróis é aquele Um que não ousamos nomear aqui". 1269 Nietzsche tem razão em retirar-se da proximidade, que lhe causa horror, de uma espécie de santarrão em molho extravagante. Ao sublinhar, com gesto pro­ vocador, a distância, o autor de Ecce Homo sugere que seria preciso "ir em busca mais de um César Borja do que de um Parsifal"; em todo caso, Zaratustra nada tem a ver com o "tipo 'idealista' de uma espécie superior de homem, meio 'santo', meio 'gênio'" (EH, Porque escrevo livros tão bons, 1). Severo, impiedoso é o julgamento sobre o ·'pior escritor inglês'', responsável entre outras coisas por ter arruinado com a sua influência o estilo do próprio Emerson (VIII, 588). O distanciamento vai bem além do âmbito estético. Ao ver de Nietzsche, que se toma cada vez mais radical no seu imoralismo, Carlyle está errado em se referir a heróis que são a encarnação dos "mais altos valores morais": desse modo mostra que também ele entra na categoria dos "fanáticos pela moral" e, portanto, é acometido pela "doença" que caracteriza a modernidade (XII, 358 e 560). Daí a "sua adoração pelos homens de fé robusta" e "o seu furor contra os menos simplórios" (GD, Incursões de um inatual, 1 2). Construída de modo "simétrico, morbidamente linear, indeterminado", a grande personalidade se toma uma espé­ cie de santo ao qual se deve "louvor" e "incenso" (M, 298). Por isso, olhando bem, o culto dos heróis é apenas um insípido substitutivo da religião. Em síntese, o literato inglês, essa "insípida mixórdia de ideias", exprime os limites de fundo do seu país, incuravelmente cristão (JGB, 252), e além disso, os exprime com grandiloquência, com "loquacidade que brota de uma complacência íntima do estrépito e da mixórdia dos sentimentos" (FW, 97). No entanto, a aproximação rejeitada com indignação não é totalmente sem fundamento. Sim, o fi lósofo-filólogo tem razão de entregar ao ridículo um culto dos heróis patrocinado por uma religião dos humildes e dos pobres de espírito. É claro que, mesmo tão diferentes entre si, os dois autores aqui confrontados têm em co­ mum o gesto aristocrático da oposição das grandes personalidades à humanidade comum. E isto no âmbito de uma polêmica tão áspera contra as tendências demo1 268 1 269

Carlyle, 1990, p. 163. Carlyle, 1990, pp. 25-6.

cráticas e niveladoras, que inclui em ambos os casos a justificação ou a celebração da escravidão (supra, cap. 1 2 § 3). É verdade, Nietzsche rotula o herói cristão ou cristianizante caro a Carlyle como um oximoron inconsciente e irrefletido: só uma total falta de sentido histórico e de instinto aristocrático pode dar crédito a uma religião tão plebeia como é a cristã. Mas esse modo de argumentar e comportar-se do filósofo não é sinônimo de "inatualidade" enquanto tal; é mais a ambição de conferir rigor e coerência a motivos bem difundidos na cultura do tempo: uma vez pensados em toda a sua radicalidade e consequencialidade, tais motivos acabam resultando em irremediável contradição com a ideologia e a religião dominante que, apesar de tudo, continua a ser o cristianismo. Por outro lado, em Nietzsche a celebração da "inatualidade" não tem sem­ pre um significado unívoco: o filósofo "deve ser a má consciência do seu tempo para tal fim deve possuir o máximo saber dele" (WA, Prefácio). Trata-se, certa­ mente, de uma relação polêmica, que visa à "vivissecção com faca própria do coração das virtudes do tempo" (JGB, 2 1 2). No entanto, tal relação é inevitável . E o é ao ponto de "o filósofo não estar livre de poder passar sem Wagner" (WA, Prefácio), ou seja, sem o musicista e o ideólogo que se trata de superar e rejeitar se se quiser conseguir a "inatualidade". Estamos, pois, diante de uma "inatual.idade" que não pode saltar o momento da mediação e que, portanto, consiste em rejeitar certas tendências do tempo, dando expressão a outras . Enfim, é o próprio Nietzsche que acaba confirmando de algum modo a leitura hitoricizante do seu pensamento, por ele tão desdenhosamente rejeitada. Num bosquejo autobiográfico dos anos da adolescência indica no ano de 1 848 e na repugnância suscitada pela revolução o momento decisivo e "fatal" do seu processo de formação (A, 9 1 ) . Não são diferentes a contextualização e a periodização sugeridas pelos intérpretes críticos do filósofo contemporâneos a ele. Segundo Duboc, depois de ter iniciado com o fracasso da revolução, a "maré reacionária dos anos cinquenta" se engrossa mais com o "materialismo ético" do final do Século XIX : "não se pode pôr em dúvida" que este é o contexto no qual colocar "a 'moral ' nietzscheana do super-homem". 1 270 Estamos diante de um autor que conta com "inumeráveis leitores, pertencentes às clas­ ses superiores da sociedade".1271 Em termos análogos Mehring, escrevendo sempre poucos anos antes da morte de N ietzsche, o insere, junto com Schopenhauer e Hartmann, no grupo dos "três filósofos da moda que obceca­ ram a burguesia alemã na segunda metade deste século". 1 272 Convém especiDuboc, 1896, pp. 133 e 1 1 7. Duboc, 1 896, p. 124. 1272 Mehring, 196 1 a, vol. XIII, p. 167.

127º 1271

ficar imediatamente que são também os seus admiradores que colocam em dúvida a "inatualidade" de Nietzsche: "O seu ideal pertence ao seu tempo, mas só a ele foi concedido exprimi-lo em toda a sua pureza". 1 273 Mais do que serem imprecisas e enganosas, essas diversas leituras que, por um motivo ou por outro, sublinham a consonância do teórico da "inatualidade" com o seu tempo, cometem o erro, do ponto de vista do filósofo, de pôr em crise a reivindicação da inatual idade como gesto de distinção aristocrática. Em últi­ ma análise, esta é a opinião de Overbeck. A relação de amizade e de afeto não o impede de se exprimir assim a propósito de Nietzsche: Ele não foi realmente um solitário, mas simulava a solidão, comprazia-se em ser e queria ser um solitário. Se se olhar para trás ou se se considerarem as coisas sob um ângulo histórico, nenhum dos pensamentos, que aparecem em Nietzsche, é realmente novo e inédito. Do mesmo modo, a maneira como ele se apropria dos pensamentos pertencentes ao acervo comum do tempo presente não tem nada que lhe seja próprio se for medido por esses empréstimos. 1274

Totalmente inaceitável no que diz respeito à incompreensão da grandeza e da originalidade do filósofo, de sua finura e profundidade psicológica, bem como do seu radicalismo no plano da reconstmção histórica e da consequencialidade teórica, esse julgamento tem, todavia, o mérito de refutar um mito ainda hoje duro de morrer.

4. A "grande economia do Todo " e os custos da compaixão Quem faz profissão de "inatualidade" é já Schopenhauer. Abramos O mundo como vontade e representação . A denúncia do instinto sexual como expressão de uma vontade irreprimível de viver, a celebração do ascetismo (e, nesse contexto, do próprio celibato eclesiástico próprio do mundo católico}, tudo isso ocorre no mesmo período de tempo em que Malthus identifica na incontinência sexual das classes pobres e na superpopulação a verdadeira cau­ sa da miséria de massa; se o autor inglês refuta a ideia de progresso mediante o recurso à economia política e à demografia, o filósofo alemão liquida tal ideia mediante uma constmção metafisica articulada, no âmbito da qual o tema da superpopulação e da economia política desempenham um papel subordinado.

1273 Tille, 1895, p. 2 18. 1 274 Overbeck 1 906, p. 2 1 9.

A preocupação que está no centro da obra de Malthus está bem presente também em Nietzsche (supra, cap . 1 9 § 3). Pode-se fazer intervir a considera­ ção, feita valer já a propósito de Schopenhauer, acerca da mudança e potenciação, na passagem da cultura inglesa para a alemã, de um motivo da economia polí­ i tica em motivo metaf sico. A superpopulação da qual Malthus fala se toma agora o conj unto dos "demais" ( Viel-zu- Vielen) ou dos "supérfluos" (über.fl.üssigen) contra os quai� Zaratustra não se cansa de troar (Za, 1, Do novo ídolo: Do casamento e dos filhos; Da morte voluntária) . É o "exces­ so (Uberschuss) de casos de mal sucedidos'', o "excesso (Ub erschuss) de malogrados, de doentes, de degenerados (Entartend), de seres defeituosos, de seres que necessariamente sofrem'', que se manifesta "entre os homens, como em toda outra espécie animal" (JGB, 62) . Uma "lei" da economia política se transformou assim numa "lei" universal do mundo vivo. Estamos diante de "materiais de rejeito e de refugo" (A uswwf- und Verfall-Stoffe) (XIII, 87). Também Bentham fala de "rejeito da população" como escória ou "material de refugo" (dross): submetido a tratamento oportuno nos casos de trabalho coagi­ do, ele pode ser transformado em dinheiro. 1275 O ponto constante de referên­ cia é aqui a produção capitalista. Em Nietzsche a fábrica capitalista se toma uma espécie de fábrica da vida; fundindo-se com a biologia, a economia política se configura como a "economia da conservação da espécie" (FW, 1 ). E essa economia pode exigir que aos fracassados ou aos materiais de refugo seja reservado um tratamento bem mais drástico do que o previsto por Bentham. Para o teórico do radicalismo aristocrático é inevitável que o "carro" da civilização avance pisoteando e sacrificando inumeráveis existências individu­ ais. Não muito diferente é a metáfora usada por Burke: a "grande roda da circulação" (great wheel of circulation) e da "distribuição" (distribution) das riquezas inclui a fadiga e o sacrifício de muita "gente infeliz". Se no filólogo­ filósofo alemão são os ''escravos" atados ao carro do vencedor que devem ser imolados, no pol ítico inglês são aqueles que "trabalham desde a alva até à noite nas inumeráveis ocupações servis, degradantes, indecorosas, inumanas, fre­ quentemente nocivas e pesti lentas, às quais tantos desgraçados estão i rrevogavel mente condenados pela economia da sociedade " (social economy).1276 Em termos análogos, aos olhos de Linguet, as privações e as dores dos escravos são como "a poeira levantada por uma carruagem que percorre um caminho areento". 1 277 O que azeita o funcionamento do "carro", 1 275 Bcntham, 1838-1 843, vol. VIII, p. 398 e Hinunelfarb 1 985, p. 80. 1 276 Burkc, 1826, vol. V, pp. 29 1 -2 (cf. Burke, 1 963, p. 344). 1 177 Linguet, 1984, p. 524 (livro V, cap. 1 9). ,

da ··roda", da ··carrnagem", ou da ·'grande máquina" da qual fala Malthus e da ·'grande máquina da sociedade", que segundo Jefferson não deve ser posta em perigo com declarações públicas impensadas contra o instituto da escravidão, 1 278 são para sempre o suor e o sangue das vítimas sacrificais da civilização. Estamos na presença de uma metáfora que se apresenta de modo elíptico também em Sieyes, segundo o qual ''as classes trabalhadoras das sociedades avançadas [ ] são esmagadas pelo peso das necessidades de toda a sociedade". 1279 En­ ' fim a imagem do "carro" e da sua "marcha triunfal" já vista em Nietzsche irrompe também numa alta personalidade da administração imperial inglesa na Índia, que usa o pseudônimo de A. Carthill. Este, com relação à sorte dos povos coloniais, escreve: "É preciso sentir-se pesarosos pelas pessoas que são esmagadas pelo carro triunfal do progresso" (triumphal car ofprogress). 1280 Ao acentuar a inevitabilidade do sacrificio de inumeráveis servos e indiví­ duos, Burke se refere à "economia da sociedade, além de se referir à "grande roda da circulação" e "distribuição". A economia política irrompeu agora nas metáforas chamadas a esclarecer e legitimar o sistema capitalista. "A banca e o capital coletivo (the general bank and capital) das nações e dos séculos" admoesta o estadista inglês - devem ser protegidos das críticas e inovações precipitadas e dissipadoras . 1 28 1 As leis da natureza são também as leis da eco­ nomia; e de ··economia da natureza" fala, do outro lado do Atlântico, Jefferson. 1 282 Ainda mais interessante, nesse contexto, é a intervenção de Malthus . Este, como demonstração da tese segundo a qual o indivíduo pobre deve ser atribu­ ído mais à imprevidência dos próprios pais do que à presumida injustiça do sistema social, invoca as "leis da natureza" e da economia política e, ao mesmo tempo, o "governo moral deste universo". 1283 Economia política, natureza e moral tendem a ser uma coisa só. Poder-se­ ia dizer que tal processo chega à conclusão em Nietzsche. Espalha-se em geral pelo seu pensamento a referência, direta ou indireta, à economia política. Vi­ mos que já em Humano, demasiado humano se faz zombaria da "economia . . .

127x

Malthus, 1 977, p. 104; no que respeita a Jefferson, cf. Jordan, 1 968, p. 435.

1279 Sieyes, 1 985 c, p. 73 .

ln Arendt, 1 966, p. 1 43 n. (=Arendt, 1989, p. 200 nota). Na vertente oposta com referência ao carro do deus indiano Vishnu, cujos fiéis se deixavam esmagar durante as procissões, Marx denuncia a sociedade burguesa como "a roda Juggernaut do capital" (Marx e Engels, 1 955, vol. XXIII, p. 297). 1281 Burke, 1 826, vol. V, p. 168 (cf. Burke, 1 963, p. 257). 1 282 Jefferson, 1 955, p. 53. 1283 Malthus, 1965, p. 497. 128º

da bondade" própria dos "temerários utópicos" que desejariam banir o negativo da sociedade e da realidade (supra, cap. 8 § 1). A essa falsa "economia", baseada em supostos sentimentos morais se opõe a autêntica "economia" que desdenha remover ou falsificar a realidade. É a "economia abrangente do mun­ do" (Gesammt-Haushalt der We/t) (XI, 699), a "superior economia da civiliza­ ção" (XIII, 64 1 ), "a inteira economia da humanidade" (JGB, 62), a "grande economia do Todo" (grasse Okonomie des Ganzen) (EH, Porque sou um destino, 4). É tendo constantemente presente tal economia, que abrange todo aspecto do real, que é preciso avaliar as diversas visões do mundo e as diferentes filosofias morais: Esta é a minha tarefa, ter pretendido pela primeira vez uma verificação das contas! - portanto ter posto o problema da miséria indizível, da piora que os homens sofreram, porque o altruísmo foi elevado a ideal e, consequentemente, o egoísmo foi definido como mau e se fez sentir como tal (IX, 5 7 1 ) .

Sim, "'para avaliar (abschatzen) quanto vale um tipo de homem (was ein Typus Mensch werth ist), é preciso calcular o preço (den Preis nachrechnen) que custa (kostet) a sua manutenção" (EH, Porque sou um destino, 4). É preciso proceder de modo abstrato; é necessário submeter a uma rigorosa "ava­ liação" (A bschatzung) "os ideais até agora vigentes" (XII, 459). O "homem bom" sai-se decididamente mal dessa verificação contábil. Feitas as contas, torna-se catastrófico o papel da compaixão, que impede ou obstaculiza o sacri­ fício necessário e benéfico dos fracassados da vida. O tipo de homem celebra­ do pela moral cristã e pela moral tradicional acaba sendo "a espécie mais pre­ judicial (schadlichst) de homens, pelo fato de eles realizarem a sua existência seja às custas (aufKosten) da verdade, seja às custas (aufKosten) do futuro" (EH, Porque sou um destino, 4) . Para a economia da vida e da sociedade é um passivo do qual é preciso absolutamente livrar-se: "Por mais danos (Schaden) que os caluniadores do mundo possam fazer, o dano dos bons é o mais prejudi­ cial dos danos" (der Schaden der Guten ist der schadlichste Schaden) (Za, III, De tábuas antigas e novas, 26). A vantagem e a "profundidade do artista trágico" residem no fato de que ele "afirma a economia à grande ( Õkonomie im Grof3en), a qual justifica o que nos é dito de terrível, malvado, problemáti­ co . . . e não se limita a justificá-lo" (XII, 557). Ao fazer referência a essa economia abrangente do real , é preciso saber avaliar não só as diversas religiões, mas também a sua diferente utilização: "Paga-se sempre um preço caro e de maneira terrível pelo fato as religiões não estarem nas mãos dos filósofos" (JGB, 62). Como se vê, é constante a referên-

eia à economia política. Esta desempenha um papel também na condenação do sistema parlamentar e da sociedade democrática enquanto "extremamente dispendiosa (kostspielig) (supra, cap. 1 0 § 3). A nova ciência que acompanha o desenvolvimento do mundo burguês i ntervém também na análise da interioridade: vemos Nietzsche atento a perguntar por "toda a economia da minha alma e o seu equilíbrio" (FW, 338). O âmbito da nova ciê'!cia se revela bem mais amplo do que o da antiga; além da produção e distribuição da riqueza, ela abrange a moral, a realidade e a vida enquanto tais: "eu tento uma justificação econômica (okonomisch) da virtu­ de" (XII, 459), da virtude entendida não em sentido moral; esta última, como sabemos, está em antítese clara e irreparável com a "grande economia do Todo". A parti r pelo menos de 1 789, o papel dos intelectuais não proprietários está no centro do debate político e cultural . Nietzsche continua a intervir nesse debate quando se autodefine assim: "um grandseigneur do espírito'', exata­ mente como Voltaire era (EH, Humano, demasiado humano, 1 ) O caso de Wagner é bem diferente: "a ' munificência régia"', que em geral é atribuída tanto a ele como a Victor Hugo, se revela como ilusão ou maquilagem mentiro­ sa. Só ''enquanto se é ainda infantil e wagneriano ainda por cima, se considera Wagner deveras rico, deveras um prodigioso dissipador, deveras um grande latifundiário (Grossgrundbesilzer) no reino do som". Bem depressa, os admi­ radores do musicista alemão e do romancista francês se contentaram com muito menos. Apreciam-nos "por razões opostas: como mestres e defensores da economia ( Ókonomie), como p rudentes anfitriões"; de fato, "ninguém está à sua altura em exibir, com módica despesa, uma mesa principesca" {WA, 8). No que diz respeito a Wagner em particular, pode-se observar nele "uma eco­ nomia técnica (technische Ókonomik) que não tem nenhuma razão para ser refinada" {WA, 9). Em conclusão, enquanto é uma realidade em Nietzsche, o espírito senhoril é apenas fanfarronice em Wagner e Hugo. .

5. Sociologia e psicopatologia das classes intelectuais Como na tradição passada, também em Nietzsche a condenação da revo­ lução é ao mesmo tempo a denúncia do papel nefasto desempenhado pelos intelectuais não proprietários, pelos "eruditos" tomados pela "loucura política" {WB, 4: 1, 450) e pela "febre [ . . ] política" {WB, 3; 1, 444). A sua participação ativa no p rocesso de crescente vulgarização e de massificação galopante do mundo moderno não deixa de ter relação com a sua origem social . A mediocri­ dade da posição social dos intelectuais é também a mediocridade do seu hori.

zonte: "Das leis da hierarquia deriva a consequência que os eruditos, à medida que pertencem à camada média do espírito (geistiger Mittelstand), não po­ dem realmente divisar os verdadeiros grandes problemas e interrogações: o seu espírito e por isso também a sua vida não chegam a tanto" (FW, 373). O fato é que os intelectuais não proprietários são pequeno-burgueses, socialmente, antes ainda de ideologicamente, próximos das massas populares (FW, 349). Assim se explica a difusão da visão plebeia da história que, no centro da sua atenção, coloca mais as massas do que as grandes personalida­ des: ''Os eruditos alemães, por quem o senso histórico foi inventado - os fran­ ceses estão treinando agora - fazem todos entender que não derivam de uma casta dominante" (XI, 58 8). Até aqui estamos na presença de uma posição não diferente daquela as­ sumida pelos autores franceses ou ingleses empenhados na crítica da Revolu­ ção Francesa. Nela desempenharam um papel nefasto os intelectuais não pro­ prietários, propensos ao mesmo tempo à abstração e à inveja e, portanto, pron­ tos - sublinha Constant - a elaborar desastrosas "teorias quiméricas". Em sentido análogo, Burke denuncia os "pedintes da pena" (gueux plumées) e Maistre aqueles que define como os "Pugatchov da Universidade", referindo­ se ao protagonista de uma gigantesca revolta camponesa na Rússia de poucas décadas antes. 1 284 Com o mesmo desprezo e com a mesma preocupação polí­ tico-social, Schopenhauer fala dos "literatos esfomeados"1285 e N ietzsche, do "proletário culto" (GM, III, 26). Se Burke rotula a ralé como "multidão porcina", 1286 Nietzsche define os intelectuais plebeus como os "porcos cultos" (XII, 320), ou, citando o marquês de Mirabeau, como a "canaille plumiere, écrivassiere " (XII, 37 1 ). Por causa do ressentiment que incubam em relação não só às classes superiores, mas também à riqueza e ao poder enquanto tais e por causa também da intolerância que sentem pela sua atual condição e pelos sonhos de resgate e de regeneração que perseguem para si mesmos e para a sociedade no seu conjunto, os intelectuais não proprietários e de modesto estra­ to social tendem a juntar-se à ralé no ataque à propriedade e ao sistema social existente: eles são, de qualquer modo, os protagonistas de primeiro plano da subversão ideal antes ainda que política. Compreensivelmente, a encarnação privilegiada da nova figura de inte­ lectual plebeu é identificada por Nietzsche em Rousseau, plebeu pela sua ex­ tração social bem como pelas posições ideológicas e, de qualquer modo, parti12x4 Cf. Losurdo, 1 996, cap. II, 1 1 . 1 285 Schopenhauer, 1976-82 e. vol. IV, p. 21 3.

12x6

Burke, 1 826, vol. V, p. 1 54 (= Burke, 1963, p. 248).

culannente caro aos jacobinos. Ao ler o seu discurso sobre a desigualdade, já Voltaire tinha comentado: "É a filosofia de um mendigo (gueux) que gostaria que os ricos fossem saqueados pelos pobres".1287 Compreende-se agora o fato de Rousseau se ter tomado, para uma larga parte das publicações, a gueux plumée por excelência. Constant o censura por ter inspirado, com as suas ·'tiradas contra as riquezas e até contra a propriedade", a fase mais terrível da Revolução Francesa, ou seja, a agitação social das massas deserdadas e a política j acob ina de intervenção na esfera econômica e p r ivada . 1 288 Analogamente, Flaubert vê no autor d' O contrato social "o pai da democracia invejosa e tirânica". 1289 São motivos que também entram na Alemanha, de modo que um contemporâneo e adversário de Hegel, Gustav Hugo, insere Rousseau entre os "inimigos da propriedade privada".1 290 Mas é Taine quem nos reconduz para perto de Nietzsche, em cuja escola ele declara ter estado (infra, cap. 28 § 2). Se o historiador francês acusa Rousseau pelo "rancor (rancune) do plebeu pobre" que transpira das suas obras, 1 291 Nietzsche o denuncia como o "homem do rancor" (Ranküne-Mensch), que pre­ tende indicar "nas classes dominantes a causa do seu ser miserável" (Miserabilitat) (XII, 42 1), ou como o homem do "ressentiment" (GD, Incur­ sões de um inatual, 3). Ele é "idealista e canaille numa só pessoa". Até aqui estamos no âmbito do discurso já conhecido, que põe em conexão a mediocrida­ de da origem social de um intelectual ou de uma classe de intelectuais com os discursos exaltados de regeneração; neste sentido, Rousseau é o "primeiro ho­ mem moderno'', o ponto de partida de um ciclo de agitações e perturbações ainda bem longe da conclusão (GD, Incursões de um inatual, 48). Como na cultura e nas publicações empenhadas na crítica da Revolução Francesa, assim em Nietzsche a análise sociológica das classes intelectuais cede a certa altura a passagem para o diagnóstico psicopatológico. Da condenação em Rousseau do "rancor do plebeu pobre", Taine passa a prevenir contra aquele ''caso clínico singular" que é representado pelo filósofo genebrino; 1 292 a descri­ ção, na França "inebriada pela má aguardente d'O contrato social", do contágio do qual foi tomada, semelhante à "estranha doença que se encontra comumente nos bairros pobres"1293 - aqui a psicopatologia continua pelo menos a estar liga1287

Havens, 1 933, p. 1 5 . ln Constant, 1 957, p. 1 050 nota e 105 1 (= Constant, 1 96 1 , p. 1 03 nota e 1 05). 1289 Flaubert, 19 1 2 , p. 343 (carta a Jules Michelet de 13 novembro de 1867). 1 29º Hugo, 1 8 19, p. 28; Hugo, por sua vez, acrescenta Diderot. 1291 Taine, 1 899, vol. II, p. 40 (= Taine, 1986, p. 409). 1 292 Taine, 1899, vol. II, p. 30 (= Taine, 1986, p. 400). 1 293 Taine, 1 899, vol. IV, p. 26 1-2 (= Taine, 1 989, tomo 1, pp. 568-9). 1 288

da com a sociologia - a certa altura se transforma na denúncia da "alteração do equilíbrio mental" dósj'acobinos, 1294 com a dissipação, portanto, de todo elemento restante de análise social . Considerações análogas podem ser feitas em relação a Burke, Constant ou Tocqueville. 1295 São claros os elementos de contiguidade entre Nietzsche e a cultura do seu tempo. Não menos evidentes e não menos importantes, porém, são os elementos de novidade. Depors de ter sublinhado que "a dupla natureza de idealista e de canaille" se manifesta também na Revolução Francesa, o aforismo já citado de Crepusculo dos ídolos prossegue assim "A farsa sangrenta com que se representou esta revolução, a sua 'imoralidade' tem pouca importância para mim: o que odeio é a sua moralidade russoniana". Rousseau, "essa cria­ tura mal sucedida", "teve necessidade da 'dignidade' moral para suportar o seu próprio aspecto". E em nome da moral a revolução agita a "doutrina da igual­ dade", que "parece pregada pela própria justiça, enquanto, ao invés, é o fim da justiça", dado que pretende igualar realidades separadas entre si por um abis­ mo (GD, Incursões de um inatual, 48). Não só a reivindicação da igualdade social, como sustentavam sobretudo os autores liberais, mas também a reivindi­ cação da igualdade enquanto tal, e até o apelo a uma presumida moral univer­ sal, ela mesma atravessada por uma lógica igualitária e homologadora, é ex­ pressão ao mesmo tempo de rancor plebeu e de exaltada utopia revolucionária. A denúncia do intelectual subversivo não pode então ficar no meio do caminho. É uma figura que começou a manifestar-se bem antes de Rousseau e da Revolução Francesa. Pense-se na Reforma. Ela "é também co-responsável pela degeneração do erudito moderno, por sua falta de reverência, pudor e profundidade, por toda a ingênua candura e bonomia nas coisas do conheci­ mento, em suma, daquele plebeísmo do espírito, que é característico dos últi­ mos dois séculos" (FW, 358). Ao reivindicar uma espécie de sacerdócio universal e ao pôr em discus­ são a distinção entre iniciados e leigos no que diz respeito à leitura do texto sagrado, a Reforma vê também o surgimento de um baixo clero, polêmico em todo nível em relação à hierarquia: pense-se nos pastores da "revolução purita­ na". Se podia suscitar escândalo na Alemanha protestante, a inserção da Re­ forma no longo ciclo da subversão não é em si um motivo particularmente novo; podemos encontrá-lo, embora em formas mais esquemáticas e aproxi­ mativas, já nos ambientes católicos da Restauração. Mas Nietzsche não fica por aqui . Não é com Lutero que inicia o ciclo revolucionário, mas com o cristi1294 Taine, 1899, vol. V, pp. 2 1 seg. (= Taine, 1989, tomo 1, p. 594). 1295 Losurdo, 1 996, cap. II, 1 .

anismo, indicado como a fonte original do Terror jacobino. Por outro lado, pare­ ce reconduzir a Rousseau a descrição de Paulo de Tarso: também ele dá prova não só de loucura ou, mais exatamente, de "alucinação" (Hallucination), mas também de rancor desmedido para com os bem sucedidos e as classes superi­ ores (AC, 42). Voltando atrás com respeito ao cristianismo e aqueles "agitadores cris­ tãos" que são os ''Pais da Igr�ja", encontramos os "agitadores sacerdotais" e a sua moral minosamente "abstrata" (supra, cap. 1 5 § 2); tal como para o ciclo revolucionário, assim também para a reconstmção da história da figura do inte­ lectual subversivo, é preciso partir do j udaísmo pós-exí lico. Não é só a tradição religiosa, é também a tradição intelectual do Ocidente que é submetida a uma leitura radical e impiedosa. A abstração, a patologia denunciada pela tradição liberal e reacionária nos intelectuais revolucionários se toma agora a patologia de boa parte dos filósofos. Esses velhos filósofos não tinham coração; filosofar foi sempre uma espécie de vampirismo. Em tais figuras, como também em Spinoza, não sentis algo de profundamente enigmático e sinistro? [ . . ] ln summa: todo idealismo filosófi­ co foi até hoje algo como uma doença (FW, 372). .

Retrocedendo de novo na história da filosofia, pode-se e deve-se remon­ tar até a antiguidade grega, até Platão. O caráter abstrato, que desempenha um papel tão funesto no âmbito do ciclo revolucionário, se manifesta já nele: é "a invenção platônica do espírito puro e do bem em si" (JGB, Prefácio). Prova­ velmente o filósofo grego se refere, também, como Spinoza, a raízes judaicas, aos sacerdotes judeus, essa primeira e fatal figura do intelectual abstrato e subversivo. Com o pavoroso caráter abstrato do qual mui frequentemente dão mostra, os filósofos representam a continuidade da figura dos sacerdotes; sa­ bemos que os moralistas "minam o naturalismo da moral" (supra, cap. 10 § 5), mas o erro dos ·'filósofos" é exatamente o de se comportarem como "moralis­ tas" (XIII, 403). Mas, uma vez alongado de modo tão radical o ciclo da subversão, a de­ núncia do papel nefasto dos intelectuais investe também contra os ideólogos do sistema existente e o próprio sistema. Como explicar o mesquinho pensamento calculista que caracteriza a modernidade? Os filhos dos arquivistas e dos copistas (Büreauschreibern) de toda espé­ cie, cuja tarefa principal foi sempre a de ordenar um material múltiplo, de distribuí-lo em gavetas, de esquematizar as coisas, no caso de se tornarem emditos mostram uma predisposição a considerar um problema quase resol­ vido pelo simples fato de o terem esquematizado [.. . ]. A aptidão de classificar,

de constmir tabelas de categorias trai algo: não se é impunemente filhos dos seus pais (FW, 348). De modo análogo se pode explicar o sucesso de uma teoria que pretende interpretar a realidade da história com base na "luta pela existência", a partir de uma categoria que claramente remete aos problemas e às angústias dos estratos mais pobres da população. Quando se reflete sobre a "origem da maior parte dos natural istas", tudo fica claro: Eles pertencem ao "povo", os seus antepassados foram gente pobre e mes­ quinha, que conheciam até demasiado de perto as dificuldades de se manter. Em torno de todo o darwiiúsmo inglês exala algo como o ar contaminado da superpopulação inglesa, algo como o odor de miséria e penúria, o cheiro da gente pobre (FW, 349).

Certamente, deveria ter havido esforço em transcender o seu miserável ··cantinho human0": nesse caso, teriam tomado consciência do fato que "na natureza não há a extrema angústia de dominar, mas a superabundância, a prodigalidade levada até o absurdo" e que "a luta pela vida é apenas uma exceção". Mas eles não conseguiram superar os limites da sua proveniência social e atingir a doutrina da vontade de potência (FW, 349). Mais em geral, há um nexo entre origem social do intelectual, no mais das vezes de proveniência não aristocrática, e confiança cega na argumentação lógica e racional, que não conhece diferença de casta e de classe e que, portan­ to, é intrinsecamente democrática (FW, 348). Nietzsche parece querer recons­ tmi r para os intelectuais a "árvore genealógica" de que Schopenhauer fala a propósito dos criminosos e dos rebeldes, 1 2% . "Em todo tratado científico" é possível ler A "pré-história" do emdito, a sua família, e particulannente os deveres gerais de profissão e os oficios dela. Quando amadurece o sentimento de que "isto está agora demonstrado e, portanto, acabei", é normalmente o antepassado no sangue e no instinto do emdito que, do seu ponto de vista, aprova "o trabalho feito" - a fé na demonstração é apenas um sintoma daquilo que desde o tempo antigo, numa geração trabalhadora, é considerado como "um bom trabalho" (FW, 348).

Em conclusão, intervindo no debate relativo ao papel dos intelectuais, que

se espalha a partir pelo menos de 178 9, mesmo retomando motivos amplamen­

. te desenvolvidos na cultura do tempo, Nietzsche se destaca nitidamente pelo 1 296 Schopenhauer, 1 976-82 b, p. 767 e p. 666.

esforço de reconstruir a longa, longuíssima história por trás da figura do intelec­ tual subversivo . Como em Burke, Constant e tantos outros expoentes da tradi­ ção liberal, é afirmado também aqui o absoluto primado dos intelectuais propri­ etários: mas a categoria econômica e sociológica tende agora a carregar-se com significados ulteriores, que investem contra a esfera mais propriamente cultural e moral . Na vertente oposta, os intelectuais plebeus e cheios de resentiment, os pedintes da pena e os Pugatchov acadêmicos, dos quais falam respectivamente Burke e Maistre, se tornam os chandala, com recurso a uma categoria que remete a países e culturas extraeuropeias. A história e a cultura mundiais são abrangidas, com um olhar unitário, e este conjunto é inserido no âmbito de uma "economia" onicompreensiva da realidade.

6. A revolução como doença, degeneração e décadence A revolução enquanto tal, cujo espectro continua a agitar a Europa, mais que seus promotores e protagonistas, é que constitui uma doença. Essa é a tese também de Comte, que convida a contrastar esta espécie de "doença crônica", a "inquietação quimérica", as "esperanças quiméricas".1297 Junto com o diag­ nóstico da doença, surge a preocupação, que remete de novo a Nietzsche, da sua difusão entre os "proletários", tanto mais porque está em ação uma obra de "excitação contínua, sistematicamente dirigida para as paixões relativas à sua condição social". 1298 Essa é a doença da qual são acometidos certos intelectu­ ais, comprometidos com "uma estéril agitação metafisica" e propensos a aco­ lher ·'todas as aberrações que diariamente surgem da nossa anarquia mental"; ela corre o risco de se transformar, graças também à ação nefasta dos ')or­ nais", num ·'contágio metafisico".1 299 Tanto na vida dos indivíduos como dos povos, a doença em questão signi­ fica uma fixação ou uma regressão a um estágio inferior colocado, no âmbito da "evolução mental, individual ou coletiva, entre a intãncia e a virilidade". 1300 Essa é também a opinião do Nietzsche do período "iluminista" e "positivista": "Como o homem ainda hoje raciocina em sonho, assim a humanidade racioci­ nou também cm vigília por muitos milênios", e "assim, segundo os relatos dos viajantes , os selvagens fazem ainda hoje". Sim, "no sonho continua a agir em 1 297

Comte, 1 985, pp. 1 4, 1 06 e 1 10. Comte, 1 985, p. 10 1 . 1299 Comte, 1 985, pp. 100 e 1 1 1 . 1 30° Comte, 1985, p. 14. 1 298

nós essa antiquíssima parte de humanidade, pois ela é a base sobre a qual se desenvolveu e ainda se desenvolve em todo homem a razão superior; o sonho nos conduz para estágios remotos de civilização humana e fornece o meio para compreendê-los melhor" (MA, 1 3). De modo análogo argumenta Le Bon, segundo o qual a revolução repre­ senta o "triunfo" de "instintos atávicos", dos "instintos da barbárie primitiva", dos "instintos do estado selvagem ancestral", ou dos "instintos naturais trans­ mitidos ao homem pela sua animalidade primitiva";13º1 e de modo análogo ar­ gumenta também Taine, pelo menos o Taine interpretado pelo psicólogo das multidões, o qual atribui ao historiador francês o mérito de ter finalmente escla­ recido o significado e o decurso da revolução, a partir da sua regressão num "estágio selvagem primitivo".1302 Compreende-se então que a pedra angular para a compreensão das revoluções não seja a sociologia ou a economia políti­ ca, nem sequer propriamente a história. Exatamente porque não são as contradições objetivas que desencadeiam as revoluções, agora é a psicologia ou a psicopatologia que é chamada a explicá-las. Ouçamos Le Bon: as grandes crises históricas nos colocam na presença "muito frequentemente de conflitos de forças psicológicas" que "devem ser estudados com métodos tirados da psicologia".1303 E agora demos a palavra a Nietzsche: "A psicologia é agora de novo o caminho para os problemas fundamentais"; ela deve ser ''reconhecida senhora das ciências, ao serviço e à preparação das quais está destinada a existência das outras ciências" (JGB, 23). Segundo Le Bon, Taine teve o mérito de "acabar com" o "antigo prestígio" da historiografia tradi­ cional da Revolução Francesa; 1304 mas também, segundo Nietzsche, ao historia­ dor francês cabe o mérito de ter explicado as perturbações na França a partir das paixões e da história da "alma moderna"(in.fra, cap. 28 § 2). E como para o filósofo alemão, também para Le Bon não há modo mais eficaz para liquidar um autor do que demonstrar a sua incapacidade de penetração psicológica; é assim que ele procede a propósito de Rousseau, "estranho a toda psicologia". 1 305 A partir da afirmação da incurabilidade da doença diagnosticada, confir­ mada pelo seu ressurgimento periódico, revela-se fácil a passagem da psicolo­ gia para a fisiologia. Assim também em Nietzsche: "Os meios de conforto in­ ventados pelos mendigos e pelos escravos são pensamentos de cérebros mal Doi

Le Bon, Lc Bon, Do> Le Bon, Do4 Le Bon, Do5 Le Bon, Do2

1 925, pp. 56-7 e 63. 1 925, p. 1 1 3. 1 925, p. VII . 1 925, p. 1 1 2. 1 925, p. 1 44.

nutridos, cansados ou hiperexcitados. Com esse critério é preciso julgar o cris­ tianismo e o espírito visionário (Phantasterei) socialista» (IX, 66). A tendência a conferir um fundamento fisiológico para o diagnóstico psicopatológico está presente também em Humano, demasiado humano . "O demônio de Sócrates talvez seja apenas uma dor de ouvido" (MA, 1 26), e de qualquer modo, uma vez superados os caprichos metafísicos, "com toda tranquilidade se deixará para a fisiologia e para a história da evolução dos organismos e dos conceitos perguntar como a nossa imagem do mundo pode diferenciar-se tão fortemente da essência do mundo conhecida racionalmente" (MA, 1 O). Somos de novo reconduzidos a Comte. Não é por acaso que, depois da revolução de 1 848 e em polêmica com ela, aderiram à Société positivista médi­ cos, animados por uma convicção precisa: a agitação revolucionária, ou a "de­ composição" e "a doença social", que não cessam de alastrar-se, exigem um enérgico · "tratamento médico" (médication); é um desafio que só pode ser enfrentado graças à 'regeneração da arte médica". 1306

Argumentando de tal modo, esses médicos são fiéis ao seu Mestre, se­ gundo o qual "as aberrações metafisicas do último século" poderão ser supera­ das de uma vez para sempre só graças à "subordinação fundamental à biolo­ gia" por parte da "sociologia positiva" e ao desenvolvimento da "fisiologia ce­ rebral".13oi E agora ouçamos Nietzsche: Os homens que agora são cruéis devem ser por nós considerados como graus residuais de civilizações precedentes [ ... ]. São homens atrasados cujo cérebro, para todos os casos possíveis no decorrer do processo hereditário, não continuou a desenvolver-se tão delicada e mulliformemente. Eles nos mostram o que éramos todos [ . . . ] . No nosso cérebro devem encontrar-se também os sulcos e as dobras que correspondem àquele modo de sentir, assim como se diz que na forma de alguns órgãos humanos se encontram lembranças do nosso estado de peixes (MA, 43).

Em conclusão, podemos sintetizar assim os pontos de contato que existem, apesar de tudo, entre Nietzsche de um lado e Comte e Le Bon do outro. Por todo um período histórico, salvo alguma exceção isolada e parcial, a revolução era condenada por sua carga de irreligiosidade e ateísmo; agora essa acusação co­ nhece uma verdadeira reviravolta: a revolução se toma sinônimo de messianismo ou de estágio teológico-metafisico. Em todo caso, é o sintoma de uma doença. Mas, a essa altura, Comte, Nietzsche e Le bon acabam por colocar-se numa 1 3º6 ln Larizza, 1999, pp. 426-7.

1 307 Comtc, 1 979, vol. 1, pp.

303 e 334.

linha de continuidade em relação a uma tradição de pensamento, a qual denuncia nas desordens que se verificam em Paris a irrupção do delírio ou da loucura, da peste ou da varíola, e, em todo caso, de uma doença da alma ou do corpo. É contra essa tradição que Hegel polemiza: bem longe de poder ser assimilada a ''uma anomalia e um paroxismo doentio transitório" - como pretendem os teóri­ cos da Restauração - a crise revolucionária tem em seu fundamento contradi­ ções objetivas ; estas constituem :'o princípio de todo movimento, movimento que não consiste senão num explicar-se e mostrar-se das contradições". 1308 Se na historiografia da Restauração a "doença" revolucionária é em grande parte uma metáfora, na segunda metade do Século XIX, em consequência dos desenvolvi­ mentos da psicologia, da psiquiatria, da antropologia criminal, da fisiologia, a me­ táfora tende a tomar a forma de um diagnóstico "científico". A partir desse pano de fundo histórico podemos compreender melhor a evolução de Nietzsche. Quem faz pairar uma terrível ameaça sobre a civiliza­ ção é, nos anos de O nascimento da tragédia, a "classe bárbara dos escra­ vos" que depois se transforma nos selvagens ressuscitados do período iluminista, para se tomar, enfim, o conjunto dos mal sucedidos e dos fracassados da vida. Quem guia essa massa propensa à revolta são intelectuais intrinsecamente doentes. Se o elemento de continuidade é representado pela denúncia da doen­ ça revolucionária, o que muda é o diagnóstico dessa doença e a descoberta do antídoto. Na primeira e segunda fases, o período dito "metafisico", ou melhor, aquele que o Nietzsche ·'iluminista" define como "metafisico", a doença revo­ lucionária é sinônimo de hipertrofia da razão e da consciência histórica e, por­ tanto, o antídoto é representado pelo instinto, pela sabedoria instintiva e pelo mito supra-histórico. Na fase ''iluminista", a doença revolucionária é sobretudo a Schwarmerei a que se entregam os Phantasten religiosos e políticos, ou seja, "homens metafisicos e artísticos", que ainda não conseguiram a "virilidade" alcançada pelo resto da humanidade (MA, 3); eles revelam que são acometidos pelo primitivismo próprio de quem ficou "atrás, nos estágios remotos de civiliza­ ção humana" e no nível dos ·'selvagens" {MA, 1 3). A tudo isso podem e devem ser opostas as luzes e a ciência. Na última fase, os revolucionários se apresentam como os mal sucedidos e os fracassados da vida; quem explica a sua ideologia e o seu comportamento, além da psicopatologia, é um componente fisiológico que, às vezes, parece transmitir-se hereditariamente (não é por acaso que além de delírio e alucinação, agora Nietzsche fala também de epilepsia). O antídoto é agora procurado não só na liquidação de uma ideologia niilista, mas também na promoção de medidas que podem compreender a profilaxia nox Hegel, 1969-79. vol .

VI, pp. 75-6.

eugênica ou remédios ainda mais drásticos . O filósofo se refere a outras perso­ nal idades europeias, além de Galton, autorizadas do campo médico e eugênico, como Claude Bernard e Charles Féré (XIII, 250, 456 e passim); este último ocupa um papel de primeiro plano na imprensa empenhada em denunciar e combater com todos os meios, também com os mais brutais, a chaga da "dege­ neração".1309 Tanto de Galton como de Féré, Nietzsche transcreve longos tre­ chos, de modo que o seu texto se apresenta às vezes, sobretudo no "biênio final " da sua vida consciente, como uma espécie de "palimpsesto": 1 31º raspada a primeira escrita, surgem as denúncias da "degeneração" que atravessam em profundidade a cultura europeia e ocidental do fim do Século XIX. Em cada etapa da evolução de Nietzsche, o profeta revolucionário tem uma relação alterada com a realidade e, nas suas diferentes configurações, se apresenta, nas primeiras duas fases, como o "fanático da lógica e da dialética" (Sócrates), em seguida, no período iluminista, como o visionário, enfim, como o niilista incapaz de reconhecer-se na realidade e na vida. Com respeito ao perí­ odo iluminista, a novidade da última fase consiste sobretudo na tomada de cons­ ciência de que a ciência a que faz referência nada tem a ver com aquela cara a Comte, toda atravessada por um pathos progressista e humanitário. Ao contrário, a ciência tomada em con sideração por N ietzsche é aquela cara ao socialdarwinismo, com uma diferença significativa: agora, de modo nítido se afir­ ma que a evolução em curso tende a desembocar no triunfo dos mal sucedidos.

7. Da inocência das instituições à "inocência do devir " Os revolucionários intelectuais e revolucionários enquanto tais se revelam tomados pela loucura, ou por uma doença ainda pior, em primeiro lugar pelo fato que, ao fugir com horror do real e perseguir sonhos de regeneração social, inventam culpas e responsabilidades inexistentes. Segundo Malthus, não tem sentido censurar as "instituições humanas" por uma miséria que é o "resultado necessário e inevitável das leis da natureza". 131 1 Em termos análogos se expri­ me Burke, segundo o qual "as leis do comércio", reveladas pela economia política, "são as leis da natureza e, por conseguinte, as leis de Deus". 1312 Ao apresentar o whig inglês ao público alemão, Gentz sublinha, por sua vez, que o 13º9 Pick, 1989, pp. 3 1 -2. Cf. Lampl, 1986 (no que diz respeito a Féré) e Haase, 1989 (no que diz respeito a Galton). 1 3 1 1 Malthus, 1 977, p. 99. 1 m Marx-Engels, 1955, vol . XXIII, p. 788, nota. 131°

"bem-estar dos povos" não está exatamente ligado a determinadas instituições políticas, à "forma de governo" e à "constituição política". 1313 Depois do estou­ ro da Revolução de Fevereiro, Tocqueville a considera infectada de socialismo, pelo fato de que nela estão fortemente presentes "as teorias econômicas e políticas" as quais querem levar a "crer que as misérias humanas são obra das leis e não da Providência, e que se poderia suprimir a pobreza mudando a ordem social ". 131 4 Bagehot tecê o elogio daquelas classes que, mesmo na im­ possibilidade de "levar uma vida digna de um homem", não se deixam arrastar pela agitação, "não reconduzem sua miséria à política". 1315 Infelizmente, pou­ co a pouco, também do outro lado do Mancha - lamenta Spencer - se difunde a superstição que entrega as esperanças de mudança a "instituições eficien­ tes" e perde de vista o papel decis ivo do indivíduo.1 31 6 Enquanto sobe o protes­ to de massas até então à margem da história e da política, a cultura do tempo está fortemente empenhada em acentuar a inocência do sistema político-social: as causas da miséria em massa são buscadas - observa o jovem Marx - "em parte na natureza, que é independente dos homens, em parte na vida privada, que é independente da administração, em parte em casos acidentais, que não dependem de ninguém". 1317 Na Alemanha, Schopenhauer brada contra os "demagogos" culpados de responsabilizar "governos, leis e instituições públicas" por aquela "miséria" que está, porém, ·'inseparavelmente ligada com a existência humana enquanto tal".13 18 É um motivo bem presente também em Nietzsche: aqueles que falam de ·'profunda injustiça" no sistema social simplesmente "imaginaram respon­ sabilidades e formas de vontade que não existem de nenhum modo". Não, "não é lícito falar de uma injustiça, nos casos em que não estão presentes as condições preliminares para a justiça e a injustiça" (XIII, 73-4). Até aqui não aparecem diferenças importantes com respeito à tradição liberal. Ainda nos nossos dias, Hayek não se cansa de repetir que é absurdo falar de justiça ou injustiça "social" diante de um estado de coisas que não é o "resultado da vontade consciente" de alguém; diante de um estado de coisas que, não tendo sido "deliberadamente produzido pelos homens, não possui nem inteligência, nem vi rtude, nem justiça, nem algum outro atributo dos valores 1313 Gentz, 1 836-38, vol. 1, p. 9. 1 3 14 Tocqueville, 195 1 , vol. XII, pp. 92-4 e p. 84. 1 3 15 Bagehot, 1 974 b, p. 3 80. m 6 Spencer, 198 1 , p. 69. 1 3 1 7 Marx-Engels, 1955, vol. 1, p. 40 1 . 1 3 1 8 Schopenhauer, 1976-82 c, vol. V, p. 306; é um tema que volta também na conversa privada.

humanos".1319 Quem alimenta a busca de ')ustiça social" são na realidade a "inveja" e os ·'instintos rapaces". 1320 Ou então, para citar desta vez Mises, é o "ressentimento contra as condições daqueles que tiveram maior sucesso". Na realidade, são os fra­ cassados da vida que querem pôr em discussão o sistema existente em nome de ideais vagos e hipócritas de justiça: "Eles sublimam o seu ódio numa filosofia, a filoso­ fia do anticapitalismo, para não ouvir a voz de dentro, que diz a eles que o fracasso pessoal deve ser atribuído exch.tsivamente à própria responsabilidade".1321 Até a linguagem lembra Nietzsche, ao qual, aliás, se refere explicitamente o autor de uma monografia pesada sobre o papel nefasto da "inveja" ou do ressentiment na sociedade e na história. O sociólogo contemporâneo, do qual se fala aqui, cita longamente, com aprovação e até com satisfação, 1322 a acu­ sação terrível que Genealogia da moral pronuncia contra os "homens do ressentiment". São todos ''seres fisiologicamente infelizes e fracassados"; "toda essa ralé terrestre que treme de vingança subterrânea, inexaurível, insaciável nos seus acessos contra os felizes" só se sentirá satisfeita quando conseguir envenenar a "consciência dos felizes, de modo que estes comecem algum dia a se envergonhar da sua felicidade e digam talvez entre si : ser feliz é uma infâ­ mia! existe miséria demais ! " (GM, III, 14) . E a consonância com Nietzsche não termina aqui. A suspeita com que Hayek olha o cristianismo é profunda. "G rande parte do clero de todas as igrejas cristãs" tomou hoje emprestado do socialismo a aspi ração à ')ustiça social", de modo que essa palavra de ordem, ruinosa, tomou-se "a característi­ ca peculiar do homem bom e a marca reconhecida da posse de uma consciên­ cia moral". Infelizmente, "não há dúvida de que as crenças religiosas e morais podem destruir uma civilização"; "às vezes figuras de santos, cujo altruísmo está fora de discussão, podem se tomar graves ameaças àqueles valores que a gente mesmo considera inabaláveis". 1323 E de novo se tem a impressão de escutar Nietzsche. Mas a diferença mais importante reside no fato de que Hayek não tem a coragem e a honestidade intelectual do grande filósofo. Não ousando proclamar abertamente o seu horror pelo cristianismo, limita-se a cen­ surar as ''igrejas cristãs" do nosso tempo, contaminadas de socialismo, pelo fato de substituir "uma promessa de justiça divina por uma temporal".1324 Mas rn9 Hayek, 1 986, pp. 27 1 e 509.

1320 Di•

1322

Hayek, 1986, p. 304.

Mises, 1 988, p. 32.

Schoeck, 1 980, pp. 207-8. Hayek, 1 986, pp. 266-8. 1 324 Hayek, 1 986, p. 266.

1323

também esse discurso ulterior nos remete a Nietzsche, que pelo menos reco­ nhece um mérito à igreja cristã do seu tempo, o de desviar ou procurar desviar o ressentiment proletário, de modo a tomá-lo política e socialmente inofensivo. Aquele que sofre é persuadido a considerar-se culpado e responsável pela condição de miséria que sofre (supra, cap . 14, § 5). O sociólogo contemporâ­ neo anterionnente citado se refere explicitamente a esse trecho de Genealogia da moral para afinnar que o b-Om ordenamento da sociedade pressupõe uma condição essencial: se quiser buscar uma responsabilidade, "quem se crê preju­ dicado" deve atribuí-Ia a si mesmo. 1 325 Embora amplamente difundido na tradição liberal, o motivo da inocência das instituições conhece em Nietzsche um processo de radicalização. E não só porque se toma mais áspera agora a polêmica contra aqueles que agitam uma suposta questão social: eles são animados pela "vontade de eliminar o mau tempo - talvez por compaixão pelos pobres" (EH, Porque sou um destino, 4). Ainda mais impor­ tante é a dilatação do alvo da polêmica. Não são apenas os pregadores da igualda­ de que inventam responsabilidades inexistentes, mas também os pregadores da paz: incapazes de reconhecer-se na realidade, uns e outros procuram reagir a essa incapacidade, imaginando culpas políticas e morais. Por outro lado, querer eliminar o negativo da realidade, para perseguir o ideal do bem-estar e do conforto para sempre e para todos, é uma atitude não só inútil, mas também filisteia. Eis que o alvo da polêmica se amplia mais. Já Schopenhauer, ao zombar dos projetos e dos sonhos de transfonnação ou palingenesia da sociedade, tem em mente não só aqueles que aguardam o progresso pelas "constituições e legisla­ ções", mas também aqueles que olham cheios de esperança para "máquinas a vapor e telégrafos" (supra, cap. 1 , § 4). Analogamente, além do que no movi­ mento revolucionário, o jovem Nietzsche surpreende o "otimismo" filisteu nos "economistas políticos"; os economistas, junto com a "produção na máxima quan­ tidade possível", pensam também poder realizar "felicidade na quantidade máxi­ ma possível" {VII, 378). Dado que o "otimismo liberal" se difunde na esteira da "moderna economia do dinheiro" (VII, 346), para pôr fim ao ruinoso e incessante desvio revolucionário é necessário liquidar o "otimismo das teorias políticas e econômicas" no seu conjunto (VII, 6 1 ). Confiar a realização dos sonhos de rege­ neração mais ao desenvolvimento das forças produtivas do que ao triunfo da revolução política e social não muda nada: estamos sempre na presença de um ideal filisteu; compreende-se então a denúncia da "hipocrisia da economia políti­ ca" (XI, 285). Por outro lado, enquanto ficar em pé a esperança de que a econo­ mia política possa eliminar ou reduzir sensivelmente a miséria, a busca das resms

Schoeck, 1 980, p. 208.

ponsabilidades pela miséria realmente existente não cessará de se difundir (se não a sua distribuição "injusta'', pelo menos o desenvolvimento malogrado da riqueza será posto na conta das instituições políticas). Por isto "o otimismo eco­ nômico" é condenado até o fim por Nietzsche (XII, 463). Agora a tese da irresponsabilidade das instituições se dilata desmedida­ mente, abrangendo o mundo humano no seu conjunto e o processo histórico, até o proces so vital na �ua totalidade : é a a firmação da "compl eta irresponsabilidade e inocência de cada um" (WS, 8 1 ), é a inocência do devir.

8. Da dismal science à "gaia ciência " A compreensão e a legitimação da organização social existente são entre­ gues por Malthus a uma economia política empenhada em demonstrar a inevitá­ vel inadequação dos recursos com respeito às necessidades e aos desejos do homem: "Das leis inevitáveis da nossa natureza resultou que alguns seres huma­ nos são destinados a sofrer por necessidade. São estas pessoas infelizes que na grande loteria da vida tiraram o billlete perdedor".1326 A mesma argumentação e a mesma metáfora voltam em Nietzsche: "Consolação para aqueles que mor­ rem! Considerar a suas paixões como um bilhete de loteria sem sorte. Observar que a maior parte das combinações devem falliar, que morrer é tão útil quanto devir. Nenhum remorso, o suicídio como aquilo que abrevia" (IX, 604). O que distingue os dois textos é o radicalismo e a brutalidade maior do segundo. Ao ideal revolucioná.rio brilhante mas enganoso da felicidade Malthus opõe a .. cor melancól ica" e as "tintas escuras" da "vida humana". 1 327 A posição do jovem Nietzsche não é diferente, ele censura os modernos por alimentar fanta­ sias a partir de um presumido "valor da existência ( Werth des Daseins) (WL, 1 : L 876) que eles pretenderiam tomar feliz para todos . Convém deter-se um pouco sobre a expressão utilizada aqui. Partindo exatamente da afirmação en­ fática do "valor da vida" (Werth des Lebens), Dühring desejaria abolir a misé­ ria das classes populares a fim de generalizar aquele "banquete da vida", 1328 que, ao contrário, era destinado a poucos, segundo Malthus. Exatamente en­ quanto ciência da limitação dos recursos e das privações que se seguem, a economia pol ítica se torna em Carlyle a dismal science .1 329 Aos olhos do ,

m6 Malthus, 1 977, p. 103. Malthus, 1 977. p. 5 . im Dühring, 1 88 1 a, p. 23. m9 Carlyle 1 983, pp. 43 1 e 57 1 .

1m

Nietzsche maduro, esta visão é acometida de filisteísmo: o véu de tristeza com que está cercada é o desapontamento que deriva da constatação da irrealizabilidade do ideal de conforto para sempre e para todos. Ademais, os sentimentos de melancolia e resignação projetados sobre a existência impedem a aceitação alegre e transbordante da vida. Não se pode e não se deve resig­ nar-se a esta condição: "talvez ainda haja futuro também para o riso!"; há necess idade de uma "ciência alegre", no âmbito da qual "o riso" esteja "unido à sabedoria" (FW, l ) . Ao s e configurarem como as leis da "grande economia do Todo", as leis da economia política acabam depois reforçando a sua inevitabilidade. Mas não há motivo para tristeza, com a condição, é claro, que se deixe para trás toda forma de filisteísmo ou de fraqueza feminina. Uma vez tomada consciência da não imputabilidade das instituições pela miséria em massa, da inocência do devir, não é mais preciso referir-se à limitação dos recursos para superar com­ plexos de culpa e sentido de pecado e gozar de modo pleno a existência. O lugar da dismal science é ocupado agora pela "ciência alegre" (frohliche Wissenschafi). Embora esta expressão e aquelas equivalentes (ciência ale­ gre e saber alegre) Nietzsche as deriva de Herder, que faz referência à cultu­ ra provençal, 1330 a problemática enfrentada pelo filósofo se refere ao debate em curso a nível europeu sobre a economia política e sobre a questão social . A nova ciência se diferencia da antiga também para o interlocutor políti­ co-social ao qual ela se dirige. Segundo Malthus, era necessário transmitir a dismal science em primeiro lugar para as classes populares; a economia polí­ tica devia tornar-se "um objeto de ensinamento popular": graças a ela os po­ bres compreenderiam que a causa da sua miséria havia de ser procurada na natureza madrasta ou na sua imprevidência individual.1331 Mas esta é a opinião do próprio Tocqueville, o qual julga necessário difundir entre as classes operárias [ ... ] algumas noções, entre as mais ele­ mentares e mais certas, da economia política que as faça compreender, por exemplo, o que de pennanente e necessário há nas leis econômicas que regem a taxa dos salários; porque tais leis, sendo de algum modo de direito divino, enquanto provêm da naturez.a do homem e da própria estrutura da sociedade, são colocadas fora do alcance das revoluções. i m

A "ciência alegre", porém, se dirige ao "senhor", para que não se abando­ ne à ··doentia sensibilidade e suscetibilidade da dor". Ele é chamado a resistir mo Hcrder, 1978, p. 37.

133 1 Malthus, 1 965, pp. 50 1 -2, nota. im Tocqueville, 195 1, vol. XVI, p. 24 1 .

ao .. culto do sofrimento" próprio do mundo moderno, a não se deixar impressi­ onar pela "repulsiva falta de medida nos lamentos". É a "essa novíssima espé­ cie de mau gosto", que se alastra entre as massas populares e entre os intelec­ tuais "visionários" ligados a elas, que se opõe a "ciência alegre" (JGB, 293). Ela é bem consciente dos custos sociais e humanos exigidos pela "grande eco­ nomia do Todo" e pela civilização, mas não se deixa perturbar. Com respeito ao final elo Século XVIII, quando o ensaio de Malthus apa­ rece pela primei ra vez, o elemento de novidade é constituído pelo crescimento do movimento operário e por correntes socialistas ou socializantes . Estas, bem longe de se deixarem persuadir pelo discurso acerca da "loteria", denunciam a "exploração" implícita, segundo a análise de Marx, na "apropriação" capitalista da ..mais-valia" operária. E, agora, leiamos Nietzsche: A vida é essencialmente apropriação, violação, dominação de tudo o que é estranho e mais fraco, opressão, dureza, imposição das formas próprias ou, pelo menos, no mais moderado dos casos, exploração - mas para que finali­ dade se deveriam sempre usar exatamente estas palavras, sobre as quais há tempo imemorável foi impressa uma intenção caluniosa? (JGB, 259).

Ao rejeitar as acusações dirigidas ao sistema existente, o filósofo alemão se refere a uma lei geral da vida. E mais uma vez ocorre a passagem da econo­ mia política para a metafisica: Hoje se devaneia por toda parte, até sob disfarces científicos, sobre as con­ dições do futuro da sociedade, da qual deverá desaparecer o seu "caráter de exploração" - isto soa aos meus ouvidos como se fosse prometido inventar uma vida que se abstivesse de toda função orgânica. A "exploração" não é própria de uma sociedade corrompida ou imperfeita e prinútiva; ela faz parte da essência do vivente, enquanto função orgânica fundamental, é uma consequência daquela vontade característica de poder, que é exatamente a vontade da vida (JGB, 259).

Quando cita este trecho, Mehring não tem dúvidas : é "a filosofia do capi­ talismo", é a visão do mundo cara ao "grande capital explorador".1333 Há um limite neste juízo: a tradução em termos metafísicos de uma categoria econômi­ ca e política comporta um elemento ainda que parcial de separação com res­ peito à imediatez econômica e política, que é preciso considerar. Mas, bem mais do que Mehring, estão longe da verdade os intérpretes atuais, propensos a imergir a categoria em questão numa aura rarefeita sem nenhuma relação com im

Mehring, 1 96 1 a, vol. XIII, pp. 165 e 160.

a realidade e os conflitos político-sociais . Não é só Marx que fala de "explora­ ção", mas também autores bem conhecidos de Nietzsche. Se Dühring, toman­ do posição a favor dos excluídos do "banquete da vida", se empenha na luta contra .. a exploração dos não-proprietários por parte dos proprietários", 1334 Heine atribui como mérito da escola de Saint-Simon o fato de ter cunhado "a bela fórmula" de condenação da "exploração do homem sobre o homem".1335 Mas para Nietzsche, que vimos reconhecer a realidade da "mais-valia", não M dúvidas: a aspiração socialista a superar o mundo real da "exploração" e da ··opressão, isto é, da desigualdade, da hierarquia, da escravidão nas suas diversas formas, se coloca numa linha de continuidade com a pregação cris­ tã de condenação do vale de lágrimas; estamos na presença de duas expres­ sões diferentes de niilismo, de fuga do mundo da vida (XIII, 220). E, de novo,

como a categoria de "exploração", também a crítica desta categoria é inserida num contexto decididamente mais amplo, que transcende ou desejaria trans­ cender a imediatez econômica e política.

1 334 Dühring, 1 88 1 a, pp. 59 e 23. 1 335 Heine, 1 969-78, vol. II, p. 677.

21 POLÍTICA E EPISTEMOLOGIA ENTRE LIBERALISMO E " RADICALISMO ARISTOCRÁTICO " 1. Epistemologia, defesa do indivíduo e crítica da revolução "tradução" metafisica dos conflitos e dos debates políticos do tempo

A anda junto com o seu aprofundamento histórico e teórico. No centro

das atenções, junto e entrelaçado com a questão social, estão o ciclo revolu­ cionário e as reivindicações e as esperanças de resgate que o alimentam. Isso vale tanto para Nietzsche como para a cultura alemã e europeia do tempo. É na base da crítica da revolução que acontecem a adesão juvenil à filosofia de Schopenhauer (inimigo implacável do "otimismo") e o encontro juvenil com Wagner e com o movimento nacional liberal . Na sua crítica, po­ rém, Nietzsche vai bem além dos nacional-liberais alemães e do liberalismo antidemocrático que se difunde na Europa na onda da reação contra a revolta operária de j unho de 1 848 e a Comuna de Paris. É um radicalismo que, mais ainda que nas tomadas de posições políticas imediatas, se manifesta no esfor­ ço de liquidar a epistemologia, a visão histórica, a visão do mundo no funda­ mento do projeto revolucionário. Pode ser útil partir de Hegel, o qual lê assim o ciclo revolucionário que marca o ato de nascimento do mundo contemporâneo: depois de ter começado a agir já no curso da revolução americana, "o princípio da universalidade dos princípios (allgemeine Grundsatze) se reforçou no povo francês e provocou a revo l u ção " . 1 33 6 Significativamente, de modo não diferente se exprime Tocqueville, para quem "as grandes ideias gerais [ . . . ] anunciam a aproximação de uma subversão total da ordem existente".1337 Na França das incessantes convulsões revolucionárias "a paixão pelas ideias gerais" parece ter-se tornado "tão desenfreada que qualquer motivo é bom para satisfazê-la". 1338 Respeita­ das as diferenças no juízo de valor, tanto para Hegel como para Tocqueville a

1336 Hegel, 1 9 19-20, p. 920. 1337 ln Tocqueville, 1 95 1 , vol. V, 2, p. 39. 1338 ln Tocqueville, 195 1 , vol. 1, 2, p. 21 {DA, cap. II, 1, 3).

universalidade é a revolução ! E a universalidade é a revolução pelo fato de que - como nota o filósofo alemão - a categoria de Allgemeinheit remete, em última análise, à categoria de égalité . 1339 Poder-se-ia dizer que, nesses anos, a batalha política tende a ser travada também no plano epistemológico. Que sentido tem falar de direitos do homem enquanto tal? Corresponde uma realidade ao conceito universal de homem? Qual é, portanto, o estatus d9s universais? A crítica da revolução implica a crítica da universalidade . Sob certos aspectos, o balanço histórico de Nietzsche se apresenta como a extrema radicalização do balanço feito, depois da Revolu­ ção Francesa, por setores liberais e conservadores. Vejamos de que modo, na onda da enorme impressão provocada pelo colapso do Antigo Regime na Fran­ ça, enquanto as revoltas operárias de Lyon durante a monarquia de Julho evo­ cam a ameaça de uma onda revolucionária nova e mais terrível, Tocqueville sintetiza o seu programa epistemológico-político: Nos nossos dias, tudo o que eleva a ideia de indivíduo é sadio. Tudo o que confere uma existência separada à espécie (espece) e engrandece a noção de gênero (genre) é perigoso. O espírito dos nossos contemporâneos já corre por si mesmo nessa direção. A doutrina dos realistas (la doctrine des réalistes) introduzida no mundo político leva a todos os abusos da democra­ cia: é ela que facilita o despotismo, a centralização, o desprezo pelos direitos particulares, a doutrina da necessidade, todas as instituições e todas as doutrinas que permitem que o corpo social domine os homens e que façam da nação um todo e dos cidadãos um nada. 134º

Por outro lado, já em Constant podemos ler a celebração das categorias da individualidade, da peculiaridade, da variedade em contraposição à sufocan­ te "uniformidade" censurada ao movimento jacobino e democrático. 1 341 É um tema que conhece ampla difusão na Alemanha (pensemos num grande crítico da revolução como é Adam Müller) 1342 e que, do outro lado do Atlântico, se manifesta com modalidades diferentes na cultura e na imprensa empenhada em defender a peculiar institution, ou seja, o instituto da escravidão, contra a cruzada equalizadora dos abolicionistas e do Norte. O texto de Tocqueville é particularmente interessante: 1 ) institui uma rela­ ção entre âmbito epistemológico e âmbito ético-político; 2) sobre essa base, identifica na tradição revolucionária, que se desenvolve a partir do jacobinismo, 1339 Hegel, 1 969-79, vol. II, p. 491. 134º Tocqueville, 1 95 1, vol. VI, l , pp. 52-3. 134 1 Constant, 1 957, pp. 1014-1020 ( Constant, 1 96 1 , pp. 53-60). 1 342 Losurdo, 1 992, cap. XIII, 2. =

a aplicação no campo político do "realismo" dos universais; ao engolir "realis­ ta" do indivíduo no "gênero" e na "espécie" contrapõe a reafirmação do nominalismo a nível tanto político como epistemológico. É o programa também de Nietzsche. Se Tocqueville se ergue em defesa dos "direitos particulares", Além do bem e do mal censura a modernidade pela atitude de "oposição a toda pretensão particular; a todo direito particular e a todo privilégio" (JGB, 202). Se o liberal francês atribui a tal tendência a responsa­ bilidade de estimular o "despotismo" e a "centralização'', Nietzsche, reforçando a dose, afirma que "oposição ao direito particular", na realidade, "significa oposi­ ção a todo direito". Para Tocqueville é o "corpo social" elevado a "tudo" que engole o indivíduo; do mesmo modo, para Além do bem e do mal, é a "fé na comunidade como redentora" (JGB. 202) . Ao polemizar contra a "doutrina dos realistas'', o liberal francês tem em mente o pathos da nation de revolucionária memória e o socialismo. Nietzsche, por sua vez, se exprime assim: "Em geral, a tendência do socialismo, como a do nacionalismo, é uma reação contra o devir individual. Há dificuldade com o ego, o ego imaturo, louco, e querem pô-lo de novo debaixo de uma redoma" (IX, 5 1 5). A única diferença importante é que, no meio tempo, sobretudo na Alemanha, a "nação" se tomou a palavra de ordem mais ainda dos chauvinistas que dos revolucionários. Vimos a relação instituída por Tocqueville entre política e epistemologia. Em termos análogos, em terra alemã, Heinrich Leo explica as incessantes per­ turbações e o surgimento do espectro do socialismo além do Reno com o "rea­ lismo" próprio da "tendência latino-céltica", propenso a agir "com os conceitos abstratos como se fossem realidade". É preciso opor-se a esse "despotismo dos conceitos abstratos", reafirmando o "nominalismo" próprio da "tendência germânica". 1343 E Nietzsche faz uma profissão de fé nominalista desde o iní­ cio. O nascimento da tragédia faz referência explícita à disputa medieval sobre os universais. Citando e subscrevendo a opinião de Schopenhauer, ele declara que, para usar "a linguagem dos escolásticos", "os conceitos são os universalia post rem"; o concreto é dado por "aquilo que é intuitivo, particular e individual'', enquanto "os conceitos gerais" são "uma abstração da realida­ de'', "contêm apenas formas abstraídas acima de tudo pela intuição" (GT, 1 6; 1, 1 06-7). Mas é legitimo esse processo de abstração? Na realidade, "a natureza não conhece nenhuma forma e nenhum conceito e, portanto, nenhum gênero" (keine Gattungen) (WL, 1, 880). Gattung é o genre ou a espece contra os quais Tocqueville previne na sua polêmica contra a "doutrina dos realistas" própria dos jacobinos e dos socialistas . Nietzsche, porém, tem em mente a 1343 In Kraus, 1 894, p. 1 0 1 7 (carta a Gerlach de 23 de março de 1861).

Revolução Francesa enquanto tal e a sua proclamação dos direitos do homem em nome de um suposto "homem em si" ou "homem absoluto" (CV, 3 ; 1, 776), em nome da "exangue entidade abstrata 'homem"', essa "pálida ficção univer­ sal" (M, 1 05). Agora o nominalismo chega às suas consequências últimas: não só o con­ ceito de homem, mas o conceito enquanto tal comete o erro de "descuidar do que há de individual e de real",.acabando por ''colocar um sinal de igualdade entre o que é desigual" (Gleichsetzen des Nicht-Gleichen) (WL; 1, 8 79-880). Construída como está sobre o conceito de homem, também a ''j ustiça" reivindicada pelo movimento democrático e plebeu avança a absurda preten­ são de "tomar igual o desigual" (GD, Incursões de um inatual. 48). Junto com o conceito, deve ser posto em estado de imputação também o silogismo que, colocando o individual sob o conceito geral, revela que é inspirado pela füria equalizadora própria das naturezas mais medíocres e mais vulgares. Não há dúvida: ·'facadas" plebeias são inerentes ao "silogismo" caro a Sócrates (GD, O problema Sócrates, 7). Ele errou em fazer "'da razão um tirano" (GD, O problema Sócrates. l O), ao absolutizar a demonstração mediante conceitos e raciocínios; mas "aquele que se limita a deixar-se demonstrar tem pouco va­ lor". Não entra nesse âmbito o que de egrégio, de excelente, de fora do comum há nas naturezas superiores (GD, O problema Sócrates 5). A razão iguala e nivela, absorve e engole o individual no universal, do mesmo modo que a revo­ lução. Kant já sublinha, mas no âmbito de um juízo de valor positivo, que a "rigorosa universalidade" (strenge Allgemeinheit), própria da razão, exclui em antecipação ·'toda exceção", 1344 nega o "direito particular" e o "privilégio" que Nietzsche está empenhado em defender em todo nível . É por isso que Além do bem e do mal identifica já no racionalista Descartes o inspirador, com um século de antecipação, da catástrofe que depois se abate sobre a França e sobre a Europa (infra, § 7).

2 . A polêm ica nominalista e a crít ica nietzscheana da inconsequência liberal A partir dessa radicalização extrema da polêmica "antirrealista", aos olhos de Nietzsche a atitude nacional-l iberal e l iberal só pode ser pávida e inconsequente . Isso alimenta depois a polêmica com Strauss. Este não está em condição de livrar-se sequer das ideias que mais imediatamente se referem à D44 Kant, 1900, vol. III, pp. 28-9.

Revolução Francesa: demonstra isto o fato de que, na sua determinação da moral, continua a fazer recurso à ideia da "espécie", ou seja, a um "conceito de homem [sob o qual] são emparelhadas as coisas mais disparatadas, por exem­ plo, o nativo da Patagônia e o mestre Strauss" (OS, 7; 1, 1 95). Estamos na presença de uma contradição de fundo. Privado de rigor lógico e de coragem intelectual, o nacional-l iberal alemão oscila entre nominalismo e realismo. Por um lado, afirma a irredutibilidade do indivíduo à espécie, por outro, refere-se à espécie para constmir a sua moral: Enquanto Strauss deve, por um lado, admitir que dois seres nunca foram plenamente iguais, e que da lei da variedade individual depende a evolução inteira do homem desde o estágio animalesco até o nível do filisteu culto, não lhe custa, por outro lado, nenhum esforço proclamar depois também o inverso: "comporta-te como se não houvesse variedades individuais!" Aon­ de foi parar a doutrina moral de Strauss-Darwin, aonde foi parar a coragem? (OS, 7; 1, 196).

Um significado análogo tem a sucessiva polêmica de Nietzsche contra Renan. O liberal francês tem horror à "massa", 1 34 5 e está empenhado, também, em defender a "'multiplicidade" e a individualidade,1346 mas é, também ele, totalmen­ te inconsequente. Ele queria "unir la science e la noblesse", sem se dar conta de que "la science pertence à democracia" (G D , In cursões de um extemporâneo, 2), que ela "é fundamentalmente democrática e antioligárquica". Portanto, Renan revela uma "absoluta falta de instinto" (XII, 349). A ciência não pode conter a crescente democratização e massificação e a ameaçadora revolta servil, pois se baseia em conceitos culpados, também eles, de tornar igual o desi­ gual e implicar, no plano epistemológico, a mesma tendência ao nivelamento ex­ pressa pela ideia de igualdade no plano político e pela norma moral no plano ético. Trata-se de defender o ''direito particular" não só, como sabemos, da absorção na ··comunidade", mas também - esclarece sempre o mesmo parágrafo de Além do bem e do mal na "moral da piedade comunitária" e na "religião da compai­ xão" (JGB, 202). Sob o odiado realismo revolucionário e socialista a polêmica nominalista de Nietzsche subsume agora não só a ciência, mas também a moral e a religião dominante no Ocidente. A luta contra a categoria de universalidade não pode não levar em consi­ deração o próprio cristianismo, que começou a formular no plano religioso aquelas ideias de igualdade e de homem enquanto tal, depois lidas e agitadas em termos -

1, p. 344. Renan, 194 7, vol. VIII, p. 146.

1345 Renan, 1 947, vol. 1346

políticos pela Revolução Francesa. Não é por acaso que as igrejas que se empenharam frequentemente na batalha abolicionista são culpadas, na opinião de Nietzsche, por derrubar ou rachar irremediavelmente o fundamento impres­ cindível da sociedade. Junto com o cristianismo, deve ser liquidada também a moral, pelo menos a moral de tipo kantiano que, declinada como é no singular, dirigindo-se ao homem enquanto tal e formulando normas absolutamente ge­ rais, acaba sendo ela mesma fundamentada na categoria de universalidade que constitui o pendant alemão da égalité francesa. Nietzsche podia ter feito valer também, em relação a Tocqueville, a acusa­ ção de incoerência e de falta de coragem intelectual feita a Strauss e a Renan. A democracia na América tem acentos críticos com respeito à Inglaterra, onde é tão grande a distância social que senhores e servos se configuram "como duas sociedades superpostas". Dir-se-ia que há "tantas humanidades diferentes quantas são as classes". E assim "se perde de vista a ligação geral que une todas elas no vasto seio do gênero humano (genre). 1 347 O fato é que, nas sociedades aristo­ cráticas, "o pobre realmente não é, propriamente falando, semelhante ao rico; é um ser de outra espécie (espece).1348 Portanto, enquanto, por um lado, no curso da polêmica contra o jacobinismo e o socialismo, invoca o redimensionamento das categorias de espece e genre, por outro lado, Tocqueville apela para estas categorias a fim de tomar distância da aristocracia e da reação; assim o nominalismo consciente cede lugar ao realismo involuntário. O liberal francês se sente obrigado a lutar em duas frentes : "Se as nações aristocráticas fazem uso escasso demais das ideias gerais e ostentam muitas vezes para com elas um desprezo leviano, acontece, ao contrário, que os povos democráticos estão sem­ pre prontos a abusar desse tipo de ideias e a inflamar-se de modo excessivo". 1349 A esse "centrismo" no plano político corresponde uma espécie de centrismo tam­ bém no plano epistemológico: ''O valor das ideias gerais é que permite ao espírito humano emitir contemporaneamente juízos rápidos sobre um grande número de objetos; por outro lado, porém, elas lhe fornecem apenas noções incompletas e lhe fazem sempre perder em exatidão aquilo que lhe dão em extensão". 1350 Na sua crítica da revolução Nietzsche, porém, pretende levar até suas ex­ tremas consequências, no plano epistemológico e no plano político, a batalha anti­ "realista" e, ao fazer isto, acaba investindo também contra aqueles nominalistas medrosos e inconsequentes que são os liberais e os nacional-liberais. 1347 Tocqueville, 134 8 Tocqueville, 1349 Tocqueville, 1350 Tocqucville,

195 1 , vol. 1, 2, pp. 185 e 22 (cap. II, III, 5 e II, 1, 3 ) . 1 95 1 , vol. 1, 1, p. 222 (cap. 1, II, 5). 195 1 , vol. 1, 2, p. 24 (cap. II, 1, 3). 1 95 1 , vol. 1, 2, p. 20 (cap. II, 1, 3).

3. A oscilação de Schopenhauer entre nominalismo e realismo e a ruptura de Nietzsche Nesse contexto podemos inserir também a ruptura com Schopenhauer. Este, à primei ra vista, parece mover-se contra a corrente com respeito ao cli­ ma ideológico dominante na Europa, caracterizado pelo pathos individualista e nominalista. No grande teórico da compaixão assistimos, aparentemente, a uma celebração do ·'gênero" (Gattuntg), imóvel e indiferente às viciss itudes, inclu­ sive o nascimento e a morte, dos seus "indivíduos". 1351 É um âmbito no qual se dissipam não só os conflitos sociais, mas também a pluralidade enquanto tal, se dissolve a contradição, até a própria diferença entre rico e pobre e entre opres­ sor e oprimido, por escandalosa que possa ser a polarização social e por dura e desapiedada que seja a opressão: "O atormentador e o atormentado são a mes­ ma coisa. O primeiro erra ao sentir-se partícipe do tormento, o segundo, ao não se considerar partícipe da culpa" (Schuld). 1 352 Contudo, ao pathos genérico a nível numênico (a esfera do transcendimento e do esquecimento do político) corresponde o pathos nominalista a nível fenomênico (a esfera em que se colo­ cam e se desenvolvem as relações e o conflito político-social). Nesse último nível, a contiguidade entre Nietzsche e Schopenhauer é evi­ dente . Se o primeiro dissolve nominalisticamente a categoria universal de pes­ soa, indivíduo, homem, o segundo submete a um tratamento análogo a catego­ ria de existência humana, à qual é atribuído um significado nitidamente diferen­ te segundo o objeto ao qual faz referência: "Um homem tem um grau de existência (Dasein) dez vezes superior a outro. Existe (da ist) dez vezes mais". Se Nietzsche faz ironia sobre subsumir o patagônio no conceito de homem, Schopenhauer afirma que os "selvagens" (Wilden) estão "só um degrau acima dos macacos empoleirados em suas árvores". E, para ficar apenas no âmbito da Europa, ··a existência do proletário ou escravo, que vive o dia-a-dia sem consciência, está nitidamente mais perto da existência do animal, toda limitada ao presente, do que da nossa". 1353 Para demonstrar a "diferença original de forças espirituais" que existe entre os homens, Schopenhauer insiste no fato de que o "caráter individual" compete só aos homens superiores, enquanto os homens comuns são "produtos em série" (Fabrikware) e, como os animais, totalmente absorvíveis na espécie: ''Ce sont des especes [ . . ]. A maldição da vulgaridade e da generalidade toma o homem semelhante ao animal pelo fato .

135 1 Schopenhauer, 1976-82 b, p. 6 1 7. 135 2 Schopenhauer, 1976-82 a, p. 484 (§ 63 ) . 1353 Schopenhauer, 1 976-82 c, vol. V, p. 698.

de lhe ser concedida essência e existência só na espécie". 1354 Nesse sentido, há correspondência entre plano ontológico e plano epistemológico. De fato "con­ teúdo e extensão dos conceitos estão em relação inversamente proporcional"; a largueza do conceito coincide com a sua pobreza: os conceitos podem estar ordenados "'numa escala, numa hierarquia, do particular ao geral : na extremida­ de inferior, é o realismo escolástico que quase tem razão, na extremidade supe­ rior é o nominalismo".1355 Quanto mais rica é a realidade, tanto menos é atingí­ vel com conceitos gerais. Ou seja, as categorias de gênero e espécie podem servir para definir a massa, mas não o indivíduo egrégio ou deveras genial . Até aqui, gênero e espécie têm sempre um significado univocamente ne­ gativo. O ser genérico e o ser gregário é o homem inferior, o não-indivíduo, a não-pessoa, parte integrante da grei e, portanto, atingível "realisticamente". Mas, assim que reivindicam o seu direito à felicidade e à participação na rique­ za social, os "'produtos em série", que são os proletários, são imediatamente convidados a levantar o olhar para a esfera numênica. Nesse nível, privados de sentido e vulgarmente egoístas se revelam as reivindicações e os direitos parti­ culares, culpados como são de ignorar ou espezinhar a harmonia e a unidade do "gênero'' (agora o termo assume conotação enfaticamente positiva). Assim, por um lado, os privilégios da élite dominante são justificados gra­ ças à individualidade egrégia que compete aos seus membros, elevados desse modo acima da massa e da sua natureza incuravelmente gregária, "vulgar e genérica"; por outro lado, as privações e sofrimentos desta massa são substan­ cialmente anulados pelo fato que o seu sujeito é reabsorvido, a nível numênico, num gênero que abrange os próprios membros da élite dominante: estes últi­ mos, portanto, não podem ser acusados à medida que agora não constituem mais uma individualidade distinta e inseparável da massa. A reabsorção, no nível numênico, do indivíduo no gênero, permite o desenvolvimento sem ser perturbado, a nível do fenômeno, das desigualdades mais destoantes, incapazes de corromper a unidade metafísica do gênero. O realismo (antinominalismo) numênico está em função da justificação do nominalismo fenomênico, que se realiza e se desenvolve sem qualquer obstáculo no mundo político-social . Assim como os liberais e os nacional-liberais, também Schopenhauer não podia deixar de ser inconsequente aos olhos do teórico do radicalismo aristo­ crático. Não é por acaso que é atacada pela polêmica sobretudo a compaixão da qual Nietzsche, com o olhar voltado em primeiro lugar para Rousseau, tem m4 Schopenhauer, 1976-82 c, vol. V, pp. 697 e 70 1 ; Schopenhauer, 1 976-82 c, vol. 1, p. 268 rn 36). Tomei como hendíadis "vulgaridade e generalidade" o termo Gemeinheit. 1355 Schopenhauer, 1 976-82 d, p. 8 1 1 e p. 740; Schopenhauer, 1 976-82 b, p. 77 1 .

muita razão em suspeitar de subversivismo, pela anulação que ela realiza das distâncias entre senhores e fracassados da vida, isto é, pela visão "realista" do gênero humano que ela pressupõe. Só que em Schopenhauer a compaixão, bem longe de ser expressão de contestação da organização político-social, de­ sempenha uma função diretamente apologética, visa restabelecer a unidade do gênero, mas sempre no pressuposto da insignificância e da intangibilidade das desigualdades que marcam o fenômeno, a aparência político-social. É a com­ paixão que permite colher a unidade da própria existência com a "existência de todo ser vivo", anular a ''d(ferença entre mim e o outro", perceber a "identida­ i de metaf sica do querer enquanto coisa em si, apesar da inumerável multiplicidade das suas manifestações". 1356 Significativamente, Schopenhauer se preocupa em opor à "compaixão" (Mitleid) a "inveja" (Neid) que, exatamente como o ressentiment de Nietzsche, é um sentimento cheio de "veneno" e "ódio" para com os mais afortunados ou mais bem sucedidos, e em primeiro lugar para com o "gênio" e com tudo aquilo que não é medíocre; é sinônimo de desejo de vingança. 1357 Se a compaixão celebrada por Schopenhauer implica na superação do dualismo fenomênico entre "o atormentador e o atormentado", e tanto mais ainda entre as diversas classes sociais, a inveja que é objeto de condenação inclui a permanência e o ulterior aguçamento desse dualismo, com o consequente esquecimento daquela unidade do gênero que constitui a realidade no seu significado autêntico e numênico. Desse sem1ão schopenhaueriano devia tomar-se insuportável a Nietzsche, antes ou depois, não só a hipocrisia fundamental, mas também o persistente acento "'genérico" que continuava a ressoar nessa compaixão, embora reduzi­ da esta a instrumento ideológico para condenar a inveja e o "egoísmo" e reco­ mendar "'a resignação ou a negação da vontade". 1358 Nietzsche não pode dei­ xar de olhar com suspeita aquela compaixão que Schopenhauer não hesita em celebrar referindo-se a Rousseau. Este, exatamente nos trechos citados por S chopenhauer, l iga exp licitamente esse senti mento à ideia de espece humaine, 1 359 e nesse caso a ideia de gênero não pretende de modo algum ultrapassar o "fenômeno" político-social , mas está toda invadida pela vontade de modificá-lo. Por isso, Nietzsche tem perfeitamente razão ao identificar em Rousseau uma carga plebeia que depois desenvolve a sua eficácia no processo de radicalização da Revolução Francesa. 1 356 Schopenhauer, 1976-82 d, p. 8 1 1 e p. 740; Schopenhauer, 1 976-82 b, p. 77 1 . 1357 Schopenhauer, } 976-82 c, vol. V, pp. 255-8. 1 358 Schopenhauer, 1976-82 a, p. 553 (§ 70). 1359 Schopenhauer, 1976-82 d, pp. 781 -4; c( Rousseau 1 959, vol . III, p. 1 55 .

Consumando até o fundo a ruptura com o ex-Mestre, e com o seu nominalismo antr0pológico tortuoso e quase vergonhoso de si, A gaia ciência sublinha "o absurdo da compaixão e da ruptura, tornada possível nela, do principium individuationis" (FW, 99). Verifica-se uma virada com respeito a O nascimento da tragédia e à terceira Inatual: estes dois textos se servem exatamente da compaixão schopenhaueriana para teorizar uma "comunidade" dionisíaca que absorve totalmente o indivíduo e o sofrimento individual, cance­ lando portanto qualquer espaço para o protesto do escravo ou da vítima sacrifical da civilização (supra, c ap. l , § 14). Tal solução toma possível a neutralização da questão social, mas a preço caro: a afirmação da "teoria indemonstrável de uma vontade única" inclui de fato a "negação do indivíduo" e, portanto, resulta em contradição irremediável com o radicalismo aristocrático que N ietzsche agora professa.

4. Do nominalismo ao perspectivismo Na cultura e nas publicações do tempo, o tema nominalista da crítica dos princípios universais (e dos direitos universais do homem enquanto tal) desem­ boca frequentemente na celebração do concreto e do imediato . A partir do período "iluminista", Nietzsche toma consciência do caráter problemático e insidioso dessa abordagem . Também o movimento protossocialista faz referên­ cia à concretude e à imediatez. É assim em Feuerbach, que a partir da esquer­ da hegeliana se prepara para aderir à socialdemocracia alemã: "onde terminam as palavras, aí inicia a vida", e a vida exige que "o homem concreto, real" goze da .. liberdade e felicidade". 1360 Não é lícito fechar os olhos diante da imediatez e da inelutabilidade das necessidades materiais: se "o homem é aquilo que ele come", é preciso ter presente que a "fome torna insensíveis a cabeça e o coração".1361 São temas que, com uma linguagem mais intensamente política, encontramos na França. Na sua autodefesa, a essa "palavra abstrata" que é a lei (e o direito de propriedade), Blanqui contrapõe "o grito de fome, levantado por milhares de desventurados" ou "o grito de angústia de uma população fa­ minta". Diante desses "sofrimentos", que se impõem com toda evidência, como poderiam ficar "indiferentes" os "homens de coração"?1362 Trata-se de temas tão amplamente difundidos que ecoam também em personalidades distantes do 1 36° Feuerbach, 1 966, pp. 1 87 e 19 2 . 1 361 Feuerbach, 1 967, pp. 229 e 225. 1 �62 ln Bravo, 1973, pp. 137-9.

compromisso político propriamente dito. Algumas décadas mais tarde, um poe­ ta como Giovanni Pascoli argumenta nestes termos o seu "socialismo": "O reino da escravidão, da guerra, da conquista, da exploração, isto é, da pura razão, está para encerrar-se". Não se pode mais ser indiferente aos sofrimen­ tos do próximo: "De ser apenas racional o homem se tomou sentimental".1363 Pareceria que os sofrimentos em massa, e a compaixão e indignação moral que eles suscitam, se impõem deinodo indiscutível: evidência física e consciên­ cia moral bloqueiam qualquer via de fuga da "questão social". Mas é exata­ mente assim? "Na descrição socialista da 'miséria' atual não sei o que prevale­ ce, se a leviandade, ou o fanatismo, ou a hipocrisia deles - mas sempre se encontra um pouco de todas as três coisas" (XIV, 244). Vimos antes Nietzsche denunciar, em O nascimento da tragédia, o caráter ruinoso da pretensão re­ volucionária e socialista de banir o trágico do mundo e realizar assim a felicida­ de terrena de todos os homens; depois o vimos pôr em questão, aproveitando­ se da lição dos grandes moralistas, a pureza dos sentimentos morais e do juízo que condena a miséria e os sofrimentos das grandes massas em nome da j usti­ ça. Agora, na última fase da sua evolução, o vemos empenhado em problematizar a própria "evidência" da dor. Tentativas nessa direção não faltam na cultura europeia do tempo. Além de agitar o topos clássico, que já conhecemos, com base no qual as "classes envolvidas em ocupações trabalhosas" revelam escassa sensibilidade à dor "no plano intelectual e emocional", Spencer chama a atenção para o caráter terapêutico que em certas circunstâncias o sofrimento tem, de modo que a tentativa de eliminá-lo a todo custo produz o resultado paradoxal de l iquidar mais o remédio do que o mal . 1364 Mas trata-se, exatamente, de tentativas e motivações incoerentes . Nesse caso, mais do que agitar e radicalizar temas já difundidos, Nietzsche chega a dar uma resposta para uma exigência ideológica amplamente percebida pela cultura e pelas publicações empenhadas na crítica ao movimento operário e socialista. A dor está bem longe de configurar-se como a imediatez incontestável, sobre a qual o movimento revolucionário fabula, ao querer eliminá-la mediante mirabolantes perturbações político-sociais. Na realidade, "o sofrimento é pro­ duto do cérebro" (IX, 565), assim como é produto do cérebro a felicidade reivindicada pelo movimento revolucionário: "Medidos com a inteligência, como estão cheios de erro o prazer e o sofrimento !" (IX, 565). Nem é só o intelecto que intervém: "Sem fantasia e sem memória, não haveria nem prazer nem dor" D63 DM

Pascoli, 1 994, pp. 1 60 e 168. Spencer, 1 98 1 , p. 397.

(IX, 556). Num olhar mais atento, a presumida imediatez se dissipa totalmente: ''Por que um dedo cortado doí? Em si ele não doí (embora sinta 'estímulos'); aquele cujo cérebro é cloroformizado não sente ' sofrimento' no dedo" (IX, 5 5 9). Por outro lado, vale uma consideração de caráter geral : É preciso servir-se da "causa" e do .. efeito" apenas como meros conceitos, isto é, de ficções conyencionais destinadas él conotação, ao entendimento, não ú explicação. No "em si" não existem "ligações causais" [ . . . ], nesse campo ··o efeito" não se segue "da causa" e não vigora nenhuma "lei" (JGB, 2 1 ).

Pelo que diz respeito à dor, talvez, mais que de uma percepção que brota infalivelmente como efeito de uma causa em si, estamos na presença de um 'juízo sobre a ofensa do órgão de uma função, por parte da unidade que tem representações" (IX, 5 59-60). A unidade e imediatez da percepção cede o lugar à complexidade e problematicidadc do juízo: Observar como nasce um prazer, quantas representações devem combinar­ se! E, no fim, é algo unitário e total e não quer mais deixar-se conhecer como pluralidade. Poderia ser assim para todo prazer, todo sofrimento! São fenô­ menos do cérebro! Mas pluralidade que assimilamos há muitíssimo tempo e que apenas agora se apresentam como totalidade (IX, 559).

Pode-se inclusive perguntar se na percepção da dor não desempenham um papel também "a raiva pela ferida e o sentimento da vingança", em última análise o ressentiment (IX, 560). Isto significa que intervêm a ideologia, a polí­ tica, a história: ·'Parece-me que se fala sempre de maneira exagerada da dor e da infelicidade, como se fosse de bon ton exagerar a esse respeito" . Um papel importante desempenha a satisfação narcisista, ou a tendência a "destilar do­ çuras sobre nossas amarguras, especialmente sobre as amarguras da alma" (FW, 326). São a ideologia e a propaganda socialista que enfatizam e debatem o "sofrimento" como "o primeiro dos argumentos contra a existência" e a carga de negatividade, a começar pela escravidão, que ela inevitavelmente comporta (GM , II, 7); é a "moda moral de hoje" que impõe "ter olhos de lince para toda infelicidade, para todo sofrimento, onde quer que aconteça" (M, 1 74). É possível construir, além de uma história, uma sociologia da sensibilidade à dor. Sabemos que a "curva da tolerância humana à dor" varia sensivelmente segundo as culturas, os povos, as classes sociais e não é, certamente, idêntica no escravo negro e no seu senhor branco, no aristocrata e no plebeu (supra, cap . 1 2 § 2). E, portanto, "o que o sofrimento e o prazer têm a ver com o evento real? São algo secundário, que não penetra em profundidade" (IX, 468).

Concluindo, a percepção da dor é uma construção histórica e social. Mui­ to mais problemática resulta então a identificação simpática com a dor de ou­ trem ou, mais exatamente, com a dor que imaginamos ou construímos no sujei­ to com o qual pensamos identificar-nos. Já em Humano, demasiado humano se pode ler: ·'Que diferença subsiste sempre entre a dor de dentes e a dor (compaixão) que a vista da dor de dentes desperta?" (MA, 1 04). Um duplo conhecimento é chamado a tomar o lugar da "imediatez" da compaixão pela miséria e pelas privações das classes pobres: nestas classes o hábito provocou uma espécie de embotamento; com o advento da modernidade foi acrescenta­ da a sensibilidade das classes superiores para com o sofrimento imaginado no outro, mas esta evolução não deixa de ter aspectos patológicos. Por outro lado, até a direção do sentimento de compaixão é algo bastante problemático. Ele poderia tranquilamente voltar-se mais para o autor do que para a vítima da ação geralmente considerada malvada: "Quando prejudicamos por meio da chamada maldade, o grau da dor produzida nos é em todo caso desconhecido; mas na medida em que há um prazer na ação (sentimento do poder próprio, da própria intensa excitação), a ação se realiza para conservar o bem-estar do indivíduo e, por conseguinte, recai sob um ponto de vista seme­ lhante ao da legítima defesa" (MA, 1 04) . O signifi cado político desta revolução epistemológica é claro e não é calado: O pilar da ordem social assenta na base que cada um olhe com serenidade aquilo que é, faz e quer, a sua saúde ou doença, a sua pobreza ou abastança e a sua distinção ou animosidade e o respeito que sente: "não mudarei com ninguém". Quem quiser contribuir para a edificação da ordem social cuide só de plantar sempre nos corações esta filosofia da serena recusa a mudar e da falta de inveja (VM, 396).

Quem agita a bandeira da luta contra os supostos sofrimentos da humani­ dade são os ·'niveladores, estes falsamente ditos 'espíritos livres "': na realida­ de, eles revelam todo o seu vazio ''sobretudo para a sua tendência fundamental de ver nas fonnas da velha sociedade até hoje existente a causa de toda misé­ ria humana e fracasso (Missrathen), portanto, a verdade (Wahrheit) se en­ contra felizmente invertida" (JGB, 44). A reivindicação do fim da dor alheia e da felicidade para todos tem um caráter subversivo: é um tema que já conhece­ mos por O nascimento da tragédia. Já condenada no plano mais propriamen­ te político, fazendo referência à ameaça que ela representa para os tipos de civilização enquanto tais, essa reivindicação é agora refutada também no plano epistemológico, graças à relativização em perspectiva da dor e do prazer.

Mais uma vez se pode notar que tal modo de proceder de per si não é novo. Estamos verdadeiramente seguros de que a sorte do pobre e do mendigo com­ prometidos na luta pela sobrevivência não é preferivel à sorte do homem podero­ so e rico dominado pelo peso das suas responsabilidades ou atormentado pelo tédio? É uma pergunta retórica, um topos com uma longa história por trás e que se apresenta em Nietzsche. Os servos do Antigo Regime que, aos olhos do revo­ lucionário compassivo, eram copdenados a uma infelicidade incompatível com o senso de justiça, na realidade gozavam de uma "felicidade vegetativa" que se armína com as desordens apaixonadamente invocadas por um amor ao próximo mal interpretado. Tocqueville parece propenso a argumentar assim. Mais que de "felicidade vegetativa", em relação sempre aos servos do Antigo Regime, Nietzsche fala às vezes de "serenidade" e outras vezes, com maior precisão, de "recinto melancólico da sua existência restrita"; de qualquer modo se trata de um espetáculo "tonificante" e "cheio de censura" em relação com a modernidade (supra, cap. 1 3 § 3 e 14 § 4). Mas agora ocorreu a tomada de consciência do desaparecimento irremediável desse mundo: não há espaço para uma atitude de lamento; a problematização da dor exigida e ventilada pelos apóstolos da compai­ xão, da justiça e da subversão, deve acontecer de modo diferente, indo até o fundo na discussão sobre o plano filosófico da suposta imediatez da percepção da dor e da suposta objetividade do processo cognoscitivo em geral .

5. Plebeísmo da ciência, perspectivismo e vontade de poder A pretensão de fazer valer "uma só interpretação do mundo" é totalmente infundada. Verifica-se assim um paradoxo: exatamente em consideração das certezas ingênuas que ela nutre e cultiva, a "interpretação científica", ou me­ lhor, "mecanicista" do mundo se revela como "uma das mais tolas", como uma "estupidez" e uma "idiotice" (FW, 373). Até aqui o perspectivismo tem em mente o dogmatismo e o exclusivismo. Mas eis que intervêm outras considera­ ções de natureza totalmente diferente: Admitido que se pudesse medir o valor de uma música pelo que nela se pode computar, calcular, traduzir em fórmulas, como seria absurda tal medição "científica" da música! O que teríamos dela apreendido, entendido, conheci­ do? (FW, 373).

A música é uma espécie de metáfora da vida. Trata-se de não perder de vista o "caráter polimorfo" da "existência" (FW, 3 73), o "caráter em perspectiva da existência" (FW, 3 74 }, a "ótica de perspectiva da vida" (JGB,

1 1 ) . É preciso evitar que "a existência se avilte num exercício de contador (Rechenknechts- Ueb ung) e numa vida de toupeira para os matemáticos" (FW, 373). Agora não se trata mais de fazer valer a multiplicidade das interp retações do mundo. Impõe-se uma escolha e a escolha, mais que en­ tre diferentes interp retações do mundo, é entre modos diferentes de viver, entre opções existenciais diferentes . Topamos aqui com um tema que re­ mete ao romantismo alemão, .com a sua polêmica contra uma visão do mun­ do que rejeita como "obscuro tudo o que vai além de tabelas e registros" (Tabel/en und Register), que está à vontade apenas numa existência go­ vernada por "tabelas e estatísticas" (tabe/larisch statistisch), ou pelas "leis mecânicas da organização social ". Por trás dos românticos alemães age, por sua vez, Burke, que exprime todo o seu desprezo pelos "economistas" (economists) e pelos "contadores" (calculators) no poder na França, junto com os "sofistas" a partir do colapso do Antigo Regime. 1 365 Verificou-se claramente uma passagem do discurso do âmbito epistemológico para um âmbito existencial-político. Sim, o alvo é claramente político, e é constituído não só pela visão do mundo, mas também pelo ordenamento nascido da Revolução Francesa. Como é confirmado pelo desen­ volvimento ulterior da polêmica de Nietzsche contra uma visão do mundo, que ''admite apenas números, cálculos, igualdades, coisas visíveis e palpáveis" (FW, 3 73). Depois de ser asperamente criticada no âmbito do discurso político, a ideia de igualdade é agora surpreendida e rejeitada, graças ao perspectivismo, também no âmbito do discurso científico. E a leitura perspectivista do discurso científico é também eminentemente política. Ele censura o preconceito político que o induz a ler na natureza regularidades, normas, igualdades. A suposta "normatividade da natureza" anda junto com a suposta "igualdade perante a lei". Na realidade se trata de "um gracioso expediente mental com o qual se mascara mais uma vez [ . . . ] a hostilidade dos plebeus por tudo o que é privilegi­ ado e soberano". Gritar, à maneira dos físicos, "Vivam as leis da natureza!" é apenas outro modo de gritar, à maneira dos anarquistas, "Ni Dieu ni maftre". A polêmica perspectivista contra o dogmatismo se configura e se revela agora como polêmica contra o igualitarismo e o anarquismo que, para um olhar aten­ to, surgem também no âmbito do discurso "científico". A suposta leitura objeti­ va do "texto" da natureza é na realidade "uma arrumação e uma distorção de sentido ingenuamente humanitárias" com que os físicos vêm "bastante ao en­ contro dos instintos democráticos da alma moderna", como demonstra em pri­ meiro lugar a centralidade conferida à ideia de igualdade (JGB, 22). 1365 Losurdo, 1997 a, cap. III, 3 e IX, l .

À ideia de igualdade em cada sua expressão Nietzsche contrapõe um nominalismo extremo. Vimos o seu desenvolvimento no plano espacial (cada coisa é diferente da outra). O perspectivismo inclui o desenvolvimento desse nominalismo extremo também no plano temporal (cada coisa se toma diferente no instante seguinte): A árvore é, em cada instante, algo novo. A fonna é afirmada por nós porque

· não podemos perceber o sutilíssimo movimento absoluto: inserimos uma linha matemútica intermédia no movimento absoluto; em geral somos nós que acrescentamos linhas e superfícies, com base na inteligência, que é o erro (a hipótese do igual e do permanente), porque podemos ver apenas o que pennanece, e temos lembranças só diante daquilo que é semelhante (igual) (IX, 554).

Desenvolvendo-se no plano temporal, o nominalismo extremo se configu­ ra como um heraclitismo que, ')unto com a ideia de igualdade, coloca em crise também a ideia de "substância" . Não tem mais fundamento a "fé no elemento permanente, na substância, ou seja, no permanecer igual de si mesmo consigo mesmo" (IX, 5 70). Trata-se apenas de atavismos: "No início de toda atividade intelectual se encontram as hipóteses e os achados mais brutos, por exemplo: 'igual ', 'coisa', 'persistir"' (IX, 572). A crítica da ideia de substância é a crítica da ideia de igualdade na dimensão temporal que ela assume no âmbito do dis­ curso "científico". Uma vez problematizadas ou refutadas as ideias de normatividade, igual­ dade e substância, é possível opor à interp retação democrática e plebeia da natureza "uma intenção e uma arte interpretativa diametralmente opostas". Elas devem saber "deduzir da leitura da própria natureza, e tendo em vista os próprios fenômenos, exatamente uma afirmação, despoticamente decidida e impiedosa, de reivindicação de poder", de "vontade de poder" (JGB, 22). ·Quanto mais nitidamente surge a passagem do plano gnosiológico para o plano existencial-político, tanto mais claro se toma o fato de que a dicotomia perspectivismo/dogmatismo é substituída pela dicotomia aristocratismo/plebeísmo. E a tomada de posição de Nietzsche a esse respeito não se distingue pelo seu problematicismo. Aqueles que permanecem apegados à ideia de substância (e, portanto, de igualdade) não se dão conta de que "em si, a coisa é diferente" a cada momento, negam ou colocam em dúvida a mudança ocorrida. Mas - objeta Nietzsche - ·'não devemos transferir o nosso ceticismo na essência" (IX, 554). Agora os lados se inverteram. É o filósofo perspectivista que quer ficar no em si; condenada antes pelo seu dogmatismo, pela sua pretensão de aprovar a própria interpretação para a objetividade enquanto tal, a visão plebeia da vida é

agora acusada de projetar o próprio ··ceticismo" no "em si", ou seja, na "essên­ cia" da realidade. Não que a polêmica contra o dogmatismo se dissipe, mas ela aparece numa luz totalmente diferente. Certamente, os "filósofos do futuro", a "nova estirpe de filósofos" que está surgindo (JGB, 42) "não serão dogmáticos". Mas por qual razão? Deveria ser incompatível com o seu orgulho, e até com o seu gosto, se a sua verdade fosse tida coíno verdade para todos: o que foi até hoje o desejo secreto e o sentido recôndito de toda aspiração dogmática. "O meu julgamen­ to é o meujulgamento: dificilmente ta1nbém outro poderá orgulhar-se de ter um direito sobre ele" - dirá talvez um tal filósofo do futuro. É preciso desembara­ çar-se do mau gosto de querer estar de acordo com muitos (JGB, 43).

A recusa do "dogmatismo" é aqui a reafirmação da impossibilidade de su­ perar o abismo que separa naturezas superiores e naturezas inferiores, é a recusa da comunidade da razão e do conceito, que pode fundar e funda uma comunidade pol ítica a partir do reconhecimento recíproco entre os homens com base em sua dignidade comum. Nietzsche é bem consciente de tudo isto. O seu discurso passa de modo nítido e declarado da epistemologia para a filosofia prática. O em si posto em crise pela vi rada antidogmática e perspectivista investe contra a ideia ..do puro espírito e do bem em si" inventada, como sabemos, antes ainda do cristianismo, por Platão. É hora de fechar este ciclo ruinoso: "Significaria deveras inverter a verdade e negar o caráter de perspectiva, a condição fundamental de toda vida, caso se falasse do espírito e do bem, como fez Platão" (JGB, Prefá­ cio). O "criticismo", na sua radicalização perspectivista, não se limita a liquidar a metafísica, como em Kant e nos neokantianos, mas visa também a moral, por ele considerada o abrigo e o refúgio seguro da tempestade provocada pela dissolu­ ção criticista da metafísica. Em Nietzsche, o objeto de contestação não é o con­ teúdo de um determinado discurso moral, mas a própria possibilidade de um dis­ curso moral em condições de envolver todos os homens: "Bem" não é mais bem se soa na boca do vizinho. E como poderia existir verdadeiramente um "bem comum" ! A palavra se contradiz a si mesma: o que pode ser comum tem sempre pouco valor. Enfim, as coisas devem estar como estão e sempre estiveram: o que é grande é reservado aos grandes, os abis­ mos aos profundos, as finezas e os calafrios aos sutis, e para exprimir-nos sinteticamente com uma só palavra, as coisas raras para os raros (JGB, 43).

A dicotomia aristocratismo/plebeísmo é agora tão central que absorve a dicotomia perspectivismo/dogmatismo. O perspectivismo compete apenas às naturezas superiores, pois a plebe é incapaz de elevar-se a ele. Não tem sentido

crer que o povo possa compreender algo da grande paixão do homem de conhecimento, que vive e deve viver continuamente nas nuvens borrasco­ sas dos problemas mais altos e das mais graves responsabilidades (portan­ to, não pode de modo algum viver em posição de espectador, permanecendo do lado de fora, de maneira indiferente, segura, objetiva . ) (FW, 35 1 ). ..

Depois da passagem do plano gnosiológico para o existencial-político, ve­ rifica-se agora outra passagem'que conduz do plano existencial-político para o plano social . Não só o perspectivismo é mais uma opção existencial que o resultado obrigatório de um aprofundamento epistemológico, mas é uma opção social e politicamente condicionada ou determinada, que remete a uma aristo­ cracia restrita e exclusiva. Antes, querendo ser rigorosos, não se pode mais falar de opção. Se o dogmatismo é o modo inevitável de ser do plebeu, o perspectivismo é o modo ineludível de ser de uma natureza autenticamente aristocrática.

6. Três projetos políticos, três plataformas epistemológicas: Mil!, Lênin, Nietzsche Entre meados do século XIX e início do século XX, vemos surgir na Euro­ pa três grandes projetos políticos, cada um dos quais faz referência a uma epistemologia precisa. Na Inglaterra, John Stuart Mill publica, em 1 843, o seu Sistema de lógica raciocinativa e indutiva. O autor se reconhece plenamen­ te não só nas instituições políticas da Inglaterra do tempo, mas também no seu papel internacional. Nos territórios conquistados pelo Império, sempre mais, "naquelas sociedades atrasadas nas quais a própria raça pode ser considerada menor de idade", a civilização abre caminho através da "obediência absoluta" das populações subjugadas e do "despotismo", nesse caso "legítimo", exercido pelas grandes potências ocidentais.1366 Se em geral a expansão colonial serve à causa do progresso, a marcha triunfal do Império Britânico é uma contribui­ ção totalmente particular para a afirmação da "paz universal" e da "coopern­ ção e compreensão geral entre os povos".1367 Nesse contexto profundamente harmônico há espaço apenas, no plano teórico, para problematizações e questionamentos bem determinados e, no plano prático, para intervenções polí­ ticas que visam aspectos particulares e bem definidos do ordenamento e das Dóó Mill, 1972, p. 73 (= Mill, 198 1 , p. 33). Dó? Mill, 1946, p. 288.

relações internacionais vigentes. O Sistema de lógica raciocinativa e indutiva fundamenta a ciência numa "inferência" que vai "dos particulares aos particu­ lares"; 1368 a lógica não é outra coisa senão "o juiz e árbitro comum de todas as investigações particulares", 1 369 enquanto a sociologia é a aplicação à socieda­ de no seu conjunto das leis descobertas pela psicologia e pela etologia (a ciên­ cia do "caráter") em relação ao indivíduo singular: "Imediatamente depois da ciência do homem individuaLvem a ciência do homem em sociedade".1370 Por outro lado, uma mudança social "possível ou desejável" pressupõe uma "mu­ dança equivalente de caráter" dos indivíduos nas diversas classes sociais; 1371 e uma das primeiras reformas a fazer é a chamada a garantir a autonomia do indivíduo, e sobretudo do indivíduo excepcional, diante do processo progressivo de equalização e massificação. Não é certamente uma plataforma epistemológica e política que possa sa­ tisfazer a Lênin, o qual, bem longe de se reconhecer no sistema existente na Rússia e no Ocidente e nas relações vigentes entre metrópole capitalista e colô­ nias, pretende pôr radicalmente a primeira e as outras em discussão. A expansão colonial que, aos olhos de Mill, sobretudo no que diz respeito ao papel da Inglater­ ra, é uma contribuição para a causa da paz perpétua, inclui, porém, segundo Lênin, não somente o desencadeamento de violências e de massacres horríveis em prejuízo dos povos subjugados, mas também a acumulação de "substâncias inflamáveis" e o amadurecimento de conflitos devastadores no próprio coração da Europa e do Ocidente. 1372 Então se trata, por um lado, de rachar a certeza tranquila dos senhores do mundo de representarem a civilização e, por outro lado, de realizar intervenções políticas de alcance bem maior que as teorizadas pelo liberal inglês. Por isso o recurso à dialética: "A dialética, como Hegel já explicava, compreende em si os elementos do relativismo, da negação, do ceticismo, mas não se reduz ao relativismo".1373 Lênin faz ironia sobre a tradicional oposição entre ··civis europeus" e "bárbaros asiáticos"; na realidade, os lados podem ser tranquilamente invertidos, como afirma, já no título, um artigo posterior, A Europa atrasada e a Ásia avançada. 1 314 Mas essa ironia amarga visa estimular inter­ venções que não se limitam a investir contra aspectos singulares e particulares do sistema e das relações sociais existentes. 1368 Mill, 1968, p. 183 seg. (livro II, cap. Ili, § 3). 1369 Mill, 1 968, p. 7 (Introdução, § 5). 1 370 Mill, 1968, p. 866 (livro VI, cap. VI, § 1 ) . 137 1 Mill, 1965 b, p. 239 (= Mill, 1976, p. 1 8 1 ). 1 372 Lênin, 1955, vol. XV, p. 177-1 83. 1 373 Lênin, 1955, vol. XIV, p. 1 33. 1374 Lênin, 1 955, vol. XIX, pp. 40 seg. e 81 seg.

Quando já começa a espalhar-se o incêndio da primeira guerra mundial, o revolucionário russo sente a necessidade de refletir sobre a Ciência da lógica hegeliana para esclarecer a si mesmo os pressupostos da ação revolucionária que ele deseja e prepara. Neste texto procura a confirmação não só do caráter objetivo das contradições, mas também da necessidade de uma análise científica que não se limite a pesquisar esse ou aquele pormenor do ordenamento existente: Pelo fato de saltar do cÓncreto ao abstrato, o pensamento não se afasta, quando é correto [ . . . ], da verdade, mas se aproxima dela [ . .. ]. Todas as abstra­ ções científicas (que sejam corretas, a levar a sério e não insensatas) refletem a natureza mais profündamente, mais fielmente, mais cabalmente. Da intui­ ção viva ao pensamento abstrnto e deste à práxis. 1 375

Na Alemanha, depois de ter atravessado a fase "metafisica" e "iluminista", Nietzsche pensa que finalmente encontrou a plataforma epistemológica à altu­ ra do ·'radicalismo aristocrático" professado por ele. Equalização e massificação não constituem mais um perigo, como na análise de Mill, mas uma terrível realidade, e, por outro lado, essa realidade, mais do que ser o resultado de um processo histórico objetivo e irreversível, se refere à agitação, e ainda antes, à visão distorcida dos indivíduos e classes interiormente e irremediavelmente estragadas. O perspectivismo permite resolver um problema que aflige Nietzsche já desde a segunda e terceira Inatual. Nós o vimos denunciar a incapacidade dos ambientes conservadores ou hostis à revolução de opor uma ação real e realmente eficaz à ação revolucionária e criticar o homem de Goethe, o qual não se dá conta de que na vida real não há espaço para um agir que esteja ao abrigo de toda violência e de toda injustiça. Antes ainda que no agir propriamente dito, o momento da escolha, do arbítrio e, em última análise, da violência já está no ver e no julgar, que descan­ sam inevitavelmente na "perspectiva" e na ''injustiça" ligada a ela. No entanto, se uma perspectiva qualquer é inevitável, nem por isso as perspectivas são equivalentes . Para poder avaliar de modo diferenciado e apropriado, é neces­ sário remontar à realidade humana e social que está no fundamento de cada uma delas . De um lado se manifesta e se expande a vida com a sua força e a sua riqueza impetuosas e extremamente poderosas, do outro lado se esconde na sua mesquinhez e conspira de modo tortuoso e vil o ressentiment dos mal sucedidos, a vingança que eles exercem sobre a vida. Por isso, afirmar a inevitabilidade da "perspectiva" e da ·'injustiça" significa também afirmar a inevitabilidade do problema da ·'hierarquia" (supra, cap. 1 O § 5). 1375 Lênin, l 969, p. 16 l.

Ao contrário do que em Lênin, agora o relativismo é tudo. Supor um saber objetivo, uma comunidade da razão e do conceito é sintoma de dogmatismo de­ mocrático e plebeu, mas a liquidação deste dogmatismo é o escancaramento de um abismo intransponível entre aristocratas e plebeus, com a afirmação, que não admite réplicas e dúvidas, dado que remete a uma "natureza" inelutável, do cará­ ter excelente dos primeiros e do caráter intrinsecamente sem valor e podre dos segundos. Nesse sentido o relativismo, o "anti-"dogmatismo" e o perspectivismo reforçam a autoconsciência orgulhosa e exclusivista e a capacidade de ação e de luta do aristocrata autêntico, o qual repele de si com desdém "o grande chupador de sangue, a aranha do ceticismo". Esse ceticismo inerte e fraco deve ser nitida­ mente distinguido do "ceticismo viril", do ''ceticismo da virilidade temerária, que é estritamente afun ao gênio da guerra e da conquista": este último "não crê em nada, mas não pode perder-se nisso"; é "suficientemente duro para o mal", além de ser também "para o bem". A recusa da superstição de um saber objetivo e de valores universais potencia a vontade e a ação, ficando bem longe de pôr obstá­ culos a elas: é a ideologia do radicalismo aristocrático. Como demonstra o exem­ plo de Frederico o Grande, tendo passado através do iluminismo, da incredulidade e do ··ateísmo", sem que por isto tenha sido "quebrada" a sua "vontade", a sua vontade de poder (JGB, 209).

7. Perspectivismo, crítica dos direitos do homem e dissolução do s1�jeito Apegado como está ao dogmatismo da substância, o "vulgo" não está em condições de desconstruir o "eu penso", o sujeito (JGB, 1 6). Mas aqueles que são estranhos ao vulgo devem entender que ter firme "a oposição entre sujeito e objeto", ou a '"superstição da alma", a "superstição do sujeito e do eu", signi­ fica permanecer emaranhados ''nos laços da gramática (a metafisica popu­ lar)", de uma "superstição popular de idade imemorável" que "ainda hoje não cessa de criar desordens" ( Unfitg . . stiflen) (FW, 354 e JGB, Prefácio). Por­ tanto, estamos diante de um problema que não é de natureza exclusivamente filosófica. Não por acaso, a metafisica do sujeito encontra a sua expressão mais enfática em Descartes, o qual, enquanto "pai do racionalismo", é também o ..avô da revolução" (JGB, 1 9 1 ) . Foi o pathos do "eu penso" que lançou as premissas para a construção do sujeito titular dos direitos inalienáveis procla­ mados pela Revolução Francesa, e é a este sujeito que a agitação socialista e anarquista continua a fazer referência. .

Empenhando-se na desconstrução do sujeito, Nietzsche retoma em última análise o programa de Maistre. Bastante significativa é a crítica feita por ele às diversas constituições elaboradas a partir de 1 789. Embora diferentes entre si, elas compartilham um erro de fundo: atribuem direitos inalienáveis, seja de que modo forem definidos, a uma figura nova e misteriosa, ao homem enquanto tal . No entanto, "Não existe o homem no mundo. Na minha vida só vi franceses, italianos, russos, etc.; mas sei, graças a Montesquieu, que se pode ser persa; mas, quanto ao homem, declaro nunca tê-lo encontrado em minha vida; se existe, é sem que eu o saiba". É imaginário o sujeito ao qual a proclamação dos direitos do homem nascida da Revolução Francesa faz referência e ao qual as publicações revolucionárias continuam a lançar apelo. É uma "pura abstração". 1 376 Nessa mesma direção se move já o jovem Nietzsche, o qual reforça mais a dose ao denunciar as "alucina­ ções conceituais" inseridas na reivindicação da "dignidade do homem" e dos direitos do homem enquanto tal (supra, cap. 2 § 4). Mas o elemento de real novidade é outro. Agora, a categoria central do discurso revolucionário é subme­ tida a uma desconstrução de uma radicalidade sem precedentes. Não se trata só de afirmar a singularidade irredutível de cada homem, como de toda realidade, pondo em evidência as diferenças insuperáveis que o separam dos outros ho­ mens. Vai-se além, desconstruindo a categoria de homem por assim dizer a partir de dentro, não apenas contrapondo as outras singularidades a uma singularidade, mas dissolvendo a própria singularidade numa multiplicidade: O próprio indivíduo é um erro [. . . ]. Distingo entre o indivíduo existente ape­ nas na imaginação e o "sistema vital" real que cada um de nós é; as duas coisas estão fundidas numa só, ao passo que o "indivíduo" é apenas uma soma de sensações, juízos, erros conscientes, uma fé; um pequeno fragmen­ to do sistema vital real ou muitos fragmentos, reunidos juntos com o pensa­ mento e na fantasia; uma "unidade" que não se sustenta (IX, 442-3).

Ao acusar o "eu penso" como o momento essencial da preparação ideoló­ gica da Revolução Francesa, Nietzsche, mais uma vez, não está sozinho. Um autor conhecido dele e caro também a ele, que é Lichtenberg, indica na "filoso­ fia" e no cogito ergo sum o pressuposto do subsequente "eco do grito à la Bastille ! "1377 Por outro lado, foi a própria Convenção nacional, em 2 de outubro de 1 793, que decidiu a transferência das cinzas de Descartes para o Pantheon. 1378 1376 Maistre, 1984, tomo 1, pp. 74-5. i m Lichtenberg, 1 949, vol. 1, p. 479. 1 378 Aulard, 1 977, p. 470.

Agora se compreende o grande empenho de Além do bem e do mal em desconstruir o ·'eu penso" de Descartes e Kant: submetida à pesquisa, essa presumida "certeza imediata" é na realidade um "processo" e o resultado de ·'uma série de asserções temerárias", a começar por aquela que "seja eu a pensar" e que "'exista um ·eu"' (JGB, 1 6); fica assim "volatil izado o honesto, velho eu" (JGB, 1 7). Desconstruir a figura d� homem enquanto tal, ou do sujeito, do eu penso, significa também ajustar as contas com a tradição religiosa passada. Como a ideia de igualdade, antes que no plano político, foi cristãmente declinada como igualdade das almas, assim a ideia de sujeito e de homem enquanto tal encontra uma prefiguração sua na ideia cristã de alma. Impõe-se, pois, a liquidação do "mais funesto atomismo", do "atomismo das almas" ensinado pelo cristianismo, "aquela crença que considerava a alma como algo indestrutível, eterno, indivisível, como uma mônada, como um alomon"; só "conceitos como 'alma mortal ' e 'alma como pluralidade do sujeito' e 'alma como estrutura social dos instintos e das paixões"' podem ter "direito de cidadania na ciência" (JGB, 1 2) . Criticada e desconstruída na medida e m que implica a ideia de igualdade ( e de substância), a ciência é invocada como refutação definitiva da ideia de sujeito (o titular do direito à igualdade). São inegáveis as consequências deste discur­ so, mas são consequênéias totalmente políticas. Dizer alma, sujeito, cogito, eu penso, significa também dizer consciência de si. Vimos assim um novo alvo da crítica de Nietzsche: O meu pensamento é que a consciência (Bewusstsein) não faz parte realmente da existência individual do homem, mas antes daquilo que nele é natureza comunitf1ria e gregária; que - como se segue de tudo isto - ela se desenvolveu sutilmentc só cm rclaç;1o com uma utilidade comunitária e gregária (FW, 354).

Para compreender melhor o significado disso, convém comparar este aforismo com um trecho tirado da Filosofia do direito de Hegel : Pertence ú cultura, ao pensamento como consciência (Bewufttsein) do indi­ víduo na forma da universalidade (A llgemeinheit) o fato de eu ser concebi­ do como uma pessoa universal (al/gemeine) em cujo âmbito todos são iguais. O homem tem, pois, valor porque é homem, não enquanto judeu, católico, protestante, alemão, italiano, etc. 1 379

Aqui se faz uma ligação entre as três categorias: consciência, universalida­ de, homem enquanto tal . Como o pathos da categoria do homem enquanto tal, 1379 Hegel, 1 969-79, vol.

VII, p. 360 (§ 209 A).

assim o pathos da categoria de consciência é expressão da onda universalista e, portanto, aos olhos de Nietzsche, da onda de equalização e massificação que se desenvolveram desde a Revolução Francesa. "O mundo do qual podemos ter consciência", do qual o homem enquanto tal pode ter consciência, é "um mundo universalizado" (verallgemeinert) e este, por sua vez, é um mundo "vulgarizado" (vergemeinert). A universalização ou "generalização" (Generalisation) é sinô­ nimo de "superficialização"; a subsunção sob o gênero, a redução a gênero inclui a liquidação daquilo que há de individual e de nobre; o mundo se toma então "raso, sem profundidade, relativamente estúpido, genérico". Colocar-se no plano da consciência, também "com a melhor vontade de compreender a si mesmo no modo mais individual possível", significa sempre colocar-se num plano invalidado pelo espírito gregário: 'Todas as nossas ações são no fundo incomparavelmente pessoais, únicas, ilimitadamente individuais, não há dúvida; mas assim que as traduzimos na consciência, nem sempre o são mais . . . Este é o verdadeiro fenomenalismo e perspectivismo como eu o entendo" (FW, 354). A esfera da consciência e do sujeito consciente se refere também à "in­ tenção" que se pressupõe esteja no fundamento de uma determinada ação. Essa atitude, que parece quase óbvia, é na realidade o resultado da subversão moderna, que rompe com "os últimos dez milênios" de história, durante os quais esteve "a origem da ação" que decide "sobre o seu valor", com um "critério de avaliação" que é, em última análise, "a repercussão inconsciente do predomínio dos valores aristocratas e da sua fé na 'origem "' (JGB, 32). Com a modernidade, porém, triunfou o "preconceito" a partir do qual quem decide o valor de uma ação é a intenção e, portanto, a consciência intelectual e a consciência moral . Mas agora é possível e necessária uma nova virada. Estamos no limiar de um período que deveria ser qualificado, negativamente, antes de tudo como cxtramoral, um período cm que pelo menos nós imoralistas seja­ mos movidos pela suspeita de que exatamente no elemeilto não intencional de uma ação seja posto o seu valor decisivo e que toda a sua intencionalidade, tudo o que dela pode ser observado, sabido, "tomado consciente" pertence ainda ú sua superficie e pele (JGB, 32).

Desse modo, além de recuperar o valor aristocrático da origem, a nova visão do mundo permite também superar definitivamente o conceito de responsa­ bilidade e de culpa. Que sentido pode ter uma vez que desapareceu o sujeito ao qual a ação é referida? "O nosso corpo é apenas uma organização social de muitas almas" (JGB, 1 9). Como o "eu penso" de Descartes, também o "eu que­ ro" de Schopenhauer pode e deve ser desconstruído (JGB, 1 6). · Certamente se trata de um preconceito de velha data, mas isto não lhe confere autoridade:

Que em toda história tudo seja consequência de atos da vontade e de tal modo seja explicado e não ulteriormente explicável , é uma crença que os selvagens partilham com Schopenhauer; durante algum tempo essa crença dominou todos os homens; tê-Ia e pregá-la ainda no século XIX, no centro da Europa, não foi senão um atavismo.

Superando esse preconc�ito atávico, é preciso chegar à consciência de que "em todo acontecimento a vontade não tem parte alguma" (IX, 5 89). Por outro lado, pode ser instrutivo refletir sobre a história de um preconceito agora superado: "Embora os mais perspicazes juízos das bruxas, e até as próprias bruxas, estivessem persuadidos de que a feitiçaria constituísse uma culpa, to­ davia a culpa não existia"; mas "assim acontece" e deve acontecer "com toda culpa" (FW, 250). Agora se vai nesta direção: fazer as circunstâncias intervi­ rem na avaliação de uma ação ou de um delito demonstra a "falta da nossa fé na absoluta responsabilidade da pessoa" (IX, 5 70-1). Como as ideias de igualdade e de substância, também a ideia de culpa é um atavismo e uma herança plebeia: o "bem sucedido" se caracteriza também pelo fato de que "não crê nem na 'infelicidade', nem na 'culpa'" (EH, Porque sou tão sábio, 2). Exprime uma visão do mundo no âmbito da qual não há lugar nem para a transcendência religiosa ou moral, nem para a transcendência revolucionária. É um dizer sim sem reserva, até mesmo ao sofrimento, à própria culpa, a tudo o que é problemático e estranho na existência [ ... ]. Nada do que existe se deve pôr de lado, nada é supérfluo - os aspectos da existência recusados pelos cristãos e por outros niilistas pertencem até a uma ordem infinitamente mais elevada na hierarquia dos valores do que aquilo que o instinto de décadence aprova, ou seja, considera bom {EH, O nascimento da tragédia, 2).

8. A dissolução do sujeito em Nietzsche e na cultura europeia A categoria de "inatualidade" se revela sem resultado ou enganosa também no que diz respeito ao tema da dissolução do sujeito. Ele está bem presente na cultura europeia do tempo e se compreende bem por que. Se o ano de 1789 vê a solene proclamação dos direitos do homem, a revolução de Fevereiro de 1 848 abole a escra­ vidão nas colônias francesas, também em consideração pelo fato de que ela "destroi o livre arbítrio do homem, suprime o princípio natural do direito e do dever".1380 Tendo em vista a escravidão salarial, além da colonial, Lamennais escreve: oso ln Wallon, 1974 a, p. CLXV.

A essência da escravidão reside, de fato, como vimos, na destruição da personalidade humana, ou seja, da liberdade ou da soberania natural do homem, que faz dele um ser moral, responsável pelos seus atos, capaz de virtude. Rebaixado à categoria de animal e até abaixo do animal, cessando de ser um ser pessoal, ele é lançado para fora dos direitos da humanidade e, consequentemente, de todo direito, bem como de todo dever. 138 1

Nesses anos, o pathos do nomem e do sujeito e da dignidade do homem e do sujeito é um tema central da luta contra a escravidão antiga e moderna nas suas diferentes formas. Trata-se de um instituto que se há de considerar infa­ me pelo fato de "suprimir a personalidade", espezinhar "o princípio da consci­ ência, da personalidade", reduzir os escravos a "corpos" (somata); esquecen­ do a "alma" que age neles e humilhando o "homem moral", ele pretende elimi­ nar a "vontade" e a "força interior" dos escravos, subordinando-as totalmente à vontade do senhor, o qual, tomando-se "árbitro soberano daquilo que é justo e daquilo que é injusto", parece querer usurpar o papel que compete a "Deus".1382 É esse o contexto histórico e político em que se coloca a polêmica de Nietzsche contra "aqueles falsos conceitos, aqueles conceitos auxiliares da moral, 'alma', 'espírito ' , 'vontade livre', 'Deus'". Eles correm o risco de "arruinar fisiologicamente a humanidade", sancionando a intangibilidade também do indi­ víduo mais irremediavelmente mal sucedido e bloqueando, portanto, o necessá­ rio processo de seleção (EH, Aurora, 2). Lapouge exprime-se em termos não muito diferentes: "A essência sobrenatural da alma é servida como ponto de apoio para a teoria dos direitos do homem, anteriores e superiores à natureza e à sociedade". Da velharia de que é preciso finalmente se desembaraçar faz parte também a "pretensa liberdade humana", um resíduo ulterior, infeliz dos anos da revolução: por sorte, "estamos longe do tempo de Rousseau". 1383 Na segunda metade do Século XIX, desconstrução do sujeito, crítica da razão e condenação da revolução são a mesma coisa. Demos a palavra a Theodule Ribot, um expoente de primeira grandeza da cultura conservadora da França daqueles anos: "a pessoa, o ego, o sujeito pensante, assumido como uma unidade perfeita" é na realidade uma ficção. 1384 Referindo-se a Darwin, Galton sublinha, por sua vez, o fato de que no homem se agita um conjunto de "elementos inconscientes ou mal conscientes". Os progressos da ciência im­ põem uma conclusão radical: "Se corretamente compreendida, a palavra 'ho1 38 1 Lame1mais, 1 978, pp. 161-2. 1 382 Wallon, 1974 a, p. XXV. 1:1s3 Lapouge, 1977, pp. �09 e VIII. 1:1s4 ln Pick, 1989, p. 42.

mem' se toma um nome coletivo, pelo fato de que ele é composto de milhões, talvez bi lhões de células, cada uma das quais possui em certa medida uma vida independente".1385 Fazendo intervir a psicologia, além da biologia, também Taine chega a uma conclusão análoga. A mais simples operação mental, uma percepção dos sentidos, uma lembran­ ça, um nome, um julgamento qualquer são o efeito do funcionamento de uma máquina complicada, obra comum e final de vários milhões de engrenagens que, semelhantes àquelas de um relógio, puxam e empurram às cegas, cada um por si, cada qual arrastado pela própria força e mantido na função própria de compensação e contrapeso.

O historiador francês acrescenta em nota: "Calcula-se que o número das células cerebrais (camada cortical) seja de um bilhão e duzentos milhões, e o das fibras que o ligam de quatro bilhões". 1386 Depois de ter dissolvido o sujeito numa multiplicidade de processos, sujeito que deveria ser o titular dos direitos do homem, a crítica da revolução acusa tam­ bém a "razão". Usada pela revolução a fim de fundamentar a dignidade do homem enquanto tal e de elevar a igualdade entre os homens à categoria de uma das "verdades evidentes por si", como faz a Declaração de Independência dos colonos estadunidenses, na realidade a razão é apenas a serva das paixões e dos interesses: Abertamente ou em segredo, é apenas um cômodo subalterno, um advogado doméstico instigado que os proprietários empregam para defender os próprios negócios: se em público lhe cedem a passagem, é por boa educação. Acham bom proclamá-la soberana legítima; não permitem nunca que tenha sobre eles uma influência, uma autt>ridade que não seja efêmera; e, sob o seu governo nominal, os verdadeiros senhores são eles. Estes senhores do homem são o temperamento, a necessidade fisica, o instinto animal, o preconceito hereditá­ rio, a imaginação: em geral, a paixão dominante, mais particularmente o interes­ se pessoal ou o interesse de família, de casta, de partido. Ds7

É um tema que encontramos também em Barres: "a razão humana está acorrentada" e "não existem ideias pessoais". O racionalismo ignora ou afasta uma verdade essencial : "Não somos os senhores dos pensamentos que nascem em nós . Eles não brotam da nossa inteligência; ao invés, constituem modos de reagir nos quais se traduzem disposições fisiológicas muito antigas".1 388 Tam1385 Galton, 1869, p. 363. D86 Tai ne, 1899, vol. II, pp. 56-7 (= Taine, 1 986, pp. 426-7). 1 387 Taine, 1899, vol. II, pp. 59-60 (= Taine, 1986, p. 429). 1 388 ln Girardet, 1 983, p. 186.

bém Nietzsche faz a "hereditariedade" intervir na dissolução do sujeito (JGB, 3). De qualquer modo, claro e comum a ambos os autores é o alvo, constituído pelo racionalismo cartesiano, infeliz inspirador da revolução. E agora leiamos Le Bon. Quem guia o homem é mais o instinto que a razão: O inconsciente, que dirige a totalidade dos atos da nossa vida inorgânica e a imensa maioria dos atos da nossa vida intelectual, está para a vida consci­ ente do espírito comó a massa profunda das águas do oceano está para as ondas que se agitam na superficie; se a incessante ação do inconsciente parasse, o homem não poderia viver um só dia. 1389

Podemos encontrar temas análogos também em Spencer. Contra as fan­ tasias revolucionárias de regeneração da sociedade mediante o ensinamento ou a ação política em geral, ele chama a atenção para a impotência do intelecto e para a sua escravização à esfera emocional : Os homens não são seres racionais, assim como comumente se supõe. O homem é um feixe de instintos, emoções, sentimentos: eles procuram de vários modos a sua gratificação e aqueles que estão no poder se apoderam da razão e a utilizam para os seus fins, excluindo do poder todos os outros sentimentos e emoções. 1390

O exemplo aduzido por Pareto para demonstrar essa tese é iluminador: "Muitos não são socialistas porque foram persuadidos por um certo raciocínio, mas, coisa bastante diferente, admitem tal raciocínio porque são socialistas".1 391 Dado o peso decisivo da vontade, da paixão, dos interesses em todo tipo de argumentação, o protesto contra a miséria de massa não tem um grau de racionalidade maior do que a defesa do privilégio ou de um sociedade fundada na polarização de riqueza e pobreza. Enfim, a desconstrução do sujeito vai lado a lado com a denúncia da sua vaidade antropocêntrica, como se o universo devesse girar em torno da satisfa­ ção dos seus desejos e das suas reivindicações de segurança, de bem-estar, de felicidade. É uma pretensão cujo absurdo é demonstrado assim por Lapouge: "O homem não é um ser à parte"; e, em cada caso, "suas ações estão subme­ tidas ao determinismo do universo". 1392 Somos levados a pensar na polêmica de Além do bem e do mal contra a tese segundo a qual o homem seria "a 1 Js9 Le Bon, 1999, pp. 58-9. 1390 ln Duncan, 1996, p. 366 (carta a J. A. Skilton de 1 O janeiro de 1 895). 1 39 1 Pareto, 1974, p. 14 1 . D92 Lapouge, 1977, p. 5 1 l .

·medida das coisas'" (JGB, 3). Gumplowicz também zomba da "presunção desmedida do indivíduo"1393 com expressões que fazem pensar na denúncia nietzscheana da "megalomania" humana. Não há dúvida, o tema da dissolução do sujeito é desenvolvido por Nietzsche com uma fineza e com uma penetração sem igual, de modo que ele desenvolve uma extraordinária potencialidade críti­ ca: ··Quem exatamente nos faz agora a pergunta, o que em nós tende exata­ mente para a 'verdade' [ ] Nesse caso, quem de nós é Édipo? Quem é a Esfinge?" (JGB, l ) . É a tentativa, sem dúvida fascinante e fecunda, de conse­ guir um olhar sobre o homem por assim dizer a partir de fora e de cima (infra, cap. 29 § 3). Resta o fato de que a tese da dissolução do sujeito é o contracanto para a proclamação revolucionária dos direitos do homem; nesse sentido, Nietzsche é o herdeiro de Maistre, que faz ironia sobre a categoria de homem enquanto tal e declara não tê-lo jamais encontrado em sua vida. . . .

1'9) Gumplowicz, 1 885, p. 228.

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22 0TJUM ET BELLUM: DISTINÇÃO ARISTOCRÁTICA E LUTA CONTRA A DEMOCRACIA 1. "Radicalismo aristocrático " e "grande' reação conservadora ": Prússia, Rússia e América

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ecusando-se a reconhecer-se nas interpretações dos seus contemporâne­ os, Nietzsche se sente obrigado a polemizar contra o Journal des Débats: a revista francesa "com absoluta seriedade julgou o livro [Assim falou Zaratustra] como um 'sinal dos tempos', como a autêntica verdadeira filosofia dos Junker, que a Kreuzzeitung não faz sua explicitamente só porque lhe falta coragem" (EH, Porque escrevo livros tão bons, 1). Compreende-se o tom escandalizado de Nietzsche. Ele não pode identificar-se com uma classe social .que, como aparece pelo título do seu órgão de imprensa, está teimosamente ligada ao cristianismo: "Junker cristão" [Kreuzzeitung] é um "conceito antiestético"; revela uma "inocên­ cia entre os contrários" (a incapacidade de aceitar a contradição), pior, a '"boa consciência' na mentira" que representa o pior da modernidade (WA, Epílogo). No entanto, a resenha tinha alguma parte de razão. Historiadores contem­ porâneos autorizados fazem uma comparação entre os Junker prussianos, os proprietários escravistas das plantações do Sul dos Estados Unidos e a grande nobreza feudal da Rússia czarista. Mesmo com notáveis diferenças entre elas, as três classes sociais, que baseiam o seu esplendor e o esplendor da civilização da qual são protagonistas no trabalho em maior ou menor grau forçado da grande massa, apresentam algumas características comuns também no plano ideológico: a celebração do otium se entrelaça com o desprezo ao trabalho produtivo como gesto aristocrático de distinção; a identificação com uma cultura refinada, base­ ada no trabalho servil ou semisservil, andajunto com o altivo distanciamento da massificação da sociedade democrática e industrial que avança impetuosamente, pretendendo ter do seu lado o vento irresistível da história; enfim, a irrisão da ideia de progresso estimula o ulterior gesto de distinção, que reside na reivindicação orgull1osa da própria "inatualidade", em saber ir contra a corrente com respeito à tendência geral à vulgarização do mundo.1394 Depois da derrota, os ideólogos do IJ94 Kolchin, 1 987, pp. 157- 1 6 1 e 177.

Sul escravista se fazem passar por campeões da Lost Cause, campeões de uma causa vencida pelo poderio industrial e militar da União, mas nem por isso menos nobre. 1395 Bem no meio da Guerra de Secessão, Fitzhugh escreve: "Iniciamos uma grande reação conservadora".1396 De modo análogo, Nietzsche se reco­ nhece na defmição da sua filosofia como "radicalismo aristocrático". Também na Rússia, no final do Século XIX, desenvolve-se uma reação aristocrática, empe­ nhada em voltar séculos atrás no desenvolvimento do país: chega-se ao ponto de "colocar na prisão senhores do patriciado local acusados de ensinar a ler e escre­ ver aos filhos dos camponeses no seu tempo livre". 1397 Provavelmente desco­ nhecido por Nietzsche, esse capítulo da história nos coloca, todavia, na presença de uma medida que pode muito bem ser inserida nas aspirações e nos projetos do seu radicalismo antidemocrático. Empenhados como estão numa batalha que percebem comum, esses três mundos ostentam um cosmopolitismo aristocrata: os nobres russos desprezam não só a língua, mas também "a realidade do seu país, preferindo falar francês em vez de russo e passando mais tempo em Nice ou em Biarritz do que nos latifúndios da família nas províncias".1398 Ademais, basta ler os romances de Turguenev, Dostoievski e Tolstoi para se dar conta da frequência do recurso ao francês nas conversas e nos entretenimentos da nobreza russa. A situação na Alemanha é diferente. Sim, Frederico II falava e escrevia em francês, cercando­ se de intelectuais provenientes de Além-Reno, sem esconder o seu desprezo pela literatura e pela cultura alemãs. Num ensaio de 1 780, escrito naturalmente em francês, chegara a depreciar a própria língua alemã, considerada incapaz de pro­ duzir poesia e boa literatura. Era uma atitude amplamente partilhada pela nobre­ za. Os seus membros se dirigiam em alemão ao domestique, enquanto entre eles recorriam exclusivamente ao francês, instituindo de tal modo - observa critica­ mente Herder - uma barreira insuperável com relação às "classes populares".1399 Herzen faz a mesma observação a propósito da aristocracia russa: ela "é mais cosmopolita que a revolução"; bem longe de ter uma base nacional, o seu domínio descansa na negação da própria possibilidade de uma base nacional, na "profun­ da divisão [ . . . ] entre as classes civilizadas e os camponeses", entre uma élite bastante restrita e a enorme maioria da população. 1400 1395 Miller-Stout-Reagan Wilson, l 998,passim. 1 396 ln Woodward, 1 960, p. XXXVIII. 1 397 Figes, 2000, pp. 39 e 84. 1 398 Figes, 2000, p. 49. 1399 Cf. Losurdo, 1 997 a, cap. III, § 5.

1 400 Herzen, 1 994, pp. 176-7.

No que se refere à Alemanha, porém, e de modo particular à Prússia, a luta contra o expansionismo, primeiro de Luiz XIV e depois de Napoleão, tinha obrigado a redescobrir a língua nacional e até o sentido de uma comunidade nacional. Pelo menos no fogo da sublevação contra a ocupação militar france­ sa, as barreiras de categoria ou de casta tinham sofrido algumas rachaduras. É também por isso que o Nietzsche maduro se exprime cheio de ódio a propósito deste movimento de luta. Enfim, os três mundos e as três classes sociais aqui comparadas ostentam o seu soberano desprezo em relação às expectativas e às esperanças das clas­ ses subalternas . Escravos e servos buscam um espaço religioso autônomo que às vezes - como é o caso do Sul dos Estados Unidos - leva a pensar na religião dos .. escravos da cristandade primitiva". 1 401 Por outro lado, além dos escravos, são os abolicionistas enquanto tais que são invadidos - ironiza um teórico do Sul - pela expectativa louca do "milênio que se aproxima". 14º2 À credulidade e ao fanatismo censurados nos escravos e nos seus ideólogos é contraposta uma atitude zombeteira e dessagradora. Neste sentido, Fitzhugh, o intérprete mais radical da cultura comprometida com a defesa do instituto da escravidão, foi lido como um autor de "raciocínio impiedoso e iconoclasta'', ou como ''o reacionário mais lógico do Sul" e, portanto, como o expoente de ponta do chamado "iluminismo reacionário". 1 403 Mesmo sem utilizar, como é óbvio, essa categoria, Herzen chega à mesma conclusão ao analisar a visão do mundo da aristocracia russa: Em Petersburgo, a influência da filosofia do Século XVIII teve em parte um efeito ruinoso. Na França, os enciclopedistas libertaram o homem dos velhos preconceitos, infundiram nele os instintos morais mais elevados e o tornaram revolucionário. Entre nós, a filosofia voltairiana, depois de ter quebrado os últimos laços que freavam uma natureza semisselvagem, nada forjou para o lugar das antigas crenças e dos deveres morais tradicionais. Ela armou o russo com todos os instrumentos da dialética e da ironia, para que pudesse descul­ par-se a si mesmo pela condição de escravidão em que se encontrava com relação ao soberano e pela condição de soberano em reçação ao escravo. 14º4

Algo parecido acontece também na Alemanha. Segundo a observação de Marx, um defensor da instituição da escravidão, que é Gustav Hugo, não hesita 1 40 1

Kolchin, 1 987, p. 222. Fitzhugh, 1 960, p. 9. 1403 Hartz, 1 960, pp. 143 seg., Woodward, 1 960, p. IX. 1 404 Herzen, 1994, p. 92. _ 1402

em adotar uma postura de iluminista mais consequente que os outros, ainda presos a sonhos ingênuos de emancipação (supra, cap. 14 § 2). Nesse contex­ to devemos colocar o "iluminismo" de Nietzsche, que constitui um traço cons­ tante do seu pensamento, muito além do período propriamente "iluminista". Ainda no final da vida consciente, ele caracteriza como "visionária, sentimen­ tal, cheia de mistérios" e feminina a moral abolicionista que encontra a sua expressão mais significativa na figura de Beecher-Stowe (infra, cap. 30 § 5). Uma visão do mundo lúcida, viril e enxuta, sem indulgência pelas fugas e pelas fraquezas sentimentais e femininas, não arreda diante da escravidão e do sacri­ fício em massa a que a civilização inevitavelmente condena os servos e a enor­ me maioria da humanidade. Sublinhei o permanente papel da aristocracia na Prússia, na Rússia e no Sul dos Estados Unidos . Nietzsche está de algum modo ligado a esses três mundos. Quando jovem, compara Teógnis, portavoz de uma aristocracia e de uma sociedade escravista, a "um Junker culto e decadente, com as paixões de Junker" (FS, III, 74). Remonta diretamente à sua adolescência a simpatia pela Rússia, cuja vitória na guerra da Crimeia deseja ardentemente (A, 20- 1 ); e a esse país ainda não contaminado em profundidade pelas ideias modernas o filósofo continua a referir-se com simpatia nos anos e nos meses que precedem o fim da vida consciente. Enfim, a polêmica contra a Beecher-Stowe é a con­ denação da revolução abolicionista que, j unto com a escravidão, anula uma esplêndida civilização aristocrática. Também no caso dos Estados Unidos, quem exprime tendências naciona­ listas são os inimigos da Confederação sulista: o protecionismo da União visa também desenvolver uma indústria nacional que ponha o país em condições de competir, no plano econômico e militar, com as grandes potências europeias; além da indignação humanitária, os abolicionistas são movidos também pela ambição de indicar os Estados Unidos como modelo no qual os outros países e os outros povos são chamados a inspirar-se. Na véspera da Guerra da Seces­ são, Lincoln se exprime assim a propósito do instituto da escravidão: "Eu o odeio porque priva o nosso exemplo republicano da sua justa influência no mun­ do". 1405 Já algumas décadas antes, o "evangelicalismo" promove o movimento de "colonização", com a transferência para a Á frica dos escravos emancipa­ dos, mas trata-se de um "evangel icalismo nacionalista", empenhado em difun­ dir, j unto com a mensagem cristã, a influência e a hegemonia estadunidense.1406

ln Bowen, 1 990, p. 88. 14º6 Fogel, 1991, p. 46 1 , nota 43.

1405

Essas preocupações, porém, estão ausentes nos proprietários das grandes plantações do Sul, zelosos guardiões de um estilo de vida refinado, tomado possível pela escravização dos negros. Os ideólogos dessa sociedade estão bem conscientes disso. Não é por acaso que os mais isentos chegam a afirmar a necessidade do instituto da escravidão, também independente da cor da pele, 1407 tomando-se assim teóricos de uma escravidão não racial, não diferente daque­ la própria da antiguidade clá'ssica, para a qual Nietzsche olha. Pelo que diz respeito à Rússia, não esquecer que a abolição da servidão da gleba ocorreu em seguida à derrota na guerra da Crimeia: o recrutamento militar em larga escala, o único que pode garantir a competitividade com as outras grandes potências europeias, exige a possibilidade do poder central mobilizar também os servos, até aquele momento de "propriedade" exclusiva dos seus senhores. Também nesse caso, a preocupação nacional desempenha um papel importan­ te para colocar em crise um mundo aristocrático para o qual se voltam a aten­ ção e a simpatia de Nietzsche. Nas três classes dominantes aqui comparadas está também ausente a ideia de nação, dado que esta é transversalmente dividida em "raças" diferentes e opostas, segundo o modelo de Boulainvilliers, que é retomado e reelaborado por Nietzsche e por outros expoentes da reação aristocrata do final do Século XIX. Até a crise das três sociedades diferentes das quais se fala aqui apresenta algumas analogias e revela uma dinâmica que traz à nossa memória as análises de Nietzsche. Historiadores recentes relacionaram as primeiras rachaduras do Antigo Regime na Rússia com a difusão da compaixão, dos "sentimentos de culpa" e da "má consciência" entre as classes superiores, sobretudo diante da carestia de 1 89 1 . É daqui que data o início da revolução: "tudo aconteceu por causa dos nossos pecados"; "há um só remédio: arrepender-se, mudar de vida, derrubar o muro que nos separa do povo" - escreve Tolstoi, conde, além de escritor, a um amigo. 1 408 É um fenômeno que se verifica também nos Estados Unidos : Calhoun polemiza contra "os fanáticos raivosos que consideram a es­ cravidão como um pecado" e "um crime, uma ofensa contra a humanidade"; 1409 ou melhor, ''acham que eles mesmos estão envolvidos neste pecado e são res­ ponsáveis pelo fato de não suprimi-Ia mediante o recurso a todos os meios possíveis". 141° Com relação à Alemanha, o cardeal Ketteler, embora empe­ nhado na luta contra o movimento socialista, condena com força a "cruel" 1407 Bowman, 1 993, p. 13. 1 408 Figes. 2000, pp. 208-9. 1 4º9 Calhoun, 1992, p. 529. 1 4 1 º Calhoun, 1992, pp. 582-3.

ofensa à ··verdadeira humanidade" e o "infanticídio" implícitos no trabalho das crianças na fábrica. 141 1 O príncipe da Igreja se exprime, pois, numa linguagem que faz pensar naquela de Marx, que denuncia, por sua vez, com linguagem bíblica ''o grande rapto herodiano das crianças realizado pelo capital". 1412 Se Calhoun polemiza contra o espírito de "cruzada" dos abolicionistas, 1413 os quais acham que é "a sua obrigação mais sagrada recorrer a qualquer esfor­ ço para destmir" a escravidão!414 Tolstoi publica, em 1 892, um ensaio com o título O Reino de Deus,14 1 5 enquanto na Prússia um expoente de primeira grandeza dos Junker zomba daqueles que veem na abolição da servidão here­ ditária a chegada da "salvação" (Heil). 1416 Compreende-se que, nos três diferentes países aqui comparados, a aristo­ cracia desenvolva frequentemente uma polêmica contra o poder central, agi­ tando palavras de ordem liberais. Os Junker, que representam um "imperium in imperio", olham com suspeita para o absolutismo monárquico, que impede que transformem os seus servos em propriedade verdadeira, à maneira dos escravos do Sul dos Estados Unidos. 1417 Aqui, Calhoun chama à luta contra um poder absoluto que desejaria anular os direitos dos Estados e dos proprietários de escravos . 1418 Por sua vez, não desdenha tomar atitudes "liberais" nem o patriciado russo, que não aceita certamente com entusiasmo a tímida e parcial emancipação dos servos promovida ou imposta pelo alto. 1419 E os Junker da Prússia pré-revolucionária se consideram "liberais", recorda Bismarck, que declara ter amadurecido a sua "repugnância contra o domínio da burocracia" a partir exatamente desses "sentimentos liberais de categoria" (standisch-liberale Stimmung); mas ele se apressa em acrescentar que é preciso distinguir nitida­ mente entre tal liberalismo e o "l iberalismo renano-francês", propenso a incisi­ vas reformas antifeudais a partir do alto e no qual se inspira uma opressiva e sufocante burocracia estatal. 1420 A propósito de Nietzsche, se poderia falar de um "liberalismo" semelhante aos dos Junker. É claro que ele cede tranquilamente o lugar para a legislação de emergência e as tentações bonapartistas, quando 1 411 Ketteler, 1 967, p. 1 3 1 . 1 412 Marx-Engels, 1955, vol. XXIII, p. 425 nota. im Calhoun, 1992, pp. 528-9, 530- l e 469. 14 1 4 Calhoun, 1 992, p. 582. i 4 1 S Figes, 2000, p. 209. 1 41 6 Marwitz, 1 965, p. 134. 1 417 Bowman, 1993, pp. 18-9. 141M Calhoun, 1 992, pp. 120 e 6 1 . 1419 Figes, 2000, pp. 77-8. 142º Bismarck, 1 9 19, pp. 5 1 -2.

se trata de encarar o perigo socialista, como, por outro lado, acontece com o chanceler de ferro. Pode-se ler em tal "liberalismo" uma chamada de atenção preventiva con­ tra os perigos representados pela extensão da esfera estatal, mas, então, um mérito semelhante é reconhecido aos ideólogos do Sul escravista. Esta última é a tese sustentada não só por aqueles que de modo explícito reivindicam a herança da Confederação,1421 mas também por um eminente historiador de formação marxista ou com um passado marxista e comunista: "Os proprietários de escra­ vos, por maiores que sejam os seus crimes contra o povo negro, desenvolveram a primeira e única crítica séria em âmbito americano contra as tendências totali­ tárias" do século 20.1412 A polêmica de Calhoun contra a "democracia absoluta", que queria anular os direitos dos Estados e dos proprietários de escravos, 1423 é assim aproximada da denúncia atual da "democracia totalitária". Mas então, nes­ se mesmo contexto pode ser colocada a oposição na Rússia de setores da aristo­ cracia às medidas que, abolindo a servidão da gleba, queriam reforçar o aparelho militar e o potencial de mobilização total; e pode ser colocado também Nietzsche, cantor da escravidão e crítico implacável do Estado, "o mais frio de todos os monstros frios" (Za, 1, Do novo ídolo). Em todos os três países aqui compara­ dos, a escravidão e a servidão da gleba foram eliminadas, ou amplamente preju­ dicadas graças a uma revolução a partir do alto, cujo protagonista é o poder estatal central, que se choca com a oposição mais ou menos áspera da classe aristocrática beneficiária desses dois institutos. Nas três diferentes situações, essa classe social encarna a verdade cruel, sobre a qual Nietzsche não se cansa de insistir, com base na qual a escravidão nas suas diferentes formas volta a entrar na essência da civilização. Por outro lado, essa classe social continua a professar uma religião que, pelo menos aos olhos do nosso filósofo, está em contradição irremediável com a verdade sobre a qual descansa a sua existência e a sua sorte. Na expressão "Junker cristão", o que suscita horror é o adjetivo; e o adjetivo suscita um horror todo particular pelo fato de ser aposto a um substantivo, a uma categoria, que poderia e deve­ ria servir de barreira para a subversão cristã e socialista. Mais uma vez, muito mais que a "inatualidade'', o que define a atitude de Nietzsche é a tentativa de conferir rigor e coerência a tendências em curso.

142 1 Weaver, 1987, p. 78. 1 422 Genovese, 1 995 a, p. 1 15. 1423 Calhoun, 1 992, pp. 120 e 6 1 .

2. A "distinção " aristocrática entre final do Século XVIII e final do Século XIX· Sieyes contra Nietzsche A esse Antigo Regime que parece vivo e vital se refere a reação aristo­ crática que, no final do Século XIX, começa a manifestar-se na Europa e no Ocidente, agitando o pathos da distinção e da distância entre nobreza e plebe. Também nesse caso convém partir da luta contra a Revolução Francesa. No final do Século XVIII, Burke previne contra uma ruinosa onda subversiva que ameaça "poder, autoridade e distinção sociais (power, authority, and distinction);1424 contra a maré do nivelamento plebeu é preciso reforçar que "há mesmo distinções" (some distinctions) a se terem presentes.1425 Se Gentz, na sua tradução do estadista inglês, recorre a outras expressões, Kant, que de algum modo conhece também Burke, 1 426 traduz distinction pelo termo depois caro a Nietzsche. Quem ostenta um "tom de distinção" (vornehmer Ton) são aqueles que pretendem ser depositários de um saber privilegiado inacessível aos mortais comuns e subtraído do controle da razão. No plano social, são "aqueles que podem viver de renda, de modo opulento ou medíocre", sem serem "obrigados a trabalhar para viver". Em conclusão, "todos se acham dis­ tintos na medida em que acreditam que não têm o dever de trabalhar", nem sequer no plano mais propriamente conceituai e filosófico: beati possidentes ! 1 427 No modo de ver de Kant, o tom de distinção é um elemento essencial do modo de se comportar da nobreza e dos seus ideólogos. Naqueles mesmos anos, assumindo um posição centrista, Mounier denun­ cia o revanchismo dos aristocratas que, "aos projetos quiméricos de igualdade absoluta", contrapõem "a apologia das distinções humilhantes". 1 428 A partir, porém, de posições democráticas, Heine condena a posição do aristocrata in­ glês, que lança do alto "um olhar distinto e indiferente (gleichgültig vornehm) sobre a turba (Menschengewühl) abaixo dele", este "monte de seres inferio­ res "; sim, "a sua alegria e a sua dor nada têm em comum com os seus senti­ mentos; acima da gentalha (Menschengesindel) colada à superficie terrestre, a nobreza inglesa paira como um ser de natureza superior". 1 429

1424 Burke, 1 826, vol. V, p. 106 (= Burke, 1 963, p. 2 1 1 ). 1425 Burke, 1826, vol . V, p. 105 (= Burke, 1 963, p. 2 1 O). 1426 Losurdo, 1 983 b, passim . 1427 Kant, 1 900, vol VIII, pp. 3 90 e 395. .

1428 Mounier, 1 80 1 , p. 5. 1429

Heine, 1 969-78, vol. II, p. 542.

O motivo da necessária defesa da . "disti nção" contra a crescente massificação e equalização está presente também no âmbito da tradição libe­ ral . Eis como Tocqueville rotula o ideal perseguido pelos iluministas mais radi­ cais: "Não mais hierarquias na sociedade, não mais classes distintas, não mais categorias estabelecidas; mas um povo composto de indivíduos quase seme­ lhantes e intei ramente iguais".1 430 Infelizmente, esse modelo está muito longe de pronto : está em curso, segtU1do John Stuart Mill, um "nivelamento gradual das várias distinções sociais"; é um "processo de assimilação contínua", favo­ recido pela ··extensão da instrução". Resultado: "o não-conformismo perde qualquer sustentação social" ao passo que se impõe incontestado o "domínio da massa". 1 431 E, como sabemos, também Treitschke faz uma celebração das "classes distintas" (supra, cap. 4 § 5). Obviamente, porém, bem mais enfática é a celebração da "distinção" nos expoentes da reação aristocrática do final do Século XIX, empenhados não já em abrandar ou conter o processo de democratização e "massificação", mas em rechaçá-lo o máximo possível. E de novo vemos Nietzsche conferir radicalidade extrema a uma tendência bem presente na cultura do seu tempo: agora se toma insuperável o abismo que separa as classes altas da sociedade do resto da popu­ lação. A dicotomia plebeu/nobre se configura também como a dicotomia profano/ iniciado, ou como a oposição entre "o exotérico e o esotérico", bem presente em todas as culturas superiores; "em toda parte se acreditava numa hierarquia e não mais na igualdade e nos direitos iguais" (JGB 30). Os dois extremos do sistema hierárquico não só não podem ser reconhecidos num saber comum, mas na rea­ lidade não podem nem sequer comunicar-se entre eles: Os nossos conhecimentos mais elevados podem - e até deve ser assim! soar como loucuras e, em algumas circunstâncias, como delitos, quando chegam indevidamente ao ouvido daqueles que não estão estruturados (geartet) nem predestinados para isso [ . . . ]. O que serve de alimento e de restauração a uma espécie (Art) superior de homens deve ser quase um veneno para uma espécie (Art) humana bastante diferente e inferior. As vir­ tudes do homem comum talvez significassem, num filósofo, vícios e fraque­ zas; é possível que um homem de alta linhagem (hochgearteter) vindo a degenerar (entartet) e sucumbir, chegue só desse modo a possuir as carac­ terísticas do homem comum, em virtude das quais, no ignóbil mundo em que sucumbiu, sente a necessidade de venerá-lo agora como santo (JGB, 30).

143º Tocqueville, 195 1 , vol. II, 1 , p. 213 (AR, livro III, cap. 3). 1431 Mill, 1 972, pp. 130-l (= Mill, 198 1 , pp. 1 04-5).

Para confinnar a continuidade do processo ideológico que parte da luta contra a Revolução Francesa pode ser interessante notar que em Sieyes pode­ mos ler uma crítica antecipada das posições assumidas quase um século depois por Nietzsche. AArt, no centro do discurso do teórico do radicalismo aristocrá­ tico, declinada no plural e conjugada numa série de substantivos e verbos com­ postos, é a espece sobre cuja unidade Sieyes insiste no curso da sua dura polêmica contra o a aristocracia nobre. Ele denuncia que "os p rivilegiados che­ gam até a se considerar como outra espécie de homem", bem superior à "gente de nada" (gens de rien) que é afinal a comunidade humana; eles - insiste o representante do Terceiro Estado - não hesitam em autocelebrar-se como "uma nação eleita (choisie) na nação". 1432 No entanto, veremos Nietzsche definir como "os 'eleitos de Deus "' o círculo aristocrático por ele chamado a distin­ guir-se (infra, cap. 28 § 6). As características celebradas ou invocadas pelo teórico do "radicalismo aristocrático" são outros tantos motivos de acusação na requisitória pronunciada pelo revolucionário francês . Este acusa a aristocracia de sentir "um movimento involuntário de repulsão", quando lhe acontece de entrar em contato com a gente comum: "O falso sentimento de uma superioridade pessoal é tão caro aos privile­ giados que eles gostariam de estendê-lo a todas as suas relações com o resto dos cidadãos. Eles não são de modo algum feitos para serem confandidos, para estar ao lado, para encontrar-se, para estar junto etc. etc.".1 433 O que Sieyes evidencia criticamente com a sua escrita em itálico é o que Nietzsche recomenda que os membros da "nova nobreza" evitem de modo absoluto. Mas os pontos de contato entre os dois autores - ficando claros os juízos de valor opostos - vão ainda além. Vimos o filósofo alemão celebrar o orgulho do aristocrata, que proclama diante de si e dos outros : "Eu tenho origem" (supra, cap. 1 1 , § 3). É uma posição da qual o revolucionário francês zomba um século antes: Nos velhos castelos, o privilegiado nutre maior respeito por si mesmo, pode entreter-se mais demoradamente em êxtase diante do retrato dos seus ante­ passados e inebriar-se mais, à vontade, pela honra de descender de homens que viviam nos séculos XIII e XIV; na realidade ele não suspeita que tal vantagem pode ser comum a todas as fanúlias. Na sua opinião, é uma carac­ terística peculiar de certas raças. 1 434

1432 Sieyes, l 985 a, p. 99. 1433 Sieyes, 1985 a, p. 100. 1434 Sieyes, l 985 a, p. 99.

Voltemos a Nietzsche. Em Além do bem e do mal lemos: A profunda veneração pela idade antiga e pela tradição [ . . ], a fé e a opinião preconcebida a favor dos antepassados e em detrimento dos pósteros são um elemento típico da moral dos poderosos; e se, inversamente, os homens das "ideias modernas" cressem, quase por instinto, no "progresso" e no "futuro" e carecessem sempre de respeito pela idade vetusta, tudo isso já seria um indício suficiente da origem não nobre dessas "ideias" (JGB, 260). .

E de novo ressoa antecipadamente o escárnio de Sieyes : O que é um burguês diante de um nobre privilegiado? Este tem os olhos

incessantemente apontados sobre o nobre tempo passado. Divisa todos os seus títulos, toda a sua força, vive dos seus antepassados. O burguês, ao contrário, com os olhos sempre fixos no ignóbil presente e no futuro incerto, sustenta um e prepara o outro com os recursos da sua indústria [ . . ] . Ah! por que o privilegiado não pode ir ao passado gozar dos seus títulos, das suas grandezas e deixar para uma nação estúpida o presente com toda a sua ignobilidade?1435 .

Durante a sua requisitória e a sua batalha política contra o Antigo Regime, Sieyes tem em mente também as boas maneiras da aristocracia: O privilegiado francês não é cortês porque crê que deva ser cortês com os

outros, mas porque acredita que deva ser para si mesmo. Não é o direito do outro que ele respeita, é a si mesmo, à sua própria dignidade. De modo nenhum quer ser confundido, por causa de suas maneiras vulgares, com aquilo que ele chama de má companhia. Poder-se-ia dizer que ele teme que o objeto da sua cortesia o tome por um não-privilegiado seu semelhante. 1 436

E agora leiamos Nietzsche. O que caracteriza o aristocrata é "o prazer da forma: ele protege tudo o que é formal, a convicção de que a cortesia seja uma das grandes virtudes; a desconfiança para com toda espécie de abandono"; esse cuidado pelas formas "delimita, mantém longe, protege de ser trocado por outros" (XI, 543-4); o aristocrata sabe "escolher para companheiro aquele ví­ cio maroto e jovial que tem o nome de cortesia" (JGB, 284). Em conclusão, o mundo denunciado pelo revolucionário francês volta um século depois como sinal de distinção da nova nobreza, mas volta com o séquito de exageros que a operação de rejuvenescimento artificial comporta. Mesmo 1 435 Sieyes, 1 985 a, p. IO l . 1 436 Sieyes, 1 985 a, p. 1 02.

sublinhando que, com as suas boas maneiras, o nobre pretende apenas reforçar a dignidade própria e da classe própria, Sieyes, todavia, reconhece nele a capa­ cidade de ser cortês com todos. Notamos, porém, um deslize e uma queda de tom em Nietzsche, o qual formula assim uma das regras de vida à qual o aris­ tocrata se aferra: "A convicção de ter deveres apenas para com os seus iguais; para com os outros a gente se comporta à vontade" (XI, 543). A comparação feita aqui entre a denúncia da "distinção" aristocrática em Sieyes e a sua celebração, 'com quase um século de distância, em Nietzsche, tomou-se possível devido a uma circunstância histórica precisa. Depois de ter­ se manifestado durante a luta contra a Revolução Francesa enquanto tal, a reivindicação da "distinção" faz o seu reaparecimento, ainda que com modali­ dades diferentes, durante a reação aristocrática.

3. Antigo Regime e papel militar da aristocracia A palavra de ordem do otium et bel/um também nos reconduz a esse movi­ mento e a esse clima espiritual. Bastante caro a Nietzsche (FW, 329), tal lema descreve e transfigura as condições de vida e os valores da aristocracia em grande parte do Ocidente da segunda metade do Século XIX. Enquanto funda a sua riqueza e o seu esplendor na posse da terra, cultivada por uma população agrícola sobre a qual pesa ainda a herança feudal, a aristocracia é chamada por tradição a ocupar os outros postos do aparelho militar. A relação senhor/servo se reproduzia no exército como relação oficial/soldados; e por longo tempo o senhor e o oficial conservaram na Prússia o "direito de punição corporal" em detrimento do servo e do soldado. 1437 Considerações análogas podem ser feitas também para a Rússia. 1438 Também nesse caso, o beneficiário do otium é ao mesmo tempo o protagonista do bel/um, assim como quem suporta o peso do otium e do bel/um é a massa dos servos ou dos filhos dos servos . Ainda nas vésperas da primeira guerra mundial, "era o corpo dos oficiais do exército imperial, essa perfeita e majestosa encarnação da Alemanha prussificada, que representa o elemento feudal na sua forma mais concentrada, especialmente nos altos escalões". 1 439 Isto não vale só para o II Reich, nem sequer apenas para os impérios centrais. Tomemos a Inglaterra: "O corpo dos oficiais das forças armadas inglesas, especialmente no vértice da hierarquia, permanecia um orga1437 Koselleck, 1 975, pp. 641 -6. ' 143� Figes, 2000, pp. 89-90. 1 439 Mayer, 1 982, p. 287.

nismo altamente exclusivo. Por nascimento e formação, estava enraizado num código cujos valores eram os do gentleman típico".1440 E enquanto gozavam da sua propriedade e da sua riqueza, os oficiais patrícios se comportavam como "heróis cavalheirescos", chamados a dar prova de "coragem espartana e estoica".1441 Inclusive se atravessarmos o Atlântico, o quadro não muda radical­ mente, pelo menos no que diz respeito ao Sul. O lema otium et bel/um é de algum modo inato não só entre os Junker prussianos, mas também na aristocracia escravagista do Sul dos Estados Unidos . Esta última está decidida a combater a Guerra de Secessão a fim de salvaguardar a sua "civilização peculiar" e evitar ser reduzida à categoria de "uma nação de mercadores ianques".1 442 Fatores que estimulam a celebração da guerra são também a expansão colonial e a esperança, alimentada já por não poucos autores liberais, de que ela possa constituir um a11tídoto com relação à ideologia vulgarmente hedonística, na onda da qual se desenvolve a agitação democrática e socialista. "As massas querem tranquilidade e lucro", portanto, a paz, mas o mérito da guerra reside exatamente no fato de pôr em crise esta visão filisteia da vida, observa Burckhardt, que a esse propósito cita o lema de Heráclito1443 caro também a Nietzsche: "A guerra é a mãe de todas as coisas boas" (FW, 92). Renan atribui ao mérito da "raça germânica" ter-se "dedicado à guerra e ao patriotismo"; desse modo ela se subtrai ao contágio não só da democracia, mas também do "materialismo burgu­ ês, o qual não quer outra coisa senão gozar tranquilamente das riquezas adquiri­ das". 1 444 É por isto que à Alemanha foi poupado o horror da Comuna de Paris. A posição de Tocqueville não é muito diferente, como surge em particular de uma carta escrita por ocasião da crise internacional de 1 840, na qual o liberal francês, sem esconder "uma certa satisfação" com a prova de força que se mostra no horizonte, confessa assim a um amigo: "O senhor conhece o gosto que sinto pelos grandes acontecimentos e como estou farto da nossa medíocre sopa democráti­ ca e burguesa". 1445 Não se trata de um tema ocasional . A democracia na A mé­ rica é mais explícita: "Não quero absolutamente falar mal da guerra; a guerra abre quase sempre a mente de um povo e eleva o seu espírito".1446 Agora se compreende bem a celebração da guerra do ópio: as considerações geopolíticas 1440 Mayer, 1982, p. 285. 1441 Cannadine, 199 1 , pp. 79-80. 1441 É o caso de um ideólogo do Sul, in Genovese, 1 998, p. 1 04. É o mundo do qual Mark Twain faz troça (cf. Kiernan, 199 1 , pp. 396-7). 1443 Burckhardt, 1978 a, pp. 150 e 1 1 8-9. 1 444 Renan, 1 947, vol. 1, pp. 332-3 e 383. 1445 Tocqueville, 1 95 1 , vol. VIII, l , p. 42 1 (carta a Gustavede Beaumont de 9 agosto de 1840). 1446 Tocqueville, 1 95 1 , vol. 1, 2, p. 274 (DA, livro II, parte III, cap. 22).

sobre a marcha irreprimível da "raça europeia" (supra, cap . 9 § 5) se entrelaçam com as considerações morais e estéticas sobre o papel da guerra como antídoto ao perigo da banalidade e da vulgaridade inserida no mundo moderno: "Não fale­ mos demasiado mal, portanto, do nosso século e de nós mesmos; os homens são pequenos, mas os acontecimentos são grandes". 1447 Se da França passannos para a Inglaterra, vemos que não está certamen­ te ausente o motivo da ce!ebração da guerra como remédio, para dizer com Carlyle, para o "Evangelho de Mamona" ou, para citar desta vez um estudioso contemporâneo, como "ato de purificação do materialismo dominante". Às vezes - é o caso de Ruskin - para confirmar a função purificadora da guerra é invocada a civilização que floresceu na antiga Grécia e na antiga Roma, o esplendor de um mundo mantido acordado por uma constante tensão bélica. 1448 Nem se deve pensar que esse tema inspire na Inglaterra apenas autores e correntes desconfiados ou hostis em relação ao liberalismo. O liberal inglês Reeve, destinatário da carta em que Tocqueville celebra a guerra do ópio, é quem, por ocasião da guerra da Crimeia, sempre no curso da correspondência com o liberal francês, se exprime em tennos ainda mais magniloque�tes: Vivemos mun tempo em que é preciso saber sofrer e ver sofrer. A espada da guerra penetra até a nossa medula. Porém, que poderosa influência essa luta desenvolve no corpo político e social! Que união de sentimentos e de esforços ela produz! Que despertar de quais forças que fazem, depois de tudo, a grande:za de um povo! Aceito de boa vontade todas as ru1gústias e todas as dores da guem1, pelo que ela nos proporciona, no plano moral mais ainda que no plano político.1 449

O tema da guerra como antídoto para a democracia radical e para o soci­ alismo, que desempenha um papel importante em Nietzsche e na cultura oci­ dental entre os séculos XIX e XX, começa a surgir já nas décadas anteriores, no âmbito de uma sociedade, sim, liberal, mas por um lado cheia de sobrevivên­ cias e de recordações do Antigo Regime, e, por outro lado, já toda projetada para a expansão colonial. Mais uma vez, convém partir das lutas que se travam na esteira da Revolução Francesa. Burke contrapõe à mediocridade e vulgaridade da sociedade "dos sofis­ tas, dos economistas e dos contadores", que está emergindo com o colapso do Antigo Regime, a "glória" da "antiga cavalaria" e dos guerreiros medievais. 1450 1 447 Tocqueville, 195 1 , vol. VI, l , p. 58. 1 448 Barié, 1 953, pp. 70, 79 e 275; sobre a condenação da "política de Mamona" na Inglaterra do Século XIX, cf. também Bodelsen, 1968, pp. 105 e 1 1 5. 1 449 Tocqueville, 195 1 , vol. VI, 1, p. 150. 1450 Btlfke, 1826, vol. V, pp. 149-50 (= Burke, 1963, p. 244).

Com algumas décadas de distância, Nietzsche sublinha que os vornehme Krieger, os "guerreiros nobres" e distintos (AC, 5 7), que se contrapõem ao rebanho e à equalização, fazem parte da aristocracia, das classes e dos indivíduos "distintos". Desta opinião é também Langbehn que, citando e subscrevendo a tese de Moltke, o conde prussiano triunfante em Sedan, declara que "o exército alemão é a instituição 'mais distinta' (vornehmste) no Reich alemão". 1 45 1 Portanto, o elemento peculiar da reação aristocrática é que, nela, a cele­ bração da guerra se configura sempre mais claramente como a celebração ao mesmo tempo da figura do guerreiro. Os guerreiros fazem parte da aristocra­ cia num duplo título. Encarnam a oposição ao sentimentalismo feminino, que queria acabar com as asperezas da vida, e ao mesmo tempo anula o sentido da distância. E, também fazem parte porque a guerra, com a hierarquia e o espírito de sacrificio que ela comporta, implica na estranheza ao lucro e ao trabalho e, por isso, ao espírito mercantil e ao discurso socialista. Ao enaltecer o bellum, Nietzsche às vezes opõe alemães e ingleses . Es­ tes últimos parecem ter "renunciado à guerra" e nisso se assemelham aos romanos, que, '"construído o Império, se cansaram das guerras" (MA, 477). Podemos encontrar também esse tema na cultura europeia, por exemplo, num autor contra o qual Nietzsche desenvolve uma dura polêmica. Segundo Renan, o caráter guerreiro por excelência é representado pelo "elemento germânico". Como demonstrava a derrota sofrida em Sedan, ele já fora expulso da França, de modo que esta nação, "outrora brilhante e guerreira", caiu numa situação "indistinta de mediocridade". Mas o elemento germânico e guerreiro está a ponto de ser expulso também da Inglaterra, para ser suplantado por um espírito "mais doce, mais simpático, mais humano", o que faz também o escritor fran­ cês pensar na decadência do Império Romano. 1452 É um pouco singular essa caracterização em perspectiva vulgarmente mercantil e pacifista da Inglaterra. A Nietzsche (e a Renan) se poderia opor um liberal inglês, Richard Cobden, que, em meados do Século XIX, faz um balanço bem diferente da política externa e militar do seu país: Temos sido a comunidade mais agressiva e combativa que jamais existiu desde a época do Império Romano. Depois da revolução de 1 688, gastamos mais de um bilhão e quinhentos mm1ões [de libras esterlinas] em guerras, nenhuma delas foi combatida em nossas praias, ou em defesa dos nossos lares e das

1 45 1 Langbelm, 1922, p. 35. 1 452 Renan, 1947, vol. 1, pp. 348-50.

nossas casas [ ... ]. Esta propensão combativa foi sempre reconhecida, sem exceção, por todos aqueles que estudaram o nosso caráter nacional.1453 Para compreender a ênfase particular da cultura alemã na celebração das vir­ tudes da guerra, devem-se levar em conta dois fatores.

É só no irúcio dos anos 1 870

que a Alemanha consegue construir-se como Estado nacional unitário. Depois dos

da resistência e da sublevação armada contra Napoleão, o atraso histórico é preenchido com uma série de'gllerras (com a Dinamarca, a Áustria e a França), que anos

obviamente não podem ser conduzidas sem estimular no país um espírito pugnaz e

combativo. Em segundo lugar, há de se ter presente que, graças à hegemonia europeia

e mundial já adquirida, a Inglaterra pode recorrer, mais facilmente do que a Alemanha, a uma ideologia "pacifista'', apresentando as suas conquistas coloniais como uma contribuição para a causa da paz; não só John Stuart Mill, como já vimos, mas até um defensor de incessantes guerras de conquista como é Rhodes pode celebrar o impé­ rio planetário que aspira a edificar como o pressuposto da realização da paz perpétua. Portanto, a irreprimível expansão colonial da Grã-bretanha, por um lado, contribui para uma causa nobre e desinteressada, por outro lado, torna mais poderoso e mais rico o país protagonista dessa marcha triunfal. Em síntese: "filantropia +

5%".1454

Exatamente por isto, porém, aos olhos de Nietzsche, pelo menos nos últimos anos da sua vida consciente, "o inglês é o povo do perfeito cant", ou seja, o povo que encarna a hipocrisia moral e a entrelaça de modo indissolúvel com o espírito mercantil (GD,

Incursões de um inatual, 1 2).

4. Otium et bellum, "guerra e arte" A aristocracia, da qual a reação aristocrática deseja a recuperação, está numa relação conflitual sej a com as massas populares, sempre mais irrequie­ tas, seja com uma burguesia que tende a solapá-la. Ao polemizar contra aque­ les que desejariam pôr em discussão a função política e social da nobreza, Burke declara que absolutizar, na constituição dos organismos representativos, o princípio eletivo, "abolindo totalmente títulos e funções hereditárias, nivelando todas as categorias sociais'', significa de fato sancionar o poder extraordinário

do "dinheiro", 1 455 com resultados desastrosos em todo nível: "A nobreza é um

ornamento gracioso da ordem civil, é o capitel coríntio de uma sociedade refi-

1453 In Pick, 1994, p. 33. 1454 In B. Williams, 1 92 1 , pp. 5 1-2. 1455 Burke, 1 826, vol. VII, pp. 18-9.

nada"; na França ou alhures os nobres se distinguem enquanto "homens de espírito elevado e de delicado senso de honra [ . . . ], com um belo ar militar e ao mesmo tempo com uma certa familiaridade com a literatura".1456 Junto com a "glória" da "antiga cavalaria", também a beleza e a arte são chamadas a opor­ se ao processo de vulgarização e massificação do mundo. Algumas décadas mais tarde, na Alemanha, ao chamar à luta contra a demo­ cracia, Langbehn lança a palavra de ordem "guerra e arte". Quem se exprime assim é um autor que se considera "discípulo" de Nietzsche: de fato, o slogan que se acabou de ver parece fazer eco ao slogan otium et bel/um, onde o otium é a condição indispensável para a produção da civilização e, em primeiro lugar, da arte. O exemplo da Grécia demonstra isso de modo particular, e também Bwke faz referência à Grécia, com a sua referência ao "capitel coríntio", e, sobretudo, Langbehn: '"guerra e arte' é uma palavra de ordem grega, alemã, ariana".1457 Na Grã-bretanha, sempre no final do Século XIX, Ruskin sentencia: "À medidaque se estende a paz na Europa, as artes decaem"; como antídoto para a mediocridade e a vulgaridade, a guerra é um podero­ so estímulo para a arte, e com ela resulta inextricavelmente interligada.1458 No que diz respeito à Itália, em 1 900 Trotski chama a atenção sobre D'Anmmzio (achegado a Nietzsche) e sobre a sua insistência em apelar em primeiro lugar aos "poetas" porque eles, recorrendo à evidência imediata da sua excelência cultural e humana, funcionam como diques para a onda igualitária e massificadora da democracia.1459 Coragem do guerreiro e culto da beleza são dois elementos constitutivos do gesto aristocrático de distinção. Isto emerge com particular clareza das páginas de Langbehn, que celebra a arte e a "visão artística do mundo" como sinônimos de criatividade, concedida a bem poucos e, portanto, como sinônimo de "distin­ ção" e de "aristocracia". Estamos diante da refutação mais radical e, ao mesmo tempo, mais imediatamente evidente da superstição democrática com base na qual a difusão da instrução comportaria o desenvolvimento da civilização. A arte não é adquirida mediante aprendizado e, portanto, remete à natureza, a qual é "edificada de modo aristocrático".14(,() Bem longe de ser sinônimo de ocupação inocente e colocada acima da multidão, a arte, enquanto aristocracia natural, representa a antítese mais radical em relação ao socialismo que, ao contrário, significa nivelamento e "recaída no princípio do rebanho". 1461 Por outro lado, 1 456 Burke, 1 826, vol. V, pp. 25 1 e 254-5 (= Burke, 1 963, pp. 3 1 5 e 3 17). 1457 Langbehn, 1 922, p. 1 93. 1 458 Pick, 1 994, pp. 1 03-4. 1 459 Trotski, 1 979, pp. 1 1 8-9. 1460 Langbehn, 1 922, pp. 33-5 e 59-6 1 . 1 461 Langbehn, 1 922, p. 1 4 1 .

exatamente porque remete

à natureza, que nunca está parada, a arte está total­

mente em contradição com o polemos . Tornando imediatamente visível a reali­ dade de uma aristocracia natural e estando intimamente ligada

discors

e ao

polemos,

à concordia­

a arte é para Langbehn sinônimo da soberania que o

homem superior, o grande artista, exerce sobre a matéria bruta constituída pela massa e pela humanidade comum. Ser político no sentido melhor do termo "signi­ fica ser criativo e ser artista':. Portanto, "a arte é uma tarefa ainda superior" com respeito

à política, que ela abrange em si: "Todas as forças espirituais superiores

gravitam em torno do conceito de arte, de modo que ela representa o destino autêntico e cabal do homem" . 1462 Entendida nesse sentido amplo e combativo, a arte é semelhante

à "Beatriz" dantesca que, através do inferno da mediocridade

moderna, conduzirá o "alemão" para "alturas mais puras"; as esperanças de regeneração podem ser postas de novo só numa "atividade artístico-política" (e bélica) digna deste nome.1463 Além das massas populares, coragem do guerreiro e culto da beleza per­ mitem distinguir dos parvenus, que consideram e gozam a riqueza como um valor em si, a autêntica aristocracia. Ao contrário da "antiga riqueza" - obser­ va Bagehot na Inglaterra - a "nova riqueza" ou a "plutocracia" tem ainda algo de "rude"

(coarse).1464

Somos levados a pensar nas "mãos vermelhas gordu­

chas" de que fala Nietzsche a propósito dos "industriais" que, sem nenhuma aura de superioridade, a custo se distinguem dos seus operários ou servos

pra, cap .

(su­

1 1 § 2). Acossados pelo frenesi da acumulação e do trabalho, esses

"escravos da riqueza" são a "plebe dourada e falsificada" que bem pouco se distingue da massa dos famintos : "Plebe em cima, plebe embaixo ! " (Za,

mendigo voluntário).

IV, O

Desse modo "o fim próprio da riqueza é esquecido", de

modo que esses "'ricos ' são os mais pobres" (X, 292). A "nova riqueza" é calorosamente convidada por Bagehot a andar de comum acordo com a "antiga riqueza", a fim de evitar alimentar ulteriormente o descontentamento e o protesto das massas populares .1465 Na medida em que rejeita participar do bloco político-social aqui recomendado, a "plutocracia" se torna sinônimo, também nos Estados Unidos, ao mesmo tempo de materialismo crasso e de subversão.1466 E este é o ponto de vista também de Nietzsche, que prevê a fusão social e eugênica das classes chamadas a fazer frente vulgaridade e da degeneração modernas . 1462 Langbehn, 1463 Langbehn,

1922, pp. 225 e 47. 1922, pp. 107 e 225. 1464 Bagehot, 1974 a, pp. 178-9. 1465 Bagehot, 1974 a, pp. 178-9. 1466 Surnner, 1 992, pp. 141-5.

à maré da

5. O guerreiro e o soldado, a guerra e a revolução Otium et bel/um, "guerra e arte" podem fundir-se juntas de modo tão harmonioso que Nietzsche pode colocar o "corpo prussiano dos oficiais" entre as obras de arte por ele admiradas (XII, 1 1 8-9) . É nisso que, em primeiro lugar, se deve confiar para enfrentar e rechaçar a ameaça democrática e subversiva: "o futuro da civilização alemã âescansa sobre os filhos dos oficiais prussianos" (XI, 5 69). Não era esse o ambiente que, mais do que qualquer outro, mostrando simpatia pela causa da Confederação escravista (supra, cap . 1 2 § 5), tinha demonstrado haver compreendido a verdade essencial em cuja base a escravi­ dão é o fundamento ineliminável da civilização? Em todo caso, como "trata­ mento" contra a vulgarização e a massificação do mundo moderno, Nietzsche, que já nos anos juvenis celebra o "gênio militar" (supra, cap . 2 § 6), continua até o fim a recomendar "o militarismo a partir de Napoleão, que via na civiliza­ ção a sua inimiga natural" (XIII, 427). Nesse sentido, o filósofo exprime sua alegria pelo "desenvolvimento militar da Europa" (XI, 263). No entanto, é preciso especificar que o objeto de celebração aqui é a figura do guerreiro, não a do soldado. Zaratustra previne contra o risco da confusão: "Vej o muitos soldados ; poderia ver muitos guerreiros! ' Uniforme' chama-se a roupa que vestem. Oxalá não seja uniforme o que escondem sob ela! " (Za, 1, Da guerra e dos guerreiros). O exército de massa implica um elemento de equal ização e de es magamento das diferenças de categoria: Nietzsche identifica nele com lucidez um momento de crise, pelo menos poten­ cial, do Antigo Regime. Tanto mais porque é l ícito alimentar dúvidas sobre a lealdade da massa mobilizada. Já um fragmento da primavera de 1 8 84 observa que "o armamento do povo é, em última análise, o armamento da plebe" (XI, 7 1 ). Cerca de quatro anos depois, o filósofo chama a atenção para os graves perigos inerentes à situação que se criou: tomou-se "apto para o serviço mili­ tar" o "operário", que rasgou ao mesmo tempo "o direito de associação sindi­ cal" e "o direito político ao voto" e que, apesar de tudo, continua a perceber como uma "injustiça" a sua condição (supra, cap. 1 0, § 3). O desenvolvimento do exército de massa, e da que se chamará mobilização total, vai lado a lado com a extensão da cidadania política e o reconhecimento dos outros direitos para as classes populares. A denúncia de Nietzsche se concentra sobre este segundo aspecto. Também fora da Alemanha a celebração da figura do guerreiro se entre­ laça facilmente com a desconfiança ou a hostilidade em relação à figura do soldado. Enquanto lembra com termos nostálgicos as guerras semelhantes a torneios cavalheirescos que consagravam a coragem e a nobreza de espírito,

Ruskin exprime o seu desapontamento pelas guerras nas quais quem decreta a vitória é a máquina ou, pior, "a plebe mais irritada".1467 Há, todavia, um momento em que Nietzsche declara estar pronto a reco­ nhecer-se, ainda que em determinadas condições, no exército de massa e até na mobilização total . É o que resulta de um fragmento relativo ao fim da vida consciente do filósofo: Ninguém pretende ma is rigorosamente do que eu que todos sejam soldados: não M nenhum outro meio para educar um povo inteiro para a virtude da obediência e do comando, ao passo cadenciado no comportamento e nos gestos, à atitude alegre e corajosa, e de tal modo também à liberdade do espírito: é há muito tempo o elemento mais racional da nossa educação que todo homem seja um soldado (XIII, 645).

Já Zaratustra se dirige assim aos guerreiros: "Rebelião - esta é a superi­ oridade de um escravo. A vossa superioridade seja a obediência! Também o vosso comando seja obediência! Para um bom guerreiro 'tu deves ' soa mais agradável do que 'eu quero'. E tudo aquilo que há de querido deveis esperar que vo-lo comandem" (Za, 1, Da guerra e dos guerreiros). A disciplina e a hierarquia da vida militar são aqui explicitamente recomendadas em contraposição à agitação e ao espírito de revolta do movimento operário e socialista. Também nesse caso, estamos na presença de um tema difuso a nível europeu. Se Carlyle chama a massa dos vagabundos a respeitar as ordens do senhor com "obediên­ cia viril e soldadesca e muita coragem'', 1468 Nietzsche exprime este desejo: "Os operários deveriam aprender a sentir-se como soldados" (XII, 350). Mas o fragmento anteriormente citado do final de 1 8 88 ou dos primeiros dias de janeiro de 1 8 89 contém um elemento de novidade: "Não há qualquer outro meio para difundir, além de todo abismo de categoria, espírito, obrigação, uma benevolência viril recíproca em todo um povo" (XIII, 645). O da comuni­ dade guerreira, apadrinhada pela proximidade do perigo e pelo desafio da mor­ te, se tornará um motivo central da Kriegsideologie a partir sobretudo do primeiro conflito mundial . Pelo menos por um momento, a preocupação como ''operário militante hábil" cede lugar à expectativa confiante de que a mobilização total possa abrir novas perspectivas de controle social das massas populares. Mesmo com esses elementos de oscilação e de reflexão atormentada, pode-se dizer que, no conjunto, o que domina no último Nietzsche é o sentimen­ to de angústia e de desdém pelos gravíssimos perigos de subversão inerentes 1 467 In Pick, 1994, pp. 107-8. 1 468 Carlyle, 1983, p. 58; cf. Marx-Engels, 1955, vol. VII, p. 264.

na crescente agitação chauvinista e na consequente mobilização militar que caracterizam o panorama europeu do final dos anos 1 8 80. Há de se acrescen­ tar que, com as suas oscilações e a sua angústia, o filósofo demonstra ainda uma vez sua extraordinária capacidade de penetração. As razões do culto do bellum na aristocracia e na reação aristocrática foram bem explicadas por um eminente sociólogo. Se "a máquina é niveladora, vulgarizadora", o militarismo e a guerra prometem trazer de- novo à ordem do dia não só a disciplina, mas também o sentido da hierarquia, da coragem e da honra, em última análise, os valores do Antigo Regime.1469 E é por isso que a invocação da guerra e, possi­ velmente, de uma "esplêndida pequena guerra" está tão difundida na cultura reacionária do tempo. 1470 Nietzsche certamente não é estranho a tal tema, mas ele sabe olhar ou intuir o outro lado da moeda: o apelo ao povo em armas, a sua mobilização e rebelião teriam de fato concorrido para uma onda revolucionária sem precedentes .

1 469 Veblen, 1904, pp. 358 e 398-9. 1 470 Losurdo, 1 996, cap. III, 3 .

23 SOCIALDARWINISMO, EUGENIA E MASSACRES COLONIAIS 1 . Seleção e contrasseleção tema do polemos, do bel/um, da guerra, do combate, da luta é onipresente

O em Nietzsche. Mas na opinião do autor de Ecce Homo, só podem ser os

"burros eruditos" que aproximam o seu pensamento do darwinismo (EH, Por­ que escrevo /;vros tão bons, 1 ) . Na realidade, o peso da leitura de Darwin na evolução de Nietzsche é evidente. A visão da vida como "combate", deduzida da antiguidade clássica, encontra agora uma confinnação também no plano "científico". "Hoje se redescobriu por toda parte a luta, e se fala de luta das células, dos tecidos, dos órgãos, dos organismos" (IX, 487). É finalmente refu­ tada, em todo nível, a visão que gostaria de consagrar "um falso conceito de hannonia e de paz como a condição mais útil". Ao contrário, "para obter algo de bom, é preciso por toda parte um forte antagonismo" (IX, 558). A locução adverbial grifada por mim exprime com clareza a vontade de não limitar ao âmbito da natureza as descobertas e a visão do mundo do grande naturalista inglês . É um aspecto essencial do socialdarwinismo. Spencer condena toda interferência estatal na economia com o argumen­ to de que é preciso não colocar obstáculos à lei cósmica que exige a eliminação dos incapazes e fracassados da vida: ''Todo o esforço da natureza é de desem­ baraçar-se deles, l impando o mundo da sua presença e abrindo espaço para os melhores". Todos os homens estão como que submetidos a um julgamento de Deus : "Se estão realmente em condições de viver, eles vivem, e é justo que vivam. Se não estão realmente em condições de viver, eles morrem, e é justo que morram". 1471 Aos olhos de Sumner, a loucura do socialismo reside exata­ mente na sua pretensão de salvar os indivíduos das dificuldades ou durezas da luta pela existência e da competição da vida mediante a intervenção do 'Esta­ do"'.1472 Já conhecemos o sarcasmo de Nietzsche a propósito dos "supérflu­ os" que pretendem ser salvos pelo Estado (supra, cap . 1 0, § 3). No entanto, também nesse caso o protesto do filósofo "inatual" pode ape­ lar para um fato real: ele denuncia a mesquinhez economicista da categoria de 1 471 Spencer, 1877, pp. 4 14-5. 1 472 ln Hofstadter, 1944-45, p. 48.

"luta pela existência", simples manifestação particular, e plebeia, de um fenô­ meno bem mais vasto que é a vontade de poder; em todo caso, contrariamente a tudo quanto creem os expoentes mais ingênuos daquela corrente de pensa­ mento, a seleção não consagra necessariamente o triunfo dos melhores: "Quem nos garante [ . . . ] que a raça dos conquistadores e dos senhores, a dos arianos, não esteja sucumbindo também fisiologicamente?" (GM, 1, 5). Devemos então considerar. Nietzsche estranho ao socialdaIWinismo? Na realidade, ao se colocar a angustiada pergunta ele não está absolutamente iso­ lado. A eugenia nasce e se afirma a partir exatamente da preocupação pela seleção ao contrário em curso, a partir do grito de alarme, lançado também por Nietzsche, pela "comprometedora fecundidade" das classes inferiores e dos mal sucedidos (supra, cap. 1 9, § 3); graças à sua proliferação - acentua por sua vez Galton - a plebe corre o risco de ficar com a vantagem. 1473 Do outro lado do Atlântico, o já citado Sumner se pergunta se a "sobrevivência dos mais capazes" não está se transformando na "sobrevivência dos mais incapazes". 1474 É sem sentido e perigoso entregar-se a uma leitura consoladora das leis que presidem a evolução: "As serpentes podem sobreviver onde os cavalos mor­ rem, ou o homem branco altamente civilizado pode morrer onde os hotentotes conhecem um crescimento exuberante". 1475 Infelizmente - insiste Lapouge o "gênio ariano" está em graves dificuldades; "a raça com as qualidades ser­ vis" está levando vantagem. 1 476 O efeito ruinoso da demografia (a maior fecundidade das classes populares) é ulteriormente potenciado pela sua combi­ nação com a difusão da filantropia. Referindo-se exatamente a Nietzsche, em 1 895 Ploetz previne contra o perigo da "contrasseleção'', melhor, do "cresci­ mento da contrasseleção" favorecido pelo triunfo do "pensamento humanitário da igualdade dos direitos e dos "ideais de humanidade e de justiça" .1477 Às vezes, em vez de "contrasseleção", se prefere falar de "evolução re­ gressiva". Assim está já no título de um livro publicado em Paris em 1 897 (L 'évolution régressive) e citado com simpatia, dois anos depois, por Vacher de Lapouge, o qual, por sua vez, insiste: "A seleção acontece frequentemente no sentido daqui lo que é pior" .1478

1473 Galton, 1869, pp. 356-7. 1 474 Sumner, 1992, pp. 189-90. 1 475 Sumner, 1992, p. 223. 1 476 Lapouge, 1896, p. 67.

1477 Ploetz, 1 895, pp. 183 seg. e 1 94-5. 1 478 Lapouge, 1977, pp. 502-3 .

Nessa direção, infelizmente, pode levar também um fenômeno de per si benéfico como o da guerra. É uma preocupação que acompanha N ietzsche já desde o período "iluminista". Ela está no fundamento da ruptura com Bismarck e com os nacional-liberais, culpados por não perceberem que "a maior desvan­ tagem dos exércitos nacionais, hoje tão exaltados, é constituída pelo desperdí­ cio de homens da mais alta civilização". O chauvinismo e as guerras na Europa e no Ocidente favorecem poqerosamente a subversão, promovendo o esgota­ mento de forças das quais se deveria fazer uso com grande "parcimônia e escrúpulo": de fato, "são necessários grandes espaços de tempo para criar as condições favoráveis fortuitas para o nascimento de cérebros tão delicada­ mente organizados ! " (MA, 442). É uma preocupação que volta com intensidade dobrada no final da vida consciente do filósofo: por ocasião de guerras ou de revoltas, são os "fortes" que são sacrificados, cujo número se vê constantemente diminuir, enquanto "os fracos possuem um tremendo instinto que os induz a se pouparem, a se conser­ varem, a se sustentarem reciprocamente" (XIII, 2 1 9). O que põe em perigo as naturezas superiores são exatamente as suas características melhores, a cora­ gem a generosidade, a ambição, a lealdade e a rejeição do subterfúgio. "As raças fortes se dizimam mutuamente: guerra, sede de poder, aventura; a sua existência é dispendiosa, breve; elas se extenuam entre si [ . . . ] . São raças dissipadoras" (XIII, 3 69-70). Sim, há o perigo de "extermínio dos homens me­ lhores" por causa de insensatas "guerras pela 'pátria"' na Europa. E tudo isto, enquanto "os disformes, os degenerados e os impotentes de toda espécie" au­ mentam a sua pressão, "bem no meio dessa decadência" (XIII, 43 0-3 1). Numa situação tão cheia de perigos, "é loucura pôr diante da boca dos canhões a fina flor da força, da juventude e da potência" (XIII, 645). Verificou-se uma virada com relação às guerras de gabinete do Antigo Regime que, tradicionalmente, atingiam de modo quase exclusivo a gentalha plebeia, enquanto os grupos dirigentes opostos estavam empenhados numa dança diplomático-militar. Ainda Burckhardt retoma e subscreve a tese de Heinrich Leo, segundo o qual o mérito da guerra é de "eliminar o populacho escrofuloso, ou seja - acrescenta o historiador de Basileia - "as existências miseráveis, cheias de dificuldades" (jammerlichen Notexistenzen ) . 1 479 Agora o quadro mudou. Pensemos em particular na Guerra de Secessão que, enquanto vê a população negra do Sul amplamente ausente, dizima os aristocratas que encarnam o ideal caro a N ietzsche do otium et be/lum. Na França da II Repú­ blica, mesmo com a oposição de Tocqueville (favorável à manutenção desse 1479 Burckhardt, 1 978 a, pp. 1 18-9.

velho privilégio), é posta em discussão a norma que permite a exoneração do serviço militar de todos aqueles que estão em condições, graças à riqueza e à colocação social, de encontrar um substituto.1480 Fique claro. Nietzsche não pretende absolutamente condenar o polemos, o bel/um enquanto tal, como se preocupa em especificar em muitas ocasiões, e como bem compreendem aqueles que se referem a ele. A guerra - observa Ploetz - é "um dos meios na luta dos povos pela existência"; mas é preciso fazer com que ela dizime os "indivíduos piores" ou as "variantes (Varianten) más" da população, e não os seus elementos melhores.1481 Também esse tema está amplamente difundido na cultura do tempo. É expresso de modo claro por Pareto: "A guerra é uma poderosa causa de extinção das élites belicosas" e aristocráticas.1482 Mas é encontrado, de forma mais sutil, também em Veblen.1483 Sobretudo Lapouge, porém, dá mostras de particular eloquência na denúncia dos efeitos perversos, do ponto de vista da seleção, de guerra e de militarismo: "Entre os povos modernos, a guerra e o militarismo são autênticos flagelos, cujo resultado definitivo é abater a raça'', dado que reduzem "as chances de reprodução da élite, garantindo, ao contrário, uma posteridade mais duradoura aos refugos" da sociedade. Em conclusão, "o militarismo contemporâneo não só exerce uma influência seletiva perigosa sobre os indivíduos, mas também compromete o futuro da Europa". 1484 Portanto, também quando assume a forma do conflito declaradamente violento, a "luta pela existência" não garante absolutamente o triunf9 dos me­ lhores . É preciso estar bem atento - previne Lapouge - para não confundir a teoria da "seleção" com a teoria do "progresso".1485 No otimismo ingênuo da sua versão corrente, o darwinismo corre o risco de legitimar o triunfo da modernidade, da democracia e até do socialismo. Nesses anos não faltam ten­ dências que derivam do naturalista inglês a crença na irresistibilidade do adven­ to de uma sociedade nova, destinada a tomar o lugar da sociedade capitalista da mesma forma que esta, sempre com base nas leis inexoráveis da evolução, tomou o lugar da sociedade do Antigo Regime. Graças ao "nariz" e ao "instin­ to" do qual frequentemente e com razão se gaba, Nietzsche consegue intuir o perigo desses temas ideológicos e por isso previne contra isso. Por outro lado, na sua forma tradicional, o darwinismo social representa a consagração do 1480 Jardin, 1984, p. 396. 1481 Ploetz, 1 895, p. 147. 1482 Pareto, 1 974, pp. 1 3 1 -2. 1 483 Veblen, 1904, pp. 3 96-7, nota 1. 1484 Lapouge, 1977, p. 230. 1485 Lapouge, 1 977, p. 503 .

existente1486 e, portanto, não pode satisfazer a um radicalismo aristocrático comprometido em questionar dois milênios de história. Quanto ao resto, em Nietzsche é clara, inequívoca e insistente a condenação de uma moral que, em nome da compaixão, quisesse bloquear a seleção em prejuízo dos fracassados da vida e dos mal sucedidos; quer dizer, é clara, inequívoca e insistente a ade­ são ao socialdarwinismo, à ideologia dominante do tempo. Como para o "Junker éristão" no auge na Prússia e para o herói cristianizante caro a Carlyle, assim para o darwinismo é sempre e apenas a possível contaminação-degeneração moderna e plebeia que é posta em discus­ são. Também nesse caso, assistimos não já a um distanciamento de acordo com uma "inatualidade" tão desdenhosa em rejeitar até a comparação com a cultura do próprio tempo, bem como ao esforço de conferir coerência e rigor às tendências antidemocráticas presentes nela. Enquanto procura adaptar o cris­ tianismo ao socialdarwinismo, Spencer não hesita em indicar no altruísmo um ideal a perseguir. Compreende-se então o desprezo desmedido que Nietzsche sente pelo liberal inglês. Na realidade, ele é um "décadent" não diferente dos "socialistas": "vê algo desejável na vitória do altruísmo ! " (GD, Incursões de um inatual, 37) e gostaria que todos os homens se tomassem "altruístas" de modo a construir um conjunto de "animais de rebanho", todos "dóceis", um "rebanho bonacheirão" (EH, Porque sou um destino, 4).

2. Entre eugenia e genocídio: o Ocidente no final do Século XIX No final da vida consciente, ao fazer referência a Sobre a utilidade e inutilidade da históriapara a vida e continuando a reivindicar a sua inatualidade, Nietzsche observa: ''Neste ensaio, o 'sentido histórico', de que o presente século se orgulha, foi reconhecido pela primeira vez como doença, como sinal típico de decadência" {EH, As Considerações inatuais, 1). Na realidade, não já o sentido histórico, mas a hereditariedade e a natureza parecem ser o lema, senão da cul­ tura do final do Século XIX enquanto tal, pelo menos de alguns componentes essenciais seus. O ano em que é publicada a segunda Inatual é também no ano em que aparece um livro que, já no seu subtítulo, proclama o papel central de Nature and Nurture (supra, cap. 1 9 § 1). É um momento em que a "eugenia" obtém grande sucesso, e não só na Europa. Quem se coloca na vanguarda da realização prática das medidas desta nova "ciência" são os Estados Unidos. Sob o impulso de um movimento que se 1486 Struve,

1973, p. 47.

desenvolveu já no final do Século XIX, entre l 907 e l 9 1 5, treze estados ameri­ canos aprovam leis para a esterilização coagida, à qual devem sujeitar-se, se­ gundo a legislação de Indiana (o primeiro estado que a se mover nessa dire­ ção), "delinquentes habituais, idiotas, imbecis e violentadores". Não faltam aque­ les que, considerando tais medidas insuficientes, enfatizam a esterilização em primeiro lugar como medida de profilaxia social, à qual deveriam submeter-se os pobres e vagabundos ha6ituais e, mais em geral, as classes inferiores e tendencialmente criminosas.1487 "Os americanos, gente prática, se tomam um modelo a seguir na Europa.1488 No que diz respeito à Alemanha, vale a pena notar que, já no título, um livro publicado em 1 9 l 3 assume como ponto de refe­ rência a "higiene racial nos Estados Unidos da América do Norte". 1489 A atmosfera cultural e política da segunda metade do Século XIX está cheia da ideia ou da tentação do recurso a medidas "eugênicas" e a outras ainda mais radicais. Tocqueville deseja que se possa finalmente desembaraçar­ se da "canalha penitenciária" como dos ratos, eventualmente graças a um in­ cêndio colossal. Se talvez ainda não "sonha com o genocídio", como acha um intérprete atual, 1490 em relação à "canalha penitenciária", o liberal francês toma uma atitude que faz pensar na de Nietzsche em relação aos "mal sucedidos". De qualquer modo, Le Bon é explícito. Cedo ou tarde se deverá eliminar o "imenso refugo" que se acumula do outro lado do Atlântico, que é constituído por uma massa de emigrados incapazes, "sem recursos, sem energia" e que constitui a base de recrutamento de "um imenso exército de sectários", sempre mais ameaçador: Os Estados Unidos pressagiamjá o dia em que será preciso entrar em sanguino­ lenta batalha contra essas multidões e empreender lutas de extemúnio sem pie­ dade que recordarão, mas em escala maior, a destruição das hordas bárbaras à qual Mário teve de recorrer para salvar a civilização romana da sua invasão. 1 491

Acabamos de pensar no "aniquilamento de milhões de mal sucedidos" de que fala Nietzsche. Mas seria superficial e precipitado transformar em precursores do nazismo o autor alemão e o autor francês. Este último, no mesmo livro em que se exprime com tanta brutalidade, celebra "a Inglaterra, país da liberdade" e, também em outras ocasiões, aponta constantemente como modelo o mundo anglossaxão.1492 1 487 Cf A. E. Fink, 1962, pp. 188-2 10. 1 488 Lapouge, 1977, p. 505. 1 489 Kühl, 1994; Lifton, 1 988, pp. 29 seg.; Hoffmann, 1913. 1 490 Perrot, 1984, p. 38. 1 49 1 Le Bon, 1 999, p. 104. 14 92 Le Bon, 1999, p. 266 e Le Bon, 1980, passim.

É em relação com as populações coloniais supérlluas, não utilizáveis como força de trabalho mais ou menos forçada, que a "eugenia" confina perigosamen­ te com o genocídio verdadeiro. Um dos seguidores ingleses mais fervorosos e mais radicais da nova "ciência", Karl Pearson, enquanto augura um robusto au­ mento demográfico da população inglesa sadia, afirma que a marcha da civiliza­ ção implica inevitáveis "hecatombes das raças inferiores".1493 São os anos em que, mesmo sem fazer referência à eugenia, Emerson se exprime assim: "As guerras, os incêndios, as calamidades rompem a imobilidade da routine, limpam o campo das raças corrompidas e dos focos da doença, abrindo o caminho para homens novos". 1494 Por sua vez, Carlyle observa friamente que "o negro africa­ no, o único entre todos os selvagens, pode viver entre homens civis"; os outros estão condenados, pela natureza ou pela marcha da civilização, ao "aniquilamen­ to" (annihilation).1495 Com igual indiferença, ou melhor, com pleno consenso, Le Bon olha para a "supressão fatal" dos "povos totalmente inferiores, peles­ vermelhas, australianos, tasmanianos, etc. "1496 Com uma posição análoga, Gumplowicz refere que na África austral "os homens da selva e os hotentotes" são frequentemente considerados e tratados não como homens, mas "enquanto 'criaturas ' (Geschõpfe) que é lícito exterminar como a caça da floresta". Quem se comporta desse modo são inclusive "os bôeres cristãos": diante de uma inexorável lei da natureza, religião e ideologia se revelam impotentes.1497 Tam­ bém Hartrnann fala como sendo óbvia a "guerra de aniquilamento, fundada sobre uma necessidade natural", que a raça branca e "caucásica" superior trava contra as "raças que permaneceram decididamente para trás". 1498 É uma afirmação contida num livro do jovem Nietzsche lido com atenção e até criticado, mas cer­ tamente não em relação com a tese que se acabou de citar. Antes, nesse ponto haverá consonância, a julgar pelo menos por uma carta em que o jovem professor de filologia reconhece a Hartmann o mérito de "sintonizar-se perfeitamente com o antiquíssimo canto das Nornas sobre a maldição da existência" (B, II, p. 73). No âmbito desta "maldição" podem entrar muito bem a "necessidade natural" da "guerra de aniquilamento" contra os povos coloniais, além da morte por fome que se verifica nas grandes cidades europeias .1499 1 493 ln Brie, 1928, p. 260. 1 494 Emerson, 1983 b, p. 1084. 1 495 Carlyle, 1 983, pp. 436-7. 1 496 Le Bon, 1996, p. 56. 1 497 Gumplowicz, 1883, p. 249. 1 498 Hartmann, 1989, p. 5 18. 1 499 Hartmann, 1989, p. 554.

Acentos nietzscheanos parecem ressoar em Lombroso: Quem leu a vida dos pioneiros da Austrália e da América compreendeu que eles eram criminosos natos, piratas e assassinos, utilizados pela humanida­ de na conquista dos novos mundos, e que desabafavam nas tribos selva­ gens aquelas necessidades de ação, de luta, de matanças e de novidade que teria sido um monstruoso perigo na mãe pátria. 1 5ºº

Somos levados a pensar na análise de Genealogia da moral que, a pro­ pósito da "besta loura", observa: "De vez em quando é necessário dar vazão a esse fundo escondido, a fera deve de novo pular fora, deve de novo embrenhar­ se na mata" (GM, 1, 1 1 ). Como para o tratamento a infligir à "canalha penitenciária" da qual fala Tocqueville, bem como para aquele que reserva aos povos coloniais, surgem temas socialdarwinistas também em autores que se referem de um modo ou de outro à tradição liberal. Mesmo considerando-se liberal, Renan não tem dúvidas sobre o fato de que as "raças semisselvagens" estranhas à "grande fanúlia aria­ no-semítica", são destinadas a serem subjugadas ou exterminadas. 1501 No pró­ prio Burckhardt, a "eliminação ou escravização das raças mais fracas" parece entrar na "grande economia da história mundial".1502 O fato é que, para dizê-lo com Hobson (o liberal inglês de esquerda lido com atenção por Lênin), a expan­ são colonial anda lado a lado com "o extermínio das raças inferiores" que "não podem ser exploradas com lucro pelos colonizadores brancos superiores". 1503 Naturalmente, não faltam vozes criticas e até indignadas entre os con­ temporâneos de Nietzsche. Para citar um autor conhecido dele (e próximo da socialdemocracia), Lange, em 1 865, chama a atenção não só para o "extermí­ nio" dos índios, que estava em curso nos Estados Unidos, na Austrália e em outras partes do mundo, mas também para as crueldades de todo gênero infligidas pelos conquistadores europeus aos povos subjugados. 1504 Não menos aflitas são as denúncias de certos setores do mundo cristão, perturbados pelo martírio ininterrupto" dos "índios norte-americanos" e pela brutalidade das teorias que de modo explícito negam o "direito à existência" dos "selvagens".1505 Olhe­ mos, porém, as palavras de ordem que presidem essas tomadas de posição: unidade da "grande família humana", respeito pelos "princípios de humanida1 500 Lombroso,

1995, p. 646. 1947, vol. VIII, p. 585. 1 5º2 Burckhardt, 1 978 a, p. 1 90. 1 503 Hobson, 1 974, p. 2 14. 1 504 Lange, 1975, p. 14. 1 5º5 Warneck, 1879, pp. 253 e 1 93 nota 14 1. 1 5º1 Renan,

de'', que agora impedem de ser indiferente diante da "miséria da humanidade sofredora"; recusa de fazer valer para o mundo humano a "luta pela existên­ cia" que acontece no mundo animal ("para o homem reivindicamos exatamen­ te outra natureza que não seja a natureza dos animais").1506 E no que diz res­ peito ao autor cristão: reafirmação do "valor" da "alma singular também do homem mais pobre e mais rejeitado"; recusa do argumento segundo o qual a "filantropia" seria obstáculo para a marcha da civilização.1507 São as palavras de ordem e os ambientes desprezados e odiados por Nietzsche.

3. Conflito social, expansão colonial, crítica da compaixão e con­ denação do cristianismo Em confirmação da sua "inatualidade" Nietzsche coloca "a 'compaixão' por todos os que sofrem" entre "as coisas que fazem o orgulho do nosso tem­ po" e que ele tem a coragem de contestar (EH, Para além do bem e do mal, 2). Na realidade, naqueles anos, a denúncia da "sujeira humanitária'', presente pelo menos em Tõnnies, parece ser a ocupação preferida da burguesia, em todo caso da burguesia alemã (infra, cap . 24, § 2). Já conhecemos a polêmica de Treitschke contra a "filantropia frouxa e sentimental'', que estorva a obra necessária de repressão à socialdemocracia. Na Grã-Bretanha, um liberal conservador como Lecky chama também a aten­ ção para os perigos inerentes na "sensibilidade, grandemente acrescida, da filantropia, que caracteriza o nosso século".1� Em termos análogos Spencer censurará aos "filântropos" a cruzada contra o "sofrimento social" e o senti­ mentalismo que os faz "separar o sofrimento da má conduta" que está no seu fundamento.1509 Um discípulo estadunidense de Spencer, ou seja Sumner, zom­ ba por sua vez da "filosofia sentimental" e dos "poetas e sentimentalistas", que, nas suas utopias e fantasias, afastam a "luta pela existência".151 0 Tons mais azedos, e poderemos dizer nietzscheanos, ecoam nas intervenções de Pareto e Le Bon. Escutemos o primeiro: Se a sociedade europeia devesse modelar-se sobre o ideal caro aos éticos, e se conseguisse pôr obstáculo à seleção, favorecer sistematicamente os fra1506 Lange, 1975, pp. 14, 7 seg. e 12.

is01 wameck, 1879, pp. 1 25 e 193-4, nota 14 1 . 1508 Lecky, 1 883-1888, vol. VI, p. 243. 15º9 Spencer, 198 1 , pp. 32 e 34. mo Sumner, 1992, pp. 187 e 1 90-1.

cos, os viciosos, os ociosos, os mal adaptados, os "pequenos e os humil­ des", como os chamam os nossos filântropos, às custas dos fortes, dos homens enérgicos, que constituem a élite, uma nova conquista de novos "bárbaros" não seria de modo algum impossível. 1 5 1 1 segundo, para acabar com o "humanitarismo doente que já nos valeu a revolução mais sanguinolenta que a história jamais viu", exprime o desejo de que "uma divindade benévola" se decida a "aniquilar a funesta raça dos filântropos". 1 5 1 2 Ainda que em forma embrionária e mais fraca, esse tema começa a cir­ cular já por ocasião da luta ideológica contra a Revolução Francesa. Basta pensar em particular na figura de Sade e na sua ironia dessagradora sobre a compaixão, rotulada por ele como "o pecado por excelência". 1513 Por outro lado, já Tocqueville sublinha, como sabemos, o papel funesto da "piedade" ao desarmar a aristocracia francesa, no plano ideológico e até sentimental, diante da maré revolucionária que está subindo (supra, cap. 1 § 4). Compreende-se então o aparecimento de uma visão do mundo que, com linguagem nietzscheana, poderemos definir como imoralista. Emerson, que vi­ mos chamar a guerra para varrer as "raças corrompidas" e os "focos da doen­ ça", esboça esse significativo e admirado retrato de Napoleão: é o "gênio" da guerra que, tendo deixado "a sensibilidade para as mulheres", empenha-se em remover os obstáculos que se interpõem à consecução dos seus objetivos . E, ao desenvolver sua ação, não se deixa estorvar por "princípios morais": segue apenas "a lei eterna do homem e do mundo", não hesitando em imolar "milhões de homens" e, portanto, "sem poupar sangue e de modo impiedoso" (pitiless).1514 Somos levados a pensar no elogio que Genealogia da moral faz de Napoleão, esta "síntese de desumano e de sobreumano" (GM, 1, 1 6). Junto com César e outros líderes - insiste por sua vez Emerson - Napoleão é um daqueles "gran­ des homens" que os filisteus gostam de rotular como "flagelos de Deus": na realidade, "como compensação é só um grande homem para populações intei­ ras de pigmeus" que se é obrigado a suportar.1515 Compreende-se o mal-estar que começa a difundir-se em relação ao cris­ tianismo. Pelo menos nas suas conversas privadas, Gobineau "censura o Evan­ gelho por ter interferido a favor dos pobres e dos oprimidos", promovendo O

1 5 11 Pareto, 1974, p. 134. 1 5 12 Le Bon, 1 999, p. 3 1 1. 1 5 13 ln Horkheimer-Adorno, 1982, p. 106. 1 514 Emerson, 1983 a, pp. 732 e 742-5. 1 5 1 5 Emerson, 1 983 a, pp. 625 e 627.

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assim "uma religião dos pobres, ou seja, das massas", com a qual não podem deixar de chocar-se "as grandes personalidades". Porém, "num mundo de mi­ séria, preferir o pobre enquanto tal ao rico, o simples de espírito ao sábio, o doente ao homem com saúde, significa cometer um erro do qual um hindu nunca teria se sentido culpado". 151 6 Tais temas críticos adquirem uma importância todo particular entre a se­ gunda metade do Século XI� e início do Século XX, em ligação, por um lado, com o aumento da ameaça da revolução socialista, e por outro lado, com o desenvolvimento da expansão colonial. Esta inclui a abertura e extensão de um espaço onde, para dizer com Kipling, "o melhor é como o pior" e "não existem os Dez Mandamentos". Aqui - observa Arendt - a moral se torna sinônimo de filisteísmo e "a boa sociedade [ . . . ] apaixona-se pelo mundo do crime"; nas colônias, "o gentil-homem e o criminoso" entram em "contato com um mundo irreal no qual os delitos podiam ser cometidos num jogo sem consequências": "Não se assassinava um homem, matava-se um indígena, uma sombra". 1517 Em certos casos, em vez de discuti-lo abertamente, se prefere submeter o cristianismo a uma reinterpretação mais ou menos radical. Depois de ter evi­ denciado o papel negativo da "piedade" no processo de dissolução do Antigo Regime e da capacidade de resistência da classe dominante, Tocqueville, com o olhar voltado para a permanente agitação social, rotula a "filantropia" de "anticristã". 1518 Completamente empenhada em reivindicar "melhoramentos materiais" na condição dos presos, ela promoveria uma visão do mundo igno­ rante dos valores espirituais e religiosos. 1519 A explicação adotada para justifi­ car a oposição aqui instituída entre cristianismo e filantropia não convence. Noutra ocasião, é o próprio Tocqueville que censurará os filântropos pela ingê­ nua ilusão de querer ganhar para a "virtude" e o "sentido de honra" também o criminoso mais calejado, também "o ser mais infame".1520 O materialismo não é, pois, o único motivo da ação dos filântropos. É também a reticência ou o cálculo político que explica o fato de Tocqueville travar a batalha contra eles agitando a bandeira da religião dominante. Spencer, por sua vez, reprova os cristãos do seu tempo por se deixarem dominar por uma compaixão cega, aderindo à visão absurda, com base na qual "não deveria haver nenhum sofrimento, e a sociedade é culpada pelo sofrimen1 5 1 6 In Lémonon, 1 97 1 , pp. 503-4. 1 5 1 7 Arendt, 1966, p. 189-190 (= Arendt, 1989, p. 263 e 265). 1 5 1 8 ln Perrot, 1 984, p. 38. 1 5 1 9 Tocqueville, 195 1 , vol. IV, l , p. 136. 1 520 Tócqueville, 195 1 , vol. IV, 1 , p. 197. 1ll

to que realmente existe". Na realidade, no Novo Testamento podemos ler: "Quem não quiser trabalhar, que também não coma". É sem apelo a condena­ ção pronunciada a cargo dos "ociosos" e dos "bons para nada", os quais pre­ tenderiam viver às custas da gente trabalhadora e honesta. Pensado no seu significado autêntico, o cristianismo converge plenamente com "aquela lei univer­ sal da natureza graças à qual a vida atingiu a sua presente altura, aquela lei segundo a qual uma criatura não suficientemente enérgica para alimentar-se deve morrer". 1521 Aqui o cáléulo político é uma verdadeira hipocrisia. O cristi­ anis�o é reinterpretado em chave socialdarwinística: desse modo, "ciência" e religião dominante estão de pleno acordo. Estamos bem longe da liberdade e da coragem intelectual de Nietzsche que, ao denunciar os efeitos nefastos da com­ paixão, tem em mente em primeiro lugar o cristianismo. Com o olhar voltado para a expansão colonial e para a competição pela hegemonia mundial, se no âmbito do Segundo Reich certos círculos teutômanos reinterpretam a figura de Jesus em perspectiva ariano-germânica, na Grã­ Bretanha, com uma operação especular, Kipling relê a religião dominante à luz sobretudo dos temas antigotestamentistas do "Deus dos exércitos" e do "povo eleito", que agora tende a ser o povo inglês.1522 O tema do "Deus dos exérci­ tos" parece fascinar o próprio Nietzsche. Mas este não passou em vão pela escola da filologia: não pode levar a sério nem a mitologia cristão-germânica, nem a tentativa de fundir numa unidade o Novo e o Antigo testamentos, a figura de Jesus e a dos conquistadores de Canaã!

4. Cristianismo, socialismo e "espíritos livres ": a inversão das alianças Além de Nietzsche, no final do Século XIX não faltam vozes propensas a um radical ajuste de contas com o cristianismo. Segundo Lapouge, "a moral do cristianismo" deve ser incluída "certamente entre as mais nocivas" pelo fato de "sacrificar a sociedade ao indivíduo", mais exatamente, ao indivíduo mal suce­ dido.1523 Felizmente, "a política sentimental e idealista do cristianismo agora está morta", a própria "ideia de moral" está destinada a ser substituída por "higiene social" .1524 152 1 Spencer, 1981, pp. 32-3. 1522 Brie, 1928, p. 227. 1523 Lapouge, 1 977, p. 508. 1524 Lapouge, 1 977, pp. IX e 509. 712

Galton é particularmente duro em relação ao catolicismo. Abandonando o terreno da "moral natural" e da natureza, acossando e dizimando os pensado­ res e os homens mais livres e mais audazes mediante a Inquisição, impondo o celibato aos elementos melhores e deixando o caminho livre para a procriação e multiplicação dos piores, numa palavra, abandonando completamente o cam­ po da "moral natural'', a Igreja pôs em ação uma terrível contrasseleção e provocou uma catastrófica degeneração. 1525 Agora os nós são desfeitos . O desenvolvimento da ciência toma claro a todos que é iminente uma luta mortal pelo futuro da civilização: Quando os nossos conhecimentos tiverem conseguido a desejável riqueza, então, e só então, terá chegado o momento de declarar uma "Jihad" ou guerra santa contra os costumes e os preconceitos que eruraquecem as faculdades físicas e morais da nossa raça. 1s26

Somos levados a pensar em Nietzsche e na acusação dirigida por ele ao cristianismo de ter-se tomado culpado com a sua moral de um "delito capital contra a vida" (supra, cap. 1 6 § 6). O Anticristo termina proclamando "uma guerra mortal" contra o "vício" e a "contranatureza" representada pelo cristia­ nismo e pelo seu clero: é preciso considerar e tratar como um crime "a prega­ ção da castidade" e arrasar "o lugar maldito onde o cristianismo chocou os seus ovos de basilisco" (AC, Lei contra o cristianismo). Com respeito à necessidade de salvaguardar a civilização e a própria per­ sistência fisica da espécie homem, os costumeiros conflitos entre os Estados europeus se revelam de uma mesquinhez absoluta: Uma vez que agora a verdade entra em luta com a mentira de milênios, tere­ mos concussões, uma convulsão de terremotos, montes e vales que se des­ locam, como jamais se sonhou. O conceito de política é então inteiramente absorvido numa luta de espíritos; todos os centros de poder da velha soci­ edade saltarão pelos ares - estão todos fundados na mentira: haverá guerra como ainda nunca houve na terra. Só a partir de mim haverá na terra uma grande política (EH, Porque sou um destino, 1).

Uma vez identificado o papel maléfico do cristianismo em obstaculizar ou bloquear a seleção, eis que se verifica uma espécie de inversão das alianças. Pelo menos esta é a opinião de Lapouge. O desenvolvimento das ciências, a teoria da evolução e da seleção - observa ele - puseram em graves dificulda1s2s Galton, 1869, pp. 357-8. is26 Galton, 1907, p. 30; sobre isto cf. Poliakov, 1987, pp. 333-4.

713

des os seguidores do movimento democrático e socialista. Os chamados "livres pensadores" não conseguem renunciar àquela visão teológica e moral do mun­ do, sobre a qual se baseia em última análise o seu programa político; também eles são "escravos" das "doutrinas teológicas". Mais do que colocar de novo radicalmente em discussão, talvez acabaremos abraçando de modo explícito o cristianismo: "A sua psicologia é a dos homens que em certo tempo se prostra­ vam nas igrejas e queimavrup os hereges [ . . .]. O futuro próximo mostrará a nossos filhos esse curioso espetáculo, os teóricos da falsa democracia moderna obrigados a encerrar-se na fortaleza do clericalismo". Sim, "a aliança dos ho­ mens da igreja e dos da revolução será o fato de amanhã" . 1 527 Somos reconduzidos à contraposição que Nietzsche institui entre os chamados "livres pensadores" e os autênticos "espíritos livres", os únicos em condição de liqui­ dar o dogmatismo cristão-socialista. Para substituir o cristianismo não é mais convocado o ateísmo caro aos livres pensadores socialistas ou socializantes, mas uma nova religião. Talvez observa Lombroso - uma contribuição nesse rumo pode provir do "anglossaxão'', nesse momento à frente das raças conquistadoras, no qual "a fecundidade re­ ligiosa não está apagada". 1528 Em todo caso - acha por sua vez Le Bon - é apenas uma fase de transição aquela em que "os céus permanecem vazios". O que marcará o começo de "uma civilização nova" será "o nascimento de novos deuses'', que nada mais terão a ver com a divindade cristã e com os valores ou desvalores morais que ela encama.1529 Mas é O Anticristo que confere a essa expectativa a sua forma mais fascinante: "Quase dois milênios e nem um só novo Deus ! " (AC, 1 9). Em conclusão, na leitura de Nietzsche, mais do que apelar para a catego­ ria de "inatualidade'', convém tentar uma abordagem diferente. Como no idea­ lismo alemão se observa a tradução epistemológica e filosófica da Revolução Francesa, assim em Schopenhauer e Nietzsche se percebe a tradução epistemológica e filosófica da crítica da Revolução Francesa. Em ambos os casos, essa tradução permite elevar-se acima da imediatez e inserir os proble­ mas individuais e os diversos aspectos de cada problema no âmbito de um todo estruturado e coerente, de uma visão abrangente do mundo e da história. Lida­ mos exatamente com grandes filósofos. Mas, sobretudo no que diz respeito a Nietzsche, a hermenêutica hoje do­ minante transfigura em pura metáfora e em pura expressão artística a grandi1527 Lapouge, 1 977, pp. 5 1 3-4.

1 528

1529

Lombroso, 1 995, p. 523. ln Sternhell, 1 978, p. 15.

osa tradução epistemológica e filosófica de um discurso eminentemente políti­ co. É uma operação que se choca em primeiro lugar exatamente com o filósofo objeto de transfiguração. Este fica até desdenhado quando se depara com uma leitura do Zaratustra que, depois de o ter considerado benignamente como "um superior exercício de estilo", convida o seu autor a "querer preocupar-se um pouco também com o conteúdo". O "conteúdo", cuja falta o resenhista percebe, Nietzsche se apres.sa imediatamente a especificar, e isto é inequívoca e claramente político: "A palavra 'super-homem' [ . . . ] designa um tipo bem sucedido ao máximo grau, em contraposição com o homem 'moderno' , o 'ho­ mem bom', os cristãos e outros niilistas" (EH, Porque escrevo livros tão bons, 1), em contraposição ao movimento democrático e socialista, expressão culmi­ nante da trajetória subversiva iniciada com a pregação evangélica e com o profetismo hebraico. Zaratustra e a "distinção 'própria do super-homem"' (B, III, l , p. 356) intervêm para se opor e condenar séculos de vulgarização e subversão plebeias.

Quinta parte Nietzsche e a reação aristocrática entre duas épocas históricas O nacionalismo é o aspecto mais ignóbil do espirito moderno. Drieu La Rochelle Mussolini e Hitler, os dois homens que introduziram o contramovimento em relação ao niilismo, foram ambos da escola de Nietzsche, ainda que de modo essencialmente diferente. Heidegger Israel não alcançou, exatamente pelo atalho deste "redentor ", deste aparente opositor e destruidor de Israel, a meta extrema da sua sublime avidez de vingança? GM, 1, 8 Paulo queria o fim, logo, queria também os meios. . . Naquilo que ele mesmo não acreditava, os idiotas, entre os quais lançou a sua doutrina, acreditaram. A sua necessidade era o poder; com Paulo, o sacerdote quis mais uma vez chegar ao poder - ele tinha utilidade apenas para conceitos, doutrinas e simbolos com os quais são tiranizadas as massas, são formados os rebanhos.

AC, 42

24 F ILÓ S OFOS, HISTORIADORES E SOCIÓLOGOS : O CONFLITO DAS INTERPRETAÇ ÕES

1 . O "complô " de Elisabeth

Vra se refiram em primeiro lugar ao clima espiritual do final do Século XIX,

imos que não faltam páginas inquietantes e terríveis em Nietzsche. Embo­

é muito compreensível que os ideólogos de primeiro plano do III Reich se te­ nham referido a seu autor. Ao rechaçar com desdém essa reivindicação de herança, toda urna série de autorizados intérpretes do filósofo acusa a irmã deste, Elizabeth, que teria inventado ou espertamente manipulado A vontade de potência de modo a transformá-la num dos livros de referência do III Reich e, ainda antes, do protofascisrno e do protonazisrno. É singular que, além de mergulhar o filósofo num banho de pureza política, não se hesite em elevar Elisabeth à dignidade de personagem histórico-mundial. Com resultados para­ doxais. Como veremos, um historiador do Século XIX não hesitou em afirmar que o genocídio nazista na Europa oriental dificilmente teria acontecido . . . "se não fosse por Nietzsche"! A afirmação é discutível; mas torna-se logo hilarian­ te se a relermos com a emenda sugerida pelos defensores da tese da manipu­ lação. A história do Século XX teria sido totalmente diferente e decididamente melhor se não fosse por. . . Elisabeth! Uma mulher intelectualmente bastante medíocre se torna assim a inspiradora de um movimento político que não só conseguiu conquistar e pôr em movimento grandes massas, mas também soube fascinar, pelo menos por algum tempo, expoentes de primeiríssimo plano da cultura europeia: in principio era um Rasputirn de saia! Percorrido até o fim, esse caminho desemboca numa teoria desengonça­ da do complô. Eis em que termos um intérprete se exprime, sempre a propósito da infeliz irmã do filósofo: "Citando-o de modo tendencioso, fora do contexto, ela contrabandeou pesadamente o antissemitismo nos seus escritos . Nos anos trinta alinhou-se com os seus amigos nazistas e com Hitler, os quais decidiram utilizar o seu irmão".153° Corno se sabe, A vontade de potência foi pela pri­ meira vez publicada quando o futuro Führer é ainda um menino: dir-se-ia, por­ tanto que, em tal complô, a protagonista seja Elisabeth, que o arquiteta com grande antecipação ao nascimento do movimento nazista! 1SJo Santaniello, 1994, p. 148.

O

mais interessante é que, se lermos atentamente a biografia que a irmã

dedica a Nietzsche, e se compararmos

A vontade de potência

com o texto dos

fragmentos póstumos, podemos chegar a uma conclusão diretamente oposta à ver­ são hoje dominante. Na biografia, em vão se procurariam as cartas do irmão dela que transpiram uma violenta judeofobia. E não é tudo. Quando se ocupa da confe­ rência de Basileia sobre Sócrates

e a tragédia,

Elisabeth omite o final, que acusa

gravemente a "imprensa judàica"; relata as inquietações provocadas pelo texto dessa conferência em Tribschen, mas cala sobre a sua motivação e sobre o convite que Richard e Cosima dirigem ao jovem professor para não desafiar facilmente a comunidade judaica, subestimando o seu poder e o seu espírito de vingança. 1 531 Elisabeth sabe que, na primeira fase da evolução do filósofo, socratismo é na reali­ dade sinônimo dejudaísmo, mas convida a não superestimar "certas palavras amar­ gas" pronunciadas por ele sobre o judaísmo como "destruidor da concepção grega da vida".

O

aspecto principal - preocupa-se em sublinhar a amorosa irmã - é a

rejeição nítida do antissemitismo sob qualquer forma.1 532

É

em primeiro lugar por essa razão que Nietzsche teria rompido com

Wagner, sem recuar diante do consequente isolamento:

O transtorno da guerra e da vitória tinha deixado obtuso o nosso ouvido espiritual [... ]. Com os seus ideais (entre os quais voltava o antissemitismo), Wagner hipnotizava os melhores do tempo, e deles meu irmão teria precisa­ do para os seus novos pensamentos. Agora, o encanto está quebrado: os jovens espíritos de hoje, aqueles que voam mais alto, voltam-se para novos ideais; agora veneram Nietzsche. 1 533 Para tal finalidade, a biografia cita integralmente o parágrafo de Nietzsche

contra Wagner com o título Como me livrei de Wagner.

Leiamos o início e o

fim: "Não suporto ambiguidade alguma; desde que Wagner chegou

à Alema­

nha, consentiu aos poucos a tudo o que eu desprezo - até o antissemitismo [ .. . ]. Sempre fui condenado aos olhos dos alemães ".1534 Este trecho é sutilmente autoapologético. Parece sugerir a ideia de que, no momento do encontro com o musicista, o futuro filósofo não estaria afetado pela doença que depois teria provocado a ruptura. Na realidade, sabemos que o antissemitismo ou a judeofobia de Wagner e do jovem Nietzsche é preexistente ao encontro deles, que de fato se desenvolve a partir também de tal comunhão de ideias�

1 53 1 Fõrster-Nietzsche, 1 895-1 904, vol. Il, p. 20-1. 1532 Fõrster-Nietzsche, 1 895-1 904, vol. II, p. 50 1. 1 533 Fõrster-Nietzsche, 1895-1904, vol. II, p. 3 17. 1534 Fõrster-Nietzsche, 1 895-1 904, vol. II, p. 322-3.

Elisabeth subscreve sem dificuldade a autoapologia do irmão. Bem longe de querer acomodar a imagem dele às necessidades ideológicas do movimento que depois desaguará no nazismo, a biografia se esforça por representar Nietzsche como o campeão da luta contra a teutomania e o antissemitismo, como o "bom europeu" por excelência.1535 Certamente, de modo fundamental­ mente correspondente

à verdade,

mas é também um pouco forçado. Demons­

tram-no os silêncios e as remoções relativas aos anos juvenis e o demonstram outros pequenos particulares: por exemplo, Elisabeth insiste com força sobre as origens cristãs da moral do

ressentiment,

mas parece querer passar em silên­

cio ou minimizar o papel do judaísmo.1536 Não é a irmã "antissemita", mas são um amigo de velha data do filósofo e uma personalidade de primeiro plano da cultura judaica francesa que falam respectivamente, bem antes da publicação da A

vontade de potência,

de antissemitismo camuflado de anticristianismo,

ou de "antissemitismo anticristão" em Nietzsche

(supra,

cap.

1 8 § 6). Mas,

feita abstração obviamente do juízo de valor, é a leitura de Lazare e Overbeck que se revela mais próxima daquela cara aos intérpretes precursores do nazis­ mo, ou seja nazistas ou filonazistas. Vimos Nietzsche exprimir todo o seu des­ prezo por Fritsch, mas este último, ao acentuar o caráter intrínseca e irremedi­ avelmente judaico do cristianismo, continua a referir-se ao Anticristo1 531 (e se aproveita deste e de outros textos do filósofo para rotular os judeus como "chandala"} .1538 Por sua vez, Baeumler sublinha que, em Nietzsche, "cristia­ nismo e judaísmo são no fundo a mesma coisa".1539 Não satisfeita em evidenciar a rejeição do antissemitismo no irmão, Elisabeth se esforça por inserir o seu pensamento num contexto europeu e ocidental que ultrapassa nitidamente as fronteiras da Alemanha. Por exemplo, no que diz respeito

à visão

da mulher, em primeiro lugar como mãe de uma

prole sadia e possivelmente numerosa, aproxima o filósofo do presidente estadunidense Theodore Roosevelt.1540 Sobretudo ao sublinhar e celebrar o aristocratismo de Nietzsche, Elisabeth se refere ao papel que a "antiga nobre­ za"1541 continua a desempenhar no país. A biografia institui um confronto entre a Alemanha e os outros países europeus, tudo em prejuízo da primeira: é sobre-

1535 Fõrster-Nietzsche, 1 895-1 904, vol. II, p. 555. 1 536 Fõrster-Nietzsche, 1895-1 904. vol. II, p. 449. 1537 Fritsch, 1 943, p. 265; sobre a história deste texto cf. Ferrari Zumbini, 2001, p. 971 . ms Fritsch, 191 1 , pp. 1 84-7. 1 539 Baewnler, 193 1 a, pp. 158-9. 154° Fõrster-Nietzsche, 1895-1904, vol. II, pp. 565-6. 154 1 Fõrster-Nietzsche, 1895-1 904, vol. II, p. 617.

tudo em terra alemã que os intelectuais provêm das "classes inferiores" e pen­ sam mais em "ganhar o pão" do que na análise dos "problemas mais profundos da vida". O que impediu de tomar consciência da gravidade de tal problema foi o triunfo de Sedan, que orgulhou e inebriou o II Reich: "Esse alemão brutal fanfarrão" é "a figura mais repugnante da Alemanha" - é assim que Elisabeth conclui, sintetizando e subscrevendo plenamente a opinião do irmão . 1542 Nesse contexto, podem também ser colocadas a admiração e a gratidão expressas a Karl Hillebrand por ter reconhecido, já no momento da publicação de Humano, demasiado humano, a genialidade de Nietzsche, o qual, por sua vez, definiu Hillebrand como "o último alemão humano". 1543 Como se vê, nessa reconstru­ ção não há sombra de teutomania ou chauvinismo. Enfim, Elisabeth não só não leva em consideração as leituras em perspec­ tiva antissemita, que não faltavam já nos anos da vida consciente do filósofo (ainda que para serem logo desdenhosamente rejeitadas por ele), mas dá tam­ bém pouco espaço para as interpretações em chave socialdarwinista. Quem está particularmente empenhado em ler Nietzsche nessa direção, em livros que têm um eco notável, é Alexander Tille, que, no entanto, não aparece em ne­ nhum dos índices de nomes . Elisabeth, porém, cita com respeito ou fervor, as intervenções de Simmel e Vaihinger (dois judeus !). Espaço e atenção também são reservados aAlois Riehl, o qual celebra o "individualismo aristocrático" de Nietzsche "artista e pensador", 1544 e o celebra - pode-se acrescentar - em contraposição a um "tempo" que é de orientação "coletivista". 1545 A leitura da biografia não dá credito de modo algum à legenda negra de Elisabeth como falsificadora a serviço de um III Reich, cujo advento não pode ser previsto nesse momento nem sequer por um profeta extraordinariamente dotado (faltam dez anos para o estouro da primeira guerra mundial !), nem o faz a leitura da A vontade de potência. Sobre esta obra fundamenta-se a dura crítica que, em 1 936, um intérprete de orientação nazista desenvolve contra o filossemitismo por ele censurado a Nietzsche; de modo particular, são visados os parágrafos dedicados à celebração de Heine, Offenbach, Mendelssohn e Rahel Varnhagen, da arte e da cultura judaica no seu conjunto.1546 O julgamen­ to de condenação acaba atacando a própria Elisabeth, acusada de ter simpati­ camente acentuado, na sua obra de biografia e de editora, o filossemitismo do 1542 Fõrster-Nietzsche, 1895-1 904, vol.

li, pp. 108-9.

1546 Westemhagen, 1936, pp. 1 8-23 ; cf.

WzM, 832-5.

1543 Fõrster-Nietzsche, 1 895-1 904, vol. II, p. 664. 1544 Fõrster-Nietzsche, 1 895-1 904, vol. li, pp. 620-2, 569-70 e 664; cf. Riehl, 1 920, p. 1 6 1 . 1545 Riehl, 1 920, p. 1 1 .

irmão: tinha expresso a sua gratidão a Brandes e aos outros judeus cheios de admiração pelo filósofo já durante a sua vida consciente; por fim, "como teste­ munhas da correta interpretação da doutrina do irmão", Elisabeth invocara "o judeu Georg Simmel" 1 547 - realmente citado ampla e favoravelmente na bio­ grafia - por causa do seu "excelente" tratamento do "ideal aristocrático" de Nietzsche. 1548 Da acusação de filossemitismo se passou, mais tarde, para a acusação de antissemitismo. ' Não há dúvida, mais que um "fato", o texto de A vontade de potência é uma "interpretação". Foi justamente notada a tendência dos dois organizadores a aparar as asperezas : pagam a conta as declarações particularmente ásperas em relação a "religião, Igreja e Reich", mas também aquelas mais hostis com relação às mulheres . 1 549 Podemos compreender melhor o espírito com que Elisabeth trabalha detendo-nos por um momento sobre uma pequena interven­ ção. Abramos o livro apontado e leiamos o § 872: "Os direitos que um homem dá a si mesmo são proporcionais aos deveres que se impõe, às tarefas com respeito às quais se sente à altura. A maioria dos homens não tem direito à existência, mas constitui uma desgraça para os homens superiores". Leiamos agora o trecho correspondente nos Fragmentos póstumos. O aforismo pros­ segue com uma declaração enfática: "Aos mal sucedidos não reconheço se­ quer o direito [à existência] . Existem também povos mal sucedidos" (XI, 1 02). Mesmo esforçando-se por aderir o máximo possível às teses do irmão, que pretende erigir como uma espécie de monumento, a pobre Elisabeth deve ter considerado constrangedor e excessivo o acento de que a povos inteiros pode ou deve ser negado o direito à existência. Pode-se dizer tudo da obra da irmã de Nietzsche como biógrafa e como editora, menos que tenha prestado um serviço à interpretação nacionalsocialista de algumas décadas depois! Certa­ mente, insiste a biografia, e com razão, sobre a hostilidade implacável do filóso­ fo em relação ao socialismo, mas nem isto pode ser considerado um favor para um movimento que se autodefinia "nacionalsocialista". No que diz respeito ao texto de A vontade de potência, não há diferen­ ças particularmente relevantes em relação aos fragmentos póstumos, e é perda de tempo caçar manipulações e distorções, realmente em condições de com­ prometer o trabalho da intérprete.1550 Pode-se até perguntar se as liberdades que Elisabeth se concede são maiores do que aquelas de que dão prova os 1 547 Westemhagen, 1 936, pp. 12 e 74. 1 548 Fõrster-Nietzsche, 1895-1904, vol. II, pp. 620-2. 1549 Fuchs, 1 998, pp. 391-2 1 55º Ferraris, 1995, pp. 614-17.

atuais editores de Sócrates

e a tragédia: o paradoxo é que, ao censurar o final (infra, Apêndice § 1 ), eles se colocam na esteira

judeófobo desta conferência

da irmã do filósofo por eles tão desprezada!

2. A interpretação de Nietzsche antes de A vontade de potência: as críticas à "esquerda " O edificio ideológico e mitológico singular construído pelos hermeneutas da inocência se revela tanto mais frágil pelo fato de que, bem antes da publica­ ção de

A vontade de potência,

o pensamento de seu autor suscita um debate

que evoca cenários bastante inquietantes. Já em

1 8 84,

um apreciador de

Nietzsche, que deixou dele um retrato simpático, relata um colóquio sobre o qual vale a pena refletir. O filósofo expõe sua tese segundo a qual, para tomar possível "poucos homens extraordinariamente excelentes", é preciso saber ser "cruel", sem hesitar em "oprimirtalvez todos os outros". Sim, na sua radicalidade a visão por ele amadurecida "em relação ao problema do que é bem e do que é mal" poderia "as sustar", e é por isto que ele hesita em comunicá-la até o fundo; resta o fato que seria necessário "reprimir as boas inclinações próprias, a com­ paixão própria, por amor a um fim superior". O interlocutor objeta sensatamen­ te que "a ninguém é lícito dominar sobre os homens como um criador de gado

(KGA, VII, 4/2, p. 24). Zaratustra e à teorização do "super­ homem". Logo depois da publicação de Além do bem e do mal, o seu primeiro resenhador observa que o livro aplica "à humanidade o conceito de potência da sobre o seu próprio gado"

Até aqui a referência é a Assimfalou

natureza", o que é tanto mais inquietante pelo fato que a crueldade extrema da natureza é posta em evidência: 1 551 quer dizei:, estamos na presença de um socialdarwinismo bastante bruto. Sempre a propósito de

mal, numa carta a Overbeck de 1° de setembro de 1 886,

Além do bem e do

Rohde exprime a sua

preocupação e .até a sua indignação:

Pode-se aceitar o que é dito do caráter gregário da humanidade atual, mas como se pode imaginar o que Nietzsche fantasia a propósito da moral caniba­ lesca que deveria ser imposta ditatorialmente, segundo a sua filosofia? Que sinal dos tempos estes grandiloquentes fanfarrões do futuro prenunciam?1552

1551 Joseph Victor Widmann in Janz, 1981, vol. III, pp. 260- 1. 1552 ln Montinari, 1999, p. 167.

Como tal filosofia agirá no terreno político concreto ? Um livro aparecido

em

1 893 previne contra os "perigos" inerentes, já no título .

Seu autor (Ludwig

Stein), depois de tê-lo comparado com Gumplowicz, lê e denuncia em Nietzsche um "traço brutal, despótico": "o instinto selvagem da besta humana original ainda não domesticada irrompe aqui com violência elementar"; ele "desejaria aniquilar a vida livre do indivíduo a fim de que os poucos gênios, os 'super­ homens ' possam abandonar-se sem freios às suas vontades ".1553 Nessa mes­ ma ocasião, podemos ver em Nordau uma leitura análoga da figura do super­ homem.1554 Nordau - não esquecer que se trata de um autor de origem judia ­ exprime também sua preocupação e seu desdém pelo fato de que em certas páginas de Nietzsche ao "povo judeu" é atribuído um "plano" ou um complô para a derrubada da moral e do domínio dos senhores

(infra,

cap.

27 § 3

e

5).

Mas agora convém concentrar-se sobretudo nas reações provenientes da esquerda propriamente dita. Em

1 896, um discípulo de Feuerbach, com alguma

simpatia pela socialdemocracia, Julius Duboc, observa: dos escritos de Nietzsche emana um "cheiro de incêndio e de queimado", um "ar carregado de miasmas no qual está imersa a aristocracia canalha dos seus super-homens".1555 Ainda mais significativa é a prevenção que segue: compreende-se bem que a conde­ nação da "revolta dos escravos na moral" e o anúncio do advento ou do retomo da "moral dos senhores" sejam acolhidos com agrado particularmente pelas "classes superiores da sociedade"; mas elas realmente compreenderam todo o alcance da filosofia

à qual reservam o

seu entusiasmo?1556

Elas têm consciência de que Nietzsche é "o inimigo da compaixão"?1 557 A definição é de Tõnnies. Este, em

1 897,

desenvolve uma áspera polêmica

contra o "culto" de um filósofo que "recomenda a destruição onde há cuidado e conservação'', que grita contra as consequências funestas do "acúmulo de indivíduos doentes e mal sucedidos". Mas onde se quer chegar com esses discursos? - pergunta Tõnnies . Talvez se exija que "aqueles indivíduos sejam aniquilados", recorrendo a um comportamento agora fundamentalmente estra­ nho até aos "mais selvagens"?1558 Uma coisa é certa: Nietzsche institui uma barreira intransponível entre "super-homens", de um lado, e "bilotas'', do outro, e em relação a estes últimos recomenda ou exige um suplemento de dureza. Desse modo ecoa uma tendência perigosa que se difunde perigosamente:

1 553 Stein, 1 893, p. 63 nota e 43-4; sobre isto cf. Duboc, 1 896, p. 144. 1 554 Nordau, s.d. vol II, pp. 327-8. 1 555 Duboc, 1 896, p. 123. 1 556 Duboc, 1 896, pp. 1 22, 1 24 e 134. 1 551 Tõnnies, 1998, p. 1 1 7. 1 558 Tõnnies, 1 998, pp. 128-9. .

Na pequena e na grande burguesia do nosso tempo, nada é mais amado do que a imprecação contra o "emporcalhamento humanitário" [... ] . A ostenta­ ção de força [ ... ], o modo provocador de fazer, de fato muito desumano, está todavia tristemente florescendo sob o nome da firmeza entre nós, alemães de hoje, não apenas nas relações militares (onde é em certa medida inevitável), mas também entre funcionários que se arvoram a senhores [. . . ]. Para a nossa nova nobreza que e.§tá ao mesmo tempo empenhada em conservar a religião para o povo, quer dizer o cristianismo, os aristocráticos livros de Nietzsche podem sobretudo servir de espelho gentil.1 559 De particular importância são as intervenções de Franz Mehring nesse de­ bate. Mehring é um expoente de primeira grandeza da socialdemocracia alemã, que percebe com força o fascínio do autor por ele investigado, e o fascínio é tanto do pensador como do prosador. Objeto de particular apreço é a "luta contra a moral" dominante, isto é, contra uma moral que não está

à

altura sequer do

desenvolvimento capitalista e que agora é contestada por um pensamento bri­ lhante e por uma prosa fascinante . 1560 mos

(supra,

cap .

4 § 7),

A primeira Inatual suscita,

como sabe­

o entusiasmo dos ambientes ortodoxos e da burguesia

liberal propensa à duplicidade em campo religioso. Mehring é consciente disso e, todavia, para ele não pode haver dúvidas sobre o fato que tal polêmica p retende salvaguardar "as tradições mais gloriosas da cultura alemã". 1561 Mas esses reconhecimentos significativos não impedem que o intelectual comprometido com o movimento operário perceba com clareza o "banal ódio antissocialista" e as "maldições de Nietzsche contra o socialismo". Mesmo cora­ josa e estimulante, a luta contra a hipocrisia e o puritanismo da moral dominante desemboca na reivindicação e no anúncio de uma "moral da crueldade". 1562 Portanto, estamos na presença não só, como sabemos, de uma "filosofia do capi­ talismo", mas de uma "filosofia do capitalismo" particularmente inquietante: "a sua concepção da história é de uma rudeza brutal e sem espírito, que aparece tanto mais repugnante por causa do estilo brilhante e rico de 'espírito"'. 1 563 Enfim, para ficar sempre no âmbito do movimento socialista, convém citar a intervenção de Trotski. Escrevendo em

1 900,

ele denuncia as "ideias ultra­

aristocráticas" de Nietzsche: "O eixo social do seu sistema [ . . . ] é o reconheci1 559 Tõnnies, 1 998, pp. 126 e 128-9. 1 560 Mehring, 1961 a, vol. Xffi, p. 154. 1 561 Mehring, 1961 a, vol. Xffi, p. 174. 1 562 Mehring, 196 1 a, vol. XIII, p. 180; Mehring, 1 961 a, vol. XIII, p. 169; Mehring, 196 1 a, vol. XIII, p. 1 8 1 . 1 563 Mehring, 1 9 6 1 a, vol. XIII, p . 165.

mento do privilégio concedido a poucos 'eleitos' de gozar livremente de todos os bens da existência". 1564 Não se deve deixar-se enganar pelas formulações fascinantes ou pelas poses rebeldes: "Aparentemente, um radicalismo sem li­ mites e uma audácia que contesta tudo". Na realidade, é um traço decidida­ mente reacionário que define Nietzsche: "Ao ouvir a palavra democracia, lhe vem a escuma aos lábios".15 65 Antes, estamos na presença de um ultra­ aristocratismo que se distingue,por algumas características particularmente tur­ vas: ele teoriza "'super-homens ', livres de toda obrigação social e moral", que não escondem o seu "franco cinismo" e estão prontos para a "eliminação cui­ dadosa de tudo o que pode suscitar a 'piedade"'. 1566 Obviamente, não faltam no âmbito da socialdemocracia alemã leituras diferentes e mais simpáticas com relação a Nietzsche. 1567 Mas isto demonstra não o caráter não político do seu pensamento, mas a complexidade da luta ideológica. Convulsões político-sociais e processos de secularização incluíram o surgimento de uma camada extensa de intelectuais, que olham com descon­ fiança ou hostilidade para o papel das igrejas cristãs. Irão eles sofrer a influên­ cia do "livre pensador" socializante, que ao criticá-las como resíduo do passa­ do, exprime a sua confiança no "progresso", ou do "espírito livre" de sentimen­ tos aristocráticos que, junto com a fé cristã, está empenhado em zombar tam­ bém da fé progressista? O teórico do radicalismo aristocrático se propõe de modo consciente e explícito a absorver e neutralizar a figura do livre pensador na figura do espírito livre; esta segunda figura é sabidamente concebida e construída como a metacrítica da primeira. Se, por um lado, são antagonistas entre eles, por outro lado, os dois discursos agitam temas semelhantes, assu­ mem ambos uma atitude de rebelião com respeito ao existente e se dirigem ao mesmo público: não é de admirar que no âmbito deste público se manifestem incertezas, oscilações e mutações de campo. É nesse contexto que é preciso inserir, por exemplo, o nietzscheanismo do jovem Mussolini. No final do Século XIX se manifesta um fenômeno análogo, mas com sinal trocado, ao que se verificara um século antes, particularmente na França: na véspera da revolução, a cultura iluminista penetra amplamente nos círculos aristocratas, aos quais ela também visa. Cerca de cem anos depois, o ataque dessacralizador de Nietzsche consegue causar impressão favorável também em setores do movimento socialista, para com os quais o filósofo não se cansa 1564 Trotski, 1 979, pp. 1 1 8 e 108.

1565 Trotski, 1 979, pp. 109 e 1 1 5. 1566 Trotski, 1979, pp. 108-9. 1567 Vivarelli, 1984.

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de exprimir seu desprezo e seu ódio. Não faltam os historiadores que, a partir da constatação da difusão da filosofia das luzes entre as fileiras da aristocracia, negam ou minimizam o conflito que contrapõe esta classe ao Terceiro Estado. De modo análogo procedem os intérpretes que removem o furibundo antissocialismo de Nietzsche, a partir das simpatias adquiridas por certos temas do seu pe�samento entre autores ou setores daquele movimento. Na realidade, toda luta concreta pela hegemonia pressupõe, seja um mínimo de contiguidade social no que diz respeito aos setores a conquistar (do contrário não haveria sequer rivalidade e concorrência), seja, às vezes, ·um mínimo de contiguidade ideológica entre os seus protagonistas, enquanto um e outro aspiram a ocupar o espaço deixado vazio por uma ideologia declinante (no final do Século XIX, a luta se desenvolve a partir de um afastamento do cristianismo e da moral tradi­ cional). Se a um olhar superficial aparece como sinônimo de convivência e até de afinidade, o mínimo de contiguidade social e ideológica se revela, a um olhar mais atento, como a expressão do antagonismo.

3. A interpretação de Nietzsche antes da A vontade de potência: os aplausos pela "direita " Enquanto à "esquerda" é a reação de alarme e rejeição que domina (que inclui até conhecidos e amigos de Nietzsche), à "direita" aumentam os reco­ nhecimentos e os aplausos. E tudo isto mais uma vez bem antes da publicação de A vontade de potência. Como divisa do seu livro e da sua nova "ciência", o pai fundador ou um dos pais fundadores da "higiene racial", Alfred Ploetz, cita um trecho de Assim falou Zaratustra, no qual auspicia a passagem da "espécie" para a "super-espécie" (supra, cap. 20 § 1). Nesse contexto, porém, ocupa um lugar de destaque Tille, já fugazmente citado. Ele atribui a Nietzsche o mérito de ter tirado todas as consequências das teorias de Darwin, no plano ético e político-social, sem deixar-se estorvar pelos escrúpulos morais do cientista inglês. É uma leitura sobre a qual convém refletir. Com efeito, n'A origem do homem não faltam a perplexidade e o incômodo: Nós homens civis procuramos com todos os meios pôr obstáculo ao proces­ so de eliminação (elimination); construímos asilos para os deficientes, para os aleijados e para os enfermos; instituímos leis para os pobres; e os nossos médicos recorrem à sua máxima habilidade para salvar a vida de qualquer um até o último momento [. . . ]. Assim os membros fracos das sociedades civis se reproduzem. Ninguém que esteja interessado na criação de animais domésti-

cos duvidará que este fato é muito prejudicial para a espécie humana. É surpreendente a rapidez com que a falta de cuidado ou os cuidados mal orientados levam à degeneração (degeneration) de uma raça doméstica; mas, excetuado o caso do próprio homem, dificilmente alguém é tão ignoran­ te a ponto de fazer se reproduzirem seus próprios animais piores. Há outro fator que agrava a ameaça que pesa sobre o destino da humani­ dade. São alistados no exército os "jovens melhores", enquanto ficam em casa e podem mais facilmente casar-se e procriar aqueles com a saúde vacilante. A "dura razão" sugeriria talvez remédios enérgicos. Mas fazer calar o sentimento de "simpatia" significaria para o homem renunciar à "parte mais nobre" da sua "natureza": "Devemos por isso suportar os efeitos indubitavelmente negativos da sobrevivência dos fracos e da propagação da sua estirpe"; é preciso esperar apenas que os mais fracos se abstenham o máximo possível do matrimônio.1568 A esperança de Darwin se toma um ponto firme no programa de Galton, o qual, todavia, revela restos de escrúpulos morais. Assim, pelo menos, aos olhos de Tille: "Uma eliminação (Ausscheidung) dos piores lhe parece cruel demais, apesar de os dados de fato da evolução remeterem a ela; por isso é melhor um crescimento planejado dos melhores". O fato é que continua ainda a se fazer sentir negativamente a "moral da compaixão", "a moral do amor do próximo (Nachstenmoral) própria do cristianismo, do humanitarismo (Humanitat), da democracia".1569 Não é fácil libertar-se do peso dos "ideais democrático-cristãos da moral, do amor ao próximo", dos "ideais cristão-hu­ manitários e democráticos" da "ética cristão-humanitária". Esta, obstaculando o "espezinhamento sem piedade" dos "doentes" e dos "falidos" ( Unterliegend), estorva de modo infeliz a seleção e o processo vital.1570 No entanto, através de tentativas e de sucessivos autores, cresce a consciência de que é sem sentido querer impor à "grande natureza" a nossa "pequena moral" (unser Moralchen), ficando a observar inertes e até encorajando a multiplicação dos "aleijados, paralíticos, cegos, loucos, tísicos, sifilíticos".1571 Essa tomada de consciência alcança finalmente o seu ponto mais alto em Nietzsche. O pensamento deste pode ser sintetizado numa fórmula que é também um apelo: "Além da moral dos escravos", que é depois "a moral do budismo, do ci:istianismo e do humanitarismo". A tudo isso se opõe a "moral dos senhores", a que se apega já o "helenismo antigo", a moral na qual encontra expressão "o crescimento vi1568 Darwin, 1 984, pp. 323-4. 1569 Tille, 1895, pp. 1 1 1 -2.

157º Tille, 1895, pp. 121 e 196-7. 157 1 Tille, 1895, p. 120.

tal'', não mais "a decadência fisiológica". É necessário tomar consciência do fato de que "a civilização moderna cristã democrática inteira é um fenômeno de decadência" (Niedergangserscheinung) . 1 512 No fundamento desta civilização podre ou pseudocivilização - prossegue Tille - age a tradição ')udeu-cristã", o "comunismo dos primeiros cristãos". Jesus é só um "rabino" condenado pela justiça romana pela sua "subversão comunista". Com ele e com Paulo de Tarso iniciam "a difamação de tudo o que é sadio, alegre e vital" e a enunciação e a difusão da "insensata doutrina da igualdade de todos os homens", que se manifesta agora com particular virulên­ cia no movimento socialista propriamente dito. Sim, este pretende opor-se à "superstição dominante, protestante ou católica", mas nem por isso deixa de ser o seu herdeiro, seu "filho". Trata-se, pois, de pôr em discussão "quase dois mil anos de história'', fazendo de novo valer "o impulso para o poder (Trieb zur Macht) contra os "instintos do rebanho".1573 Abre-se agora uma época nova: é hora de acabar com o "culto das massas", com o mito dos "chamados direitos inatos do homem" e com a "abstração" da "humanidade" e da "teoria do res­ peito aos outros membros da humanidade" (Mitmenschen), a serem conside­ rados até como "irmãos"; não tem sentido entregar-se à farsa do parlamenta­ rismo e de um regime político, a "democracia", que, em virtude do sufrágio universal, garante o poder aos idiotas e incapazes que constituem a maioria da população.1574 Para Tille não se pode ficar no meio do caminho. Uma vez curado daquela "alucinação do faminto" que é a crença nas ideias de igualdade, democracia e humanidade, é preciso proceder à esterilização forçada da escória da popula­ ção; 1 575 por outro lado, seria ridículo e louco derramar lágrimas pelo fato de que, em homenagem à lei da natureza, com base na qual "o superior vence o inferior", os "índios da América do Norte" e as outras "tribos selvagens" de­ saparecem, também "na ausência de luta com armas de fogo e com a espada", diante do avanço irresistível das raças "superiores".1576 Saudado por Lapouge como "selecionista" e colocado ao lado de Ammon, 1577 Nietzsche influencia o socialdarwinismo até fora da Europa. Nos Estados Unidos do início do Século XX, Kidd se reconhece plenamente no desprezo reservado pelo filósofo alemão ao movimento socialista, que exatamente na Alemanha exerce ,,

1 572 Tille, 1 895, pp. 210-2. 1 573 Tille, 1 893, pp. 91-2, 1 9 l e 364. 1 574 Tille, 1893, pp. 80-1 , 32 e 191-2. 1 575 Tille, 1 893, pp. 86 e 138-141. 1 576 Tille, 1893, pp. 26-7. 1577 Lapouge, 1 896, p. 470.

notável influência: é a agitação de uma "população servil" que tira do cristianismo a "moral de escravos" e uma série de motivos com os quais conquistar simpatias para a causa própria e neutralizar ou paralisar a aristocracia natural. Mas não é só o socialismo que deve ser posto sob acusação: "O que é o nosso liberalismo ocidental no melhor dos casos? Animalidade do rebanho aumentada? O que é a democracia? Um tipo declinante de Estado no qual o superior natural se tomou escravo dos sentimentos de siJnpatia, de modo que pode ser privado daquilo que lhe compete". A tudo isto impõe-se opor, conforme o filósofo alemão, uma "nova tábua" de valores e uma dureza reconquistada: ''Na literatura moderna, exceto Nietzsche, ninguém de fama internacional ousou exprimir tais pensamentos de modo tão direto".1578 É o sintoma de que estamos num momento de virada, no "final de uma época" e no início de uma nova, radicalmente diferente.1579 É o caso de acrescentar que, também no autor estadunidense, A vontade de potên­ cia não desempenha papel algum: a primeira edição aparecera no ano anterior, mas é totalmente ignorada. 4. Do ''protonazismo " de Elisabeth à "convergência objetiva " de

Lukács com os ideólogos nazistas Como se vê, não pode ser invocada manipulação orquestrada pela irmã para explicar a leitura em perspectiva socialdarwinista de Nietzsche, como aduzem numerosos intérpretes entre os séculos XIX e XX. Pode-se evitar o embaraço definindo como "doentes da mente" aqueles "muitos intelectuais europeus" que, "na passagem do século", veem em Nietzsche "uma espécie de Messias" (reacionário} . 1 580 Mas é uma empresa vã e desesperada querer mergulhar de novo num banho de inocência política o teórico do radicalismo aristocrático, retomando um dos temas mais discutíveis e inquietantes do seu pensamento, ou seja, a leitura em perspectiva psicopatológica do conflito social ou, neste caso, do conflito das interpretações . Não muito melhor do que aqueles muitos "doentes da mente", europeus e na realidade também estadunidenses, se sai Lukács: a sua leitura, que produziu um importante "efeito negativo [ . . . ] sobretudo no marxismo", de fato coincide com a nazista, "com a única diferença" do juízo oposto de valor.1581 Esta acu1578 Kidd, 1 902, pp. 128-9. 1579 Kidd, 1902, pp. 1-29. 15 8º Montinari, 1 999, p. 170. 1581 Vattimo, 2000, p. 145.

sação forma um par com a acusação lançada contra a irmã do filósofo. Tanto a teoria do protonazismo de Elisabeth como a teoria da convergência objetiva de Lukács com os ideólogos filo-hitlerianos partem tacitamente do pressuposto em base ao qual o debate sobre o significado político de Nietzsche teria iniciado ao longo dos anos imediatamente anteriores ao advento do III Reich e com o movimento a este vinculado. Como se, para dar dois exemplos, Rohde e Duboc nunca tivessem prevenido co)ltra os perigos inerentes à celebração da "moral canibalesca" ou da "aristocracia da canalha"! Tanto mais grave é passar por cima do debate entre os séculos XIX e XX pelo fato de que dele emerge uma crítica antecipada da hermenêutica da ino­ cência hoje dominante. O fascínio que emana de Nietzsche induzia, e induz, alguns a achar que estamos na presença de um autor que não pode ser "objeto de compreensão lógica, mas só de prazer e�tético". 1582 Mehring rechaça com nitidez a abordagem artístico-metafórica que desejaria afastar como estranha e profanadora qualquer consideração de caráter histórico-político e, às vezes, até de caráter lógico-conceituai: Não se objete que Nietzsche se mantém sempre à devida distância da máqui­ na capitalista, que buscou sempre a seu modo e honestamente a verdade, que queria de qualquer modo subir ao ponto mais alto do espírito mais refinado, que ele se sentia à vontade só na solidão da alta montanha e que lhe pesava como "vulgar" toda comunidade com os homens. 1583

Tudo isso é verdadeiro, mas não é de modo algum garantia de pureza. Verifica-se antes um paradoxo: "Uma filosofia que quer respirar só numa altu­ ra etérea absolutamente livre e despreza as condições da vida real, recai brus­ camente na matéria mais repugnante e suja". 1 584 Por fascinante que possa ser, tal filosofia acaba legitimando a exploração e a opressão também nas suas formas mais brutais. Mas por que ir tão longe? Deixemos Mehring de lado e tomemos um autor, Brandes, que goza da estima e da simpatia de Nietzsche, em relação com o qual ele tem, por sua vez, uma atitude de admiração. Também nesse caso surgem a radicalidade e a brutalidade do programa político do filósofo: Para Nietzsche, a grandeza de um movimento deve ser medida pelos sacrifí­ cios que ele exige. A higiene que mantém vivos milhões de seres fracos e inúteis, os quais deveriam antes morrer, não constitui para ele um verdadeiro 1 582 Mehring, 1 96 1 a, vol. XIII, pp. 182-3. 1 583 Mehring, 196 1 a, vol. XIII, p. 166 . ' 1584 Mehring, 1961 a, vol. XIII, p . 166.

progresso. Um nível mundial de felicidade medíocre, garantida para a mais vasta maioria possível daquelas criaturas miseráveis que hoje chamamos de homens, não seria para ele um verdadeiro progresso. 1 585 Quem se horroriza com uma perspectiva tão radical - prossegue Brandes só podem ser aqueles que não se dão conta de que as "massas" devem ser consideradas ou "cópias ruins, rudemente produzidas com material pobre'', das "grandes personalidades" ou seus "esboços" ou seus ''brinquedos". Mas Nietzsche, cheio de "raiva pelo respeito que os historiadores modernos demonstram pelas massas", nutre a aspiração de "criar uma casta de espíritos superiores capazes de conquistar o poder" e que põem em evidência que, no passado, os aristocratas dignos deste nome "não eram melhores que os animais de rapina ao tratar os seus inimigos".1586 Por que então afirmar que Lukács teria subscrito a leitura cara ao nazismo, limitando-se a inverter o juízo de valor? Se exatamente se quer seguir uma convergência objetiva, poderia dizer-se que ele retomou, invertendo o seu juízo de valor, a interpretação cara a Brandes, ou seja, a interpretação provenien­ te do interior mesmo do círculo de Nietzsche. Por outro lado, se quisermos limitar-nos ao segundo pós-guerra, devemos reconhecer que o filósofo marxista húngaro não é certamente o único a se colo­ car o problema entre o autor aqui investigado e o III Reich. Enquanto o gigantes­ co conflito ainda está ocorrendo, Croce se interroga sobre o fio que liga Nietzsche (e outras personalidades da cultura alemã) a "tudo o que há de perturbador acon­ tecendo durante os séculos XIX e XX, no seu país e no mundo todo".1587 Concentremo-nos, porém, na Alemanha. Em Bloch, por exemplo, pode­ mos ler a tese segundo a qual o "super-homem [ . ] já é fascismo claro como o sol" e a celebração da "vontade de potência" é bem aceita "ao capital monopolista assim como para a guerra imperialista".1588 Como é sabido, Adorno foi um crítico feroz de A destruição da razão; mas, por outro lado, ele também, junto com Horkheimer, chama a atenção para os trechos perturbadores ou sinistros nos quais Nietzsche pronuncia uma espécie de condenação à morte dos "fracos" e "mal sucedidos". É claro, "há os fracos e os fortes, há classes, raças e nações dominadoras, e há aquelas inferiores e perdedoras"; mais tarde, o fascismo elevou "o culto da força a doutrina histórica universal".1589 Também não deve nos enganar a celebração da "beleza": "Como ..

1 585 Brandes,

1995, p. 49.

1586 Brandes, 1 995, pp. 22, 1 587 Croce, 1959, p. 72.

1 588 Bloch, 1 962, pp. 344, 1589 Horkheimer-Adomo,

33 e 44.

359 e 362. 1982, pp. 104-6.

Sade, também Nietzsche recorre ao testemunho da ars poetica" para sustentar teses políticas que não são nada inocentes, mas decididamente preocupantes.1590 Continuando a fazer referência a autores distantes de Lukács, não se deve esquecer Thomas Mann, que se sente obrigado, contra a vontade, a reconhecer que as recomendações eugênicas do :filósofo por ele amado tinham passado a fazer parte da "teoria e prática do nacional-socialismo", assim como a condena­ ção ao cristianismo, culpado por bloquear com os seus escrúpulos morais o ne­ cessário e benéfico "aniquilamento de milhões de mal sucedidos", tinha contribu­ ído para criar um terreno ideológico favorável às práticas genocidas de Hitler.1591 Os autores aqui citados exprimem obviamente posições diferentes e con­ trárias, mas nenhum parece subscrever a hermenêutica da inocência hoje triun­ fante. Em conclusão, para explicar a leitura em chave socialdatwinista (com juízo de valor positivo ou negativo) de Nietzsche não podem ser invocadas nem a pérfida manipulação orquestrada pela irmã (genial, embora malvada, antecipadora de um movimento que seria afirmado décadas depois e numa situação histórica completamente diferente), nem o mau jeito de um intérprete marxista "ortodoxo'', que, no entanto, teria confirmado a leitura instrumental dos ideólogos hitlerianos ou filo-hitlerianos. Por um lado, são elevados à digni­ dade de figuras da história universal (em sentido negativo) os protagonistas da manipulação ou do mal-entendido, por outro lado, tal honra (em sentido univocamente positivo) é reservada a si mesmo pelo estudioso que por sua vez anuncia a sua interpretação "autêntica": se tivesse vivido apenas algumas dé­ cadas antes, o nazismo não teria podido valer-se da força de sedução que emanava de Nietzsche e dificilmente teria podido conquistar o poder ou levar a termo todos os seus crimes . Décadas de história real são liquidadas como espúrias em relação a uma história "autêntica", que infelizmente não se verificou . Uma pergunta se impõe: na Alemanha e fora dela, na Europa e além do Atlântico, difundiu-se apenas um gigantesco equívoco'?

5. Reconstrução histórica, "autoengano de Nietzsche e direito à "deformação por parte do intérprete 11

11

Nos nossos dias, um estudioso que se empenhar na releitura de Nietzsche terá de encarar um problema preliminar. Não se trata apenas de enfrentar 1590 Horkheimer-Adomo, 1 982, pp. 106 e 108. 1 591 Mann, 1 986, pp. 257 e 253.

interpretações múltiplas e contrastantes. Isto vale também para outros prota­ gonistas da história do pensamento. Poderemos dizer com Hegel que um gran­ de homem condena os outros a interpretá-lo (e reinterpretá-lo). Mas no caso de Nietzsche, nos encontramos diante de um problema peculiar: como explicar o fato de que, à leitura em perspectiva fundamentalmente apolítica, hoje difun­ dida e dominante entre os filósofos, corresponda uma leitura bem diferente entre os historiadores? Estes áltimos, ao proceder à reconstrução não mais da história das ideias, mas também e em primeiro lugar da história política e social da segunda metade do Século XIX e da primeira metade do Século XX, se deparam com Nietzsche e julgam não poder evitar a discussão do significado político da sua filosofia. Os historiadores em questão podem seguir e seguem de fato as mais diferentes orientações ideais e políticas, mas no conjunto pare­ cem partilhar, em sua maioria, a persuasão expressa por um deles: "pode-se dizer tudo da nova Weltanschauung, menos que fosse inocente".1592 Quem põe em evidência este ponto é um estudioso estadunidense (Mayer), que pretende pesquisar a persistência do Antigo Regime na Europa bem além da Revolução Francesa, até o início do primeiro conflito mundial . Mas então, o que o autor de O nascimento da tragédia ou da Gaia ciência ou de Assim falou Zaratustra tem a ver com o teimoso apego ao poder dos monarcas e da aristocracia nobre, da grande propriedade de terra e da casta burocrático-mili­ tar? O fato é que na segunda metade do Século XIX se verifica uma "reação aristocrática", decidida a se opor com qualquer meio ao desenvolvimento da democracia, à subida do movimento socialista, à irrupção na cena política das massas, dos partidos de massa e dos sindicatos. Trata-se de bloquear ou rechaçar processos político-sociais percebidos como expressão e fonte de massificação, de vulgarização, de decadência, de degeneração. Pois bem: Nietzsche foi o principal menestrel dessa batalha. Apesar das contradições deliberadamente provocadoras contidas nos seus escritos, e do caráter elíptico dos seus raciocínios, o pensamento de Nietzsche foi compactamen­ te e coerentemente antiliberal, antidemocrático e antissocialista, e se torna assim sempre mais com o passar do tempo [... ]. Em nome da alta cultura à qual atribuía uma prioridade absoluta, Nietzsche estava pronto a escravizar a humanidade inteira [ ... ]. A fim de parar e romper o assalto dos filisteus e dos escravos, Nietzsche olhou para uma casta de senhores, de seres superiores capazes de articular e de realizar as visões e os valores transfigurados de um imaginário passado aristocrático. 1593 1592 Mayer, 1982, p. 270. 1593 Mayer, 1982, pp. 270, 267 e 264-5.

Não se trata das fantasias de um intelectual sem relações com a vida real. Superadas as primeiras dificuldades, a visão do mundo elaborada por ele come­ ça a pegar nas

éli tes. Pelo final de sua vida consciente, o filósofo da inatualidade se toma cada vez mais atual, à medida que se exacerbam as contradições que depois levariam ao estouro da guerra mundial:

Entre 1890 e 1914 as fórmulas socialdatwinistas e nietzscheanas permearam as altas esferas das instituiçÕes políticas e da sociedade. Graças às suas inflexões antidemocráticas, elitistas e militantes, eram peifeitamente aptas para ajudar os elementos refratários das classes dominantes e de governo a fazer emergir e a intelectualizar o seu profundo e sempre vigilante iliberalismo. Elas fornece­ ram os ingred.ientes ideativos necessários para a transformação de um tradicionalismo irrefletido numa reação aristocrática a>nsciente e deliberada. 1594 Nietzsche não só consegue dar consciência ideológica e política a classes que pareciam perturbadas pelo desenvolvimento da revolução e da modernidade, e que de qualquer modo estavam atordoadas e perdidas, mas fornece também a elas indicações sobre métodos a empregar.

A importância

do que está em

jogo e da aspereza do choque impõe a "crueldade da élite", chamada a não se deixar estorvar por sentimentalismos e humanitarismos tolos, para finalmente se dar conta de que na própria essência da vida está inerente a violência, a opressão, a vontade de potência, "não temperada por simpatia, compaixão ou benevolência para com os inferiores". Nesse sentido, a guerra é a ocasião privilegiada em que "se permite que a aristocracia mostre a sua virilidade, e ostente a sua honra e a sua heróica capacidade de comando". 1 595 Hobsbawm chega a resultados não diferentes. Reagindo vigorosamente contra as "verdades conclamadas de meados do Século

XIX" e empenhando­

se na luta sem quartel contra a democracia, o socialismo e o "sufocamento do gênio por parte da mediocridade", Nietzsche é o profeta de uma "seleção que visa produzir uma nova raça de 'super-homens ' destinados a dominar os seres humanos inferiores, assim como o homem, na natureza, domina e explora as criaturas brutas"; para isso ele "preconiza uma guerra que diga 'sim ao bárbaro e até

à

fera que há dentro de nós "' .1596

Demos agora uma olhada na historiografia alemã. Elias chama a atenção para a virada que ocorreu na Alemanha a partir sobretudo da triunfal conclusão da guerra com a França. Do apelo

1594

à fraternidade universal do Hino à alegria

Mayer, 1982, p. 269. Mayer, 1982, p. 268. 1596 Hobsbawm, 1991, pp. 289-290, 296 e 347; a referência é a WzM, § 127.

1595

de Schiller (Seid umschlungen Millionen, abraçai-vos, ó milhões), posto em

música por Beethoven, se passa ao "hino à força e à guerra" de Nietzsche: encontram aqui a sua mais alta expressão o entusiasmo e o zelo com que a burguesia se apropria do "código guerreiro" do qual "no início eram portadores os nobres". Portanto, "o que Nietzsche pregava tão raivosamente e em alta voz como se fosse algo de novo e extraordinário, na substância não era senão a verbalização de uma estratégiá social muito antiga".1597 Ritter chega a conclu­ sões não diferentes: não há dúvida de que na Alemanha, para estimular "a 'militarização' da burguesia" e preparar a opinião pública para a guerra, contri­ buiu eficazmente também a filosofia de Nietzsche com o seu culto do "super­ homem de vontade indomável", com a celebração da "certeza dos instintos" guerreiros em contraposição ao intelecto calculador e "vil", com o seu despre­ zo pelas "correntes humanitárias e pacifistas".1598 De um modo ou do outro, somos reconduzidos à "reação aristocrática" da qual fala Mayer ou ao "elitismo cultural" ao qual faz referência outro historia­ dor ou sociólogo estadunidense, Struve,já conhecido nosso (supra, cap. 2 § 5). Largamente difundido na Europa do tempo, este elitismo encontra em Nietzsche as suas "formulações extremas": agora se exige "a completa subordinação das massas à é/ite". Têm aparência ingênua as posições daqueles intérpretes que, para demonstrar, se não a inocência política do filósofo, de qualquer modo a carga emancipadora do seu pensamento, remetem à polêmica antiestatista. Na realidade, o Estado aqui objeto de dura condenação é sinônimo de igualitarismo e massificação; este cometeu o grave erro de não ter "resistido às reivindica­ ções das massas" e ter percorrido um caminho ruinoso e "intrinsecamente democrático". Exatamente por causa do seu radicalismo, Nietzsche não pode reconhecer-se nem no Estado existente nem na versão no seu tempo dominan­ te de socialdarwinismo que, anunciando a inevitável vitória dos melhores no decorrer da "luta pela existência" desemboca na consagração do status quo .1599 Em posições ideais e políticas bem diferentes com respeito àquelas dos historiadores até agora citados se coloca Nolte, que, porém, em todo o arco da sua evolução, sublinha também o papel eminentemente político de Nietzsche. Sobretudo pelos textos dos últimos anos de vida consciente do filósofo, surge inequívoco o apelo à destruição sem piedade de tudo o que é degenerado. Decidido a fazer um ajuste de contas radical com a agitação socialista e com todos aqueles que colocam em perigo o funcionamento ordeiro da vida, Nietzsche 1597 Elias, 1 99 1 , pp. 128, 133 e 130. 1598 Ritter, 1 967, pp. 477 e 457 seg. 1599 Struve, 1 973, pp. 43 e 47. 737

é o teórico do "contra-aniquilamento", chamado a fazer frente ao aniquilamen­ to das classes dominantes, ameaçadas pelo movimento revolucionário de inspi­ ração marxista.1600

É

uma tese - cuja legitimidade parcial veremos - que se

encontra já em Pareto. No início do Século

XX,

este observa que "não há um

reacionário, por audacioso que seja, que ouse falar mal do deus povo". Antes, o medo vai ainda além: Os partidos adversáriós da "burguesia" publicam continuamente em livros, opúsculos, jornais, que querem aniquilá-la, destruí-la. Pois bem, não há ne­ nhum burguês que, nem sequer num momento de raiva, nem por brincadeira, ouse responder: "Dizeis que quereis destruir-nos? Venham. Seremos nós que vos destruiremos".

A essa regra faz exceção apenas "um espírito bizarro como Nietzsche". um à "reação aristocrática". E a ela remete também

E de novo somos reconduzidos

a análise de outro notável sociólogo. Mesmo profundamente influenciado pelo grande filósofo alemão, na esteira do qual exprime também todo o seu desprezo pelo "rebanho" e pelos "mal sucedidos'', Weber convida, no entanto, a não exa­ gerar com o motivo nietzscheano da "oposição aristocrática" da

élite

aos "de­

mais".1602 Não há dúvida: enquanto é sempre mais florescente entre os filósofos, a hermenêutica da inocência tem uma vida dificil entre historiadores e sociólogos .

O

quadro não muda se das histórias gerais passarmos para as pesquisas

dos aspectos particulares . Tome-se como exemplo a história da ideia de "dege­ neração": a este tema amplamente difundido na cultura e na imprensa europeia do tempo, empenhadas em lutar contra o "mito" do progresso, Nietzsche, como foi observado, imprime a "forma de uma provocação extrema". 1603

A outra

face do pesadelo da "degeneração" é o sonho eugênico. Vejamos agora a his­ tória das "utopias da criação dos homens". Pois bem, também nesse caso tor­ na-se inevitável o encontro com Nietzsche. Eis a conclusão

à qual

chega um

historiador deste importante capítulo do socialdawinismo: No que diz respeito ao nível espiritual, que distância há entre o modo de se comportar banal, rude e primitivo de Tille e o brilhante, sensível e genial de Nietzsche. Todavia é e continua perturbador até que ponto Tille pode dedu­ zir concepções e formulações de Nietzsche (aliás, com fundamento real) a fim 1600 Cf. Noite, 1 990. 16º1 Pareto, 1 988, pp. 1588-89 (§ 1712 e nota 1 ). 1602 Weber, 1 97 1 , p. 285. 1603 Pick, 1 989, p. 226. 1604 Conrad-Mart ius, 1 955, p. 276.

de justificar a sua doutrina da sociedade relativista, anti-humana, brutal e sem escrúpulos. O nacional-socialismo inicia assim a sua caminhada. 1604

Estamos na presença de resultados confirmados pela mais recente pesquisa histórica. Até um estudioso que se move com cautela no terreno estranho a ele, o da historiografia filosófica, e que, de qualquer modo, pretende claramente evitar o confronto crítico com a hermenêutica da inocência, é obrigado a reconhecer um ponto essencial no que diz respeito à leitura de Nietzsche: ''Nas suas obras, muito se deixa interpretar em perspectiva de higiene racial".1ro5 Outros autores são mais decididos: com a sua insistência sobre a "degeneração" e sobre a "decadên­ cia fisiológica da humanidade europeia", o filósofo há de ser inserido "no contex­ to da preparação imediata da eugenia". Ou antes, nesse âmbito ele ocupa uma posição tristemente privilegiada: representa o momento de "virada" pela passa­ gem da "ideia da seleção" para um "ativismo antidegenerativo". A reconstrução da história por trás das práticas eugênicas e genocidas de Hitler não pode ignorar Nietzsche, que de modo explícito e peremptório exige a "supressão dos miserá­ veis, dos deformados, dos degenerados".1606 Como se vê, além da "reação aristocrática", sobre a imagem do filósofo acaba se projetando a sombra da higiene racial e, indiretamente, também o III Reich . E de novo, ao proceder de tal modo, vemos concordar historiadores mesmo bastante diferentes entre si. Demos de novo a palavra a Mayer, que se exprime assim a propósito do processo de preparação ideológica do nazismo: Desses intelectuais desenraizados, entre os quais Paul de Lagarde, Julius Langbehn e Houston Stewart Chamberlain, o mais profundo e mais lúcido foi Friedrich Nietzsche. Alienados do mundo contemporâneo, estes pensado­ res não acadêmicos invectivavam contra a democracia liberal e o capitalismo industrial, contra o marxismo e as organizações dos trabalhadores e, enfim, contra a burguesia filisteia e a cultura do modernismo. 1607

Segundo Noite, a dialética de ameaça de aniquilamento e contra-aniquila­ mento, já vista do fim do Século XIX, é uma espécie de antecipação do choque desapiedado que no Século XX se verifica entre comunismo e nazismo : no quadro aqui traçado O Anticristo responde ao Manifesto do partido comu­ nista assim como o Mein Kampfaceita o desafio de O Estado e revolução ! É uma interpretação errada e unilateral : concentrando-se de modo exclusivo no 1605 Sclunuhl, 1 992, p. 41 6, nota 60. 1606 Weingart, Kroll e Bayertz, 1992, pp. 66 e 72 (para o quadro geral); Burleigh e

Wippermann, 1 992, pp. 44-5 (no que diz respeito à relação com as práticas de Hitler). 1607 Mayer, 1 990, p. 95.

conflito interno à metrópole capitalista, não leva em conta o papel desempenha­ do pela expansão colonial e pela cruzada contra os "bárbaros'', colocados do lado de fora do Ocidente ou no seu interior (pensar nos afroamericanos ou, no que diz respeito à Grã-Bretanha, nos irlandeses) na difusão das ideologias socialdarvinistas do final do Século XIX. Resta o fato de que, com Noite, por outro lado empenhado numa dura polêmica contra Mayer,1608 a sombra do III Reich se toma mais espessa.e mais sombria. Nietzsche aparece agora como o teórico ou o inspirador por trás da política genocida nazista, mesmo se depois o expoente mais eminente do revisionismo histórico lê essa política, não sem al­ guma indulgência, como um aniquilamento que contrasta e replica ao mesmo tempo um aniquilamento precedente. De qualquer modo, é hora de despedir-se de uma vez para sempre do mito segundo o qual quem traz à baila o III Reich a propósito do filósofo aqui objeto de pesquisa teria sido apenas o suposto dogmatismo marxista de Lukács. Com relação a este último, Lichtheim é tão áspero que se toma até insultante e vulgar. No entanto, o julgamento por ele formulado sobre o pensamento de Nietzsche torna-se ainda mais severo do que aquele contido em A destruição da razão ; ou antes, é duro e gélido como uma pedra tumular: É uma concepção inebriante. Precisou de um certo tempo para que a "transvaloração dos valores" de Nietzsche invadisse as mentes de uma par­ te dos alemães o quanto bastava para tomar possível Auschwitz [. . . ]. O ódio obsessivo de Nietzsche pela democracia, a sua exaltação da violência e a sua tendência a pôr no paredão os fracos, passaram a fazer parte do credo fascis­ ta [ . . . ]. As consequências foram dramáticas, porque Nietzsche forneceu a uma parte da élite intelectual uma Weltanschauung perfeitamente coerente com as visões de longo alcance de Hitler [ ... ]. Não é exagerado afirmar que, se não fosse por Nietzsche, os SS - as tropas de assalto de Hitler, nervo de todo o movimento - não teriam tido a inspiração que permitiu desenvolver um programa de genocídio na Europa oriental. 1609

As costumeiras acusações dirigidas a Lukács não são generosas e são enganosas . O que define a nítida distância entre a sua abordagem e a aborda­ gem inocentista hoje dominante não é a linha limítrofe que separa supostos dogmáticos e autodenominados antidogmáticos. Dogmatismo seria configurar nesses termos o conflito das interpretações! Talvez seja preciso fazer valer uma dicotomia diferente ou um par conceitua! diverso. Nenhum historiador (e 1 6º8 Ver a recensão a Mayer, 1 990 in Nolte, 1994, pp. 147-5 1. 1 609 Lichtheim, 1998, pp. 205-7 e pp. 286-7 (para o juízo depreciativo sobre Lukács).

nenhum sociólogo) poderia permitir-se o gesto soberano de Foucault que, sem se preocupar demais em distinguir entre reconstrução histórica e utilização te­ órica, reivindica o direito à "deformação" do pensamento de Nietzsche; ou o gesto soberano de Vattimo, tão pouco interessado na contextualização histórica e na reconstrução filológica, de querer depurar Nietzsche dos seus próprios "autoenganos" (infra, Apêndice). Ao contrário dos filósofos "puros", atentos apenas aos nexos especulativos- e às possíveis construções ulteriores que pode­ riam derivar deles, os historiadores e os sociólogos estão empenhados em ana­ lisar um autor com o olhar particularmente atento nas suas relações com os movimentos político-sociais. É nesse contexto que devemos colocar Lukács. Análoga é a metodologia seguida por ele ao ler O jovem Hegel e os proble­ mas da sociedade capitalista, 161 0 e ao colocar Nietzsche na parábola de A destruição da razão. Quanto à acusação de dogmatismo ou maniqueísmo, convém refletir sobre um fato à primeira vista paradoxal: se Lukács, bem como Mayer e Hobsbawm, interpretam o filósofo alemão como um, ainda que o mais brilhante ou o mais genial, entre os numerosos intelectuais que alimentam a corrente cultural e ideológica que desembocou no movimento nazista, vimos Lichtheim e Noite instituir uma relação muito mais direta entre Nietzsche, por um lado, e o regime nazista e a sua política de genocídio, por outro. Até os historiadores que falam de "ideologização póstuma", com referên­ cia polêmica sempre à infeliz irmã, reconhecem de qualquer modo a influência exercida por Nietzsche sobre os movimentos antidemocráticos, sobre Chamberlain, Rosenberg e sobre o próprio Hitler, "inebriado pelo heroísmo trá­ gico de Wagner e de Nietzsche" (e fique claro, no que diz respeito a este último, se trata de Friedrich, não de Elisabeth!).1 611 Não por acaso, o historia­ dor que estamos seguindo sintetiza assim o sentido do seu discurso: "O Século XX nasce sob o signo de uma batalha entre ideias que, na esteira de pensado­ res extremos como Marx e Nietzsche, se tornam diretamente operativos tam­ bém no plano político". 1612 É uma visão que parece confirmar a tese central de Noite. Somos assim reconduzidos a uma leitura declaradamente política de Nietzsche, em confirmação ulterior da vida dificil que a hermenêutica da ino­ cência leva fora do círculo dos filósofos "puros". Devemos censurar os historiadores e sociólogos por se terem aventurado num terreno que não é o deles? Na realidade, parafraseando um dito célebre, a filosofia é uma coisa demasiado séria e importante para ser deixada exclusiva1 610 Lukács, 1975. 1611 Bracher, 1999, pp. 26, 34 e 20 1 . 16 12 Bracher, 1 999, p. 394.

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mente aos filósofos profissionais (é claro que uma consideração análoga pode ser feita em relação à história e aos historiadores profissionais ou à sociologia e aos sociólogos profissionais). Por "puro" que possa ser, um filósofo que quiser compreender Nietzsche não pode evitar interrogar-se sobre as razões de um fato inquietante: "Os nacional-socialistas alemães eram apenas os seus admi­ radores mais fanáticos . Nenhum fascista - de Mussolini a Oswald Mosley [o líder fascista britânico] - escapou da sua influência".1613 Se também quises­ sem continuar a ser desconfiados em relação aos historiadores, os filósofos deveriam de qualquer modo tomar nota que o Heidegger de 1 93 6 saúda em Mussolini e Hitler aqueles que "introduziram um contramovimento em relação ao niilismo", depois de terem estado "ambos na escola de Nietzsche, ainda que de modo essencialmente diferente". 1614 E deveriam também ter presente que, ao tomar progressivamente distância do III Reich, Heidegger se sente obriga­ do, ao mesmo tempo, a tomar distância de Nietzsche.

6. Filósofos e historiadores ou o pathos antipolítico como remé­ dio e como doença Enquanto, a partir de posições culturais e políticas entre si diferentes e opostas, os historiadores leem respectivamente em Nietzsche o campeão da "reação aristocrática", o profeta da eugenia e do "ativismo antidegenerativo", o teórico do "contra-aniquilamento" e até o precursor da solução final, a historiografia filosófica hoje dominante se preocupa, sobretudo, em distribuir igualmente entre Elisabeth Fõrster e Gyõrgy Lukács as responsabilidades pela "manipulação" ou pelo "equívoco" da leitura de Nietzsche em perspectiva po­ lítica reacionária. Em vez de medir-se com esta abordagem comum, com mo­ dalidades diferentes, em eminentes historiadores, a costumeira historiografia filosófica parece empenhada em desencorajá-la e desacreditá-la previamente. Ao desenvolver sua análise da "reação aristocrática", Mayer sente ne­ cessidade de agradecer aos amigos que o "incitaram a não se deixar intimidar pelas interpretações canônicas" de Nietzsche, 1615 isto é, pela abordagem inocentista hoje dominante na historiografia filosófica. E certamente o historia­ dor estadunidense dá prova de coragem intelectual ao não aceitar a rude ad1613 Lichtheim, 1 998, pp. 207-8. 1614 Cf. Losurdo, 1 99 1 , cap. 5 § 2 (pp. 120 e 229 nota 44). 1615 Mayer, 1 982, p. IX. 1616 Kaufmann, 1950, p. 4.

vertência implícita na afirmação de um autorizado intérprete, também ele estadunidense, de Nietzsche: nos estudos que põem em conexão o teórico da vontade de potência com as correntes reacionárias dos séculos XIX e XX, a "influência" de Elisabeth "é ainda tremenda, embora inconsciente"; 1 61 6 cuida­ do, portanto, para não se tomarem portavozes, "mesmo inconscientes", dessa louca precursora do nazismo ! Se aqui o que se deslegitima não é a leitura política enquanto tal, mas apenas uma determinada leitura política (por outro lado abundam as referências à relação conflituosa do filósofo com o II Reich), em outros casos o alvo, enquanto expressão de violência e de profanação, é toda leitura de Nietzsche que faça de alguma maneira intervir o raciocínio e o interrogativo político: Com o máximo rigor devem ser rejeitadas as tentativas de empurrá-lo para o meio da política cotidiana [ . ]. O fato de se ter abusado de Nietzsche para fins políticos não é um argumento contra ele, mesmo se fosse possível pro­ var que uma imame práxis política é derivada de uma compreensão genuína da sua filosofia. 1617 ..

Não são indicadas motivações para tal proibição, mesmo tão imperiosa­ mente enunciada. Talvez uma tentativa de racionalização possa ser identificada na tese segundo a qual em O nascimento da tragédia, ou a partir dele, "ape­ nas com o olho da arte o pensador consegue ver no coração do mundo". 1618 Não há duvida, a referência à arte é o argumento privilegiado de todos os que estão empenhados em mergulhar Nietzsche num banho de inocência política. Chegamos assim ao capítulo mais melancólico, ou talvez mais divertido, da incompreensão ou do malogrado encontro entre filósofos, de um lado, e historiadores, do outro. Aos olhos dos primeiros é absurdo atribuir um significa­ do político a um autor que reservou atenção tão apaixonada à arte. O fato é que - respondem os segundos - Nietzsche "exaltava simultaneamente o valor esté­ tico da alta cultura aristocrática e a brutalidade da política de potência aristo­ crática". 1619 Seja como for, o próprio culto da beleza não é sinônimo de inocên­ cia. Para dar agora a palavra a um historiador que ainda não interveio no deba­ te, não devemos perder de vista o fato de que a "estetização da política" de­ sempenhou um papel bastante relevante na reação aristocrática e no entusias­ mo com que, pelo menos inicialmente, é recebida a tempestade de fogo e de sangue da primeira guerra mundial: "Muitos membros do movimento juvenil 1 61 7 Fink, 1993, p. 10. 1 618 Fink, 1 993, p. 19. 1 6 19 Mayer, 1 982, p. 267.

alemão levavam Nietzsche em sua mochila, junto com volumes de poesia". 1 620 E levavam consigo também o desejo de fuga de uma civilização percebida como artificiosa e decadente e, em contraposição a isto, "o amor à aventura e aos ideais da virilidade", "o amor pela violência e o embate", a "busca da bele­ za da natureza e da beleza viril", o culto da "masculinidade combativa", em suma, uma bagagem cultural e ideológica que não deixava certamente de ter relação com o autor carinhosamente guardado na mochila. 1 621 Mais tarde, em 1 9 1 8, 'Colocando-se no sulco da tradição aqui delineada, Ernst Bertram, o discípulo de George que depois não por acaso aderirá ao nazismo, celebra o pensamento "artístico e vital" de Nietzsche (e de Heráclito). A visão da realidade como "harmonia em luta", que implica também a guerra e o momento "aniquilante", e da própria justiça "como justificação eterna das injustiças que lutam vitalmente", tal visão "encontrou forma teórica em A von­ tade de potência, e artística, 'musical' em Zaratustra". Mais exatamente, estamos na presença de um pensamento que tende a exprimir-se "poeticamen­ te, musicalmente'', porque está na sua essência intimamente entrelaçado com a arte: ele é ao mesmo tempo "música trágica e vontade afirmativa de poder". Por outro lado, foi o próprio Nietzsche, na Inatual dedicada a Wagner, que celebra nele o "enorme intelecto sinfõnico, que gera continuamente a concór­ dia da guerra" (supra, cap. 4, § 3) . 1 622 Vimos a linha de continuidade que do ideal nietzscheano de otium et be/lum conduz à palavra de ordem de "guerra e arte" agitada pela reação no final do Século XIX. Percebe-se um eco deste tema e desta tradição também em Hitler que, à odiada sociedade e mentalidade "mercantil-capitalista", contrapõe a celebração tanto da guerra como da arte; infelizmente, o I I Reich não soube acompanhar a sua fundação com uma pro­ dução artística e cultural à altura da situação, e por isso se revelou inferior àquela época em que, tanto na Alemanha como na Europa, "as realizações da arte corresponderam à grandeza espiritual dos homens". 1 623 São os "sonhos de grande artista" que caracterizam os anos da formação de Hitler. Ele passa a sua primeira juventude numa esplêndida cidade de arte como é Viena, apaixonadamente ocupado em escutar concertos e visitar gale­ rias, ganhando a vida com a venda dos seus quadros. Estamos na presença de um "artista falido e marginalizado" que, através da experiência dos massacres, dos entusiasmos, dos ódios e das ilusões da primeira guerra mundial, empenha1620 Mosse, 1 990, p. 65. 1621 Mosse, 1 990, pp. 59, 62, 65 e 67. 1622 Bertram, 1988, pp. 154-5.

1623 Hitler, 1 935, p. 5 e Hitler, 1 939 a, p. 1 .

se em realizar suas ambições ou veleidades artísticas na roupagem do demago­ go. 1 624 Sim - destaca outro eminente estudioso - Hitler "se sentia sem dúvida mais próximo do 'grande herói artístico' de Langbehn do que, por exemplo, de Bismarck, no qual ele, como transparece de numerosas declarações, admirava menos o político do que o fenômeno estético do grande homem"; o chefe nazis­ ta "não queria ser grande em si, mas grande segundo o modo, o estilo e o temperamento de um artista". 1 �25 Claramente estetizantes são as suas "poses de super-homem", e elas remetem "ao tempo de Gobineau, de Wagner e de Nietzsche" . 1 626 Tendo se tomado Führer indiscutido, não só continua a exibir o seu "amor pela arte", mas acrescenta: "Dediquei-me à política contrariamente ao meu gosto [ . . ] . Se fosse encontrado alguém capaz de realizar o trabalho ao qual me dediquei, eu não teria enveredado pelo caminho da política. Teria escolhido a arte e a filosofia".1627 E não é tudo. Hitler convoca a escola e os professores a se empenharem em "despertar nos homens o instinto da beleza" e acrescenta: "É isto que os gregos consideravam essencial"! 1 628 Como a grandeza dos "an­ tigos gregos (que eram germânicos)", assim a grandeza dos alemães reside entre outras coisas no seu superior "senso artístico". Isto é ulteriormente teste­ munhado pelo empenho concreto do III Reich: "Sempre me entusiasmo mais com a ideia do embelezamento de Linz e sei que, quando é preciso, é o artista que reage em mim". 1 629 Quando se coloca o problema da sucessão, Hitler exclui logo do grupo dos candidatos aqueles que ele define como "homens sem sensibilidade musical" (unmusische Menschen), enquanto coloca Speer em posição eminente porque ele, em virtude também da sua formação de arquiteto, lhe parece um "artista'', um "gênio", um "homem musical". Trata-se de quali­ dade sem particular importância para um homem de Estado? Não é esta a opinião do Führer, segundo o qual mesmo um "condottiero" não poderia ter sucesso nos campos de batalha sem ser ao mesmo tempo, ainda uma vez, "um homem musical" . 1 630 Junto com o interesse apaixonado pela arte é frequentemente o desdém pela política que se aduz como prova decisiva da vacuidade de toda tentativa de leitura de Nietzsche que vá além da esfera encantada da cultura. Mas sempre .

1 624 Kershaw, 1999, pp. l -l l l . 1 625 Fest, 1 973 , pp. 525 e 1034. 1 626 Fest, 1 973 , pp. 732 e 1035. 1 627 Hitler, 1980, p. 234 (25-26 dejaneiro de 1 942). 1 628 Hitler, 1 980, p. 3 1 2 (3 de março de 1 942). 1629 Hitler, 1980, p. 232 (25-26 dejaneiro de 1942) e Hitler, 1989, pp. 245-46 (27 de abril de 1942). 1 63° Fest, 1 973, p. 526.

o eminente historiador citado por último acentua como Hitler possa e deva ser considerado o herdeiro do "pathos antipolítico" que atravessa em profundidade a história cultural da Alemanha. "Tornei-me político contra a minha vontade" gostava de dizer; e, além dos coquetismos, não há dúvida de que aqui agem um "ressentiment estético-intelectual contra a política" e uma clara tradição cultu­ ral. É preciso não perder de vista o ódio de Wagner pela política e a sua decla­ ração segundo a qual "um político é repugnante".1 631 Mas é sobretudo a presença, mais ou menos mediata, de Nietzsche que permite traduzir o pathos artístico e antipolítico num programa político reacio­ nário. Particularmente interessante nesse contexto é um discurso no qual o Führer proclama a "ditadura do gênio".1 632 É uma formulação que faz imedia­ tamente pensar no Nietzsche jovem, teórico da "metafisica do gênio" e da arte. E essa impressão é ulteriormente reforçada quando lemos, sempre em Hitler, que "gênios de natureza extraordinária não têm preocupação alguma com a humanidade normal". A massa - comenta o historiador alemão - representa, tanto no filósofo como no político, as tentativas, os experimentos através dos quais a natureza produz homens superiores . São apenas estes últimos que têm senso e dignidade e podem dispor da massa como de uma espécie de material bruto: "a grandeza legitima tudo". 1 633 Considerações análogas valem para Mussolini. Também ele, já no período socialista, despreza a massa amorfa e vil e indica no super-homem "a grande criação de Nietzsche"; e também ele celebra a criatividade do sujeito, de algum modo do artista, em oposição à posição meramente "raciocinante" e à frieza e à mecanicidade do cálculo, dos balanços, dos números. 1634 Mais tarde, tendo se tornado o duce do fascismo, não apenas, sempre referindo-se a Nietzsche, se arvora "a filósofo e profeta da guerra", 1635 mas também pretende "dominar a massa como um artista". É uma operação que, junto com a sensibilidade estética, exige também energia: "Por ventura o escultor pela raiva não quebra às vezes o mármore porque este sob suas mãos não se plasma exatamente segundo a sua primeira visão?" 1 636 Portanto, referindo-se em particular à celebração da arte e ao pathos antipolítico de Nietzsche, os intérpretes em perspectiva "puramente" filosófica 1631

Fest, 1973, pp. 522 e 526. 1 973, p. 1034. 1633 Fest, 1 973 , p. 732. 1634 Nolte, 1960, pp. 306 e 287. 1635 Assim Dino Grandi in De Felice, 198 1 , p. 652. 1636 Ludwig, 2000, p. 97. 1632 Fest,

tendem a apresentar como remédio aquilo que na análise dos historiadores é a própria doença. Os paradoxos aumentam: dir-se-ia que os primeiros esquece­ ram a lição de Benjamim, que vê "a estetização da política" como traço funda­ mental do fascismo; são os segundos que a trazem à sua memória. 1 637

7. Uma hermenêutica seltttiva da inocência: Nietzsche e Wagner Voltemos à tese segundo a qual, feita abstração do juízo de valor, a leitura de Nietzsche seria idêntica no nazismo e em Lukács. Vimos a inconsistência dessa tese no plano histórico; convém agora refletir sobre o seu absurdo no plano teórico. Para se dar conta imediatamente da insustentabilidade da abor­ dagem cara a Vattimo, tente-se fazê-la valer para um autor diferente, por exem­ plo, para Wagner. Não há dúvida. Também nesse caso o intérprete seria colo­ cado contra a parede: se quer realmente diferenciar-se dos nazistas, deve re­ conhecer. . . a estranheza de Wagner ao antissemitismo! Com base em tal lógi­ ca, o intérprete atual está autorizado a inserir entre os antepassados mais ou menos remotos do III Reich apenas aqueles autores que o regime rechaçou com repugnância e indignação! O fato é que os hermeneutas da inocência não estão em condições de pen­ sar em termos gerais a metodologia seguida por eles e aplicá-la de modo coeren­ te. Por outro lado, não hesitam só em considerar politicamente irrelevante em Nietzsche a condenação da democracia e do sistema parlamentar, mas também a celebração da escravidão e a teorização da necessária expulsão dos "materiais de refugo e de rejeição'', que impedem o funcionamento organizado da civiliza­ ção; por outro lado, com a mesma desenvoltura, mas com uma aspereza toda nova, identificam os profetas do III Reich neste ou naquele autor contemporâneo de Nietzsche, com o qual o filósofo estabeleceu uma relação polêmica. Não se trata só de Wagner; o musicista leu Renan com interesse e atenção empática, 1 638 de modo que também a sorte deste último está decidida. Infelizmente, já em Todorov podemos ler que "o retrato dos semitas traçado por Hitler [ . . . ] deve muito a Renan.1 639 Mas os seguidores da hermenêutica da inocência (em rela­ ção a Nietzsche e só a ele) vão bem além: enquanto "eminente partidário do mito ariano", Renan seria "um ideólogo quase oficial do III Reich".1640 Na realidade, 1637 Fest, 1 973, p. 526. 1 638 Janz, 198 1 , vol. 11, pp. 507-8. 1 639 Todorov, 1991, p. 188. 1 640 Santaniello, 1 997, p. 22.

o autor francês insere os judeus no âmbito das "grandes raças civis" ou da "gran­ de família ariano semítica". 1641 Até aqui estamos na presença de uma visão que apresenta algum ponto de contato com a de Nietzsche. Comum a um e ao outro autor é também o tema da continuidade entre judaísmo e cristianismo, mas é só em Renan que ele é acompanhado de um juízo de valor positivo, até entusiástico: "O cristianismo é a obra prima do judaísmo, a sua glória, a síntese da sua evolu­ ção [ . . ] Jesus está já inteiral)lente contido em Isaías". Compreende-se então o desprezo de Chamberlain, ele sim "ideólogo quase oficial do III Reich", pela "enormidade" das afirmações e pelas "frases grandiloquentes de livre pensador" de Renan, este "grande amigo dos judeus"; 1 642 também quando trata das nações europeias e da ideia de nação em geral, ele revelaria a sua "incapacidade" de compreender o peso e o real significado da raça na história. 1643 Portanto, não tem sentido ler o escritor francês como o verdadeiro profeta, em contraposição a Nietzsche, de Hitler, que os intérpretes nazistas mais desconfiados e hostis em relação ao filósofo, para demonstrar a sua substancial estranheza ao III Reich, não acham nada melhor que aproximá-lo exatamente de Renan! 1 644 Certamente, não faltam, neste último, aspectos preocupantes: pense-se na teorização do direi­ to das "grandes raças civis" ou das "grandes raças nobres" (que falam "uma língua semítica ou indoeuropeia" e das quais, ainda que em posição subordinada, os j udeus fazem parte) ao subjugamento ou ao extermínio das "raças semisselvagens";1645 mas este tema nos reconduz imediatamente a Nietzsche. O caráter arbitrariamente discriminatório e seletivo da costumeira hermenêutica da inocência se torna particularmente evidente na comparação do tratamento por ela reservado a Nietzsche e a Wagner. Em vez de ser con­ testado no seu conjunto, o esquema continuísta é desdenhosamente rejeitado para o primeiro, mas feito prevalecer, com tanto mais força e de modo tanto mais mecânico, para o segundo. É assim que procede, por exemplo, Montinari. Enquanto não se cansa de denunciar os "equívocos" e a "impostura" de que é vítima o filósofo, parece tomar própria sem dificuldade a tese, a seu tempo enunciada por um ideólogo nazista, segundo a qual "o verdadeiro profeta" do III Reich teria sido exatamente o musicista. 1 646 Ainda além se lança outro autorizado expoente da hermenêutica da inocência, que define Wagner como .

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1 64 1 Renan, 1947, vol. VIII, p. 585. 1642 Chamberlain, 1 937, pp. 265 e 383. 1 643 Chamberlain,

1937, p. 344.

1 644 Steding, 1938, p. 748. 1645 Renan, 1947, vol. VIII, p.

1646 Montinari,

585. 1999, pp. 180-2; de modo análogo procede já Bataille, 1970, p. 177.

"protagonista", embora mais "dotado" do que outros e, em particular, dos infe­ lizes familiares (irmã e cunhado) do filósofo.1647 Na realidade, os dois autores aqui contrapostos fazem ambos parte do panteão de Hitler, o qual, aliás, a partir de uma provável reminiscência nietzscheana, não hesita em prestar homenagem também à "Carmen de Bizet". 1 648 Por outro lado, naqueles anos não é dificil encontrar intelectuais mais ou menos próximos ao partido nazista que, em relação ao contraste entre Nietzsche e Wagner, tomam nítida posição pelo primeiro contra o segundo. Depois de ter celebrado em 1 930 a luta do filósofo "contra o wagnerismo, o cristianismo e a moral burguesa'', 1649 intervindo de novo pouco depois do ad­ vento do III Reich, Baeumler acha que pode concluir seu ensaio afirmando que em "Heil Hitler" está implicitamente contido a homenagem também a Nietzsche! 1 650 O próprio Rosenberg tira claramente proveito da leitura da violenta polê­ mica desencadeada pelo filósofo contra o musicista, quando dirige a Wagner toda uma série de duras críticas: O acompanhamento musical destroi até a expressão da vontade e do pensa­ mento [. . . ]. A orquestra se interpõe como um obstáculo onde um pensamento deve ser transmitido [ . . . ] . O público ouve apenas fortes exclamações inarticuladas, vê apenas mãos levantadas sem motivo. Isto não conduz à forma, mas ao caos. 1651

Quando depois lemos que, no conjunto, a obra wagneriana "destroi o ritmo da alma e obstaculiza a expressão e impressão do movimento" (den motorischen A usdruck und Eindruck), 1 652 toma-se ainda mais claramente perceptível o eco das "objeções fisiológicas" avançadas por Nietzsche (infra, cap. 29 § 9). Como demonstração do radical alheamento de Nietzsche e da imediata contiguidade de Wagner com respeito ao nazismo, geralmente se remete à atitude bem diferente assumida por um e pelo outro em relação ao judaísmo. Não há dúvida de que o antissemitismo constitui um forte elemento de contra­ dição entre o filósofo e o III Reich. Quando deparamos em Hitler com a tese da natureza ou da raça semiariana de Jesus, que é de mãe judia, sim, mas cuja paternidade se deveria buscar entre os "numerosos descendentes dos legioná1647 Kaufmann,

1950, p. 37. 1 648 1-litler, 1980, p. 407 (13 de março de 1944). 1649 Baeumler, 1937 a, p. 280. 165º Baewnler, 1937b, p. 294. 1651 Rosenberg, 1 937 a, p. 429. 1652 Rosenberg, 1 937 a, p. 432.

rios romanos" que "viviam na Galileia'', 1 653 somos levados a pensar em Wagner e na tradição que age por trás dele, não certamente em Nietzsche, imunizado por tais construções grotescas pelo menos por uma robusta formação filológica e histórica. Há, porém, o reverso da medalha. No nazismo, desempenha um papel essencial a condenação do cristianismo como religião plebeia e fraca e a de­ núncia de um ciclo histórico,bimilenar que conduziria de Paulo de Tarso ao bolchevismo. De tais temas, bem presentes em Nietzsche, Wagner está em certa medida imunizado pelo fato de celebrar "os efeitos maravilhosos da Re­ velação", 1654 porque continua a estar ligado ao cristianismo ainda que artificial e perigosamente desjudaizado. O "Evangelho dos humildes" que o filósofo cen­ sura no musicista (WA, Epílogo), bem como em Renan (GD, Incursões de um inatual, 2), é dificilmente compatível com a ideologia da raça dos senhores agitada pelo nazismo. Quer dizer, na linha de continuidade que vai de Wagner ao III Reich, segundo o princípio do antissemitismo, é possível aproximar e contrapor uma linha de continuidade de Nietzsche ao III Reich, desta vez segundo o princípio do anticristianismo e do neopaganismo. Se o antissemitismo estimula o Wagner cristão-germânico a perseguir uma fantástica origem não semita para o funda­ dor da religião à qual adere e da qual o II Reich se considera portavoz, a permanente profissão de fé cristã o imuniza de qualquer modo contra o culto estetizante da violência e da guerra que se difunde no final do Século XIX que depois é herdado e radicalizado pelo nazismo. Se Nietzsche, sobretudo na últi­ ma fase, faz apelo para acabar de uma vez para sempre com os movimentos subversivos e revolucionários sem hesitar em recorrer aos meios mais radicais, Wagner condena "as leis repressivas contra os socialistas" como expressão não só de violência indiscriminada, mas também de "limitação" de espírito. 1 655 No âmbito da sua celebração da eugenia, bem além da esterilização forçada dos mal sucedidos, o filósofo não hesita em teorizar a liquidação, de um modo ou de outro, das "raças decadentes". São porém temas estranhos a Wagner, que, não por acaso, continua a estar apegado a uma religião que, aos olhos de Nietzsche, é a religião plebeia e antissenhoril por excelência. Por outro lado, o nacionalismo desdenhosamente rejeitado por Nietzsche é apenas aquele intraeuropeu; a tal condenação corresponde a celebração da marcha expansionista em escala planetária do homem europeu e da guerra 1653

Hitler, 1980, p. 412 (29-30 de novembro de 1944). 1 971, p. 503. 1655 ln C. Wagner, 1 977, vol. II, p. 98 e 102. 1654 ln Lémonon,

como expressão de vitalidade e de saúde. Na vertente oposta, o hino que Wagner não se cansa de elevar à Germânia e aos germanos não é sinônimo unívoco de exaltação imperialista e belicista. Antes, para esse propósito não faltam acen­ tos críticos que, naqueles anos, se tomam decididamente "inatuais". De modo particularmente significativo se exprime, em 1 880, Religião e arte : "A cultura espiritual não cessa de declinar. Mas a violência pode impor só uma civilização. A civilidade, porém, só pode desembocar no terreno da paz".1 656 Se em Nietzsche a condenação da "civilização" alveja o filisteísmo da segurança e da domesticação do animal de rapina, em Wagner, pelo contrário, alveja a lei e a "vitória do mais forte", a afirmação do "animal de rapina" e da sua obra de "destruição e ani­ quilamento".1 657 Não por acaso, o musicista está em ótimas relações com Frantz, severo como nunca, de um ponto de vista cristão, em relação à embriaguez militarista que arrasta o II Reich. É exatamente este autor que publica, no número dos Bayreuther Bltitter de março de 1 8 8 1 , um ensaio que não hesita em focalizar o herói do fulgurante Blitzkrieg contra a França. À tese de Moltke, que liquida o ideal da paz perpétua como um sonho, e como um sonho aliás nada belo, Frantz contrapõe o Decálogo, que impõe não matar, e as máximas do Evange­ lho. Infelizmente, tais ensinamentos são removidos e cancelados pela "religião militar" que se vai difundindo na Alemanha e que lança uma sombra preocupante agora sobre a "civilidade europeia" no seu conjunto. Aos apologetas da guerra, que a celebram como um antídoto contra o materialismo, Frantz e a revista wagneriana observam que ela na realidade estimula ulteriormente tal flagelo e, de qualquer modo, "desencadeia o animal no homem''. 1 658 À condenação em Frantz da exaltação belicista em nome do cristianismo faz eco polêmico em Nietzsche a denúncia do caráter antiguerreiro e antiariano do cristianismo: e este é um tema indubitavelmente herdado pelo III Reich.

8. Gobineau e Chamberlain à luz da hermenêutica da inocência Vimos a liberdade e arbitrariedade com que a hermenêutica da inocência procede. No entanto se deve acrescentar que a sua aplicação coerente condu­ ziria a um resultado paradoxal. Tome-se um autor como Gobineau. O seu "ideal de fraternidade das aristocracias europeias" o toma "inatual" já no final do 1 656 Wagner, 1 9 10 n, p. 234. 1 657 Wagner, 1910 n, pp. 225 e 227. 1658 In Lémonon, 197 1 , pp. 505-7. 751

Século XIX, enquanto aumentam as paixões chauvinistas que depois levariam à primeira guerra mundial.1 659 Por outro lado, não há dúvida de que o seu livro sobre a desigualdade natural e insuperável da raças está tão atravessado por um tom de resignação melancólica pelo desenvolvimento inexorável do proces­ so de abastardamento das raças e, portanto, de esgotamento da civilização, que teria podido tranquilamente levar o título Ocaso da raça branca ou, mais exatamente, Ocaso da raça lYranca superior. O que há de mais distante do tom combativo e da certeza ou da confiança na vitória que caracterizam o nazismo? A esse primeiro elemento de diferenciação, já evidenciado por Lukács, se pode acrescentar pelo menos outro: desgostoso com a maré subversiva que no Ocidente arrasta toda tradição e toda hierarquia, Gobineau está pouco pro­ penso a avalizar o seu peso ou a sua missão expansionista. Enfim, é preciso não esquecer que, como logo veremos, o Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas celebra em primeiro lugar a Inglaterra. Mesmo, porém, tomando claramente distância da sua "visão pessimista", ou melhor, da sua "representação alucinada" da inevitável deterioração da pu­ reza da raça e da civilização, Chamberlain se refere a Gobineau com ardor ao celebrar a "obra genial sobre a desigualdade das raças", "surpreendentemente rica de instituições, mais tarde confirmadas, e de saber histórico"!1660 E, ao menos no que diz respeito ao escritor angloalemão, não deveria haver dúvidas sobre o papel importante que ele desempenha como maftre à penser do nazis­ mo; em termos particularmente exaltados se exprime Goebbels que, ao vê-lo no leito e doente, eleva uma espécie de oração : "Saúde a ti, pai do nosso espí­ rito. Precursor, pioneiro ! "1661 Em termos não menos inspirados, Chamberlain vê em Hitler uma espécie de salvador, e não só da Alemanha.1662 Ainda depois da conquista do poder e enquanto está febrilmente empenhado na guerra por ele desencadeada, o Führer recorda com gratidão o encorajamento de Chamberlain a ele durante o período de prisão. 1 663 Portanto, pelo menos neste caso, não deveria haver dúvida. Tentemos, porém, fazer intervir ainda uma vez a hermenêutica da inocência. É, de fato, enfática a celebração dos germanos; mas fazem parte deles, com todo direito, os anglossaxões que, como conquistadores, se expandiram por todos os cantos do mundo. Em última análise, germano é sinônimo de homo europaeus. Como 1659 Digeon,

1959, pp. 93-4. Chamberlain, 1937, pp. 3 1 3-4. 1661 Goebbels, 199 1 a, p. 247 (8 de maio de 1 926); sobre isto cf. Reuth, 199 1 , p. 74. 1662 ln Fest, 1 973, p. 259. 1663 Hitler, 1 980, p. 224 (24 -25 dejaneiro de 1942). 166º

se vê, estamos longe do chauvinismo alemão em sentido estrito e exclusivo. Antes, no terreno da afirmação da unidade da Europa, Chamberlain não é cer­ tamente mais tímido que Nietzsche, dado que subsume univocamente sob a categoria de germano e de homo europaeus os próprios eslavos ; a estes é reconhecido o mérito, com a sua presença na Prússia e a "mistura de sangue" que derivou daí, de ter tornado mais fecundo e mais vital o país que depois consegue a hegemonia no Reich alemão. É só nesta acepção bastante ampla que o germano "é a alma da nossa civilização". Com o olhar voltado não só para a Inglaterra, mas também para a Rússia, Chamberlain afirma orgulliosa­ mente: "São exclusivamente os germanos que se sentam nos tronos da Euro­ pa". 1 664 São, portanto, olhadas com simpatia até culturas e povos que mais tarde serão racializados como um monte caótico de Untermenschen por obra do nazismo e se tornarão o alvo da sua campanha de colonização do Leste europeu, com a dizimação maciça dos "indígenas" e a substancial escravização da população restante. Um abismo, portanto, separa o escritor angloalemão da teoria e da prática do III Reich. Na tentativa de libertá-lo do abraço nazista, uma recente biografia de Gobineau pôs em evidência como este, "acérrimo inimigo do despotismo", ce­ lebra "o altivo individualismo ariano, exatamente o que Hitler indíca como o punctum dolens do povo alemão", a ser superado e liquidado de uma vez para sempre . 1 665 Tal argumento pode ser feito valer com maior razão para Chamberlain, para quem o germanismo é sinônimo de rejeição resoluta do "ab­ solutismo monárquico" e de toda visão de mundo que sacrifique o "indivíduo" no altar da coletividade. 1 666 Não por acaso é Locke o "reelaborador da nova visão do mundo germânica"; 1667 e, querendo-se encontrar precedentes, é pre­ ciso buscá-los em Ockham e, antes ainda, em Duns Scoto, para quem é "o indivíduo" que constitui "a única realidade".1668 De resto, se Gobineau celebra as "tradições liberais dos arianos", os quais há tempo resistem a esta "monstru­ osidade cananeia" que é a ideia de "pátria", 1669 é Chamberlain também, como foi notado, um "bom liberal", que "ergue a bandeira da liberdade individual".1 670 Se nesse contexto inserirmos Langbehn, como geralmente fazem os historiado1 664 Chamberlain, 1937, pp. 305 e 33 l -2. 1665 Castradori, 1991, p. 201 . 1666 1 667

Chamberlain, 1937, p . 995 nota e 291. Chamberlain, 1937, p. 1 088 nota. 1 668 Chamberlain, 1937, pp. 1035-6. 1 669 Gobineau, 1997, pp. 537 e 539 (livro IV cap. III) . 1670 Noite, 1978, p. 3 98.

res empenhados na reconstrução das "origens culturais do III Reich",1 671 ve­ mos que ainda mais nítida é a profissão de fé individualista, antes a celebração do "espírito santo do individualismo", do "princípio alemão do individualismo", esta "estimulante força fundamental e originária de todo germanismo". 1672 Até no que diz respeito ao antissemitismo, dificilmente poderia ser consi­ derado um mentor ou precursor da "solução final" um autor que declara querer distinguir entre 'judeus de origem nobre e judeus de origem menos nobre" e querer de qualquer modo reconhecer aos judeus, "únicos" entre os "semitas", o mérito de ter "contribuído positivamente para a nossa civilização", a começar pelo papel importante desempenhado na guarda e na transmissão da herança da "antiguidade" clássica; 1 673 um autor que é obrigado a especificar que o 'judeu não é um inimigo da cultura e da civilização germânica" e prevenir contra "a tendência verdadeiramente ridícula e revoltante que faz do judeu o bode expiatório universal por todos os vícios do nosso tempo".1 674 Devemos, portanto, concluir que o encontro, neste caso não ideal, mas realmente acontecido, entre Chamberlain e Hitler é apenas o resultado de um equívoco, de um engano de que um e outro foram vítimas? Além dos ideólogos do nazismo, tal engano teria continuado a cegar também os numerosos histori­ adores contemporâneos que, ao se empenharem em reconstruir a gênese do III Reich, acham que devem prestar particular atenção ao autor de Osfandamen­ tos do Século XIX. Este é o resultado paradoxal, mas obrigatório, da hermenêutica da inocência, uma vez, supõe-se, que ela seja pensada e aplicada com coerência.

1 671 Mosse, 1 968, passim. 1672 Langbelm, 1922, pp. 36,

210 e 3. 1937, pp. 386 e 304. 1674 Chamberlain, 1937, pp. 18-9. 1673 Chamberlain,

15 RADICALISMO ARISTOC RÁTICO, ELITE PAN-EUROPEIA E ANTISSEMITISMO

1 . A Inglaterra e "a via para a distinção " aristocrática everia ser já clara agora a grande consonância de Nietzsche com a rea­

D ção aristocrática do final do Século XIX. Todavia, a tendência dominante

em nossos dias é apoiar-se sobre as categorias de "antigermanismo" e de "anti­ antissemitismo", para erguer uma barreira intransponível entre o filósofo, de um lado, e as correntes mais reacionárias do II Reich (para não falar do III Reich), do outro.1675 Não há dúvida: N ietzsche invoca "uma élite pan­ europeia", 1676 mas nessa sua tomada de posição não está absolutamente isola­ do. Pensemos no pathos do homo europaeus, caro, para dar dois exemplos, tanto a Lombroso como, sobretudo, a Lapouge, que vê nessa figura a encarnação da civilização "ariana" e a antítese com respeito à barbárie crescente. 1 677 Isso vale também, como vimos, para Chamberlain. Nesse caso, podemos até valer­ nos do juízo de um amigo fiel de Nietzsche. A propósito do autor dos Funda­ mentos do século XIX, Overbeck observa: "Por germanos ele não entende senão o 'mundo inteiro', ou seja, todo o conjunto dos europeus eslavo-celta­ germânicos, segundo a definição do homo europaeus a/bus, sanguineus feita por Lineu". 1678 É preciso não esquecer que as dinastias europeias, todas apa­ rentadas entre si, se encontram regularmente por ocasião de noivados, matri­ mônios, funerais: gloriam-se de fazer parte de uma família, antes de uma raça, bastante exclusiva. Definida e celebrada com os nomes mais diversos (europeia, branca, nórdica, ocidental, ariana, etc.), ela está, de qualquer modo, a indicar a Civilização enquanto tal . Esta é a situação descrita e ideologicamente transfi­ gurada por Nietzsche. Se há um país para o qual a reação aristocrática do final do Século XIX olha como modelo, é a Inglaterra. Se a França foi por tanto tempo devastada por uma revolução depois da outra, a partir do colapso da Comuna de Paris, o 1675 Montinari, 1 999, p. 1 8 1 ; Bataille (1 970, p. 175-8)já se move nesta direção. 1676 Struve, 1 973, p. 43 nota. 1 677 No que diz respeito a Lombroso, cf. Teti, 1993, p. 154; No que diz respeito a Lapouge, cf. Poliakov, 1987, p. 305. 1678 Overbeck, 1 994-95 c, p. 233.

II Reich é que está particularmente exposto à agitação socialista; por outro lado, em ambas as margens do Reno firmou-se o sufrágio universal (masculi­ no), do qual a ilha feliz continua a estar imune. Para ela se voltam a admiração e até a inveja do próprio Treitschke. Depois de ter infelizmente emigrado da originária "pátria francesa" para a Alemanha, o socialismo encontra o seu obs­ táculo insuperável exatamente na Inglaterra. Aqui o "common sense" e o "tato político de um povo livre habituado à luta" deixam pouco espaço para os "so­ nhos socialdemocráticos"; em todo caso, "o valoroso senso jurídico das classes superiores sempre foi o rochedo contra o qual se quebraram as pontas da cega fé de massas desviadas". 1679 Ao invocar uma recuperação antidemocrática, também Langbehn olha para o outro lado do Canal da Mancha: "A atual Inglaterra ainda está em parte organizada de modo aristocrático"; ela "não conhece os sucessos políticos do quarto Estado". Entre os ingleses "o aristocratismo antigo, sadio, não desapa­ receu", 1 680 mas eles, que "são o povo mais distinto", "indicam aos alemães no seu conjunto o caminho para a distinção" (Vornehmheit). 1 681 Se da Alemanha passarmos para a Áustria, o quadro não muda: na Viena dos Habsburgo descri­ ta por Musil, a "nobreza", bastante orgulhosa, "se considerava segunda apenas à inglesa".1 682 É um modelo caro ao próprio Gobineau: no seu modo de ver, a Inglaterra é "o país europeu em que as modificações do sangue foram mais lentas e até aqui menos variadas" e onde, exatamente graças a essa pureza superior, "ainda se veem subsistir as instituições dos séculos XIV e XV na base do edifício social" e "os restos dos costumes germânicos". 1683 Não por acaso, o Ensaio, empenhado em combater em todos os níveis a ideia de égalité, é dedicado "a Sua Majestade Jorge V". De modo análogo, na França, Paul Bourget, um autor conhecido e apreciado por Nietzsche, fala com respeito e admiração da "aristocrática e monárquica Inglaterra", num texto e com um julgamento que depois constituíram um ponto de referência para Charles Maurras e L' Action Française. 1 684 E, aos olhos de Lapouge, a Grã-Bretanha aparece como "a sen­ tinela avançada da Europa", como o país no qual não há traço de exaustão da "casta aristocrática", que se verificou na França. 1 685 Tão forte é nesses anos o fascínio que a ilha feliz exerce sobre os círculos aristocráticos que nem sequer 1 679 Treitschke, 1 879, pp. 461-2. 1 680 Langbehn, 1 922, p. 140 . 1 681 Langbehn, 1 922, p. 2 1 3 . 1 682 Musil, 1 997, p . 1 1 1 . 1 683 Gobineau, 1 997, pp. 96 e 8 1 1 (livro 1 cap. V e livro VI cap. III) . 1 684 CT. Girardet, 1983, p. 168. 1 685 Lapouge, 1 896, pp. 71 e 76.

Guilherme II consegue subtrair-se a ele: também nas suas veias - gaba-se ele - "corre o bom, obstinado, inextinguível sangue inglês"; "adora a Inglaterra", o imperador chega a dizer a Theodore Roosevelt. 1686 É um país que, enquanto continua a ser governado por uma aristocracia de extraordinária vitalidade, colocou-se à frente da expansão colonial. Então se compreende a admiração que suscita nos autores socialdatwinistas ou influen­ ciados pelo socialdatwinismo: ''para aquele grande país, a partir das últimas dez ou doze gerações, emigraram de toda parte da Europa os homens mais enérgi­ cos, mais ativos e mais corajosos e conseguiram o maior sucesso". Quem se exprime assim é Ploetz que, em apoio à sua tese, invoca também o testemunho de Lombroso. 1 687 Contrariamente aos mitos correntes, Nietzsche se mostra relativamente mais frio: sim, ao colonialismo utópico e plebeu do cunhado con­ trapõe o bem diferente da Grã-Bretanha (supra, cap. 1 8 § 8); mas, por outro lado, reprova nos ingleses o espírito mercantil e o permanente apego à hipocri­ sia moral, franqueza e ousadia insuficientes no reconhecimento do direito supe­ rior da "besta loura" à conquista e à violência.

2. A decadência europeia e o "atraso " da Alemanha Se são impiedosos os termos com os quais o filósofo se exprime sobre o II Reich, ou antes sobre a Alemanha a partir de Lutero, não são mais lisonjeiros os julgamentos formulados por ele sobre outros países. Deixemos de lado os Estados Unidos: "Que me importa o palavrório miserável de certos america­ nos, cabeças confusas e chatas?" (EH, Porque sou tão inteligente, 4). É exatamente a Grã-Bretanha qbe parece ser levada em consideração. Vimos que o obstáculo principal para a reafirmação da escravidão é "o maldito cant inglês-europeu". Sim, os ingleses são "o povo do perfeito cant" (supra, cap. 1 2 § 2 e 2 2 § 3), o povo em que a "tartufice moral" (XI, 523) e a "moral 'altruís­ ta"' encontravam a sua expressão mais concentrada: ela é um "mau sinal"; e "isto vale para o indivíduo singular e vale especialmente para os povos" (GD, Incursões de um inatual, 35). E não é tudo: "a tendência fundamental da filosofia inglesa é a busca do conforto" (Comfortismus) (XI, 72), da felicidade entendida no sentido mais filisteu, da "felicidade dos poucos", isto é, em última análise, da "'felicidade' inglesa" (XI, 523). Estamos na presença de um povo que encarna a visão 1 686 Balfour, 1968, p. 1 16. 1 687 Ploetz, 1895, p. 135.

mercantil e filisteia da vida: "O homem não tende à felicidade, só o inglês faz isto" (GD, Máximas e dardos, 12). Na realidade, o "homem livre é guerreiro". Uma vez conquistada a autêntica liberdade, não se pode não espezinhar "a desprezível espécie de bem-estar com que sonham os comerciantes, os cris­ tãos, as vacas, as mulheres, os ingleses e os outros democratas" (GD, Incur­ sões de um inatual, 3 8). Junto com o amor ao risco parece ter desaparecido também a coragem do pensamento. Estas "mulherzinhas da moral" são até incapazes de elevar-se a um real ateísmo: Na Inglaterra, para cada pequena emancipação da teologia, é preciso reabili­ tar-se, de maneira a incutir terror como fanáticos da moral. Esse é o preço que lá se paga. Para nós é diferente. Quando se renuncia à fé cristã, se despacha, por isto mesmo, para debaixo dos pés o direito à moral cristã (GD, Incursões de um inatual, 5).

Pelo menos nesse ponto a Alemanha se revela superior. É verdade, é aqui que veio à luz a Crítica da razão prática. E de novo o desprezo de Nietzsche se revela sem limites: "Kant: o cant como caráter inteligível" (GD, Incursões de um inatual, 1). Talvez esse aforismo faça alusão à origem escocesa do filósofo ao qual, em virtude do seu cant, compete de qualquer maneira um ideal de cidadania inglesa. Em terra alemã há maior coragem intelectual: um ateu tem a coragem de declarar-se tal, bem diferente de Carlyle, o qual "é no fundo um ateu inglês, que busca a sua honra em não ser ateu" (GD, Incursões de um inatual, 1 2). Que diferença em relação a Schopenhauer, "ateu declarado e irremovível" (FW, 357)! O fato é que, na Inglaterra, temos a ver, como sabe­ mos, com uma "raça de ex-puritanos" (supra, cap. 1 5 § 2), com "uma raça não filosófica'', além de não guerreira, uma raça que "está solidamente ligada ao cristianismo"; "a disciplina deste último" - prossegue Além do bem e do mal ­ "lhe é necessária para 'moralizar' e 'humanizar "' (JGB, 252). A requisitória contra a Inglaterra ganha uma aspereza fora do comum até para um autor habituado à hipérbole. Não há dúvida, "nada é mais lamentável do que a literatura moralista na Europa atual"; mas "à frente" de tal superfici­ alidade e tal vazio estão "os ingleses utilitaristas, que se movem desajeitados como bois nas pegadas de Bentham, como este andava nas pegadas de Helvétius"; são todos "pesados animais de manada com a consciência pertur­ bada", incapazes de compreender a "hierarquia dos homens" (XI, 523-4 ). Ago­ ra é pavorosa a aceleração impressa ao processo de massificação e de estupidificação democrático e gregário: com o "famigerado caso Buckle [ . . . ] o plebeísmo do espírito moderno, que é de origem inglesa, irrompeu de novo no seu terreno natal com a violência de um vulcão de lama" (GM, 1, 4).

"Inglês" tende a se tornar quase um insulto. Quando quer liquidar Rée e denunciar a sua banalidade, Nietzsche declara que faz parte dos "genealogistas ingleses da moral" e que é, em última análise, um "inglês" (GM, Prefácio, 4). Embora enfraquecido, o estereótipo dos anos de O nascimento da tragédia que, em contraposição com a banalidade e a superficialidade modernas, cele­ brava a profundidade germânica, continua a aparecer. De fato, os grandes pensadores alemães (não apenas Schopenhauer, mas também Kant, Schelling, Hegel) são invocados como juízes do vazio próprio da pseudofilosofia inglesa: ela significa "um atentado contra o espírito filosófico em geral", "um aviltamen­ to e uma degeneração de valor", uma "bestificação anglomecanicista do mun­ do" (JGB, 252). Nietzsche se reconhece no elogio feito a ele por Hillebrand, pela primeira Inatual, saudada "como um verdadeiro retorno à seriedade e à paixão alemã nas coisas do Espírito" (EH, As considerações inatuais, 2). Além da Inglaterra de Spencer, a condenação do positivismo e do espírito "altruísta" e gregário que o invade ataca também a França de Comte. Os dois autores são "décadents" ao mesmo tempo em que são "socialistas": A minha objeção contra toda a sociologia inglesa e francesa consiste em que ela conhece por experiência apenas estruturas decadentes da sociedade e com toda candura toma os seus próprios instintos de decadência como norma de juízo sociológico de valor. A vida declinante, a diminuição de toda força organizadora, que são abismos separadores e escancarados, subordens e superordens, recebe a formulação de um ideal na sociologia de hoje (GD, Incursões de um inatual, 37);

Sobretudo nos seus últimos anos de vida consciente, Nietzsche se exprime em termos sempre mais severos ou impiedosos em relação à França. São desde­ nhosos os juízos não só sobre Rousseau, desde sempre alvo privilegiado do filóso­ fo constante e coerentemente empenhado em denunciar a catástrofe da Revolu­ ção Francesa, mas também sobre Victor Hugo, George Sand, Zola (ou "a alegria de cheirar mal"), os "romanciers parisienses" em geral (com a sua "psicologia de vendedor ambulante"); sobre os irmãos Goncourt (são o "pior'', "não colocam três frases juntas que não sejam para o olho, para o olho do psicólogo, simples­ mente motivo de sofrimento"); sobre Sainte-Beuve, Baudelaire, Comte (GD, In­ cursões de um inatual, 1 -7). Para não falar de Renan, sintoma de um processo de degeneração que vai muito além de uma única pessoa. O autor da A vida de Jesus é "um espírito que se extenua, é uma fatalidade a mais para a pobre França doente, doente na vontade" (GD, Incursões de um inatual, 2). Trata-se de uma doença que data da Revolução Francesa e da filosofia que age por trás dela e que continua a revelar uma vitalidade desgraçada.

Tome-se Sainte-Beuve: "Plebeu nos seus instintos mais baixos e aparentado com o ressentiment de Rousseau", "revolucionário, mas ainda muito sujeito ao freio do medo", nele "grunhe e cobiça o instinto rousseauiano de vingança"; ele "não tem nada do homem", cheio como está de "uma pequena raiva contra todos os instintos viris"; é na realidade "uma mulher, no fundo com um espírito vingativo e uma sensualidade feminina" (GD, Incursões de um inatual, 3). A presença funesta de Rousseau se faz sentir também em George Sand, com a sua "ambição de nutrir sentimentos generosos'', os chamados "senti­ mentos nobres'', na realidade cheios de ressentiment, que alimenta a revolta plebeia. É Renan que admira, antes "venera'', a escritora feminista e socialista (GD, Incursões de um inatual, 6). Compreende-se bem isto. Não obstante a sua pretensão de fazer parte da "aristocracia do espírito", ele na realidade "se prostra de joelhos, e não só de joelhos, diante da doutrina oposta, do évangile des humbles" (GD, Incursões de um inatual, 2). Aqui estamos diante de uma espécie de tara nacional . Também Comte está acometido por ela, pois, pelo que parece, alimenta a sua "religião do coração" mediante a leitura da lmitatio Christi, livro que suscita "repugnância fisiológica"; para poder suportar isso e até apreciar, "deve-se ser francês, ou wagneriano" (GD, Incursões de um inatual, 4). Os apaixonados pelo musicista alemão, mas de tendência católica, encontram de modo repugnante a sua pátria de eleição exatamente na França. Olhando bem, da comparação com os outros países europeus e ociden­ tais, a Alemanha se sai de modo relativamente digno. O pacifismo dos ingleses é desprezível, mas não são diferentes os franceses com o seu culto, herança da revolução, da ideia do homem como tal e da fraternidade entre as nações: "É preciso estar acometido de uma gálica desmesura de excitabilidade erótica e de apaixonada impaciência para honestamente aproximar-se ainda da humani­ dade com ardor" (FW, 377). Felizmente, na Alemanha estão em ação "virtudes mais viris do que aquelas que qualquer outro país da Europa poderia revelar" (GD, O que os alemães não têm, 1). Sabemos que são as "raças latinas" que encarnam aquela "idiotice numérica" e "superstição das maiorias" que, feliz­ mente, não se arraigou ainda na Alemanha (supra, cap. 1 1 § 5). O filósofo nota "com prazer" que aqui ainda é vital aquela "natureza mefistofélica" que já se manifestou com Frederico o Grande (intérprete das virtudes do bel/um) e com "aquele muito maior Frederico, Frederico II de Hohenstaufen" (que tem o mérito de ter aspirado a emancipar-se das angústias do mundo cristão) (XI, 452). Um fragmento bastante significativo se empenha em identificar e em enu­ merar as expressões mais repelentes da modernidade: "Autores que compro­ metem de uma vez por todas aqueles que, ainda hoje, os lêem com prazer: Rousseau, Schiller, George Sand, Michelet, Buckle, Carlyle, a lmitatio" (XIII,

l 89). Como se vê, nesta lista a Alemanha ocupa um lugar modesto. Está pre­ sente com Schiller, mas, para honra dos alemães atuais, se pode dizer que eles "não suportam mais as grandes, esplêndidas, cintilantes palavras schillerianas" veneradas por "seus avós" (XI, 5 67). Em conclusão, parece que é a Alemanha que opõe um mínimo de resistência ao desvio subversivo geral. Se há indícios de que, apesar do caráter abrangente da décadence européia, more ainda, na essência alemã, um certo grau de saúde, um faro instintivo para aquilo que prejudica e ameaça perigo, me daria prazer saber que entre tais indícios esta surda resistência contra Wagner foi subavaliada ao míni­ mo. Ela nos faz honra, nos autoriza até a esperar: tanta saúde a França não poderia mais esperar. Os alemães, estes retardadores ( Verzogerer) par excellence na história, são hoje na Europa o povo civil que ficou mais atrás (zurackgebliebenste Culturvolk): isto tem a sua vantagem - desse modo eles são exatamente o povo relativamente mais jovem (WA, Pós-escrito).

É um tema que começa a surgir em Nietzsche já com o declinar dos entusiasmos de O nascimento da tragédia. A "incompletude" caracteriza o povo alemão: "O que é alemão ainda não se exprimiu com plena clareza". É exatamente essa condição que, não obstante toda a mediocridade do presente, deixa espaço para a esperança no futuro: "A essência alemã não existe ainda; ainda deve nascer; num dia ou noutro deverá finalmente ser gerada, para que se tome especialmente visível e honesta diante de si mesma. Mas todo nasci­ mento é doloroso e violento" (VII, 687). É uma esperança que nunca desapa­ rece totalmente porque, ainda na véspera imediata do surgimento da loucura, Nietzsche insere a Alemanha entre as "nações em devir" (supra, cap. l 8 § 3). Isto não a protege contra a modernidade: "Todas as nossas teorias políti­ cas e constituições estatais, sem absolutamente excluir o 'Reich alemão ', são corolários, consequências necessárias da decadência" (GD, Incursões de um inatual, 37). Como mostro na frase em itálico, não se trata de discriminar negativamente a Alemanha com relação aos outros países europeus, mas de liquidar as ilusões de que o Estado que brotou da guerra contra o país da revo­ lução e da Comuna constitua de per si uma alternativa real com respeito à subversão moderna. Sem deixar-se prender por indulgências patrióticas, é ne­ cessário condenar e combater "a democracia moderna, junto com todas as suas expressões ambíguas (sammt ihren Halbheiten), como o ' Reich alemão' , enquanto forma de decadência do Estado" (GD, Incursões de u m inatual, 39). Se também a Alemanha representa um estágio menos avançado da sub­ versão e dissolução moderna, todavia não é lícito alimentar ilusões, satisfazen-

do-se com um presente miserável. É um ponto no qual Nietzsche sente a ne­ cessidade de insistir com força: a virulência da polêmica visa em geral os rene­ gados, os culpados de uma traição que talvez se possa ainda colocar em discus­ são. A esperança não desapareceu totalmente.

3. Celebração permanenté da "essência " alemã e denúncia da estraneidade de Wagner em relação à Alemanha autêntica Começam a surgir a imprecisão e a inconsistência da categoria de "antigermanismo". Com base no pressuposto tácito de urna Alemanha eterna e eternamente nefasta, a polêmica contra o II Reich ou certos aspectos dele implicaria urna denúncia também do III Reich; a condenação da Alemanha que, com a Reforma e a guerra dos Camponeses, contribuiu poderosamente para a derrubada do Antigo Regime aristocrático e que, com Kant, com Beethoven e com as revoltas antinapoleônicas, ecoa ternas caros a Rousseau e à Revolução Francesa, tal condenação significaria a prevenção contra o regime nazista, na realidade todo invadido pela ideia da cruzada contra as ideias de 1789 e do calamitoso ciclo revolucionário no seu conjunto!

Tentemos, porém, ler a polêmica contra o II Reich a partir da categoria de "reação aristocrática", firmada pelos historiadores atuais e já pelos contempo­ râneos de Nietzsche, antes evocada pelo próprio filósofo, quando ele professa orgulhosamente o seu "radicalismo aristocrático". Se Engels reage ao triunfo da reação depois de 1 848 empenhando-se em estudar a tradição revolucionária da Alemanha a partir pelo menos da guerra dos Camponeses (supra, cap. 1 7 § 1 ), Nietzsche, colocado diante da "traição" democrática e subversiva consu­ mada pelo II Reich, se esforça por retraçar e construir uma tradição aristocrá­ tica para contrapor ao desvio plebeu. Se, por um lado, desgraçadamente inventaram a imprensa, contribuindo as­ sim para a massificação da cultura e da sociedade, por outro lado, os alemães tiveram o mérito de inventar a pólvora para disparo, introduzindo assim os antído­ tos contra o veneno da sociedade mercantil e do pensamento calculador (JGB, Prefácio). Por outro lado, a polêmica furibunda contra a Alemanha da época não impede o filósofo de celebrar como uma obra de arte o "corpo prussiano dos oficiais" e indicar neles os seus "aliados naturais" (supra, cap. 22 § 5 e 17 § 5). Não se trata, portanto, de liquidar a Alemanha enquanto tal, mas de identificar nela uma tradição alternativa em relação à miséria do presente. No plano histórico, às personalidades e tendências cristãs ou "cristômanas", para retomar a linguagem zombeteira que remonta ao período "iluminista", Ecce

Homo contrapõe "um ateu e inimigo da Igreja comme il faut, um dos meus mais próximos afins, o grande imperador Frederico II Hohenstaufen" (EH, Assim falou Zaratustra, 4), uma personalidade histórica a quem cabe o mérito de ter favorecido mais o islã aristocrático do que o cristianismo plebeu (AC, 60). Talvez seja também em homenagem ao próprio nome que Nietzsche olha com tanta simpatia para o "inesquecível imperador alemão Frederico III" (EH, Assim falou Zaratustra, 1 ) : o imperador que desaparece com a rapidez de um meteoro parece configurar-se como uma espécie de Juliano redivivo; depois da morte de Guilherme 1, ele ocupa por poucas semanas o trono antes de aplanar o caminho, com a sua morte, para a subida de Guilherme li, o qual representa o ponto mais baixo do desvio cristão e cristômano do II Reich. Também no plano mais propriamente cultural, a leitura da história da Ale­ manha, apesar da profundidade da decepção e do tom ressentido da denúncia, é de sinal mais ambíguo do que parece à primeira vista. Talvez a filosofia alemã não seja sinônimo unívoco de subversão moderna. Já A gaia ciência, a propó­ sito de Hegel, sublinha "a grandiosa tentativa (grandioser Versuch) que ele fez para persuadir-nos, de modo definitivo, da divindade da existência" (FW, 3 5 7). Nesse momento, o juízo de valor não é univocamente positivo, pelo fato de que tal tentativa é feita apelando para o "senso histórico" e com persistentes homenagens formais ao Deus cristão (FW, 357). Mais tarde, esses elementos de ambiguidade parecem desaparecer. O "significado da filosofia alemã" e de Hegel em particular é identificado no esforço de "descobrir um panteísmo no qual a dor, o erro e o sofrimento não poderiam ser percebidos como argumen­ tos contra a divindade" . Se também disso os poderes constituídos se aproveita­ ram para procurar legitimar um present� medíocre e vulgarizado da modernidade, trata-se para sempre de uma "grandiosa iniciativa" (grandiose lnitiative) (XII, 1 1 3 ) , que parece retomar a cosmodiceia do mundo helênico, liquidando as choradeiras cristãs e socialistas diante da dureza do real. Nesse mesmo contexto deve ser colocada a personalidade de Goethe. É verdade, no plano histórico-filológico, o grande poeta permaneceu firme com o ponto de vista de Winckelmann e, portanto, "não compreendeu os gregos" (GD, O que devo aos antigos, 4). No entanto, ele é o único grande europeu que sentiu "náusea" diante da Revolução Francesa e que, ao fazer isto, soube pôr em ação "uma grandiosa tentativa para superar o Século XVIII com uma volta à natureza", isto é, "à naturalidade do Renascimento". Com o seu "realismo", Goethe soube recuperar "toda a riqueza da naturalidade'', também o que nela há de terrível, sem sufocá-lo ou removê-lo com superposições e mistificações idealistas e moralistas; nesse sentido, rechaçando o cristianismo, ele soube ex­ primir uma "fé" na vida, que pode muito bem ser "batizada com o nome de

Dioniso" (GD, Incursões de um inatual, 48-9). De novo somos conduzidos à Hélade, que, apesar de tudo, revela uma misteriosa presença e age na história da Alemanha mais do que em qualquer outro país. É um dado de fato sobre cujo significado convém interrogar-se: "Por que exatamente os alemães descobriram o helenismo"? (X, 646). Nesse ponto, talvez o próprio cristianismo, que desempenha um papel tão importante no âm­ bito da história da Alemanha, possa ter um significado bem diferente daquele que aparece à primeira vista: Quer-se voltar atrás, através dos padres da Igreja, até os gregos, do Norte para o Sul, das fórmulas para as formas; usufrui-se também do fim da antigui­ dade, do cristianismo, como uma via de acesso à antiguidade, como um bom pedaço do mundo antigo, como um cintilante mosaico de conceitos e juízos de valor antigos.

Nesse sentido, a filosofia alemã pode também ser interpretada como "um fragmento da Contrarreforma, e até do Renascimento, ou pelo menos da von­ tade de renascimento, vontade de progredir na descoberta da antiguidade, no desenterramento da antiga filosofia, sobretudo da pré-socrática, do templo gre­ go mais profundamente sepultado". Então, a amarga denúncia se transforma no seu contrário, numa exaltada esperança; ou, melhor, os dois aspectos convi­ vem e se entrelaçam, ficando claro que agora, se a denúncia é conjugada com o presente, a expectativa confiante olha para o futuro. Mas este futuro é tanto mais persuasivo porque está enraizado numa realidade sólida: "Aqui reside (e sempre residiu) a minha esperança pela essência alemã! " (XI, 678-9). Já de algum modo presentes em Goethe e em Hegel, a visão dionisíaca da vida e a cosmodiceia adquirem plena consciência em Nietzsche, o qual, portanto, pode e deve ser considerado - esta é a autorreflexão do filósofo - como o auge das tendências helênicas de fundo que atravessam a história da cultura alemã. Este auge é o resultado, por um lado, de um movimento positivo de cumprimento da "grandiosa iniciativa" e da "grandiosa tentativa" de Hegel e Goethe, por outro lado, de um movimento negativo, que consiste na relação decididamente polêmi­ ca e conflitual, mas exatamente por isso extraordinariamente fecunda e instruti­ va, com as manifestações ruinosas da modernidade em terra alemã: Não seria possível sem uma raça de natureza contrária, sem alemães, estes alemães, sem Bismarck, sem o ano de 1848, sem as "guerras pela liberdade", sem Kant, até sem Lutero . . . Os grandes delitos dos alemães no campo da civilização se justificam numa economia superior da civilização . . . Não quero nada diferente, nem para trás - não me é lícito querer nada diferente... Amor fati . Até o cristianismo se toma necessário: exatamente a forma suprema, .

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mais perigosa, mais sedutora do não à vida provoca a sua suprema afirma­ ção: em mim (XIII, 641). A partir deste resultado, e do duplo movimento, positivo e negativo, que conduz a ele, é possível colher o papel decisivo e único da Alemanha na recu­ peração da visão trágica, e autenticamente grega, da vida: "Justifico os ale­ mães, sozinhos"; para certos aspectos radicais é o "contrário", mas "exata­ mente esta é a condição" para cfue a difusão do niilismo cristão em terra alemã se transforme no seu oposto (XIII, 64 1 ) . Olhando bem, até as manifestações ruinosas da modernidade em terra alemã se revelam uma felix culpa. E, de novo, a Alemanha volta a assumir, ainda que através de um processo bem mais complexo e contraditório do que o imaginado por O nascimento da tragédia, a herança mais alta da Hélade, volta a colocar-se numa posição de absoluta eminência com respeito aos outros países . Faz tão pouco sentido opor ao Wagner apóstolo da teutomania um Nietzsche campeão do "antigermanismo" que o filósofo, para selar a sua requisitória con­ tra o musicista, o excomunga repetidamente, e com formulações diversas e às vezes contrastantes entre si, da comunidade germânica. Em primeiro lugar, o musicista "acreditou, durante metade da sua vida, na revolução, como apenas alguns franceses acreditaram" (WA, 4). Não se trata de um acontecimento já passado: "A sensibilidade de Wagner não é característica da Alemanha" (XIII, 407). Ele "entra no movimento francês" (XI, 63), é parte integrante da "Paris doente" (B, III, 5, p. 5 1 8); "os seus heróis, os seus Rienzi, Tannhãuser, Lohengrin, Tristão, Parsifal - essa gente tem sangue nas veias, sem dúvida - mas certa­ mente não sangue alemão ! " (XIII, 407). De resto, basta folhear o álbum de família do musicista. Os "românticos franceses" voltam para os seus "parentes próximos" (XIII, 407) observa Nietzsche com uma transparente alusão a Cosima. A mãe desta última, Marie d' Agoult, tentara em Paris ser escritora, tendo talvez como modelo George Sand, e tinha em parte transmitido suas ambições literárias à filha, que também viveu durante muito tempo na França. 1688 As coisas eram piores ainda no que diz respeito à ascendência paterna de Wagner que, aos olhos de Nietzsche, remonta ao judaísmo (supra, 5 § 2). E não se trata de um dado biográfico sem importância no plano cultural. Basta pensar na "emulação com relação a Meyerbeer" e numa emulação perseguida "recorrendo diretamente a meios meyerbeerianos". O musicista judeu que Wagner visava na realidade constitui o seu modelo: "o que há de alemão em tudo isso?" (XIII, 408). -

1688 Gutman, l983, pp. 307-9.

Mas em caso algum se pode perdoar a Wagner o fato de ele ser um devoto da "Roma" cristão-católica: desse ponto de vista, toma-se mais do que nunca estranho à essência, inclusive ao "corpo (Leib) alemão" (JGB, 256 e NW, Wagner apóstolo da castidade, 1). Respondendo nesse ponto à leitura do Parsifal feita pelo "caro amigo" Nietzsche, um interlocutor benévolo lhe objeta: "Não consigo descobrir nenhum traço da 'fé de Roma', mas apenas cristianismo puro e isto, tanto para-mim como para muitos alemães, ainda não é antialemão" (B, III, 6, p. 1 08). Aqui é o filósofo que é acusado de teutomania estreita pelo fato de querer expulsar da autêntica essência alemã a religião na qual há muito tempo se reconhece a grande maioria da população da Alema­ nha. Vale a pena notar que tal tentativa de excomunhão chauvinista do cristia­ nismo constituirá depois um tema constante dos círculos reacionários mais ra­ dicais até o advento do III Reich. Rosenberg fala com desprezo dos católicos alemães como do "partido romano do Centro". 1689 Em última análise, aos olhos de Nietzsche, Wagner remete ao ciclo de longa duração da subversão judeu-cristã que desembocou depois nas revoluções de Além-Reno. Não é por acaso que encontra a sua consagração na Paris em que fortemente se nota a presença dos "socialistas franceses" (JGB, 256). Durante metade da sua vida, "analogamente a todos os ideólogos da revolução", acreditou que "todas as desventuras do mundo" são superáveis modificando-se "leis" e "instituições" e destruindo os fundamentos político-morais em que se baseia "o mw1do velho, a antiga sociedade". Assim "pôs em música" o "otimismo", seguin­ do a "utopia socialista graças à qual 'tudo se torna bom"' (WA 4). Pelo menos no que diz respeito ao primeiro Wagner, a crítica de Nietzsche é formulada de um ponto de vista não só declaradamente reacionário, mas também afetado pelo filisteísmo da ideologia então dominante na Alemanha e na Europa: o musicista cometeu o erro de ter teorizado ou cantado o "amor livre" e a emancipação da mulher (WA, 4); ele encarna todos os valores da décadence, isto é, "anarquia atomística, desagregação do querer, 'liberdade do indivíduo"', mas também "di­ reitos iguais para todos". Em conclusão, "a vida, a vitalidade igual, a vibração e a exuberância da vida compreendida no nível dos organismos menores, e o resto pobre de vida" (WA, 7) . Somente o encontro com Schopenhauer e com o seu "pessimismo" é que destroi as "belas esperanças" socializantes, mas sem modi­ ficar o quadro de modo substancial (WA, 4). Agora entra a "grande compaixão cristã" (WA, 6), um tema que remete para sempre à subversão plebeia e que pode ser encontrado até num autor profundamente simpático ao movimento po­ pular e revolucionário, que é Victor Hugo (WA, 8). O escritor francês e o musicista 1689 Rosenberg, 193 7 b, p. 7.

alemão "significam uma só e idêntica coisa": ambos são sinônimo de "decadên­ cia" e de vantagem das "massas" {WA, 1 1 ). É radical a distância que separa Wagner da "essência alemã" que, apesar de todos os sintomas de degeneração, nas obstinadas esperanças de Nietzsche, talvez um dia possa ser chamada a fechar definitivamente o ciclo revolucioná­ rio, aplanando a estrada para o renascimento do helenismo trágico . De modo análogo, em O nascimento ckl tragédia e nos textos contemporâneos dela, a celebração da essência helênica não impede que se condene como fundamen­ talmente estranha a ela uma boa parte da cultura grega (Eurípides, Sócrates, os eleatas, para não falar do mundo helenista e alexandrino). É uma analogia que se pode constatar ainda na última fase da vida consciente de Nietzsche. Os juízos expressos sobre a Alemanha não são substancialmente mais severos do que os reservados à Grécia e à antiguidade clássica no seu conjunto. É preciso cuidar para não "dizer sim" em bloco. ''No fundo, há apenas um pequeníssimo número de livros antigos que contam na minha vida; os mais célebres não estão entre estes" (GD, O que devo aos antigos, 1). Mesmo sem ser nova, a crítica da Hélade agora se toma, espaçadamente, impiedosa. Platão "continua sendo a maior desgraça da Europa"; na filosofia helenista "está presente em todo o seu esplendor a falsificação do real por obra da moral", já se percebe a irrupção ruinosa do cristianismo (B, III, 5, p . 9). Para além da aspereza do julgamento crítico, é nova também a amplidão do seu alvo . Às vezes se tem a impressão que a ser alvejada é a Grécia no seu conjunto: "Esses gregos carregam muito peso na consciência, a falsificação era o seu verdadeiro oficio, toda a psicologia europeia se ressente das superfi­ cialidades gregas" (B, III, 5, p. 28) . No entanto, isso não impede que Nietzsche reforce o desejo e o anúncio da "proximidade do retomo do espírito grego" (EH, O nascimento da tragédia, 4), pensado e definido em oposição a fenô­ menos de degeneração ou a uma aparência que cada vez mais parece dilatar­ se: "a filosofia grega" é lida "como décadence do instinto grego" mais profun­ do e autêntico. Não tem sentido querer julgar a autêntica Grécia a partir dos seus "filósofos"; estes "são exatamente os décadents do helenismo, o movi­ mento antitético ao antigo gosto aristocrático" (GD, O que devo aos antigos, 2-3). Como nos escritos de sua juventude, também na véspera do seu colapso espiritual Nietzsche continua a opor, aos aspectos centrais e sempre mais am­ plos da Grécia fenomênica, uma essência helênica, que se toma sempre mais fugidia e inapreensível. De modo não diferente ele se comporta, em última análise, em relação à Alemanha.

4. Crítica do Segundo Reich e reação aristocrática É uma tendência que podemos ler também em outros autores. Em Langbehn, a fé no futuro da Alemanha autêntica não está absolutamente em contradição com uma dura requisitória contra o II Reich. É um país caracteri­ zado por uma vulgaridade sem limites, "extraordinariamente contrário às pode­ rosas individualidades espirituais� . 1 690 Aí domina - insiste Lagarde - "o despo­ tismo que se disfarça de liberdade". 1691 De qualquer modo, estamos bem longe da civilização no sentido forte do termo: "a instrução geral é a figura especifi­ camente alemã da civilização", a qual é "essencialmente aparência e enga­ no".1 692 Não só não há traço de "uma nova religião, mas menos ainda de uma religião nacional"; 1 693 pelo contrário, como demonstra o culto difundido do Es­ tado e da filosofia hegeliana, assistimos a uma "adoração dos ídolos". Como se vê, até a linguagem faz pensar em Nietzsche. 1694 Ao promover a "extensão horizontal" do saber, com prejuízo da sua profundidade, e uma "instrução ge­ ral", que é sinônimo de "civilização", e difundir a crença na "onipotência do Estado" - prossegue Lagarde -, Hegel se revela estranho à "essência ( Wesen) alemã";1 695 no entanto, ele se torna o "preferido do Estado prussiano''i 696 em virtude da obra infausta de ministros "apóstatas" da germanicidade. 1 697 Um juízo tão drástico do presente impõe uma releitura severa também do passado, a qual não poupa sequer os heróis nacionais: a "chamada Reforma de 1 5 1 8" - note-se o tom de desdém - é uma antecipação da Revolução France­ sa; ambas surgiram da "avidez crua dos que nada têm". 1 698 Lagarde se põe até a denunciar a "incapacidade de futuro"1699 do II Reich, mas sem nunca perder totalmente a esperança no renascimento da Alemanha autêntica, a qual, embo­ ra continuamente menosprezada e traída, no fim se revelará mais forte que os seus filhos degenerados. É por isso que Lagarde será retomado pelas correntes de ideias e pelo movimento que depois confluiu no nazismo. Ademais, agora a 1 690 Langbehn, 1 922, p. 229. 1 691 Lagarde, 1 937, p. 282. 1 692 Lagarde, 1937, p. 85. 1 693 Lagarde, 1 937, p. 282. 1 694 Lagarde, 1937, p. 141. 1 695 Lagarde, 1937, pp. 209, 85 e 376. 1 696 Lagarde, 1 937, p. 4 10. 1697 Lagarde, 1 937, p. 377. 1 698 Lagarde, 1 937, p. 282. 1 699 Lagarde, 1 937, p. 365.

odiada irmã e o ainda mais detestado cunhado de Nietzsche não se comportam de modo diferente, como surge de uma carta de Elisabeth ao filósofo: "Estamos plenamente de acordo num ponto, no fato de que o 'Reich' te parece tão incri­ velmente chinês, totalmente antialemão" (B, III, 6, p. 147). Bem longe de haver contradição entre eles, a denúncia presente da Ale­ manha e do pathos da essência alemã são dois aspectos da reação aristocrática que se difunde no final do Século XIX. Disso participam forças e personalida­ des diferentes com um programa mais ou menos radical: lutam pela abolição do sufrágio universal e pela aprovação de uma legislação antissindical e antissocialista mais ou menos drástica: olhando com horror para a difusão da instrução escolar, exigem medidas que visam reforçar o estatus político e social das é/Ues tradicionais; com Langbehn, reivindicam até a atualidade do instituto da escravidão, seguindo o modelo da antiga Grécia (supra, cap . 12 § 3).

5. Racialização horizontal e racialização transversa/ Afinal, quem deve ser escravizado? À semelhança de alguns teóricos do Sul escravista dos Estados Unidos, o filósofo-filólogo, que tem diante dos seus olhos o modelo da antiguidade clássica, não se identifica nunca completamente com a ideia de escravidão racial. A escravidão é absolutamente inevitável pelo fato de que a civilização exige uma extrema divisão do trabalho: uma massa considerável de homens pode sacrificar-se para garantir o otium àqueles que são chamados a criar arte e cultura. É claro, o pensamento vai logo para as populações coloniais ou semicoloniais, mas em primeiro lugar por considera­ ções de ordem prática. Isto é, pelo fato de que elas ainda não foram acometi­ das pela agitação socialista e, sobretudo, pela desgraçada prática europeia e, em particular, prussiano-alemã, de difundir indiscriminadamente a instrução, tornando problemática ou impossível a reprodução de uma "raça" de escravos. Continua verdadeiro que não há país que seja imune à presença de escravos potenciais, de material humano bruto a colocar à disposição dos homens supe­ riores e das suas criações. O elemento constante na complexa evolução de Nietzsche é a tendência à racialização das classes subalternas, cada vez mais rotuladas como "camada bárbara de escravos" em revolta, como ralé constitucionalmente incapaz de pretender e querer, e considerada perturbada e delirante pelo espírito visioná­ rio, pelo fanatismo e pelo ressentiment, como um conjunto de instrumentos de trabalho a serviço das classes dominantes, como uma multidão de seres "semibestiais", como material de rejeição ou como matéria prima para as cria-

ções artísticas de uma restrita minoria, como amontoado de mal sucedidos e fracassados da vida. Argumentando desse modo, Nietzsche retoma e radicaliza ao extremo uma tendência bem presente já no protoliberalismo que, como vimos (supra, cap. 1 2, § 4), assimila o trabalhador assalariado a um instrumentum vocale (Burke), ou a um "instrumento bípede" (Sieye�). Um sociólogo autorizado comparou a "atitude para com o novo proletariado industrial", que se desenvolve na Inglaterra entre 1 660 e 1760, ao "comportamento dos mais abjetos colonizadores brancos para com os trabalhadores de cor" .1700 De fato, em Locke podemos encontrar escrito com letras claras que um trabalhador assalariado, "um trabalhador braçal [ . . ] não está em condições de raciocinar melhor do que um indígena" (a perfect natural): Nem um nem o outro atingiram ainda o "nível de criaturas racionais e de cristãos". E em Sieyes podemos ler que "uma grande nação é necessariamen­ te composta de dois povos", de qualquer modo de duas raças diferentes e de valor essencialmente diverso, dado que de um lado temos os verdadeiros "produ­ tores" ou os "chefes da produção", do outro, os "instrumentos humanos da pro­ dução"; de um lado, "as pessoas inteligentes" ou as "pessoas de bem" (gens honnêtes), do outro, "os operários que têm apenas a força passiva" e que são simples "instrumentos de trabalho" (instruments de labeur). Embora colocado em posições políticas diferentes, também Mallet du Pan contrapõe as pessoas de bem e ricas, les honnêtes gens, à "multidão de famélicos dos dois sexos".17º1 Em termos análogos se exprime madame de Staêl durante o Brumário.1702 Às vezes encontramos expressões que nos levam à vizinhança imediata de Nietzsche. Se Taine celebra os "bem nascidos e bem educados" (bien nés, bien élevés), 1703 do outro lado do Atlântico, com igual fervor Alexander Hamilton e John Adams se exprimem a propósitos dos "ricos e bem nascidos" (well-born), os quais se elevam acima da massa do povo", composta de "mecânicos" e de gente sem cultura e educação "liberal". 1704 De modo análogo, Nietzsche contra­ põe o "bem sucedido" (wohlgeraten) à ralé e à massa dos falidos da vida. Num fragmento da primavera de 1 8 88, enquanto ferve o trabalho pela projetada A vontade depotência, podemos ler: "Seja este livro consagrado ao homem exitoso, que faz bem ao meu coração" (XIII, 432). A esta figura do "ser exitoso" Ecce Homo eleva um verdadeiro hino (EH, Porque sou tão sábio, 2). .

17ºº Tawney, 1975, p. 5 13. 17º1 In Guillemin, 1958, pp. 3 1 -2 e 41-3. 1 102 ln Guillemin, 19 58, pp. 1 82-3. 17º3 Taine, 1 899, vol. 1, p. 290 (cí Taine, 1986, p. 342). 1704 In Morison, 1953, p. 259; Merriam, 1 969, pp. 130, 132 e 142.

Um abismo separa a "gente de bem", ou os "bem sucedidos", dos excluídos da cidadania, os quais, portanto, podem muito bem ser comparados a "estrangei­ ros". É uma atmosfera que encontramos, ainda antes que em Constant, de algum modo já em Sieyes, para o qual entre "essa multidão imensa de instrumentos bípedes" não há "um só que seja capaz de entrar em sociedade" e de fazer parte do restrito círculo das pessoas verdadeiramente "civilizadas" (policés).11º5 Aqui trabalhador braçal é sinônimo não só de estrangeiro, mas também de estranho à civilização, de algum modo de membro de uma raça inferior. É significativo que essa mesma metáfora seja usada já por Locke, em referência àquele "gênero de servos que com um nome específico chamam de escravos, que sendo prisionei­ ros capturados durante uma guerra legítima [ ... ] e tendo perdido os seus bens e não sendo, exatamente porque são escravos, qualificados para gozar de proprie­ dade alguma, não podem ser considerados, na sua condição, parte da sociedade civil, cujo fim principal é a conservação da propriedade".1706 A tendência à racialização das classes subalternas internas à metrópole capitalista atenua-se sempre mais na onda das lutas político-sociais desenvolvi­ das pelas vítimas da exclusão e graças também à extraordinária capacidade de adaptação que constitui o ponto de força da tradição liberal. No entanto, longe de desaparecer completamente, tal tendência se reapresenta regularmente, por ocasião de crises particularmente agudas. Diante do espetáculo da irrupção da plebe faminta no cenário da luta política e da história, Rivarol observa: "Ela não é nem francesa, nem inglesa, nem espanhola. A populace é sempre e em todos os países a mesma, sempre canibal, sempre antropófaga".1707 Mallet du Pan lança um grito análogo de alarme: "Os hunos e os hérulos, os vândalos e os godos não virão nem do �forte nem do mar Vermelho, eles estão no meio de nós".1708 A partir da tomada de consciência desse fato novo e inquietante, os tradicionais conflitos entre os Estados parecem irrelevantes ou secundários aos olhos do grande crítico da revolução, o qual se toma assim, como foi observado, um 'jornalista europeu" empenhado em "estabelecer um novo programa políti­ co para a Europa". 1709 Depois de junho de 1 848, o marechal Bugeaud, que já se distinguira na repressão na Argélia, assim se exprime a propósito dos operários revoltosos que, embora derrotados e presos, continuam a dar sinais de inquietação: "Que animais 1 705

Sieyês, 1985 e, p. 81. 1 970, p . 158 {II, § 85). 1 7º7 ln Matteucci, 1957, p. 264. 17º8 ln Matteucci, 1957, p. 279. 17º9 ln Matteucci, 1 957, p. 279. 17º6 Locke,

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brutais e ferozes ! Como Deus pode permitir que as mães façam gente semelhan­ te! Ah! São eles os verdadeiros inimigos, não os russos ou os austríacos". 1 7 1 º Essa visão parece encontrar confirmação em 1 8 71 : diante do horror e do terror suscitados pela Comuna de Paris, as classes dominantes dos dois países até aquele momento em guerra parecem esquecer as suas oposições para se dedicar a apagar, com esforços conjuntos, o incêndio da revolução que, além da França, ameaça a Europa inteira. No dia 30 de abril de 1871, Gustave Flaubert escreve a George Sand: "'Ah, graças a Deus que há os prussianos ! ' é o grito universal dos burgueses". 171 1 Embora crítico das duras condições de paz impostas pelos ven­ cedores, Renan reconhece à Prússia e ao seu aguerrido exército uma função de ordem pública a nível europeu (supra, cap.1 1 , § 5). Na análise do "Figaro" de 3 de janeiro sempre de 1 87 1 , a luta pela hegemonia parece ter desaparecido para deixar espaço para outra bem mais importante: "Forças do bem contra forças do mal. Ordem contra anarquia [ . . . ] . Uma cruzada da civilização contra a barbárie". 1712 Em ocasiões de crise particularmente agudas, à renovada e ainda mais explícita racialização das classes subalternas corresponde a teorização de uma espécie de guerra civil internacional, que transcende as fronteiras estatais e vê as élites "civis" europeias enfrentarem conjuntamente o perigo representado pelos "bárbaros", quer sejam internos ou externos ao Ocidente. É preciso colocar Nietzsche nesse contexto, pois também ele está convencido, como sabemos, já desde o momento da publicação do O nascimento da tragédia, que, "além da luta entre as nações", para encher de terror e "anunciar muitas outras lutas futu­ ras" ergueu-se a "cabeça da hidra internacional".

6. Elite pan-europeia e cooptação do grande capital judeu Da élite pan-europeia celebrada por Nietzsche fazem parte também os judeus assimilados e colocados em posição eminente. Vale a pena notar que a posição de Langbehn é também semelhante . Ele se exprime de modo bastante positivo sobre Disraeli, aristocrata tanto como inglês quanto como judeu. Ao chamar Rembrandt a ser o educador da nova e aristocrática Alemanha, Langbehn sublinha que o grande artista mostra uma "predileção pelos judeus", ainda que fazendo escolhas: "frequentava os judeus aristocratas, não os ple­ beus". É preciso saber reconhecer isto: 171º Moissonnier, 2001, p. 1711 Willard, 2001, p. 71. 1712 Willard, 2001 , p. 72.

67.

Inegavelmente, umjudeu autêntico e ortodoxo tem em si algo de aristocráti­ co (etwas 'lfJrnehmes); ele pertence àquela antiquíssima aristocracia ética e espiritual, da qual proveio a maior parte dos judeus modernos; nesse senti­ do, Lord Beaconsfield [Disraeli] teve razão pela metade quando os procla­ mou a mais antiga nobreza do mundo. 1713 De qualquer modo, é uma nobreza que não desapareceu de modo algum e que certamente não se limita aós ambientes propriamente "ortodoxos". Tam­ bém Rahel Vamhagen era "uma aristocrata ética, espiritual e até social".1714 Por outro lado, vimos que até Chamberlain se preocupa em distinguir en­ tre "judeus de origem nobre e judeus de origem menos nobre" (supra, cap. 24 § 8). Mas, nesse contexto, a figura mais interessante é o autor do Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas . A sua posição foi sintetizada, talvez com algum exagero, nestes termos: ''No que diz respeito aos judeus, aos quais Gobineau âtribui um sangue semita relativamente pouco adulterado, a descrição que ele faz deles poderia ter se inspirado em Disraeli; ela acaba limitando-se a um panegírico dessa 'raça eleita"'. 1715 Considerações análogas valem não só para o inglês Galton171 6 e, obviamente, para Lombroso e Gumplowicz, que são ambos de origem judaica. Depois de ter declarado que "no judaísmo corre mais sangue ariano do que semita", o socialdarvinista ale­ mão Ploetz celebra judeus e arianos juntos como "as raças melhores": são elas, em última análise, que decidem o destino da civilização. 1717 Enquanto coopta a alta burguesia judaica no âmbito da raça dos senhores, Langbehn denuncia na socialdemocracia e nas tendências igualitárias em geral "uma recaída no princípio do rebanho próprio da existência humana mais primi­ tiva" e das tribos selvagens. 1718 Somos reconduzidos a Nietzsche, que reco­ menda a fusão social e eugênica dos capitalistas e financistas judeus com a "raça" dos senhores e dos bem sucedidos, isto é, com a élite pan-europeia, a fim também de tornar mais incisiva a luta contra a revolta servil. Nietzsche descreve e celebra uma tendência oposta, mas de qualquer maneira, real, que se manifesta na própria Alemanha, no âmbito da reação aristocrática. Isto explica o seu silêncio sobre as perseguições que atingem os judeus orientais (que podem entrar na categoria dos servos e mal sucedidos) e a con1713

Langbehn, 1922, p. 36.

1714 Langbehn,

1922, p. 37. 1987, p. 267. 1716 Galton, 1869, pp. 4 e 362. 1717 Ploetz, 1 895, pp. 139, 1 30 e 89. 1718 Langbehn, 1 922, p. 141. 1715 Poliakov,

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denação firme do antissemitismo anticapitalista na Alemanha, que comete o erro de dividir a classe dos senhores, desencadeando contra ela a agitação da plebe alemã e, sobretudo, de substituir a contradição alemães/judeus pela de senhores/servos. Quer dizer, os antissemitas já não recorrem a uma racialização transver­ sal, mas a uma racialização horizontal, que contrapõe os alemães no seu con­ junto em primeiro lugar aos judeus. O contraste é tão nítido que, do ponto de vista de Nietzsche, quem deve ser racializado como chandala são exatamente os antissemitas, parte integrante da plebe socialista e anarquista, da massa dos mal sucedidos que é preciso conter com medidas eugênicas e de polícia, ou com métodos ainda mais radicais. O antissemitismo se toma absurdo e repe­ lente também pelo fato de que ele, nas suas inventivas contra as finanças e contra as posições de prestígio profissional e de poder, não faz mais que expri­ mir o ressentiment dos fracassados da vida contra os exitosos, contra a aristo­ cracia ou o que resta dela. A polêmica de Nietzsche contra o racismo antissemita e as suas "contínu­ as e absurdas falsificações e distorções de conceitos tão vagos como 'germânico', 'semita', 'ariano', 'cristão', 'alemão"' é violenta e implacável (B, III, 5, p. 5 1 ). Se o racismo reside exclusivamente, como às vezes se é levado a crer, na naturalização das nacionalidades e das diferenças nacionais, é dificil encontrar um ator mais distante do racismo do que Nietzsche, pelo menos até quando o seu olhar se volta para a Europa. Isto vale também para Boulainvilliers. Um e outro, bem longe de querer naturalizar a categoria de nação, rejeitam-na de modo radical por causa de suas implicações igualitárias, pelo fato de pressupor uma comunidade de cidadãos que, pelo menos idealmente, transcende a distin­ ção entre nobres e plebeus, entre os poucos e os muitos. Só assim podemos entender a carta de Nietzsche que acabamos de citar. A categoria de "cristão" entra nas "absurdas falsificações e distorções" de­ nunciadas por ele à medida que visam opor um país aos outros, uma presumida "nação" a outras presumidas "nações", em particular a piedosa Alemanha de Lutero à imoral França das luzes e da civilização urbana. Quanto ao resto, a categoria de "cristão" é amplamente utilizada pelo filósofo, que não a usa para rotular os movimentos plebeus e os valores ou desvalores plebeus e próprios dos chandala, em contraposição com os "valores arianos". Nietzsche está recorrendo a uma categoria duramente criticada na carta que se acabou de citar. Mas não se trata de uma contradição: é enganoso e absurdo querer cele­ brar no seu conjunto a "nação" alemã ariana, expulsando ou excomungando dela os judeus culpados de serem semitas; mas pode ser iluminador dividir tanto a comunidade alemã como a judaica em arianos e chandala. E se é louco e

infame ter em mente e considerar estranhos à Alemanha, só porque são judeus, os capitalistas e financistas que fazem, de qualquer modo, parte da raça dos senhores, é lícito e até necessário distinguir claramente, com respeito ao helenismo autêntico, aqueles plebeus e aqueles "judeus", e protocristãos que são Sócrates e Platão. 7. Mitologia ariana, Antigo e Novo Testamento

Nenhum dos dois componentes do bloco social desejado por Nietzsche leva consigo uma ideologia religiosa diferente. E não há dúvida que o filósofo prefere o Antigo Testamento ao Novo. Nisso devemos ler uma crítica anteci­ pada do antissemitismo louco e sanguinário do III Reich? No entanto, há de se notar que, mesmo tendo cessado de ser o Deus do "povo 'eleito"', o Deus moral cristão, "o Deus do 'grande número' , este democrata entre os deuses [ . . . ] continuou judeu, continuou o deus do pequeno canto, o deus de todas as esquinas e dos lugares escuros, de todas as paragens insalubres do mundo inteiro ! . . . O seu reino mundial é, hoje como ontem, um reino do .além-túmulo, um hospital, um reino subterrâneo, um reino de gueto" (AC, 1 7). O desprezo particular que atinge o Novo Testamento não poupa absolutamente o judaísmo. Por outro lado, não é o Antigo Testamento enquanto tal que suscita a atenção simpática, mas as "suas partes mais arcaicas" (XIII, 380), enquanto que, como sabemos, ilimitados são o desprezo e o ódio reservados aos profetas hebraicos, os primeiros responsáveis pelo ciclo subversivo e niilista que grassa no Ocidente. Tendo deixado para trás a condenação do "otimismo" judaico dos anos de O nascimento da tragédia, a partir dos escritos do período "iluminista" Nietzsche atribui como mérito do judaísmo pré-exílico o sentido da terra e da realidade, que o aproximam do helenismo e o separam claramente do ascetismo cristão (supra, cap . 7 § 7). É um tema no qual o filósofo continua a insistir até o fim. Por causa do amoralismo paganizante reprovado nele, Goethe "foi sem­ pre chocante para os alemães" embebidos de cristianismo, enquanto "apenas entre os judeus teve admiradores sinceros" (WA, 3). Por outro lado, durante a sua venenosa campanha contra o judaísmo, entre as várias virtudes germânicas Wagner coloca também a "pureza'', a "castidade'', a indiferença pela "depra­ vação do mundo" (WA, 3). No entanto, o sentido da terra e da realidade caro a Nietzsche tem tam­ bém outra face, menos sedutora e até decididamente inquietante. "Fortes rea­ listas" são os judeus ainda aquém da sucessiva "castração não natural de um deus [nacional] a deus do bem". São bem conscientes de uma grande verdade:

"De que vale um deus que não conhece a cólera, a vingança, a inveja, a violên­ cia e talvez nem sequer os perigosos ardores da destruição?" As característi­ cas do deus venerado são também as características do povo que o venera. Portanto : "De que vale um povo que não sabe ser terrível?" (XIII, 523). A referência aos acontecimentos de Canaã é transparente. O que impõe "respeito" ao Antigo Testamento são sobretudo a presença de "grandes homens", a "paisagem heroica", as façéll}has de um "povo" que se move com "a incompa­ rável ingenuidade do sentimento forte" (GM, III, 22). Como os gregos são "ingê­ nuos" nas suas relações com a realidade da escravidão e da guerra, que frequen­ temente termina com a dizimação e a escravização dos derrotados (supra, cap. 2 § l ); tão maravilhosamente "ingênuo" se revela um texto que conta sem senti­ mentalismos e perturbações a conquista de uma cidade e o aniquilamento dos seus habitantes . A religião desses "realistas fortes" não é diferente da "cultura dos realistas" que encontra a sua "expressão acabada" em Tucídides (GD, O que devo aos antigos, 2). Nele podemos ler a oração fúnebre em que Péricles celebra "os imorredouros monumentos no bem e no mal" erigidos em Atenas durante a luta contra os seus inimigos . 1 7 19 À "ingenuidade" dos heróis velhotestamentistas corresponde a "terrível serenidade e a profundidade de pra­ zer em toda destruição" que A genealogia da moral atribui aos atenienses (GM, 1, 1 1 ). Junto com Atenas e Firenze, Jerusalém é um dos lugares em que também a "malvadeza" (Bosheit) fazia parte da "felicidade" (EH, Porque sou tão inte­ ligente, 2). Se Atenas remete à sorte infligida aos Meios (massacres e escravizações em virtude da lei do mais forte) 1 72º e Firenze à civilização do Renascimento que soube produzir o "animal de rapina" César Borgia (supra, cap. 1 4 § 2), Jerusalém indica aqui o empreendimento de Canaã. Com respeito a seus protagonistas, como parece infeliz o "delicado manso animal doméstico" próprio do Novo Testamento com o seu "cheiro caracterís­ tico adocicado e rançoso próprio dos carolas (Betbrüder) e das almas piedo­ sas" (Kleine-Seele) (JGB, 52)! A comparação aqui desenvolvida não é de caráter estético. Nietzsche lê constantemente em perspectiva político-social os textos sagrados das diversas tradições religiosas. Se nas "partes mais arcai­ cas" do Antigo Testamento (e no Alcorão) vemos "uma religião semítica afirmadora, parto da classe dominante", no Novo Testamento vemos "uma religião semítica negadora, parto das classes oprimidas" (XIII, 380). Aqui está a chave para compreender a passagem do deus em que se reconhece um povo determinado, com a sua vitalidade e vontade de poder, para o deus moral 1719 A

guerra do Peloponeso, II, 4 1 . 84- 1 1 3 ; cf. MA, 92.

1720 A guerra do Peloponeso, V,

universalista e hostil à vida. Com Paulo de Tarso se assiste à "transvaloração do conceito 'judeu'; a 'raça' é colocada de lado" (XIII, 5 85). Mas o que signi­ fica isso em termos político-sociais? Segundo os "teólogos cristãos" e Renan, "o desenvolvimento do conceito de deus, do 'Deus de Israel', do deus do povo ao deus cristão, à soma de todos os bens" constituiria um "progresso" decisivo . Mas essa leitura é apenas apologética vulgar. Na realidad�, o deus moral é "o deus dos fisiologicamente regredidos, dos fracos", nos quais agora desaparecem "de qualquer forma a vontade de potência". Esses "não dão a si mesmos o nome de fracos, mas o de 'bons' [ . . . ] . Com o mesmo instinto com que os submissos reduzem o seu deus a 'bem em si', eles eliminam as qualidades boas do deus dos seus vencedores; vingam-se dos seus senhores transformando o seu deus num diabo" (AC, 1 7). Quer dizer, a passagem do deus velhotestamentista para o deus cristão é um momento decisivo do ciclo subversivo, da luta de classe desencadeada pelos escravos e pelos plebeus. Nietzsche procede à leitura do Antigo Testamento de modo análogo. Aí ele divisa dois temas nitidamente contrapostos : de um lado, as esperanças de emancipação de uma massa de escravos primeiro no Egito e depois na Babilônia; do outro lado, a conquista de Canaã e o aniquilamento dos seus habitantes, levados a cabo por um povo com a boa consciência que lhe vem da eleição divina; de um lado o pathos moral que preside à "revolta dos escravos na mo­ ral", do outro, a vontade de potência e a inocência do devir. O primeiro tema desempenhou um papel importante em não poucos movimentos de emancipa­ ção: os negros oprimidos pela escravidão e pelo colonialismo muitas vezes se identificaram com os judeus em fuga do Egito em busca de uma pátria e de uma terra prometida. 1 72 1 Os colonos puritanos que, na América, arrancam a terra dos pele-vermelha para depois eliminá-los progressivamente da face da terra, identificam-se, por sua vez, com os conquistadores de Canaã. 1722 Enquanto tem palavras de fogo contra o primeiro tema, Nietzsche se ex­ prime com calor a propósito do segundo. Exatamente porque nele a racialização é transversal, o par dicotômico bem sucedidos/mal sucedidos ou nobres/ple­ beus pode ser tranquilamente expresso tanto com o par dicotômico arianos/ chandala como com o de povo eleito/cananeus. Fica clara a necessidade de erguer uma barreira intransponível entre senhores e ralé. Nietzsche não tem dificuldade em recorrer de vez em quando à mitologia ariana, à "ciência" 1 72 1 Lantemari, 1960, p. 40-7; Appiah, 1992, pp. 19 epassim ; Fredrickson, 1 995, pp. 63 e passim. 1 722 Toynbee, 1954, pp. 47-8.

positivista (com a oposição, desta vez, dos sãos aos doentes e degenerados de todo tipo), ou à mitologia velhotestamentista. Sim, às vezes faz ironia sobre o "povo eleito entre os povos" (JGB, 1 95 ) e observa que essa orgulhosa autoconsciência não caracteriza de modo exclusivo os judeus: ''todo povo se considera, no seu auge, eleito" (XIII, 524) . Mas o aspecto mais importante é outro. Nietzsche não hesita em retomar o tema velhotestamentista para aplicá­ lo, em perspectiva secularizada, ao conflito entre aristocracia e ralé: "Nós so­ mos, além disso, os 'eleitos de Deus"' (die Auserwãhlten Gottes) (FW, 379), "os supremos eleitos" (die Auserwãhltesten) (EH, O nascimento da tragé­ dia, 4). Zaratustra se exprime nestes termos bastante eloquentes: "Vós, os solitários de hoje, os segregados, sereis, algum dia um povo; de vós, que vos elegestes a vós mesmos, deverá nascer um povo eleito; e, dele - o super­ homem" (Za, 1, Da virtude dadivosa, 2). N ietzsche não teria dificuldade em inserir também os herois velhotestamentistas da façanha de Canaã entre as "raças aristocráticas", em cujo fundo é preciso "saber distinguir o animal feroz, a magnífica besta loura que anda em volta ávida de presa e de vitória" (GM, 1, 1 1 ).

26 A CIVILIZAÇ ÃO EM BUSCA DOS SEUS ESCRAVOS 1. Processos ideológicos e tempo histórico

V

imos Mayer colocar Nietzsche no âmbito da "reação aristocrática" do final do Século XIX. É uma interpretação que apresentei para confirmar a inutilidade da hermenêutica da inocência, mas que agora espera e�pecificações e também substanciais correções . Ao lado, em concorrência e às vezes em oposição à "reação aristocrática", se desenvolve nesse mesmo período outra tendência antidemocrática que apela para um populismo autoritário e regressi­ vo. Pensemos na figura de Boulanger, na França, e em outras tentativas análo­ gas da reação para conquistar uma base popular de massa e que procuram alcançar este objetivo apelando para o chauvinismo (também intraeuropeu) e/ ou ao antissemitismo . Essas duas correntes antidemocráticas do final do Sécu­ lo XIX têm muitos pontos em comum (a visão socialdarwinista, o apreço pela eugenia, o entusiasmo pela expansão colonial, a condenação da intelectualidade subversiva como agente patogênico). Por outro lado, é claro o contraste entre a tendência radical-aristocrática e a populista-reacionária. Enquanto a primeira continua a erguer, dentro de cada país isolado, uma barreira intransponível en­ tre élite e "categoria bárbara de escravos", a segunda procura integrar de modo subalterno as classes populares numa comunidade nacional orgânica, definida em contraposição com os bárbaros colocados sobretudo no exterior. Fritsch declara de modo explícito que o antissemitismo é "uma alavanca exce­ lente para o despertar e o reforço da consciência nacional", para uma "melhor estima da essência alemã", para o "reforço do sentimento de pertença co­ mum", mais em geral para a "educação política do nosso povo" ( Volk) (ASC, n. 6, p. 1 2). Ainda que exprimindo aspirações às vezes bastante heterogêneas, "Antisemitische Correspondenz", dando a palavra aos antissemitas e chauvinistas consequentes, declara de qualquer modo que quer desenvolver uma "agitação de massa" e estar pronta para aprender com a própria socialdemocracia alemã, de modo a poder combater no seu próprio campo esta "organização da liga internacional dos judeus" (ASC, n. 20, p. 1 e n. 8, p . 2). Depois de ter tlertado, no tempo de O nascimento da tragédia, com o populismo reacionário e com a retórica da "essência alemã" e da autenticidade volksthümlich (note-se a semelhança de linguagem com Fritsch), o Nietzsche maduro é o grande teórico da reação aristocrática ou do "radicalismo aristocrá-

tico", enquanto é totalmente estranho à segunda tendência, com a qual mantém antes uma relação de implacável hostilidade. Nietzsche, no entanto, pode rejeitar desdenhosamente, no tocante à Euro­ pa, a racialização horizontal, pois divide preventivamente a nação em duas ra­ ças diferentes e opostas, e rigidamente hierarquizadas. Não há dúvida: são estranhos ao horizonte do filósofo tanto o embate mortal ente as classes domi­ nantes na Europa ocidental como;com maior razão, a sagrada união patriótica dentro de cada país, com a consequente eliminação da distinção que é a única que realmente conta, a distinção entre senhores e servos, bem sucedidos e mal sucedidos, arianos e chandala. É semelhante, porém, a posição, na Europa do final do Século XIX, dos círculos mais aristocráticos, ligados entre si também por vínculos de parentesco, que se consideram membros de uma família e de uma "raça" em cuj as veias corre o mesmo sangue e que aprofunda as suas raízes num passado bastante remoto. A vida de Nietzsche e o século em que ela se coloca se concluem com a expedição conjunta das grandes potências para reprimir a revolta dos Boxers na China. Embora constelada de massacres contra os "bárbaros", a expedição é celebrada por seus ideólogos e por uma ampla opinião pública no Ocidente é Lênin quem nota e denuncia o fato - como a realização do "sonho de políti­ cos idealistas, os Estados Unidos do mundo civilizado".1723 As classes do­ minantes da época se enganavam, e com elas Nietzsche. A Santa Aliança con­ tra os bárbaros externos e internos rapidamente se revelaria uma ilusão. A intensificação do conflito social não eliminaria a luta pela hegemonia. Antes, esta teria encontrado ulterior alimento a partir da ilusão das classes dominantes de cada país de poder atenuar ou recompor o conflito social unindo-se à rivali­ dade imperialista e aproveitando-se dela para criar um clima de sagrada união patriótica. Mas o pleno desenvolvimento desses processos políticos, sociais e ideológicos remete a um tempo histórico que não é o de Nietzsche. O problema, tantas vezes levantado em sentido afirmativo ou negativo da relação individual do filósofo com o III Reich, a esta altura pode ser reformulado de modo radical: uma vez verificada a longa consonância do filósofo com a reação aristocrática do final do Século XIX, é necessário empenhar-se na aná­ lise histórica dos processos sociais, políticos e ideológicos que, através de mu­ danças e catástrofes imprevistas e imprevisíveis, deste movimento de reação conduzem ao nazismo. Ao analisar os acontecimentos não devemos perder de vista que o que separa o ponto de partida e o ponto de chegada são duas rupturas epocais (a primeira guerra mundial e a revolução de Outubro), que 1 723 Lenin, 1 955, vol. XXXIX, p. 654.

tomaram radicalmente diferente o tempo histórico em que se colocam Nietzsche e os seus contemporâneos do tempo histórico que vê o triunfo e a derrota do Führer e do III Reich. Uma consideração preliminar, portanto, se impõe. O movimento de prepa­ ração ideológica que está por trás de qualquer grande crise histórica é sempre uma trama de continuidade e de descontinuidade. Não há dúvida: quando se vai em busca de uma corrente de pensamento ou de um autor que contém em si implicitamente todo o nazismo ou pelo menos a sua visão abrangente do mundo, de modo que do primeiro elemento seria possível deduzir a priori o segundo, é claro que se segue uma pista que não conduz a lugar algum. Mas é um grave erro ler, na impossibilidade de ligar mediante um juízo analítico a priori os dois elementos, a prova da estraneidade total, recíproca, entre os dois mesmos ele­ mentos. Daria no mesmo eliminar agora a categoria de preparação ideológica do nazismo, bem como de qualquer outro regime ou movimento político. Não tem sentido perguntar-se sobre as "origens culturais do III Reich", 1 724 mas também da revolução inglesa, americana, francesa, bolchevique. Trata-se, po­ rém, de uma pergunta e de uma análise que atravessam em profundidade tanto a historiografia político-social como a história do pensamento. Pensemos em particular no grande debate suscitado pela revolução, ou melhor, pelo ciclo re­ volucionário francês . Ele vê os maiores pensadores, inclusive Nietzsche, envol­ vidos . Longe de rejeitá-la como insensata, ele radicaliza de modo extremo a categoria de preparação ideológica. Sem se contentar com identificar em Des­ cartes o "pai" do racionalismo e o "avô" da Revolução Francesa, recua milêni­ os até convocar a tradição judeu-cristã no seu conjunto. Tenha-se presente a tese segundo a qual uma linha de continuidade conduz da maldição - profética e cristã - da riqueza até o terror sanguinário contra os privilegiados, desenca­ deado pelos jacobinos e pelos revolucionários em geral; e agora se compare a audácia soberana dessa afirmação com o temor e tremor que assalta certos intérpretes atuais quando se encontram diante do problema da possível relação entre a teorização do "aniquilamento de milhões de mal sucedidos" e do "ani­ quilamento das raças decadentes", de um lado, e a política eugênica e colonial do III Reich, do outro! Paradoxalmente, os apologistas de Nietzsche podem trazê-lo para a terra seca da pura teoria somente sob a condição de liquidar toda a sua abordagem filosófica e histórica. Se depois se devesse pensar de modo consequente e generalizado a metodologia seguida por eles neste caso, se deve­ ria em última análise chegar à liquidação da pesquisa histórica enquanto tal .

1 724

Mosse, 1 968.

Por outro lado, só é possível fazer valer de modo correto a categoria de preparação ideológica sob a condição de ter constantemente presentes a heterogeneidade do tempo histórico e o entrelaçamento de continuidade e descontinuidade que daí resulta. Isto vale também para autores "menores" como Gobineau e Chamberlain. Vimos um e outro prestarem de algum modo homena­ gem à tradição liberal, ou a certos aspectos e autores dela; e isso introduz um elemento de diferenciação sensível com respeito ao nazismo. No entanto, no que diz respeito a Gobineau, a afirmação da desigualdade radical das raças deve ter algum significado; quem quer negá-la - observa Chamberlain, reforçando a tese do autor francês - são os "tagarelas insípidos, venais e ignorantes, almas de escravos saídas do caos dos povos, que se encontram à vontade apenas na lama primitiva da falta de caráter e de individualidade" . 1 725 E ainda mais funestamente significativo foi o fato que, na hierarquização das raças, o autor angloalemão chega ao ponto de considerar como benéfico ou inevitável, em determinadas circunstâncias, o aniquilamento dos povos coloniais. Em Porto Rico, os indígenas foram "completamente exterminados, e a consequência é uma população indoeuropeia pura"; "do início até os nossos dias, vemos os germanos [entre os quais entram também os anglossaxões empenhados na caça aos pele-vermelha] massacrar tribos ou povos inteiros ou assassiná-los lentamente, mediante uma desmoralização completa, para abrir espaço para si mesmos"; por cruéis que possam ter sido os métodos, a civilização se beneficiou com isso. 1 726 Certamente, é também bastante tortuoso o caminho que conduz à ideolo­ gia e, sobretudo, à prática do III Reich. O fato é que, como observa Mosse, "raramente sucede que os acontecimentos se verificam na forma desejada, e isto sobretudo quando a expectativa data de muito tempo". 1 727 Mais exata­ mente, há sempre uma defasagem entre um movimento e um regime político, de um lado, e o seu longo e complexo processo de preparação e gestação ideológica, do outro. Nem Gobineau nem Chamberlain (pelo menos no momen­ to em que este último escreve o seu livro mais famoso) preveem que a reafirmação do princípio da desigualdade das raças passará através de lutas mortais entre as raças "superiores" e "nobres" e através da tentativa do III Reich de colocar de novo numa condição colonial os eslavos da Europa orien­ tal, a fim de edificar as suas "Índias alemãs" num espaço geopolítico mais fácil de incorporar e defender do que nas distantes possessões de ultramar, que foram logo perdidos com o estouro do primeiro conflito mundial. 1 725 Chamberlain, 1937, p. 304. 1 726 Chamberlain, 1937, p. 339 nota 1 727 Mosse,

1 968. p. 12.

1 e 864.

Então é perda de tempo querer seguir uma linha de continuidade ideológi­ ca que proceda por partenogênese, independentemente das perturbações introduzidas pelo processo histórico real. Chamberlain percebe bem isto. Ime­ diatamente depois dos primeiros tiros de canhão que desarranjam a Europa, até aquele momento p ensada como uma "unidade o rgânica", estreitada indissoluvelmente pelo comum "sangue germânico que corre nas veias dos seus povos", 1728 o autor inglês qúe se casou com a filha de Wagner e que na sua própria pessoa parece encarnar tal unidade, é obrigado a fazer uma escolha. Ei-lo a bradar contra um povo de mercadores, invejoso da grandeza alheia e decidido a sufocá-la com qualquer meio, e celebrar no lado oposto os alemães como os únicos verdadeiros e dignos "Führer do mundo". Ou: "novos objetivos e novos métodos para a época nova ! " 1 729 Além da heterogeneidade do tempo histórico, é necessário levar em conta as defasagens e contradições ideológicas que se manifestam objetivamente durante o desenvolvimento de um movimento político. Pensemos, para dar um exemplo, naquilo que se verifica em relação ao nazismo. Este chega ao poder agitando a palavra de ordem do Blut und Boden e promovendo a denúncia da grande cidade como lugar do desenraizamento e da subversão; a conquista do espaço vital e colonial do Leste é chamada também a dar nova vitalidade e juventude a um tipo de existência rural, desbastando os centros urbanos e se­ cando a água em que se movem como peixes os agitadores judeus e comunis­ tas (são motivos bem presentes no Mein Kampj). No entanto, ao promover e desencadear a guerra, Hitler é obrigado a dar ulterior impulso ao processo de militarização, industrialização e urbanização. As exigências bélicas obrigam a arrancar também a mulher do idílio bucólico e volkisch, liquidando e ridiculari­ zando a visão cara aos ideólogos do Blut und Boden. Devemos, pois, conside­ rar esta palavra de ordem e o movimento que a agita estranhos ao nazismo e ao III Reich? De fato, é assim que os hermeneutas da inocência procedem . No modo de ver deles, a defasagem e a contradição que existem entre uma visão do mundo e o resultado objetivo que, num espaço histórico concreto e determi­ nado, ela contribui para produzir, é a demonstração da estraneidade de uma com respeito ao outro. Entre os séculos XIX e XX a guerra é invocada, tanto por Nietzsche como por uma ampla publicidade que vai muito além da Alemanha, em nome também da luta contra a vulgarização e o espírito mercantil da sociedade mo­ derna, caracterizada pela equalização dos valores e estandardização dos com1728 Chamberlain, 1937, p. 305.

1 729 Chamberlain, 19 14, pp. 44- 67 e 36-43.

portamentos e, portanto, sempre mais semelhante a uma colmeia ou a um for­ migueiro; mas, nas condições concretas em que se desenvolve, o primeiro con­ flito mundial se torna sinônimo de mobilização e arregimentação total e promo­ ve uma "massificação" sem precedente na história. Nas décadas que antece­ dem a catástrofe iniciada em 1 9 1 4, o culto do perigo e a ética guerreira são constantemente opostos à reivindicação do Estado social por parte do movi­ mento operário e popular, ao ideal filisteu do conforto e da segurança; mas no curso do interminável conflito, os grupos dirigentes opostos procuram assegu­ rar-se da lealdade dos operários e dos camponeses mobilizados mediante atra­ tivos e promessas às vezes mirabolantes, lançando as bases para a sucessiva demagogia social do fascismo e do nazismo. Sempre entre os séculos XIX e XX, a celebração da guerra é conduzida mediante palavras de ordem que zombam do sentimentalismo burguês e cris­ tão, considerado em gritante contradição com as leis da natureza; mas, na con­ flagração inaudita que depois se verifica, a partir da necessidade de conferir sentido à morte e ao sacrificio de milhões de pessoas e de jovens na flor da vida, o cristianismo irrompe com renovada vitalidade, como demonstram o re­ curso aos capelães militares, o culto dos mortos, a incessante pregação de uma religião entendida como verbum crucis. É um paradoxo central da história contemporânea. Entre os séculos XIX e XX irrompem no cenário político os partidos de massa e de luta das classes subalternas. Já na sua estrutura organizativa e no espírito de militância e de solidariedade recíproca entre os seus membros, eles se diferenciam nitidamente dos tradicionais grupos de no­ táveis, nobres ou burgueses. Ao proclamar a cruzada contra essa "grei demo­ crática", elitismo cultural e reação aristocrática agitam continuamente palavras de ordem todas atravessadas por um pathos enfático do indivíduo. No entanto, eles estimulam processos e movimentos políticos que acabarão não só recor­ rendo ao exército de massa, mas também aprendendo e trocando algo com o inimigo desprezado e odiado. Então aos partidos de luta do movimento operário e popular se contrapõem partidos que reproduzem a odiada e desprezada massificação e arregimentação. Este é o lugar histórico em que é preciso colo­ car autores como Gobineau e Chamberlain.

2. O pathos da Europa da reação aristocrática ao nazismo Os critérios metodológicos aqui enunciados devem valer também para os grandes filósofos. Revela-se de uma ingenuidade histórica desconcertante a tentativa de se apoiar sobre o pathos da Europa próprio de Nietzsche para

celebrar nele o antagonista ante litteram do III Reich. Vimos que, também nesse ponto, ele não está absolutamente isolado com respeito à reação aristo­ crática do final do Século XIX. No que diz respeito ao próprio nazismo, é deci­ didamente esquemático pensar que, desde o início e sem nenhuma oscilação ou contradição interna, ele seja univocamente caracterizado pela celebração e oposição solitária da Alemanha ao resto do mundo. Na realidade, ainda na véspera imediata do estouro da II Guerra Mundial, uma testemunha direta do nazismo - proveniente de suas fileiras - sublinha o pathos "pan-europeu" des­ se movimento, que, em nome já da "afinidade racial", há tempo persegue a ideia da "aliança com a Inglaterra" e com outros países com os quais acabaria entrando em choque mortal. 1730 Rosenberg entoa um hino ao "homem euro­ peu", e Goebbels continua a entoar esse hino enquanto os países europeus estão envolvidos numa luta mortal um contra o outro !1731 O fato é que o III Reich continua a tomar a atitude de autêntico representante da civilização e da história do "homem europeu" e da aspiração à unidade da Europa. Particular­ mente significativa, desse ponto de vista, é a figura de Himmler: ele "sempre ficou com a ideia de que a autoridade, na Europa, deveria pertencer a uma élite racial organizada nos moldes da SS, sem nenhum laço de nacionalidade". 1 732 Não se compreende nada da irresistível ascensão de Hitler se não se tem presente o balanço ao mesmo tempo geopolítico e ideológico por ele traçado da catástrofe do primeiro conflito mundial. Era preciso acabar com aquela espécie de guerra de secessão que tinha dilacerado os povos de civilização superior; através de uma oportuna delimitação das esferas de influência colonial e civilizadora, era preciso reconstituir a unidade em primeiro lugar dos povos nórdi­ cos (Alemanha, Inglaterra e, se fosse necessário, os Estados Unidos), de modo a enfrentar em conjunto a ameaça bárbara representada tanto pela revolta das "raças inferiores" como pela revolução promovida pelos bolcheviques, eles mes­ mos ligados, por afinidade racial ou eletiva, aos povos de cor. A liquidação desses perigos teria posto fim de uma vez para sempre ao ciclo subversivo que há longo tempo se alastrava no Ocidente, evitando o perigo do fim deste e também lançan­ do as bases para o seu renascimento e a superação das suas divisões. 1733 Só assim é possível explicar o fascínio exercido pelo menos por algum tem­ po sobre intelectuais e :filósofos também de primeiríssimo plano. Quem mostra simpatia pelo III Reich é Heidegger, que considera o novo regime comprometido, 1 730 Rausclming, 1947, pp. 464-5. 1 73 1 Rosenberg, 1 935, pp. 20 e 24; Goebbels, 1 732 Arendt,

1986, p. 65. 1 733 Losurdo, 1996, cap. IV, 6.

1 99 1 a, p. 1 867 ( 1 0 de janeiro de 1 943).

por um lado, em promover o "entendimento" entre os povos europeus e, por outro, a denunciar e opor-se ao ciclo interminável do niilismo, levando avante o "contramovimento" iniciado por Nietzsche, com o qual não por acaso naqueles anos - estamos em 1 93 6-37 Heidegger ainda se identifica amplamente. 1 734 Durante a II Guerra Mundial não faltam ideólogos do III Reich que convi­ dam as populações dos países ocupados a superar a mesquinhez e os provincianismos dos conflitos nacionais para se colocar do ponto de vista da "Europa unida"; e ao fazer isto apelam para Nietzsche. Há de se acrescentar que o Nietzsche aqui longa e calorosamente citado é o filósofo que, em virtude também da sua celebração de Napoleão, deve ser inserido entre as "maiores testemunhas espirituais" da ideia pan-europeia. 1 7 35 Por outro lado, é Hitler em pessoa que, arvorando-se a novo Napoleão, imediatamente depois do triunfo da campanha na França, se preocupa em prestar homenagem ao túmulo do unificador da Europa e daquele "gênio militar único no mundo" .1 736 -

Tais circunstâncias explicam o sucesso obtido pelo nazismo também fora das fronteiras da Alemanha, e em autores que apoiam o III Reich pensando com isto ser fiéis ao programa europeu, mais uma vez, de Nietzsche . É o caso, por exemplo, de Drieu La Rochelle. Como foi observado, "o seu internacionalismo é misturado de nietzscheanismo e de uma crítica violenta à civilização moder­ na". Em primeira pessoa ou através dos personagens da sua narrativa, o escri­ tor francês exprime ideias que traem claramente a presença de Nietzsche: é preciso dar-se conta da "necessidade de uma federação europeia, único modo para evitar a ruína europeia através da guerra". Sobretudo, "o nacionalismo é o aspecto mais ignóbil do espírito moderno". Um romance de Drieu La Rochelle parece trair já no título (Le jeune Européen) a presença do filósofo alemão empenhado em celebrar a figura do "bom europeu". 1 737 Considerações análo­ gas podem ser feitas a propósito de Brasillalch e Hamsun, que aderem ao colaboracionismo em última análise em nome da Europa . 1 738

1734

Cf. Losurdo, 1 99 1, cap. 3 § 8 e 5 § 2. 1977, p. 836. 1736 Hitler, 1989, p. 1 95 (5 de abril de 1942). 1737 In Kunnas, 198 1 , pp. 201-4. 1738 Kunnas, 1 98 1 , pp. 200 e 23 1 . 1735 Opitz,

3. O mito genealógico greco-germânico do li ao Ili Reich Certamente, se o berço da Europa é a Grécia, o seu "coração sagrado" é a Alemanha. Esta é a tese formulada por Heidegger,1739 religando-se a uma tradição de pensamento que não é certamente estranho a Nietzsche. Este, ao tomar distância dos entusiasmos de O nascimento da tragédia, descreve as­ sim a parábola do II Reich: eram os anos em que "o espírito alemão, que não muito tempo antes tinha tido ainda a vontade de dominar a Europa, a força de guiar a Europa, abdicava irrevogável e definitivamente dessa tarefa e, sob o pomposo pretexto da fundação de um Reich, voltava-se para a mediocridade, para a democracia e as 'ideias modernas ' ! " (GT, Tentativa de uma autocrítica, 6). O que suscita indignação é a "abdicação". Na aspereza da denúncia conti­ nua a ressoar � eco de um reconhecimento particular. De resto, é o próprio Nietzsche quem define como ')ovial teutomania" a admiração que ele continua a nutrir, bem além de O nascimento da tragédia, pelo corpo dos oficiais nobres prussianos (JGB, 25 1). Sim, no conjunto, a Alemanha do presente consumou uma traição vergonhosa; mas essa traição deve ser considerada definitiva? As amargas ilusões provocadas pelos acontecimentos do II Reich e pela virada "iluminista" não significam o desaparecimento do mito genealógico greco­ germânico, que desempenha um papel tão importante em geral nos escritos da fase jovem . Estamos na presença de um tema que, longe de ser abandonado, continua a se apresentar em sempre novas e não menos fascinantes formula­ ções, como transparece desse fragmento do verão de 1 8 8 5 : Talvez, dentro de alguns séculos se julgará que todo o filosofar alemão teve a sua verdadeira dignidade por ser uma reconquista gradual do terreno antigo, e que toda pretensão de "originalidade" soa mesquinha e ridícula diante daquela pretensão superior dos alemães, a de ter reatado um laço que parecia rompido, o laço com os gregos, ou seja, com o tipo "homem" até agora mais alto (XI, 679). Poder-se-ia dizer que, depois das ilusões provocadas pelos acontecimen­ tos concretos do II Reich, o mito genealógico greco-germânico, em vez de ser ligado ao presente, é conjugado com o futuro, e às vezes até com um futuro problemático. A referência permanente à "essência alemã" permite entrelaçar a crítica impiedosa do presente da Alemanha com a evocação de um futuro tanto mais crível pelo fato de que o helenismo trágico é de algum modo j á vital, embora não mais no Wagner de O nascimento da tragédia e da quarta Inatual, no próprio evocador desta esperança. 1 739 C(

Losurdo, 1991, cap. 2 § 7.

O fragmento prossegue e conclui: Cada dia nos tomamos mais gregos - primeiro, como é justo nos conceitos e nas avaliações [. . . ] ; mas um dia, como é de se esperar, nos tomaremos tais também no nosso corpo! Aqui reside (e sempre residiu) a minha esperança pela essência alemã (XI, 679). O Heráclito redivivus, ,que tomou corpo no filósofo trágico e dionisíaco por excelência que Nietzsche pretende ser, parece anunciar a Hélade rediviva destinada a tomar corpo na Alemanha, a qual, apesar de tudo, saberá reerguer­ se, antes ou depois, à altura da sua essência e da sua missão. Exatamente graças à forma em certo sentido aberta que o filósofo-filólogo consegue confe­ rir-lhe, o mito genealógico grego-germânico continuará a desempenhar uma função importante, e nefasta, até à derrota de 1 945 . Inserido em A vontade de potência (§ 41 9), o fragmento que se acabou de transcrever é citado, em 1 9 1 8, por Ernst Bertram, em confirmação da "fé" que anima Nietzsche numa profunda predestinação do caráter alemão a um "devir interior grego". 1740 Tirando proveito da lição de Heráclito, e opondo-se ao aborrecido "realismo latino do ser", a Alemanha, o "devir alemão", recupera e reforça graças a Nietzsche "a mais grega entre todas as iluminações do mundo": "Da guerra entre os opostos surge todo devir" e "a luta continua pela eternidade".1741 A primeira parte do fragmento (e do parágrafo de A vontade de potên­ cia) é colocada por Heidegger como tema do seu programa de aulas do semes­ tre de verão de 1 93 1 , a dois anos do advento do nazismo ao poder e da adesão do filósofo ao novo regime político. 1742 Enfim, depois de ter celebrado já em 1 930 o "fundamento germânico-helênico" da filosofia de Nietzsche, 1743 sete anos depois, já ao tomar-se um dos ideólogos do III Reich, Baeumler conclui o seu ensaio sobre Hélade e Alemanha celebrando também ele o "misterioso parentesco" que liga os dois povos e as duas culturas e referindo-se mais uma vez a Nietzsche e ao fascinante fragmento-parágrafo.1744 É preciso acrescentar que o mito genealógico greco-germânico desempe­ nha um papel importante não só nos intelectuais mais ou menos próximos do nazismo, mas também nos dirigentes máximos desse movimento político. 174º Bertram, 1988, pp. 143-4 e 137. 1 74 1 Bertram, 1988, pp. 1 53 e 1 17-8. 1742 Heidegger, 1981, p. IX. 1 743 Baeumler,1 93 7 a, p. 253. 1 744 Baeumler, 1937 c, pp. 309-3 1 1 .

Rosenberg, que se arvora a ideólogo dele, identifica e celebra as origens da cultura germânica nos "antigos helenos", cuja visão do mundo - ele sublinha com uma referência explícita a Nietzsche - deve ser considerada bem distinta do "racionalismo helenista tardio".1745 Não menos enfática é em Hitler a refe­ rência à Grécia, o berço da "Europa", da área sagrada da civilização cujo cen­ tro fica agora na Alemanha.1746 Isso não significa que se deva estabelecer uma linha apressada de continui­ dade, no entanto convém observar os materiais ideológicos e mitológicos de que o nazismo se serviu. Neste âmbito, Nietzsche ocupa um papel central. Isto é ulteriormente confirmado por dois detalhes importantes . Como sabemos, em Nietzsche a referência ao helenismo autêntico, pensado em contraposição tam­ bém com a romanidade, cede progressivamente lugar à referência ao mundo greco-romano no seu conjunto, revolvido pela subversão judeu-cristã. É por isto que, no final da II Guerra Mundial, Heidegger censura o filósofo por ter-se inspi­ rado não já na Grécia, mas em Roma. E a celebração da primeira em oposição à segunda está bem presente em intelectuais e personalidades mais diretamente ligados ao nazismo.1747 Não é assim em Hitler, que rotula o cristianismo como responsável pelo "fim de um longo reino, o do luminoso gênio greco-latino".1748 Roma não é absolutamente sinônimo de decadência: "O Império Romano nunca teve igual. Conseguiu dominar completamente o mundo ! E nenhum império di­ fundiu a civilização como ele".1749 Nesse sentido, tem razão o Heidegger que começa a tomar distância do III Reich para censurar conjuntamente o nazismo e Nietzsche por se terem deixado fascinar pela opção romana. Não há dúvida de que, como no II Reich, também no III estão presentes mitos genealógicos contrários, mas é igualmente indubitável a nítida preferência dada por Hitler ao mito genealógico que remete ao mundo grego e ao mundo romano (incluindo o Sacro Império Romano reconstituído por Carlos Magno): Falou-se muito das escavações feitas nas regiões habitadas por nossos antepassados. Isto está bem longe de entusiasmar-me. Não posso de fato esquecer que no tempo em que os nossos antepassados fabricavam aquelas tinas de pedra e aqueles vasos de terracota que levam ao êxtase os nossos arqueólogos, os gregos construíam a Acrópole. mo 1745 Rosenberg,

1 937 a, p. 37-8. 1980, p. 124 (2-3 de novembro de 1941). 1747 Cf. Losurdo, 1991, cap. 6, § 2-3. 1748 Hitler, 1980, p. 150 (13 de dezembro de 194 1). 1749 Hitler, 1980, p. 125 (2-3 de novembro de 1941). 1750 Hitler, 1989, p. 426 (7 dejulho de 1942). 1746 Hitler,

A Rosenberg, que mostrava às vezes alguma indulgência pela mitologia dos antigos germanos, o Führer fazia saber que "combina mal com um herói como Carlos Magno a designação de 'massacrador de saxões "'. 1 751 Passando por várias etapas, a Europa se identifica sucessivamente com a Grécia, com o Impé­ rio romano, com Carlos Magno ("fiel à ideia antiga" e herdeira dos Césares) e com o "Sacro Império Romano Germânico": enfim, no Século XX, com o império que a Alemanha está empenhada em construir. 1 752 De novo somos remetidos a Nietzsche, que, bem longe de partilhar do ódio dos teutômanos em relação a Carlos Magno, aprecia nele a presença de elementos que de algum modo reme­ tem à antiguidade clássica e ao "imperium Romanum" (VIII, 67-8 e XII, 34 1).

4. A guerra total, a sagrada união patriótica e a crise do racismo transversal Não sendo mais o pathos da Europa ou o mito genealógico greco-germânico, são outros os elementos de descontinuidade na passagem da reação do final do Século XIX para o nazismo. Voltemos aos primeiros apreciadores, em perspecti­ va socialdarwinista, de Nietzsche. Depois de ter citado extensamente o aforismo de O crepúsculo dos ídolos que invoca também para a Alemanha uma classe operária humilde e submissa, "de tipo chinês" (supra, cap. 1 O § 3), Tille - é dele que se trata - comenta criticamente: "O operário europeu é também um fator de poder. Nas suas fileiras se encontram numerosos elementos válidos, que indicam o estímulo a elevar-se ao papel de senhores, a tornarem-se senhores (Herrenmenschen). Por que Nietzsche se preocupa com eles?"1 753 O operário alemão e europeu não pode ser confundido com os membros das raças "inferiores"; é a "raça indo-germânica" no seu conjunto que ocupa um nível superior na hierarquia estabelecida pela natureza. 1 754 Em particular, "o povo alemão é o povo da aristocracia social, chamado, portanto, a ser o líder dos outros povos na estrada para o futuro". 1 755 O erro de Nietzsche reside no fato de que ele "pensa unicamente na antítese entre senhores e dominados'', enquanto "pouco lhe interessa a luta de concorrência que, no globo terrestre, 1 751 Hitler, 1 989, p. 166 (3 1 de março de 1942). 1 752 Hitler, 1 980, p. 124 (2-3 de novembro de 1 94l) e Hitler, 1989, pp. 165�6 (3 1 de março de 1942). 1 753 Tille, 1 895, p. 236. 1754 Tille, 1 893, p. 25. 1 755 Tille, 1893, p. 109.

povos, grupos étnicos e raças travam entre si"; mas é exatamente esse último tipo de conflito que está destinado a dominar o cenário europeu e mundial. 1756 Surge aqui com suficiente clareza o contraste entre racialização transver­ sal e racialização horizontal (que é também o contraste entre as duas tendênci­ as de fundo da reação antidemocrática do final do Século XIX). Naturalmente, esse quadro não deve ser lido de modo esquemático. Tille reconhece que ele­ mentos de racialização horizontal estão presentes também em Nietzsche: não é exatamente ele que insiste na necessidade da criação, na Europa, de uma casta unitária de senhores em condições de dominar o mundo? 17 57 Com efeito, na visão do filósofo não parece haver lugar para uma casta de senhores no âmbito do povo chinês, tomado no seu conjunto como sinônimo de força-trabalho mais ou menos servil. Entre Europa e "raças decadentes" existe uma relação de senhorio e servidão. Por outro lado não faltam elementos de racialização transversal em Tille. Também ele, referindo-se tanto a Galton como ao próprio Nietzsche, defende uma enérgica intervenção eugênica que, mediante a esterilização forçada e outras medidas do gênero, impeça em toda sociedade culturalmente avançada, em primeiro lugar a alemã, a procriação dos fracassados da vida e dos elemen­ tos sobrantes. 1758 No entanto, mesmo com essas oportunas especificações e cautela, continua firme uma diferença de fundo: pelo menos no que diz respeito à Europa, a hierarquização cara a Nietzsche opõe em primeiro lugar a "raça" dos senhores e a "raça" dos servos . Tille procede de maneira bem diferente . Depois de ter denunciado a presença no Reich alemão de "estrangeiros" (não só eslavos, mas também franceses, letões e dinamarqueses), que chegam a "oito por cento da população total", Tille propõe a sua deportação, em previsão também de futuras guerras e expansões, para deixar lugar apenas a alemães autênticos. Só assim a Alemanha pode reforçar a sua solidez e homogeneidade e lançar as bases para um futuro império continental. 1759 Não há dúvida de que em Nietzsche, no que diz respeito à Alemanha e à Europa, não há lugar para as medidas de limpeza étnica aqui auspiciadas. É por isto também que lhe é censurada, por parte do seu apreciador e crítico, uma atitude de separação e de estraneidade com respeito ao "próprio povo". A racialização transversal entra em crise tanto mais grave quando mais nítida se mostra a perspectiva da guerra total. Não é fácil convencer a massa dos solda1756 Tille,

1895, pp. 239- 241. 1895, pp. 239-40. 1758 Tille, 1893, pp. 87-8 epassim; Tille, 1895, p. 23 1 epassim. 1 759 Tille, 1893, p. 35. 1757 Tille,

dos a sacrificar a vida acentuando continuamente que são apenas servos e chandala; é claro que, na nova situação, concessões substanciais se impõem à tendência populista autoritária. É interessante notar que essa tendência populista autoritária pode utilizar e criticar Nietzsche a partir também das exigências de um imperialismo dife­ rente do alemão. No início do Século XIX vemos um poeta inglês, John Davidson, referir-se, por um lado, com-ardor à teoria do super-homem para, por outro lado, criticá-la por causa do seu caráter genérico, transversal. De origem polo­ nesa, como ele mesmo reconhecia que era, e, portanto, com uma genealogia racialmente medíocre por trás, o autor de Assim falou Zaratustra não esteve em condições de captar uma verdade fundamental: "O inglês é o Super-ho­ mem, e a história da Inglaterra é a história da sua evolução". 1 760 Análoga à censura dirigida por Tille a Nietzsche é a que Chamberlain faz a Gobineau. Este, infelizmente, caiu presa do "delírio" com a sua "visão irreme­ diavelmente pessimista" do abastardamento geral, de modo que nenhum país e nenhum povo poderia reivindicar uma pureza racial real. O "genial" teórico da desigualdade das raças permanece firme em uma racialização transversal;1761 mas o imperialismo precisa de uma racialização horizontal de modo a hierarquizar países e raças diferentes . E a essa exigência na Alemanha respondem Chamberlain e Tille e, na Grã-Bretanha, Davidson. A critica formulada por Tille é depois retomada por certos ambientes do III Reich. Um ideólogo de primeiro plano censura Nietzsche por ter celebrado um "ideal de poder" de dúbio valor e utilidade: ele é volklos, não faz nenhuma referência ao povo, antes o exclui. 1762 Deve ter sido um modo de argumentar bastante difuso, se já um ou dois anos antes Heidegger tem de especificar que na "massa" que Nietzsche tinha em mente entram os "medíocres filisteus da cultura'', não mais "o camponês e o trabalhador realmente integrado no mundo das máquinas próprias''. 1 763 De modo análogo Jaspers sente a necessidade de desculpar Nietzsche na acusação de "estraneidade do povo" (Volksfremdheit), adaptando de algum modo o filósofo às exigências ideológicas do momento: ele teria olhado com "nostalgia" constante para o "povo autêntico", identificado na "minoria dos senhores chamados à legislação em virtude da sua essência cria­ dora". 1 764 Mas, é exatamente esse elitismo, rigorosamente declinado também 1 760 Brie, 1 928, p. 268; cf também Arendt, 1966, p. 180 (= Arendt, 1989, p. 252). 1761 Chamberlain, 1937, pp. 3 13-4. 1762 Bõhm, 193 8, p. 3 ; substancialmente, no mesmo comprimento de onda está Steding, 1938, pp. 35, 54 e 1 12. 1 763 Heidegger, 1 994, p. 130. 1764 Jaspers, 1 936, pp. 374-5.

no plano interno, que acaba em contradição com a exigência, que se impôs durante a segunda Guerra dos Trinta Anos, da mobilização unânime do povo contra seus inimigos. Nesse mesmo contexto está colocada a polêmica sobre Nietzsche e antissemitismo, que se desenvolveu com a chegada de Hitler ao poder. Se Baeumler sublinha a insistência do filósofo sobre o caráter intrinsecamente e irremediavelmente judeu do cristianismo para ler o seu furibundo anticristianismo como um antissemitismo igualmente furioso, outros autores, como demonstra­ ção do "artificio" inserido nessa interpretação, remetem à nítida preferência concedida por Nietzsche ao Antigo Testamento (o pré-exílico) em relação ao Novo Testamento . 17 65 Enquanto Baeumler tenta fazer coincidir a raça nietzscheana dos senhores com o Volk (da qual estão excluídos os judeus), outros remetem à inclusão nietzscheana de uma parte dos judeus, para denun­ ciar o caráter desgraçadamente transversal desta raça de senhores.

5 . Pers is tência da reação aristocrática e persistência da racialização transversal No entanto, embora caia numa grave crise após o advento da guerra total, a racialização transversal não desaparece totalmente. Ao estourar o primeiro conflito mundial, Peter Gast se torna um cantor da "espada alemã". Mas o eco das teses do Mestre continua a ser ouvido. Mesmo no seu fervor patriótico, o discí­ pulo fiel de Nietzsche sacode a cabeça "diante do absurdo da guerra, diante da equiparação dos eleitos com os demais na frente dos fuzis e dos canhões". Apesar de considerar "esplêndida" a guerra em andamento, ele se entristece pelo fato que ela inclui o "aniquilamento de muitos homens de cultura e de arte" em ambas as fileiras .1766 Peter Gast teria claramente preferido o ajuste de contas da élite pan-europeia com os chandala de todos os países. A racialização transversal não desaparece totalmente nem sequer do hori­ zonte ideológico do fascismo e do nazismo, não obstante a exigência de apelar para o povo em massa e para a mobilização total a fim de fazer frente a um inimigo dotado de forças esmagadoras. Entre as duas guerras, Ludendorff con­ dena a Revolução Francesa como "um massacre de proporções inauditas em prejuízo do estrato louro superior da França". 1 767 Se na sua marcha expansionista 1 765 Baeumler,

193 1 a, pp. 158-9; Westemhagen, 1936, p. 42-43. Podach, 1932, pp. 1 22-3. 1 767 E. Ludendorff, 1928, p. 36. 1 766

e na guerra total que ela exige, o nazismo é chamado a celebrar o superior direito da Alemanha a fazer apelo ao apoio unânime do povo no seu conjunto (e, portan­ to, a apelar para uma racialização horizontal), ao denunciar a revolução e a sub­ versão continua a colocá-la sob a responsabilidade de raças estranhas à autênti­ ca civilização ariana e ocidental. Quem venceu na França de 1 789 e em 1 87 1 e na Alemanha em 1 9 1 8, por ocasião da revolução que marca o advento da repúbli­ ca de Weimar, foi um grupo ét:Aico que nada tem a ver com o superior "tipo da antiga França" ou da Alemanha autêntica. Quem argumenta assim é Rosenberg, referindo-se não a Boulainvilliers, a quem provavelmente não conhece, mas a Lapouge. 1768 Este último, colocando-se na esteira do teórico dos Setecentos da reação da nobreza, procede também a uma racialização transversal, mas ao pon­ to de fazer dela uma chave de leitura para toda a história universal: já na antiga Roma, quem alimentava as "guerras civis" era uma "plebe" constituída das "es­ córias sociais de todos os povos circunstantes". Mas também entre nós - acres­ centa o socialdarwinista francês - "os acontecimentos raciais determinam ao mesmo tempo os acontecimentos de política interna". 1 769 Se também pretendem responder a duas exigências ideológicas diferentes, as duas formas de racialização não convivem sem problemas. A relação se toma tanto mais conflitual quanto mais a situação interna da Alemanha (e da Itália) se estabiliza, ainda que a preço de uma reação feroz, de modo que, em previsão e preparação da guerra imperialista, a racialização horizontal se toma a dominante ou exclusiva. Daí surgem polêmicas bastante interessantes. Nesse contexto, a personalidade mais significativa é a de um autor que, embora estando em ótimas relações com Mussolini e com certos círculos do III Reich, empenha-se em cri­ ticar os dois regimes "do ponto de vista da Direita'', 1770 isto é, a partir da "reação aristocrática" que encontraria em Nietzsche, mesmo com alguns limites natura­ listas, a sua expressão. 177 1 Quem argumenta nestes termos é Julius Evola, o qual, em última análise, censura o fascismo e o nazismo por terem abandonado ou não terem mantido suficientemente firme a racialização transversal . Na esplêndida Alemanha imperial evocada por Mein Kampf, "ser um varredor de um tal Reich significará uma honra maior do que ser rei num Estado estrangeiro". Eis o co­ mentário critico de Evola: ''Nisto é visível uma precisa degradação do conceito de raça. Segundo as visões tradicionais, só nas élites, nas aristocracias, se manifesta e se realiza plenamente a verdadeira raça". 1772 1 768 Rosenberg, 1 937 a, pp. 638-9. 1769 Lapouge, 1896, pp. 74-5. 1 770 Evola, 1964, p. 96 (com relação a Mussolini).

1 77 1 Evola, 1995 a, p. 47. 1772 Evola, 1 995 a, p. 283; cf. Hitler, 193 9, p. 49 1 .

Junto com Nietzsche, mantido constantemente presente, 1773 o autor de re­ ferência é Gobineau. O "racismo" aqui "aparece essencialmente como manifes­ tação de um instinto aristocrático, como uma reação aristocrática contra tempos de democracia, de igualitarismo, de ascenso das massas" e por isso é rigorosa­ mente distinguido de um racismo que exprime, ao contrário, "tendências 'socializantes' e modernizantes". 1774 Além do racismo horizontal, sinônimo de massificação e equalização é também a "superstição da 'pátria' e da 'nação', restos velados e tenazes do impersonalismo democrático". 1 775 Como a categoria de "humanidade", também a de nação reflete "o hábito mental democrático".1776 Evola é bem consciente da história revolucionária que está por trás da ideia de nation, e por isso rejeita com desdém "o mito democrático da nação"1777 ou "um tipo de nacionalismo que é simplesmente uma máscara do jacobinismo" . 1 778 Em contraposição a esse mundo e essa ideologia, ele celebra em Metternich "o últi­ mo 'europeu"'1779 e especifica: ''Nacionalismo e imperialismo são duas coisas bastante distintas, se não também contraditórias, entre elas". 1780 Ou seja, o impe­ rialismo pressupõe a hierarquização dos homens, negada pela ideia de "nação", pelo menos em referência a uma comunidade determinada. Além de dar um golpe na "superstição" da nação, é necessário dar um golpe definitivo também no "Deus Estado" caro a jacobinos e hegelianos, 1 781 "na superstição e na idolatria pelo 'Estado'", para o qual apelam as "multidões niveladas". 1782 O próprio Estado é sinônimo de nivelamento, à medida que subsume tanto o senhor como o servo, tanto o aristocrata como o chandala, sob a figura do cidadão idealmente submetido a uma lei igual para todos. Exata­ mente pelo fato de que não se cansa de reforçar "o valor do indivíduo" e, antes, de denunciar "a decadência, no Ocidente, do valor da individualidade", Evola não hesitou em fazer profissão de "verdadeiro liberalismo", infelizmente traído pelos liberais modernos com as suas concessões à superstição da norma jurídi­ ca geral, à superstição da nação ou do Estado. 1 783 Isto não impede que Evola 1773 Evola,

1978, pp. 64, 84, 126 e 128. 1 995 a, pp. 41 e 90. 1m Evola, 1978, p. 45. 1776 Evola, 1978, p. 50. 1777 Evola, 1995 b, p. 67. 1778 Evola, 1 995 b, p. 120. 1779 Evola, 1 995 b, p. 354. 1780 Evola, 1978, p. 35. 1781 Evola, 1978, p. 153. 1 782 Evola, 1978, pp. 5 1-2. 1 783 Evola, 1978, pp. 6 1 , 9 1 e 39. 1774 Evola,

mostre saudade do mundo anterior à abolição da escravidão ("só uma raça de escravos poderia querer a abolição da escravatura") e das "castas orientais". 1784 Do ponto de vista dele não há contradição alguma, dado que só deveriam ser condenados à escravidão e ao rebaixamento para as castas inferiores os indiví­ duos de natureza inferior ou, para ser mais exatos, as máquinas de trabalho sem qualquer individualidade. Exatamente porque é e�remamente fiel ao modelo nietzscheano de racialização transversal, Evola é fundamentalmente tíbio também no que diz respeito ao antissemitismo racial em sentido estrito. Certamente, é obsessiva não só a condenação do judaísmo, mas também do cristianismo, sobre cuja natureza intrínseca e repugnantemente judaica Evola não se cansa de insistir. No conjunto, trata-se de uma tradição culpada de ter colocado em discussão a organização hierárquica da natureza: "A alucinação de outro mundo e de uma solução messiânica que foge do presente é a necessidade de evasão dos fra­ cassados, dos rejeitados, dos malditos, daqueles que são impotentes para assu­ mir e querer a sua realidade"; é uma ideia "incubada no seio da raça semítica" e depois levada à afirmação planetária graças ao cristianismo. 1785 Por outro lado, porém, Evola não parece entusiasmar-se com o mito do sangue entendido em sentido estritamente biológico. Ao excluir os judeus da cidadania como "estrangeiros'', a legislação de Nuremberg de 1 935 prevê ex­ ceções para os judeus com "especiais méritos diante do Reich" e, portanto, elevados à dignidade de Ehrenarier, ou de "arianos honorários". Mas - obser­ va Evola - essa categoria "a rigor deveria ter como contraparte aquela dos Ehrenjuden, 'judeus honorários', a ser aplicada aos muitos que, arianos na raça do corpo, muito pouco o são no caráter e no espírito". 1 786 Para o discípulo de Nietzsche, a racialização que realmente conta é a transversal, a contraposição entre senhores e servos, aristocratas e chandala.

6. Da negação da ideia de "nação " em Boulainvilliers ao chauvinismo imperialista Além de Nietzsche e Gobineau, explicitamente citados e celebrados, a crítica radical da ideia de nação em Evola está ligada a uma tradição que re­ monta, em última análise, a Boulainvilliers . Segundo este último, os plebeus ou 1 784 Evola, 1 785 Evola, 1786 Evola,

1978, pp. 41 e 30. 1978, p. 90. 1995 a, p. 260.

galo-romanos não são propriamente sequer "súditos do Estado em geral"; po­ dem ser assim considerados apenas em virtude da "relação que os seus senho­ res", e só eles, têm com o todo. 1 787 Tão abissal é a distância que separa ple­ beus e nobres, galo-romanos derrotados e francos vitoriosos, que ela não pode ser coberta nem pela nação nem pelo Estado; tão radicalmente distante é a natureza dos dois grupos étnicos e sociais que eles não podem jamais fazer parte conjuntamente de uma comunidade, nação ou Estado que seja. "Uma distinção autêntica e etema"1788 os separa e opõe. A elaboração do conceito de nação é também uma resposta ao racismo transversal da reação da nobreza. Lembra-se de maneira rude que é possível "repelir para a floresta da Francônia todas as famílias que ousarem ter a absur­ da pretensão de descender da estirpe dos conquistadores e de ser herdeiros e ter direitos". 1789 Os aristocratas são chamados a tomar consciência de uma vez para sempre de que não têm direito algum, e em última análise nenhum interesse, a colocar-se acima da comunidade dos cidadãos e da nação france­ sa. Na esteira de Boulainvilliers, porém, se coloca Gobineau, que não se cansa de ridicularizar esta "pessoa fictícia'', esta "abstração" e este resíduo bárbaro que é "a Pátria".1790 Desconhecido nos tempos felizes da "nossa época feu­ dal" e do domínio da aristocracia, "o termo pátria [ . . . ] de fato não nos perten­ ceu até que os descendentes galo-romanos levantaram a cabeça e desempe­ nharam o seu papel na política"; sim, "é com o seu triunfo que o patriotismo começou a ser uma virtude". 1791 A essa altura, o problema do qual estamos tratando, o da possível relação entre Nietzsche (teórico em primeiro lugar da racialização transversal) e o III Reich (que insiste sobretudo na racialização horizontal), pode ser reformulado assim: quem está mais próximo do nazismo é Sieyes, com o seu pathos da nation revolucionária em luta contra o exclusivismo e a orgulhosa consciência senhoril da nobreza? Ou são, ao contrário, Boulainvilliers e Gobineau, com o seu desprezo de uma categoria que pretende abraçar numa unidade superior duas casas e duas "raças" separadas por um abismo? Na realidade, em Sieyes podemos ler duas atitudes sensivelmente diferentes. Com o olhar voltado para a nobreza e ao exprimir todo o seu desdém pela pretensão dos "privilegiados" 1 787 Boulainvilliers, 1727, tomo 1, p. 33-4. 1788 Arendt, 1966, p. 162 (= Arendt, 1989, p. 227). 1 789 Arendt, 1966, p. 164 (= Arendt, 1989, p. 229); cf. Sieyes, 1985 b, p. 122. 1 790 Gobineau, 1997, pp. 537 e 539 (livro lV, cap. III). 1 791 Gobineau, 1997, p. 1060 nota 42 (livro IV, cap. III); sobre isto cf. Arendt, 1966, p. 173

(= Arendt, 1 989, p. 242).

de constituir uma "espécie" diferente e superior (cf. supra, cap . 22, § 2), o revolucionário francês celebra a nação como "um corpo de associados que vivem sob uma lei comum", no âmbito da qual "quem possui enormes riquezas não vale mais do que quem vive do próprio salário diário'', pelo menos no que diz respeito ao gozo do "direito" e da "proteção da pessoa". 1 792 Noutro lugar, porém, com o olhar voltado para a massa dos miseráveis, o teórico do Terceiro Estado não só divide em sua v0lta a nação em "dois povos" bem diferentes entre si e nitidamente hierarquizados (cf. supra, cap. 25, § 5), mas dá outro passo em frente: na sociedade ideal por ele auspiciada "os chefes da produção seriam os brancos, enquanto os instrumentos auxiliares de trabalho seriam os negros". 1793 Portanto, estão Boulainvilliers e Gobineau mais próximos do na­ zismo ou Sieyes? No que diz respeito a este último, está mais perto do nazismo o protagonista da batalha antinobre, que sublinha a unidade da nação francesa (e do gênero humano), ou aquele que, identificando-se com a fração privilegia­ da do Terceiro Estado, acaba reintroduzindo uma racialização transversal em prejuízo das classes inferiores tendencialmente coincidente com a racialização horizontal em prejuízo dos negros? Não há dúvida de que Hitler, embora enrijecendo-a em sentido naturalista e racista, soube tirar proveito da ideia de nação, enquanto Boulainvilliers, Gobineau e Nietzsche estão ou aquém de tal ideia ou a refutam de maneira explícita e desdenhosa. Mas é igualmente indubitável que não se pode compreender nada do horror do III Reich sem ter presente a negação radical que ele faz da unidade do gênero humano, a sua divisão em duas partes nitidamente opostas. Vale a pena notar que, ao reconstruir a parábola que desemboca no nazis­ mo, dois autores tão distantes entre si como Lukács e Arendt fazem, ambos, referência em primeiro lugar a Boulainvilliers e à reação dos nobres contra a Revolução Francesa. 1 794 No que diz respeito em particular à Grã-Bretanha, que já é uma grande potência colonial, pode-se observar em Burke a passagem da celebração da superioridade natural da aristocracia feudal (a ideologia ao modo de Boulainvilliers) para a celebração da superioridade natural do povo britânico, elevado no seu conjunto "à categoria de aristocracia entre as na­ ções". 1795 Portanto, da hierarquização/racialização transversal, própria da rea­ ção aristocrática, se passa para a hierarquização/racialização horizontal pró­ pria do imperialismo. 1 792 Sieyes, 1 793 Sieyes,

1985 b, p. 1 2 1 ; Sieyes, 1985 a, p. 105. 1985 c, p. 75. 94 Lukács, 1 974, pp. 674-5; Arendt, 1966, p. 165 (=Arendt, 1989, p. 230). 17 1 795 Arendt, 1966, p. 175-6 (=Arendt, 1989, pp. 245-6).

7. Divisão do trabalho, chinesaria operária e escravidão racial Temos aqui a demonstração que, mesmo sendo realmente diferente e es­ tando em relação conflitual, racialização transversal e racialização horizontal não são separadas por uma barreira intransponível . Para ulteriormente dar-se conta disso, convém levar em consideração um contemporâneo de Nietzsche, expoente de ponta do socialdatwinismo . Também Gumplowicz presta homena­ gem à "época heroica, muitas vezes cantada e bastante admirada" da Índia, quando irrompem os arianos, portadores de uma civilização superior, que ven­ cem a população originária obrigando-a aos "papéis ínfimos dos escravos e dos trabalhadores mais humildes" e conferindo estabilidade e maturidade à confi­ guração sobre base de castas da sociedade.1796 Até aqui as raças são apenas as castas e o resultado da naturalização da divisão social do trabalho. Mas os habitantes originais da Índia são de pele mais escura do que os seus conquistadores, e por isso a vitória dos arianos é a vitória dos brancos sobre "tribos 'negras'", e pode ser comparada com a vitória dos brancos sobre os pele-vermelha da América. A essa altura, a diferença da cor da pele se toma o elemento decisivo; é ela que marca o "abismo intransponível" entre vencedo­ res e derrotados, entre raça dos senhores e raça daqueles que estão destinados à escravidão ou ao aniquilamento. 1797 Ainda nesse nível, ariano está bem longe de opor-se a judeu. Pelo contrário, Gumplowicz, que é de origem judaica, com­ para a conquista, " l .000 anos mais tarde", da Palestina por parte das "tribos de Israel", à irrupção dos arianos na Índia e à expansão dos brancos na América com resultados análogos àqueles já vistos. 1798 Aqui a comunidade ariana é sinônimo, em última análise, de comunidade ocidental, em cujo âmbito também os judeus são incluídos por Gumplowicz. A ela é contraposto o mundo colonial e dos povos negros, do qual agora a Í ndia faz parte, substancialmente assimila­ da aos habitantes de pele escura atropelados e subjugados pelos arianos vence­ dores . A racialização transversal é transformada ou está a ponto de transfor­ mar-se numa racialização horizontal, ainda que para vantagem não mais de um único povo ou país, mas do Ocidente no seu conjunto. Pode-se descrever a parábola que desemboca no III Reich como a passa­ gem de uma para a outra. Precisa-se de escravos para a civilização, mas onde buscá-los? Segundo Nietzsche, a civilização europeia se encontra numa encru­ zilhada: ou se decide a fazer da classe operária europeia algo de "tipo chinês", 1 796 Gumplowicz, 1883, pp. 292 e 295. 1 797 Gumplowicz, 1 883, pp. 292-3. 1 798 Gumplowicz,

1883, pp. 292 e 295.

ou são os chineses (esse povo caracterizado pela "maneira de viver e pensar que é própria de laboriosas formigas") e outras "populações bárbaras asiáticas e africanas" que devem constituir, após a colonização ou imigração, a força­ trabalho servil de que precisam a Europa e o mundo civil (supra, cap. 1 2 § 3) . A primeira perspectiva fica sempre mais dificil por causa da difusão da instru­ ção e da agitação socialista. Porém Nietzsche nunca renuncia definitivamente a isso. Voltemos àquele aforismo de O crepúsculo dos ídolos que faz ironia sobre a "questão operária", denuncia como uma infelicidade todas as conces­ sões arrancadas pelo proletariado da classe dominante e conclui reforçando a necessidade de excluir da instrução aqueles que estão destinados à função de escravos (GD, Incursões de um inatual, 40). Como se vê, continua a ser acariciada a ideia de alguma forma de escra­ vidão no próprio coração da Alemanha. O quadro muda sensivelmente com o surgimento do conflito entre as grandes potências imperialistas, quando nenhu­ ma delas, quer para poder enfrentar a prova de força a nível internacional, quer para poder conquistar o espaço colonial ao qual aspira, não pode não fazer apelo à lealdade e ao espírito de sacrificio das massas populares. Com o nazismo, torna-se nítida e unívoca a tomada de posição a favor da escravidão ou semiescravidão racial, à qual podem e devem ser submetidos os povos estranhos ao espaço sagrado da civilização e chamados a constituir uma casta servil às ordens da raça germânica (e ocidental) dos senhores. O elemento de descontinuidade é nítido e evidente. Muito distante do horizonte de Nietzsche está, não só a perspectiva de um choque entre as grandes potências ocidentais pela conquista das colônias e a hegemonia, mas também a perspectiva de um império continental na Europa oriental, com a sujeição dos seus habitantes, dos "indígenas'', segundo a linguagem do Führer, a uma escravidão ou semiescravidão racial. No entanto, não se pode descuidar também do elemento de continuidade. Vimos Langbehn traduzir o lema de Nietzsche "bellum et otium" pelo de "guerra e arte". Em Hitler podemos ler: "As guerras vão e vêm; o que resta são apenas os valores da civilização" (Kultur) . 1199 Mas a civilização não pode passar sem um estrato social chamado a fornecer trabalho mais ou menos forçado: "Um dos pressupostos mais essenciais para a formação das civilizações superiores foi poder dispor de homens inferiores" (nieder) . A disponibilidade de instru­ mentos humanos de trabalho é tão natural à existência e ao funcionamento ordenado da civilização que o recurso a eles precede até a utilização dos ani­ mais domésticos. 1800 De qualquer maneira, ainda em nossos dias precisa-se de 1 799 ln Fest, 1973, p. 527. 1 800 Hitler, 1 939 b, p. 323 .

um "moderno estrato de escravos'', 1801 e seria louco e criminoso dar a eles uma instrução superior. O Führer faz saber que é preciso estar bem atento para não estimular nas populações dos territórios ocupados "uma consciência de senhores": "é necessário o contrário". 1802 Os indígenas - sublinha um chefe das SS que aprendeu bem a lição - devem configurar-se como dóceis instru­ mentos de trabalho, como "escravos a serviço da nossa civilização".1803 A única instrução que é lícito dár aos polacos - esclarece por sua vez o governa­ dor geral Hans Frank - é aquela chamada a imprimir neles a consciência da inevitabilidade do seu "destino" de servos. 1804 Não há dúvida: estamos diante de uma verdadeira palavra de ordem da política colonial do III Reich. Himmler admoesta a não deixar-se comover por aqueles que estão destinados a traba­ lhar "como escravos para a nossa civilização". 1805 A eles deve ser ensinado acentua Hitler em pessoa - só o que for necessário para que aprendam a compreender e respeitar as "nossas ordens". 1806 Essa configuração da relação entre civilização e escravidão não pode deixar de fazer pensar em Nietzsche, mesmo se, na passagem da racialização transversal para a horizontal, a "classe bárbara dos escravos" agora não pode ser mais buscada no interior do povo alemão. Fica estabelecido o pathos da distância, o apartheid social teorizado pelo filósofo do radicalismo aristocráti­ co se torna um apartheid explicitamente racial: É preciso, portanto, que a vida do colono alemão seja absolutamente distin­ ta daquela dos indígenas. Os nossos deverão abster-se de frequentar as estalagens emporcalhadas pelos cuspes daqueles indígenas. Os alemães disporão de locais públicos próprios, cujo acesso será proibido aos ou­ tros. 1801

Obviamente, o modelo constituído pelas medidas contra os negros no Sul dos Estados Unidos e na África do Sul desempenha aqui um papel bem mais importante que a teoria de Nietzsche, mas é preciso não esquecer que esta mesma teoria não é sem relação com os acontecimentos históricos concretos de apartheid do final do Século XIX (supra, cap. 1 1 § 3 e 12 § 2). 1801

ln Fest, 1 973, p. 928.

1802 In Poliakov-Wulf,

1 978, p. 5 18. Como é o caso do Reichsführer das SS, in Jacobsen, 1989, p. 1 4 1 . 1804 In Poliakov-Wulf, 1978, p. 502. 1805 ln Conrad-Martius, 1955, p. 267. 1806 Hitler, 1989, p. 454 (22 dejulho de 1942). 1807 Hitler, 1 989, p. 435 (9julho de 1942). 1803

27 T RANSFORMAÇÕES DA MITOLOGIA ARIANA, DENÚNCIA DO COMPL Ô REVOLUCIONÁRI O E SAÍ DA ANTISSEMITA

1. Em busca do Ocidente autêntico, ariano e anticristão

S podem fazer parte, seja qual for sua colocação social e sua orientação

egundo a ideologia nazista, os judeus não fazem parte do povo alemão, não

política. Sabemos que, além de Nietzsche, é a reação aristocrática no seu con­ junto que se afasta, de modo mais ou menos radical, do antissemitismo e, sobre­ tudo, das suas manifestações mais plebeias. Mas, ao identificar em Nietzsche um dos inspiradores da "solução final", Lichtheim argumenta nesses termos. É verdade que o filósofo odiava os antissemitas e se enfurecia em particular contra o cristianismo, mas é preciso não perder de vista o fato de que ele "odiava do cristianismo sobretudo as origens judaicas" e, portanto, se zombava dos "antissemitas vulgares do seu tempo", era só porque "não eram bastante radicais"; não compreendiam que, enquanto cristãos, eram "eles mesmos os portadores daquela infecção judaica" à qual diziam querer opor-se. Em conclu­ são, a férrea linha de continuidade que parte de Nietzsche "vale para todos os aspectos do nacionalsocialismo, inclusive o massacre dos judeus".1808 Nietzsche seria, portanto, uma espécie de antissemita mais consequente? Mesmo se recorrêssemos ao testemunho já visto de Overbeck e até à análise de um historiador do antissemitismo como é Lazare, essa leitura não é persua­ siva. O filósofo não apela para um tom pedagógico quando se dirige aos antissemitas do seu tempo; não os convida certamente a fazer um esforço intelectual, do qual os considera totalmente incapazes, mas simplesmente os convida a desaparecer de circulação. Inequívocos são os sentimentos de des­ prezo e de ódio. O esquema continuísta não é mais persuasivo do que o esque­ ma "alegórico". Convém voltar por um instante ao debate que se trava por ocasião da fundação do II Reich. Vimos a forte presença do mito genealógico cristão­ germânico, que, em oposição sobretudo à França anticristã do iluminismo e da revolução, celebra a Alemanha como intérprete privilegiada da religião domi1808 Lichtheim,

1998, p. 207.

nante na Europa e no Ocidente. A irrupção da mitologia ariana complica a situação pelo fato de introduzir um elemento de contradição entre a genealogia linguística da Alemanha e do Ocidente (que exclui as línguas semíticas) e a sua genealogia religiosa (que faz referência essencial à tradição judaica) . Os teutômanos ao modo de Wagner resolvem o problema inventando um Jesus ariano e elaborando assim uma mitologia cristão-germânico-ariana. Ela influ­ encia de qualquer modo O Jllascimento da tragédia, que contrapõe positiva­ mente a versão ariana do pecado original, assim como a semita, e insere Lutero entre os profetas do renascimento em terra alemã da grecidade trágica. Já a partir do período "iluminista", porém, Nietzsche toma plena consciên­ cia do absurdo dessa construção, que se torna o alvo de uma polêmica sempre mais áspera. Em particular, Genealogia da moral zomba da "honestidade cris­ tão-ariana" (GM, III, 26). No entanto, limitar-se a sublinhar a implacável hosti­ lidade de Nietzsche em relação ao mito genealógico cristão-germânico (ou cris­ tão-germânico-ariano), que preside à fundação do II Reich, significa pronunci­ ar uma meia verdade. A outra metade, aquela ignorada ou afastada, é que a desconstrução de tal mito estimula a construção do mito genealógico greco­ germânico-ariano entendido em sentido antijudeu e anticristão. Sabemos que a "calamidade alemã" inicia e coincide com o "transplante no coração alemão de um mito profundamente antialemão, o mito cristão" (supra, cap. 3 § 4). Por outro lado, é preciso não perder de vista o fato de que "o cristianismo visava a 'judaização' do mundo inteiro" (FW, 1 3 5). O último Nietzsche não se cansa de insistir sobre o caráter judeu do cristianismo. Ele "não é um movimento contra o instinto judeu, é, ao contrário, o seu corolário" (AC, 24 ) ; olhando bem, é "um judaísmo malcheiroso de rabinismo e superstição" (AC, 5 6). A parábola histó­ rica de Javé é extraordinária: Antes ele tinha apenas o seu povo, o seu "povo eleito". Nesse meio-tempo, tal como seu povo mesmo, ele partiu em andança em terra estrangeira, desde então não mais se deteve em lugar algum: de modo que acabou por estar em casa em toda parte, o grande cosmopolita - até ter do seu lado "o grande número" e metade da terra. Apesar disso, o deus do "grande número", o democrata entre os deuses, não se tornou um orgulhoso deus pagão: continuoujudeu (AC, 17). ·

É graças ao cristianismo que o judaísmo e a revolta judaica dos escravos por motivação moral, que de outro modo teriam permanecido confinados a um pequeno povo e a um restrito canto da terra, tomaram uma dimensão planetária: O cristianismo, originado de uma raiz judia e compreensível apenas como fruto desse terreno, representa o movimento antitético de toda moral da

criação, da raça, do privilégio - é a religião antiariana por excelência: o cris­ tianismo, a transvaloração de todos os valores arianos, a vitória dos valores dos chandala, o evangelho pregado aos pobres, aos humildes, a revolta total de todos os oprimidos, miseráveis, mal sucedidos, maltrapilhos contra a "raça", a imortal vingança dos chandala como religião do amor.

Para aAlemanha e o Ocidente, reencontrar a si mesmos significa liquidar o processo de judaização iniciádo com a difusão do cristianismo; ao sacudir das costas essa "religião antiariana por excelência", a "humanidade ariana" recu­ pera a sua autenticidade e a sua vocação autêntica (GD, Os que "melhoram " a humanidade, 4). Ao ciclo bimilenar da subversão iniciado em terra judaica Nietzsche opõe uma tradição que se torna antitética não só no plano cultural e político, mas também no plano "racial". O modelo a ter presente é, em primeiro lugar, a sociedade de castas testemunhada pelo código ariano de Manu: A ordem das castas, a lei suprema, dominante, é apenas a sanção de urna ordem natural, de uma legalidade própria da naturez.a, sobre a qual nenhum arbítrio, nenhuma "ideia moderna" tem poder. [... ] A naturez.a, e não .Manu, separa os predominantemente espirituais, os predominantemente fortes em músculo e tem­ peramento, e os que não se destacam nem de uma maneira nem de outra, os medíocres - estes sendo o grande número, e os dois primeiros, os seletos. [... ] A ordem das castas, a hierarquia, apenas formula a lei maior da própria vida; a separação dos três tipos é necessária para a conservação da sociedade, para possibilitar tipos mais elevados e supremos - a desigualdade dos direitos é a condição para que haja direitos. -Um direito é um privilégio (AC, 57).

Essa sociedade ariana hierarquicamente organizada e que sem perturba­ ções reproduz a ordem da natureza, se opõe à subversão que bastante cedo, em todo caso a partir dos profetas, intervém no âmbito do judaísmo. A "besta loura" dá uma prova ulterior, magnífica, de si com a esplêndida civilização helênica (GM, 1, 1 1). Ainda sob a capa de chumbo do cristianismo (e, indiretamente, do judaísmo), a civilização ariana se debate para reencontrar a si mesma. De um lado vemos a igreja, "na primeira Idade Média", dar "em toda parte caça aos mais belos exemplares do 'animal louro"', por exemplo, os "nobres germanos", para reduzi-los a "uma caricatura do homem" (GD, Aqueles que "melhoram " a humanidade, 2) . Do outro lado vemos um movimento de resistência e de recuperação: A organiz.ação medieval parece um maravilhoso agir às apalpadelas para reconquistar todas aquelas representações sobre as quais repousava a

antiquíssima sociedade indiano-ariana, mas com valores pessimistas, que aprofundam as suas raízes no terreno da decadência racial (B, III, 5, p. 325). Também nesse caso, em virtude do processo de racialização transversal que já conhecemos, o conflito é ao mesmo tempo social e "racial": assistimos ao choque entre as tendências plebeias de uma igreja cristã (e judaica) e uma reação aristocrática ariana. Mas o mesmo fenômeno se manifesta ainda no mundo contemporâneo. A súbversão, que começou com os profetas hebreus, continua a revelar o seu rosto judeu no socialismo; com a sua "vontade de negar a vida" o socialismo se revela o fruto não só de "homens", mas também de "raças mal sucedidas" (XI, 586-7; WzM, 125). A "besta loura" ariana às vezes é definida como a "besta loura germânica"

(GM, 1, 1 1), com referência não exclusivista ou privilegiada aos habitantes do II Reich, mas aos povos que remetem à "língua indogermânica" (VIII, 453) e à "raça indogermânica" (IX, 22). De qualquer forma, também os alemães do presente, como o Ocidente no seu conjunto, são chamados a sacudir das costas tanto o cristianismo como o judaísmo, pondo fim ao longo ciclo da subversão e recuperando a civilização aristocrática e ariana que está em suas origens. Junto com a chegada de Hitler ao poder se desenrola um debate que é um pouco a continuação daquele que se desenvolveu por ocasião da fundação do II Reich. Os Deutsche Christen, os "cristãos alemães", adaptam o cristianis­ mo às exigências do III Reich remetendo-se à Reforma protestante e lendo-a em perspectiva nacionalista, para teorizar uma igreja fundida com a "comuni­ dade popular" alemã e fundada sobre o "reconhecimento da diversidade dos povos e das raças como uma ordem querida por Deus"; 1809 desse modo, se colocam no sulco da tradição mitológica cristão-germânico-ariana. Outros cír­ culos, em particular o que se reúne em tomo de Ludendorff e da sua segunda mulher, rotulam o cristianismo como uma religião profun�ente estranha à essência, melhor, à raça germânica; ad.emais, trata-se de um a religião que, com os seus sermões humanitários e moralizantes, toma "inerme" (abwehrlos) o povo alemão. 181 0 Ao argumentar de tal modo, os Ludendorff se referem ex­ plicitamente a Nietzsche, à "poderosa e perturbadora sacudida" feita por ele no cristianismo "árvore de raízes milenares". 1811 Com efeito, até a linguagem faz pensar na do filósofo: em última análise, a difusão universal do Antigo Testa1809 ln Kupisch, 1965, pp. 256-8. 1 81 0 E. Ludendor1f, 1935, p. 17; M. Ludendorff, 193 1 , pp. 7-9. 1811 M. Ludendorff, 193 1, p. 9.

mento judaico é obra das "igrejas cristãs'', intrinsecamente "semíticas"; 1812 e no tocante à Reforma, ela mesma acabou por configurar-se como um "renascimento judeu do cristianismo". 181 3 Por medo também de um choque frontal com as igrejas cristãs, o nazismo se mostra às vezes reservado em relação às tomadas de posição explicita e violentamente anticristãs do círculo dos Ludendorff. Por outro lado, vimos o próprio Hitler fazer concessões à mitologia cristão-germânico-ariana retoman­ do o tema do Jesus ariano ou semiariano. Mas o aspecto principal é a aspiração do nazismo a realizar, no longo prazo, uma desjudaização e descristianização da Alemanha e da Europa. O mito do Século XX de Rosenberg inicia com a celebração da irrupção vitoriosa na Índia dos "arianos louros (hei!)'', os quais subjugam os "indígenas" de pele escura (Dunklen) e dão vida à "ordem castal". O segundo capítulo desses gloriosos acontecimentos vê como protagonistas os "gregos enquanto arianos"; temos finalmente "a colonização do mundo por obra do Ocidente germanicamente fecundado" . 1814 O momento catastrófico dessa epopeia é constituído pela penetração de "representações e tardios valo­ res romanos, cristãos, egípcios ou judaicos" na "alma do homem germânico" . 181 5 O nexo entre polêmica anticristã e polêmica antijudaica coloca os ambien­ tes mais violentamente anticristãos na esteira de Nietzsche, mas neste último a luta contra a tradição judeu-cristã vai junto com a luta contra o antissemitismo.

2. Os judeus como povo chandala e como povo sacerdotal Ao responder desdenhosamente a Fritsch, ao qual devolve os três núme­ ros da Antisemitische Correspondenz, o filósofo zomba da leviandade ou da extravagância dos antissemitas "nas questões da moral e da história"(B, III, 5, p. 5 1 ) Nietzsche pretende mover-se no terreno da história. A seus olhos, é verdade, a trajetória da revolta servil coincide substancialmente com a trajetó­ ria do judaísmo pós-exílico. Mas para compreender as razões de tudo isto é necessário continuar a perguntar à história: "Também na sua pátria, os judeus não foram uma casta dominante [ .. ], os judeus nunca foram uma raça cava­ lheiresca" (XI, 568). É uma análise ulteriormente desenvolvida num fragmento do início de 1 8 88, que convém citar extensamente aqui: .

.

1812 E.

Ludendorff, 1 934, pp. 3-7.

1813 E. Ludendorff,

1 934, p. 1 3 . 1937 a, pp. 28-9 e 38. 1815 Rosenberg, 1 937 a, p. 40. 1814 Rosenberg,

Os judeus fizeram a tentativa de se impor, depois que perderam duas castas, a dos guerreiros e a dos agricultores. Nesse sentido são os "circuncidados". Eles têm o sacerdote e, logo em seguida, o chandala... Compreensivelmente, com eles se chega a uma ruptura, a uma revolta dos chandala: é a origem do cristianismo. Dado que conheceram o guerreiro apenas como seu senhor, exprimiram na sua religião a hostilidade contra o aristocrata, contra o nobre, o orgulhoso, contra o poder, contra as classes dominantes; eles são os pessimistas da indignação. Desse modo criaram uma nova importante posição: o sacerdote à frente dos chandala contra as classes aristocráticas (vornehm). .. O cristianismo tirou as consequências últimas desse movimento: também nos sacerdotes hebreus percebeu a casta, o privilegiado, o aristocrata. Ele eliminou o sacerdote. Cristo é o chandala que rejeita o sacerdote. .. É o chandala que se redime sozinho.

Por isto a Revolução Francesa é a filha, a continuadora do cristianismo . . . , por instinto é contra a igreja, contra os aristocratas, contra os últimos privilégios (XIII, 3 96). Durante quase toda a sua história, os judeus conheceram a casta dos senhores apenas na forma odiosa do ocupante estrangeiro. Na luta contra ele foram levados a fazer apelo à massa sem distinções, perdendo e não conquis­ tando nunca mais o sentido e o pathos da distância. Estamos na presença de um povo no qual, por causa da derrota político-militar e do longuíssimo exílio e escravidão, a moral servil se tomou uma segunda natureza, e segunda natureza se tomaram também o ressentiment e o ódio em relação às classes e os valo­ res aristocráticos. Esta análise foi depois retomada por Weber, segundo o qual "desde o exílio" o judaísmo é "a religião de um 'povo pária' burguês". 181 6 Ne­ nhum dos dois autores se refere à natureza e à raça e, por isso, seria totalmente indevido e enganoso falar de antissemitismo. Nietzsche, contudo, vai além. Já durante o exílio é a religião que estimula a luta de resistência nacional dos judeus e, portanto, é a figura do sacerdote que guia a massa, sendo ele o último resto da casta dominante e colocado, por sua vez, em discussão pelo cristianismo, que também estava penetrado até o fundo pelo espírito 1816 Weber,

1972, p. 240 ('= Weber, 1 976, p. 329).

antiaristocrático próprio do judaísmo. Estão assim colocadas as bases para a Refor­ ma e, depois, para a Revolução Francesa: são etapas da revolta servil, sempre alimentada pela moral servil por excelência. O perigo do deslizamento naturalista está aqui à espreita, seja por causa da duração longa, milenar, dos processos histó­ ricos aos quais se refere, seja por causa do componente psicopatológico e até fisiológico que Nietzsche evidencia na degeneração denunciada por ele. No entanto, até esse momento continuamos a mover-nos num plano histó­ rico. Por dominante que possa ser no âmbito do judaísmo, a figura do sacerdote é anterior a ele. Já no código de Manu vemos "um gênero de homens, o eclesi­ ástico, que se sente a norma, o cume, a mais alta expressão do tipo homem" (XIII, 439). É preciso partir daqui: "O desenvolvimento do Estado sacerdotal dos judeus não é original: eles aprenderam o esquema na Babilônia; o esquema é ariano". Portanto, o "espírito semítico do Novo Testamento", do qual "tanto se fala hoj e", é simplesmente o espírito "sacerdotal'', e "esta espécie de 'semitismo', ou seja, de espírito sacerdotal" já está presente "no código ariano da raça mais pura" e aqui se manifesta com mais força que em qualquer outro lugar (XIII, 386). É transparente aqui a polêmica contra o antissemitismo bioló­ gico. Lazare está errado em falar de "antissemitismo anticristão" e mais errado ainda está Overbeck ao lançar a hipótese de um antissemitismo camuflado de anticristianismo. Um antissemita autêntico jamais poderia escrever ou subscre­ ver a afirmação que lemos num fragmento dos primeiros meses de 1 8 88: "A influência ariana corrompeu o mundo todo" (XIII, 440). Mudou Nietzsche a ideia sobre a excelência da "humanidade ariana"? Não se trata disto. O julga­ mento está contido num esboço de uma espécie de história universal da figura funesta do sacerdote ou do intelectual-sacerdote. Mas é exatamente a essa altura que se verifica uma virada crucial na polêmica antijudaica. Embora tenha um passado ariano, a figura do sacerdote encontra o seu lugar de eleição, e chega a desempenhar um papel único, lá onde estão ausentes ou desapareceram as castas dominantes, na Judeia. E aqui, mais que dos profetas, a subversão parece partir já dos sacerdotes. À primeira vista se trata apenas de um prolongamento para trás posterior, modes­ to, de um interminável ciclo revolucionário. Na realidade agora não é mais o judaísmo historicamente determinado que é colocado em estado de imputação, mesmo tendo se desenvolvido por um longuíssimo arco de tempo, mas, em última análise, o judaísmo enquanto tal. A trajetória da subversão e a trajetória do judaísmo chegam a coincidir perfeitamente. Mas há uma outra novidade não menos grávida de consequências . Bem longe de ser constituído de chandala de modo homogêneo, o bloco social protagonista da subversão apresenta agora uma estratificação interna significativa. Uma massa bruta e incapaz de vonta-

de autônoma é manobrada por uma classe dirigente bastante sofisticada, que encontra a sua expressão na figura do sacerdote.

3. A revolução como complô e o papel dos sacerdotes judeus Que relação há entre a massa fanatizada e o vértice da pirâmide? Noutras palavras, até que ponto este último sente verdadeiramente como próprias as cren­ ças e os valores ou desvalores que difunde na base? Eles são claramente contrários à vida, exprimem e propagam o niilismo, bloqueiam o processo natural de seleção da sociedade e a amputação das partes degeneradas e doentes e assim estimulam o contágio e apressam a ruína do todo. Qual a lógica que está por baixo de uma ação tão claramente nefasta? Podemos realmente pensar que seja apenas a credu­ lidade que inspira os intelectuais-sacerdotes? Considerando bem, as coisas são bastante diferentes: "Um teólogo, um padre, um papa não apenas erram, mas tam­ bém mentem [ .. .]. Também o padre sabe, como todos sabem, que não existe ne­ nhum 'Deus', nenhum 'pecador', nenhum 'redentor', que 'vontade livre' e 'ordem ética do mundo' são mentiras" (AC, 3 8). É preciso nunca perder de vista o fato de que o "sacerdote" promove de modo "consciente" a devastação niilista (AC, 8). Já não se trata de erros, ainda que ruinosos, mas de uma desprezível duplicidade. Tomem-se os evangelhos. Um "psicólogo" que os leia com atenção percebe logo que eles são "o oposto de uma corrupção ingênua"; ao contrário, eles revelam um "refinamento par excellence, uma vocação artística na corrupção psicológica" (AC, 44). É um ponto sobre o qual o último Nietzsche não se cansa de insistir: "O sacerdote quer exatamente a degeneração do todo, da humanidade; por isso con­ serva o degenerado". Mas como explicar um papel tão infame? Eis a resposta: "Só a esse preço ele pode exercer o seu domínio" (EH, Aurora, 2). A dissolução e a negação deliberadamente perseguidas não são um fim em si mesmo. Também neste caso atua a vontade de potência. Tome-se a personalidade que primeiro conferiu forma dogmática e institucional ao "cristi­ anismo". É sinal de ingenuidade ou de estupidez "considerar sincero um Paulo, que tinha a sua pátria na sede principal do iluminismo estoico". Se observarmos esse personagem com a penetração e a lucidez que competem ao "psicólogo", chegamos a uma conclusão bem diferente: Paulo queria o fim, portanto quis também os meios... No que ele mesmo não acreditava, acreditaram os idiotas aos quais lançou a sua doutrina. A sua necessi­ dade era o poder: com Paulo, o sacerdote quis ainda uma vez chegar ao poder para ele tinham utilidade apenas aqueles conceitos, aquelas doutrinas e aqueles

-

símbolos com que são tiranizadas as massas, são formados os rebanhos (AC, 42)

8 10

Eis que Jesus, este "idiota" sem qualquer capacidade política que prega "a superioridade sobre qualquer sentimento de ressentiment", é transformado num "rebelde contra a ordem" e dominado por um projeto político cheio de ressentiment e vontade de potência animada só por ressentiment (AC, 40). "Em Paulo se encarna o tipo oposto à 'boa nova', o gênio no ódio, na visão do ódio, na implacável lógica do ódio"; em Paulo, "este falsário" (AC, 42). É claro o deslocamento ..com respeito ao quadro apresentado pelo frag­ mento do início de 1 88 8, citado na abertura do parágrafo anterior. Aqui o cris­ tianismo é uma revolução, é a sublevação do chandala cristão contra o sacer­ dote, contra aquele pouco que resta de classe dominante num mundo, o judeu, já bastante plebeizado. No Anticristo, porém, a manipulação e o complô subs­ tituem a revolução: o chandala não é mais o inimigo do sacerdote, mas o seu instrumento inconsciente . No entanto, nesse contexto, um e outro, ainda que desempenhando papéis bastante diferentes, são membros da mesma comuni­ dade, a judaica. Em outros trechos, porém, à passagem da categoria de revolução para a categoria de complô se acrescenta e se entrelaça uma passagem ou o perigo de uma passagem ainda mais grave. Depois de ter sublinhado o caráter intrin­ secamente judeu do cristianismo, Genealogia da moral continua assim: Não teria Israel alcançado, por via deste "redentor", deste aparente antago­ nista e desintegrador de Israel, a meta extrema da sua sublime ânsia de vin­ gança? Não entraria a fazer parte da magia negra oculta de uma política verdadeiramente grande de vingança, de uma vingança longividente, sub­ terrânea, que ganha lentamente terreno e é previdente nos seus cálculos, o fato de que o próprio Israel tivesse de negar e crucificar diante de todo o mundo, como uma espécie de inimigo mortal, o verdadeiro instrumento da sua vingança, a fim de que "todo o mundo", ou seja, todos os inimigos de Israel, pudessem sem hesitação abocanhar essa isca? [ ... ] Pelo menos é certo que sub hoc signo Israel fez sempre triunfar, até hoje, sobre todos os outros ideais, sobre todos os ideais mais nobres, a sua vingança e a sua transvaloração de todos os valores (GM, 1, 8).

Com o cristianismo surge uma religião que, não obstante sua novidade e sua aparente hostilidade aos sacerdotes judeus, é por estes conscientemente utilizada para fins inconfessáveis. Aqui protagonista e vítima do complô reme­ tem a duas comunidades diferentes. Não é mais Paulo que manipula Jesus, o judeu sacerdote que manipula o judeu idiota ou chandala. É Israel como tal que consuma a sua vingança contra os gentios ou contra "todo o mundo". Como representar esse povo com características tão peculiares? É um problema que

atormenta Nietzsche. Sim, a partir de cada caso de derrota e de exílio, ele é um povo-chandala. Esta definição também não é totalmente satisfatória. Temos a ver com chandala ou fracassados de um tipo particular, com os "revoltosos entre os fracassados" (XIII, 438). Ou antes, para sermos mais precisos, estamos diante de inspiradores da revolta, dos ideólogos-sacerdotes da subversão. Nou­ tra ocasião, os judeus são definidos "como uma raça de chandala, que aprende com seus senhores os princípios mediante os quais os padres se tornam senho­ res e organizam um povo" (B, III, 5, p. 325). Seja através de oscilações, tenta­ tivas e reconsiderações, a figura do sacerdote tende a assumir um papel sem­ pre mais central na definição do judaísmo. Desde que, por razões históricas bem determinadas, o sacerdote conseguiu uma eminência desconhecida alhu­ res, Israel tende a tornar-se o "povo sacerdotal" como tal. Como é confirmado por este outro trecho de Genealogia da moral: Nada do que foi feito na terra contra "os nobres", "os poderosos", "os senho­ res", "os donos do poder" merece uma palavra em comparação com o que os judeus fizeram contra eles; os judeus, aquele povo sacerdotal que soube des­ forrar-se dos seus inimigos e dominadores unicamente através de uma transvaloração radical dos seus valores, ou seja, por um ato marcado pela vingança mais radical. Isto convinha apenas a um povo totalmente sacerdotal, a um povo com a máxima avidez de vingança sacerdotal (GM, 1, 7).

Uma vez configurados os judeus como o povo sacerdotal, a mentira cons­ ciente e a turva vontade de potência dos sacerdotes é a mentira consciente e a turva vontade de potência dos judeus. Agora tudo se torna mais claro. Em primeiro lugar é preciso ter presente que a pregação do nada (ou seja, do além da moral, da "ordem ética do mundo") está em função da satisfação de uma sede desmedida de domínio: "A melhor maneira de enganar a humanidade é com a moral !" (AC, 44). E ainda: "Se acontece que os teólogos, através da 'consciência moral' (Gewissen) dos príncipes (ou dos povos), estendem a mão para o poder (Macht), não há dúvida sobre qual intenção no fundo toda vez se verifica: a vontade do fim, a vontade niilista quer alcançar o poder (Macht)" (AC , 9). Em segundo lugar, é preciso não perder de vista que quem prega a moral e a humildade, quem representa a "comédia da modéstia" é "a mais funesta espécie de delírio de grandeza que jamais existiu até hoje na terra", é "a vaidade, consciente como nunca, dos eleitos". Esta última expressão lembra de modo transparente os judeus, explicitamente acusados no final do parágrafo: os realizadores ocultos dessa encenação da religião da modéstia, da humildade e da resignação são os sacerdotes ou "seres superlativamente judeus", tam­ bém quando se declaram cristãos (AC, 44).

Vimos na leitura do cristianismo a categoria de manipulação e de conspi­ ração tomar o lugar da categoria de revolução; agora a "conspiração (Verschworung), a conspiração dos miseráveis contra os bem sucedidos e vitoriosos" (GM, III, 14) tende a tomar-se a conspiração dos miseráveis e dos chandala de algum modo dirigidos por ideólogos-sacerdotes . Isto vale também para a Reforma: derrotando o Renascimento, esse movimento plebeu deu vida nova à "nova Roma judaizada- edificada sobre a antiga" Roma pagã, deu vida nova àquela "sinagoga ecumênica" que se fazia chamar de Igreja (GM, 1, 1 6). E considerações análogas valem para a Revolução Francesa, que sanciona um ulterior triunfo da "Judeia" (supra, cap. 1 5 § 2). A configuração da revolução como complô, como participação ou a mo­ nopolização mais ou menos importante dos judeus, está amplamente difundida na cultura do tempo. Dir-se-ia que esse tema é reinterpretado e radicalizado por Nietzsche para valer para todo o ciclo revolucionário, com uma ênfase extrema no papel dos judeus. A essa altura, bem além da Revolução Francesa, é o longo ciclo da subversão na sua totalidade que tende a coincidir com um ciclo da conspiração judia igualmente longo. Protagonista de uma espécie de complô arquetípico, Paulo é "o judeu, o judeu eternopar excellence" (AC, 5 8), um "terrível embusteiro" (AC, 45) que atua com o "cinismo lógico de um rabi­ no" (AC, 44) . Topamos aqui com um comediante sem preconceito da modéstia e da humildade, na realidade motivado por uma sede inextinguível de potência. Mas além dessa ou daquela personalidade, leia-se a Bíblia: A dissimulação (Se/bstverstellung) de si mesmo no "sagrado'', que aqui se torna verdadeiramente gênio [ . . . ], essa falsificação de palavras e gestos ele­ vada a arte, não é acidente de algum dom individual, alguma natureza de exceção. Isto requer raça

[ ... ] ; isto não é apenas tradição, é herança: apenas (AC, 44).

sendo herança atua como natureza

As modalidades de ação de Paulo são iluminadoras. Elas permitem que tiremos uma conclusão de caráter geral: Psicologicamente considerado, o povo judeu

é

um povo dotado de

tenacíssima força de vida, que, colocado em condições impossíveis, toma deliberadamente ifreiwillig), desde a profunda esperteza da autoconservação, o partido de todos os instintos da

décadence, - não como se

fosse domina­

do por eles, mas porque neles intuiu uma potência com o qual se pode levar a melhor contra o "mundo". Os judeus são o oposto de todos os tiveram de representá-los até dar a ilusão de ser, com um seu gênio histriônico souberam colocar-se da décadence

-

décadents: non plus ultra do

à frente de todos os movimentos

como o cristianismo de Paulo -, para transformá-los em algo

mais forte que qualquer partido afirmador da vida. A décadence é, para a espécie de homem que no judaísmo e no cristianismo exige a potência, ape­ nas meio: essa espécie de homem tem interesse vital em tornar doente a humanidade (AC, 24). A essa altura, toda a história do Ocidente se toma um interminável complô configurado assim: a ralé da sociedade, os fracassados da vida, os rejeitados os doentes privados e incapazes de vontade autônoma são astutamente manobra­ dos por uma raça que se considera eleita e que em virtude dessa eleição nutre uma ilimitada vontade de domínio, à qual está pronta a sacrificar a própria existência da sociedade.

4. Crítica ao cristianismo, "nietzscheanismo judeu " e contribui­ ção de Nietzsche para a teoria do complô judeu Agora podemos tentar explicar um dos paradoxos que caracterizam a história do destino de Nietzsche. Por um lado, setores consistentes da cultura judaica olham com interesse e simpatia para um filósofo que condena com tanta força o antissemitismo (plebeu) e, pelo menos nos seus últimos anos, exprime a sua admiração pelo grande capital judeu. No plano mais propriamen­ te cultural e religioso, nos círculos dos que se fala aqui não podem não suscitar um eco simpático a oposição positiva do Antigo ao Novo Testamento e, sobre­ tudo, certos argumentos da polêmica anticristã desenvolvida por Nietzsche: "Deus deu o seu filho para a remissão dos pecados, como vítima [ ] O sacri­ ficio expiatório, e em sua forma mais repugnante e bárbara, o sacrificio do inocente pelo pecado dos culpados . Que pavoroso paganismo" (schauderhaftes Heidenthum)! (AC, 4 1 ). Noutras ocasiões, é o próprio Nietzsche que se define como "pagão" (XIII, 487); por outro lado, também O Anticristo num aforismo sucessivo se exprime em termos altamente positivos sobre o paganismo: "Pa­ gãos são todos os que dizem sim à vida" (AC, 55). Mas, no trecho que trata da presença do tema do bode expiatório no cristianismo, o julgamento de valor é oposto. Bem como em trechos análogos de áspera denúncia de Paulo como o grande e funesto teórico de "uma doutrina pagã dos mistérios", que tem neces­ sidade de uma "vítima sacrifical", de uma "fantasia sanguinolenta" (pense-se no "beber o sangue" do rito eucarístico). Paulo é o protagonista dessa queda ou recaída em "pleno paganismo" a partir do seu "instinto para as necessidades dos não-judeus", dos gentios (XIII, 1 07-9). A configuração do cristianismo triun­ fante como paganismo wlgar parece ecoar um tema tradicional da polêmica .. .

.

anticristã própria do judaísmo: não se pode excluir que tal configuração tenha sido estimulada pelas relações de Nietzsche mantidas durante a sua vida com conhecidos e amigos de origem judaica (Rée, Paneth, Brandes). Se a isto se acrescenta a reinterpretação simpática da "circuncisão" entre os judeus e os árabes não só como rito guerreiro e viril (XIII, 1 1 2-3), mas também a afirma­ ção da "relativa racionalidade" que mostram o "judaísmo" e o "cristianismo mais antigo" (o judaizante) em comparação com o cristianismo paulino, todo invadido pela "superstição" e pela necessidade de "milagre" (XIII, 1 1 6-7); ten­ do-se tudo isto presente, pode-se compreender bem que a filosofia de Nietzsche tenha sido saudada como contracanto salutar com respeito à apologética cristã, que por longos séculos tinha perseguido, asfixiado e oprimido os judeus. Esta martelante propaganda e difamação do judaísmo deixa às vezes traços impor­ tantes também naqueles que rejeitam a conversão; e para a leitura do fenôme­ no da diminuição da autoestima é ainda uma vez Nietzsche que fornece chaves importantes (infra, cap . 3 0 § 4). Surge, portanto, uma significativa corrente de "nietzscheanismo judeu". 181 7 Na realidade, aos olhos do teórico do radicalismo aristocrático, o cristia­ nismo é apenas uma etapa mais avançada e por isso uma manifestação ainda mais repugnante do longo ciclo da subversão, que sempre partiu do Antigo Testamento (ainda que de suas partes pós-exílicas) . E não é tudo. No publicismo antissemita do tempo, os judeus são o povo por excelência da subversão também pelo fato de que colocam em discussão ou apagam a linha de demarcação entre raças superiores e raças inferiores, entre senhores e servos. Dirigindo-se aos judeus, este "povo mulato" (Mischlingsvolk) de origem egípcia e africana, Marr os apostrofa nestes termos: ''Não negareis que sangue negro conseguiu introduzir-se na vossa linhagem". Como vimos, no último Nietzsche os judeus se configuram como o povo chandala: o chandala é ao seu modo também um mulato, sendo filho de um sudra ou servo e de uma mulher da casta dos brâmanes. É verdade, o filósofo recomenda a fusão matrimonial e eugênica das élites judaicas e prussiano-alemães. Mas esse tema não está totalmente ausente sequer em Marr, que, com o olhar, aliás, não voltado de modo exclusivo às classes superiores, exorta assim os judeus : graças à verdadeira "emancipação", ou seja, à "assimilação com vossos concidadãos ocidentais" (a qual deve ser total e em todo nível não só cultural, religioso, mas também eugênico e racial), podereis conseguir o "enobrecimento do vosso povo, que permanecerá não contaminado por coptas, mouros, caldeus, babilônios, assírios e negros" . 1818 Querendo-se en181 7 Cf Stegmaier-Krochmalnik, 18 18 Mar,r 186 2, pp. 46 e 5 1 .

1997.

tender a real diferença que separa Nietzsche do patriarca do antissemitismo, é necessário fazer referência mais uma vez à distinção entre racialização transver­ sal e racialização horizontal. Empenhado em acentuar a linha de demarcação entre brancos e negros, entre ocidente e povos coloniais, Marr intima ameaçado­ ramente os judeus enquanto tais a renunciar à sua história e à sua identidade sob todo aspecto. Empenhado em acentuar o abismo entre senhores e servos, Nietzsche convida os estratos superiores do judaísmo a se distanciar claramente de tudo o que há de servil e ignóbil na sua história: redefinindo-se de modo consciente como senhores, eles podem tranquilamente ou utilmente apelar para as páginas do An­ tigo Testamento que descrevem e celebram a conquista de Canaã. O importante é que eles cessem de ter qualquer relação com as outras duas figuras do judaís­ mo, aquelas que remetem à revolta servil. Portanto, continua a ser clara a antítese entre o patriarca do antissemitismo e o teórico do radicalismo aristocrático. No entanto, tons decididamente inqui­ etantes começam a ecoar a partir da configuração final dos judeus como um povo de sacerdotes empenhado num obscuro mas tanto mais pérfido desígnio de poder e capaz até de servir-se dos cristãos como massa de manobra para a judaização do mundo. Então, não é de admirar que, escrevendo no final do Século XIX, Nordau, um intérprete de origem judia e figura de primeiro plano do incipiente movimento sionista, sinta cheiro de queimado em tais formula­ ções : onde chegará uma teoria que vê no presumido triunfo ideológico e político de "Israel" ou do "povo judeu" o resultado de um "plano", de uma operação "planejada, intencional e lucidamente executada", de um "ato de vingança cons­ ciente e intencional" judeu?1819

5. Da revolução como complô ao judeu como vírus revolucionário Nordau não está errado em sentir cheiro de queimado . Não há dúvida que a visão denunciada por ele em Nietzsche acabou sendo herdada e absolutizada pelo nazismo. Certamente, com ajustamentos e vulgarizações grotescas: o Je­ sus "idiota" manipulado por Paulo no âmbito de uma mesma comunidade se tomou o Jesus ariano ou, pelo menos, semiariano, manipulado por um persona­ gem do qual, mais do que as características sacerdotais, é evidenciado o san­ gue judeu. No entanto, o crime que Hitler reprova em Paulo dá o que pensar. Ele utiliza a pregação de Jesus, como veremos no parágrafo seguinte, para 1819

Nordau, s.d. vol. II, pp. 3 14 e 320. 1980, p. 412 (29-30 de novembro de 1 944).

182º Hitler,

organizar uma infame revolta servil contra os melhores, contra aqueles que legitimamente exercem o domínio. Portanto, "a religião fabricada por Paulo de Tarso, que desde então foi chamada de cristianismo, é identificada com o co­ munismo". Ao ouvir isto, Bormann, o secretário, acrescenta, com consenti­ mento do Führer: "Por toda parte, os judeus sublevaram a plebe contra a classe dirigente. Por toda parte suscitaram o descontentamento contra o poder cons­ tituído. Porque espalhando exatamente essa semente eles preparam a futura colheita" . 1820 São evidentes não só as assonâncias, mas também as consonâncias com o discurso do último Nietzsche. Constatar isto significa dar de novo crédito à abordagem, já rejeitada por mim, que se interroga a respeito da relação imedi­ ata entre o filósofo e o III Reich, instituindo uma férrea linha de continuidade de um ao outro? Não se trata disto. E não só pelo fato de que Nietzsche não se refere ao sangue e, como vimos, desde a figura funesta do sacerdote traça uma história que, apesar de tudo, transcende o âmbito do judaísmo. Há uma razão mais profunda: os acontecimentos aqui descritos, e que agora se trata de ana­ lisar mais, não são todos internos à Alemanha. Convém partir de uma observação de Engels em 1 85 1 : "Muito tempo se passou desde aquela superstição que reconduzia a revolução à malvadeza de um punhado de agitadores". 1821 Ao formular esta tese, Engels se engana ou se ilude. A visão por ele considerada morta e sepultada continua na realidade a gozar de uma vitalidade notável e até potenciada. Nesses anos se difunde sem­ pre mais a explicação, ou antes o diagnóstico, da revolução em perspectiva psicopatológica, com a consequente imputação do intelectual abstrato, visioná­ rio e neurótico como real protagonista das perturbações que se alastram no Ocidente . É ele, segundo Burke, o veículo da desgraçada "intoxicação" (intoxication) ideológica que se alastra do outro lado do Mancha. 1822 Na França, uma revolução sucede a outra. Tocqueville identifica o veículo da "doença re­ volucionária'', da "doença permanente" do "vírus de uma espécie nova e des­ conhecida" que não cessa de se alastrar, exatamente num punhado de agitado­ res: "estamos sempre na presença dos mesmos homens, embora as circunstân­ cias sejam diferentes", de uma espécie de "raça nova" (race nouvelle). 1 823 O termo usado aqui é significativo. Nesse mesmo tempo, Schopenhauer formula a tese segundo a qual o "caráter inato" não só tem uma "originalidade e imutabilidade" sua, mas é também hereditário, ao ponto de que seria fácil 1821 Marx-Engels,

1 955, vol. VIII, p. 5. 1 826, vol. VII, p. 135. 1823 Tocqueville, 1 95 1 , vol. II, 2, p. 348-9 e vol. XIII, 2, p. 337. 1822 Burke,

reconstruir a "árvore genealógica" dos criminosos e dos rebeldes. 1824 Dir-se-ia que o liberal francês é tentado a reconstruir a árvore genealógica dos sujeitos que são veículo da doença revolucionária fatal: se é possível reconstruí-la para os idiotas, os imbecis, os fracassados de todo tipo, por que não deveria ser também para estes loucos e doentes que são os intelectuais subversivos? Po­ demos ler a explicação ou, melhor, o diagnóstico de Tocqueville, em Constant: "frios no seu delírio'', os intelectuais subversivos, estes "jongleurs de sédition", não se cansam de minar não mais uma determinada sociedade, mas "as própri­ as bases da ordem social". São "seres de uma espécie desconhecida" (êtres d 'une espece inconnue), constituem uma "raça nova" (race nouvel/e), uma "raça detestável" (détestable race).1825 Através de um crescendo, a explica­ ção de tipo psicopatológico tende a ultrapassar o plano antropológico e racial (é sintomática a passagem da categoria de espece para a de race). Pode-se dizer que, a partir de 1789, a cultura ocidental se empenha numa busca afanosa: desde que a revolução, e sobretudo o ciclo revolucionário, é assi­ milada a uma doença, é preciso descobrir o veículo de difusão (social, antropoló­ gico, étnico) dessa doença, o agente patogênico que ataca um organismo social sadio e impede que ele funcione de modo correto e regular. No que diz respeito aos sinais étnicos desse veículo se compreende que, a partir já de 1789, os primei­ ros a serem suspeitos ou acusados são os judeus: sua religião, sua cultura, histó­ ria, "nacionalidade", sua coesão interna e ramificação internacional, tudo isso tende a torná-los sinônimo de subversão. No entanto, é interessante notar que não faltam tentativas de etnicização do vírus revolucionário que se move em direção diferente. Depois de ter gritado contra "aqueles neuróticos, agitados, semialienados que vivem no limite da loucura", ou seja, contra os intelectuais deslocados e "prontos para todas as revoluções, das quais são o começo e o fim"; 1 826 Le Bon especifica que eles se aninham em particular "nos povos lati­ nos": é aqui, sobretudo, que vemos emergir "os jacobinos de todas as épocas". 1827 Algumas décadas mais tarde, em 1 925, retomando um tema claramente presente já há algum tempo na ideologia estadunidense, um documento do exército dos Estados Unidos vê a ruinosa "psicologia das multidões" encarnada nos negros: por causa também da "reduzida capacidade do crânio", eles constituem um peri­ goso foco de inquietação, de turbulência, de agitação. 1 828 1824 Schopenhauer, 1 976-82 b, pp. 767 e 666. 182 5 Guillemin, 1958, pp. 13-4, 84 e 194; Constant,

1826 Le Bon,

1980, pp. 1 52 e 126. 1827 Le Bon, 1980, p. 79. 1828 Daniels, 1 997, pp\\. 127-8.

1988, p. 44.

Através de repetidas tentativas e oscilações, a raça subversiva por exce­ lência é definitivamente identificada nos judeus. Pois bem, mesmo movendo-se fundamentalmente no terreno da análise histórica e social, Nietzsche desempe­ nha um papel essencial no processo de identificação do judeu como o homo ideologicus por excelência. Não é tão importante o fato de que a subversão espalhada seja descrita por ele como um processo de "intoxicação" (lntoxikation), "envenenamento" e até "envenenamento do sangue" (GM, 1, 9). São metáforas que já conhecemos pela tradicional crítica liberal e conser­ vadora da revolução e da intelectualidade revolucionária. Vimos a primeira em Burke; a segunda, com as suas variações, não é muito diferente da metáfora cara a Tocqueville, do vírus, do agente patogênico que ataca um organismo sadio e compromete a sua saúde. Só que agora o veículo deste processo de intoxicação e envenenamento, em consequência do qual "tudo se judaíza ou se cristianiza ou se plebeíza a olhos vistos", é identificado de modo unívoco nos judeus (GM, 1, 9). Segundo a análise da Gaia ciência, eles são ''.uma espécie de organiza­ ção histórico-mundial para a criação de comediantes" que encenam a indigna­ ção moral a fim de promover a subversão (supra, cap. 1 8 § 4). Os escritos dos últimos anos e meses reforçam a dose. Aos judeus, em primeiro lugar, remete "aquela espécie de homens parasitários, os sacerdotes, que através da moral elevou-se fraudulentamente à definidora dos valores para toda a humanidade que soube ver na moral cristã um meio de alcançar a potência " (EH, Porque eu sou um destino, 7). O sacerdote-ideólogo, o homo ideologicus estimula artificiosamente a subversão a fim de estender o seu domínio: a ralé em luta contra os aristocratas se revela a massa de manobra de uma figura sinistra com uma base étnica precisa. Embora rejeitando o antissemitismo biológico, Nietzsche é um momento essencial do processo de etnicização do vírus ideoló­ gico, processo que conhece depois a sua realização trágica no III Reich. Contudo, ainda uma vez, trata-se de um processo ideológico que vai muito além da Alemanha. Pela figura do instrumentum vocale vimos que de uma racialização transversal que, além dos povos coloniais, tem em mente os mise­ ráveis e mal sucedidos de todos os países, se passa para uma racialização horizontal, que identifica a casta ou raça servil na própria Europa oriental; de modo análogo, pela figura do homo ideologicus, de uma racialização transver­ sal, que tem em mente uma "espécie desconhecida" e uma "raça nova" e "detestável" que não coincide com uma nação ou um grupo étnico particular, se passa para uma racialização horizontal que identifica univocamente o judeu como veículo da intoxicação ideológica e como vírus ou bacilo da "doença revolucionária" . Em ambos os casos, apesar dos fortes elementos de

descontinuidade que sempre caracterizaram um processo ideológico na passa­ gem de um tempo histórico para outro, a influência, embora no mais das vezes indireta, de Nietzsche é inegável.

6. Hitler e Rosenberg intérpretes de Nietzsche e do nietzscheanismo A essa altura pode ser útil perguntar de modo mais geral sobre o papel nietscheano no nazismo. Poder-se-ia procurar aforismos ou pedaços de aforismos citados à guisa de provérbios, por exemplo por Hitler que, em novembro de 1 942, num momento em que está convencido de ter ocupado Stalingrado ape­ sar das dificuldades iniciais, ao se referir ao "dito" de um "grande filósofo", parafraseia Nietzsche: "O que não nos mata nos torna mais fortes" (XII, 506). 1829 De modo análogo, como justificação do fato de que a brutalidade não deve deixar-se atrapalhar pelas "frases grandiloquentes da civilização", agora tornadas "vãs e vazias", Goebbels sentencia: "O que deve cair cai, e a nós resta apenas dar um empurrão". 1830 Este último trecho é claramente uma cita­ ção de Assim falou Zaratustra (supra, cap. 1 9 § 3), da qual o chefe nazista parece gostar, 1831 pois ele se glorifica de ler Nietzsche "até tarde da noite" . 1832 Se também esse tipo de utilização não está desprovido de interesse no plano político, convém concentrar-se no problema da presença de Nietzsche no nazismo analisando a visão do mundo deste movimento e fazendo referência em particular a dois dos seus expoentes particularmente significativos: Rosenberg e Hitler, ou seja, o ideólogo ou aspirante a ideólogo e o Führer em pessoa do III Reich. Como podemos sintetizar a sua Weltanschauung? Não há dúvida que o ponto de partida é a denúncia do ciclo revolucionário que grassa no Ocidente e que ameaça a civilização enquanto tal. Quando co­ meçou a alastrar-se o "niilismo", a "corrente política proletário-niilista", desintegradora de toda hierarquia e de toda civilização? 1833 Convém logo notar que não só a visão de conjunto, mas também alguns detalhes significativos ecoam e vulgarizam Nietzsche. Sintomas de decadência já se manifestaram em terra grega. Se "o grande Teógnis lamenta o fato de que o dinheiro mistura o sangue do nobre com o do ignóbil", 1834 acentuando assim a aristocracia da 1 829 ln Ruge-Schumann, 1 830

1 977, p. 12 9.

Goebbels, 1991 b, vol. II, pp. 62-3 . 1 83 1 Reuth, 199 1 , pp. 34-5 e 65. 1 832 Goebbels, 1991 a, p. 9 1 1 . 1833 Rosenberg, 193 7 a, pp. 7 7 e 7 1 . 1834 Rosenberg, 1 937 a, p. 5 1 .

natureza e o elemento mítico da vida, o quadro muda radicalmente com o "racionalismo helenista tardio"; 1835 a essa altura "Sócrates pôde ensinar a lou­ cura segundo a qual a virtude seria ensinável e ensinável a todos os homens". 1836 Com a crise do helenismo autêntico, "os escravos que se reunem em cada canto do mundo invocam a 'liberdade"'.1837 Mas a catástrofe propriamente dita data do cristianismo ou, mais exata­ mente, do cristianismo moldado por Paulo de Tarso. Se também às vezes se fala de Jesus, como de um ariano ou semiariano (cf. supra, cap. 24, § 7), hostil ao "egoísmo e ao materialismo judeus"1838 - com a retomada de temas caros a Wagner -, é também certo que, a propósito do cristianismo, fazemos uma per­ gunta retórica que nos reconduz a Nietzsche: "Que necessidade temos de uma fábula inventada pelos judeus? Que interesse poderia ter para nós a história de alguns judeus piolhentos e epilépticos?"1839 De qualquer modo, com Paulo de Tarso a doutrina de Jesus se torna "o grito de aliança dos escravos de todo tipo contra a élite, contra os senhores, contra os dominadores".1840 Eis que a nova religião se empenha e consegue "mobilizar a ralé" e "insurgir os estratos infe­ riores do povo", uma "enorme massa de gente sem raízes".1841 São estes que veem em Jesus o anelado "chefe dos escravos e libertador"; daqui Paulo parte para iniciar, com "indomável fanatismo", uma "revolução internacional contra o Império Romano". 1842 É pavorosa a decadência que se verifica não só no plano político, mas também no plano mais propriamente cultural; é o próprio sentido da vida que agora passa por um processo de esgotamento e degeneração. Não há dúvida, a "filosofia" da antiguidade clássica resulta incomparavelmente superior com respeito à "mesquinhez" do cristianismo : "É verdade que os atenienses, quando entravam no Parthenon para contemplar a imagem de Zeus, deviam ter uma impressão bem diferente daquela dos cristãos que devem resignar-se a con­ templar o rosto contorcido de um crucifixo". 1843

1835 Rosenberg,

1 937 a, p. 37. 1937 a, p. 78. 1837 Rosenberg, 193 7 a, p. 5 1 . 1 838 Hitler, 1980, pp. 150 e 412-13 ( 1 3 de dezembro de 194 1 e 29-30 de novembro de 1944). 1839 Hitler, 1980, p. 338 ( 1 1 de agosto de 1942). 184º Hitler, 1980, p. 413 (29-30 de novembro de 1944). 1841 Hitler, 1 980, pp. 98 e 150 (2 1 de outubro e 13 de dezembro de 1 94 1). 1842 Rosenberg, 1937 a, pp. 74-5. 1843 Hitler, 1 980, p. 98 e 288 (2 1 de outubro de 1 94 1 e 20-1 de fevereiro de 1942). 1836 Rosenberg,

Inicia-se assim um ciclo ruinoso que, se em Nietzsche desembocava na Revolução Francesa e no movimento socialista do seu tempo, agora conhece um ulterior prolongamento. Em consequência da agitação cristã ou judeu-cris­ tã, "Roma foi bolchevizada" ou, pelo menos, conheceu o triunfo de "um pré­ bolchevismo". Férrea é a linha de continuidade que do "cristianismo" conduz ao "comunismo". 1844 Não há dúvida: "O cristianismo puro [ . . . ] não é senão bolchevismo integral, sob ouropéis metafisicos"; o niilismo chega assim a seu auge e prenuncia "o aniquilamento da humanidade".1845 Enquanto expressão de niilismo, o cristianismo é sinônimo de doença e de degeneração : "é uma invenção de cérebros doentes". Será preciso, cedo ou tarde, acabar com ela".1846 Felizmente, já existem indícios promissores da con­ clusão próxima do ciclo ruinoso. Já "assistimos aos últimos sobressaltos do cristianismo"; sim "a nossa época verá indubitavelmente o fim da doença cris­ tã".1847 Mas não se trata de substituir pelo ateísmo dos livres pensadores ou dos marxistas. Não se pode ser "apenas negativos'', à maneira dos "russos", na mais que necessária "luta contra a igreja". O cristianismo é particularmente funesto exatamente pelo fato de estimular objetivamente o ateísmo: "não se poderia imaginar nada mais insensato nem um modo mais indecente para tor­ nar ridícula a ideia da divindade". 1 848 Debelar de uma vez para sempre a subversão significa também saber recuperar o mundo transtornado pela revolta servil religiosamente inspirada e pela decadência moderna, mesmo se não fosse preciso esconder as dificulda­ des de tal empresa: "O cristianismo agiu sistematicamente visando eliminar a cultura antiga [ . ] . Ignoramos talvez quase tudo dos mais preciosos tesouros espirituais da humanidade. Quem pode saber o que havia lá dentro?" É neces­ sário também reescrever a história, opondo as falsificações dos vencedores ou, melhor, dos vencedores momentâneos: "Seria melhor dizer Constantino o Trai­ dor e Juliano o Fiel em vez de Constantino o Grande e Juliano o Apóstata". 1849 Sendo "uma religião perpassada pelo fervor servil" (Knechtseligkeit)1850 e pelo desprezo, ou antes pelo furor niilista com relação à carne e ao mundo, o ..

1844 Hitler,

1 980, pp. 98, 1 50 e 4 1 3 (2 1 de outubro e 1 3 de dezembro de 1941 e 29-30 de novembro de 1 944). 1845 Hitler, 1980, p. 152 (14 de dezembro de 194 1). 1846 Hitler, 1 980, pp. 1 50 e 338 (13 de dezembro de 1 94 1 e 1 1 de agosto de 1 942). 1847 Hitler, 1 980, pp. 297 e 303 (26 e 27 de fevereiro de 1 942). 1848 Hitler, 1 980, pp. 286 e 1 50 (20-2 1 de fevereiro de 1 942 e 13 de dezembro de 1 94 1). 1 849 Hitler, 1 980, pp. 1 07 e 236 (25 de outubro de 1 94 1 e 27 dejaneiro de 1 942). 1850 Rosenberg, 1 937 a, p. 76.

cristianismo é bem pior que as outras grandes religiões. É nítida a superioridade do islã: "A época árabe [ ...] foi a época de ouro da Espanha, a mais civil. Depois vem a época das perseguições sempre recomeçadas".1851 Caracterizada por um esplêndido florescimento cultural e por um "grandioso espírito cavalheiresco", a civilização islâmica na Espanha é também "algo de infinitamente aristocrático" (vornehm). Desgraçadamente, a vitória de Carlos Martelo barrou a estrada para a penetração na Europa de uma religião centrada na "recompensa do heroísmo", consagrando a vitória do cristianismo e do "mundo judeu" . 1852 Somos levados a pensar na nítida tomada de posição do Anticristo: não pode "haver escolha entre islã e cristianismo, como entre um árabe e um judeu" (AC, 60). Hitler faz uma avaliação análoga a propósito do xintoísmo: "a religião dos japoneses é, antes de tudo, um culto dos heróis". Os cristãos, ao contrário, honram o santo, "deitado num leito de espinhos em vez de responder ao sorriso de moças bonitas" Uma conclusão se impõe: "No cristianismo há algo de mal­ são".1853 Como já em Nietzsche, também no movimento político que pretende colocar-se na sua esteira a reabilitação da carne e do mundo resulta estreita­ mente entrelaçada com a reabilitação do polemos, que constitui a essência da vida. Com transparente referência a Heráclito, rebatizado, porém, para a oca­ sião, como "um grande filósofo militar", Hitler sublinha que "a luta e, com isso, o conflito bélico (Krieg) é o pai de todas as coisas". 1 854 A presença de Nietzsche é inegável nessa visão do mundo. Tão incondicionada é a veneração em relação a ela que Hitler não hesita em fazer eco a temas que remontam mesmo ao período "iluminista" do filósofo. Não se trata só da condenação da Inquisição e da caça às bruxas : ''Nos arredores de Würzburg houve aldeias nas quais literalmente todas as mulheres foram quei­ madas". 1 855 São também retomados temas que fazem aparecer numa luz deci­ didamente negativa Lutero e a Reforma: ''No fundo, deveremos ser gratos aos jesuítas [ . . . ] . Em oposição aos esforços de Lutero de reconduzir ao misticismo um alto clero que tinha adquirido hábitos profanos, os jesuítas restituíram ao mundo a alegria dos sentidos". 1856

1 85 1 Hitler, 1980, p. 323 (1 de agosto de 1942). 1 852 Hitler, 1980, p. 370 (29 de agosto de 1942). 1 853 Hitler, 1989, p. 2 1 8 (9 de abril de 1 942). 1 854 Hitler, 1 989, p. 491 (AdolfHitlers Geheimrede vor dem "Militarischen Führernachwuchs " vom 30. Mai 1942). 1855 Hitler, 1980, p. 262 (3-4 de fevereiro de 1942). 1856 Hitler, 1 980, p. 42 (2 1-2 de julho de 1 94 1).

É um tema reforçado depois: Penso que com os papas do Renascimento teria podido me entender [ ... ]. Um papa, mesmo sendo criminoso, que protege grandes artistas e difunde a beleza em tomo dele, me é sempre mais simpático do que o ministro protes­ tante que bebe na fonte envenenada. 1 857

A máquina de propagal}da do III Reich está empenhada principalmente em celebrar a superioridade do homem nórdico, mas Hitler não hesita em retomar o tema nietzscheano que vê no Norte desfavorecido pelo clima e pela natureza a pátria eletiva do fanatismo e da antinatureza próprios do cristianismo: O fanatismo é uma questão de clima -porque também o protestantismo queimou as suas bruxas na fogueira. Na Itália, nada disto. Os meridionais tratam com mais leveza as coisas da fé. Até os franceses têm um comportamento desenvolto na igreja. Entre nós, porém, basta não ajoelhar-se para ser notado.1858

E ainda: Para nós o problema é estar ligados a uma religião que nega todas as alegrias dos sentidos. A propósito disso, a hipocrisia dos protestantes é pior que a dos católicos. Cada uma das duas religiões reage segundo a natureza pró­ pria. O protestantismo tem o calor do iceberg. 1859

A presença de Nietzsche é confirmada também pelos detalhes . Soa como um eco do Anticristo (infra, cap . 28, § 4) a representação de Pilatos como "um romano totalmente superior aos judeus que o cercam, de tal modo que parece um rochedo no meio daquela estrumeira". 1 860 Em A vontade de po­ tência Hitler pôde ler a propósito do paraíso cristão: "Já se observou que no céu não há homens interessantes? . . . Que isto sirva de aviso às mulherzinhas sobre onde podem encontrar a sua melhor salvação" (WzM, § 87 1 = XIII, 723). Nas suas conversas à mesa, o Führer ironiza por sua vez sobre o fato de que na morada ultraterrena anelada pelos cristãos "não haverá mais que aleluia, agitar de ramos, crianças de peito e velhos encanecidos".1 861 Em A vontade de potência (§ 796 = XII, 1 1 8 -9), Hitler pôde ler também a celebração da "obra de arte" como "corpo, organização'', como é o caso, além do "corpo prussiano dos oficiais", também da "ordem dos jesuítas". E 1857 Hitler, 1 858 Hitler, 1859 Hitler, 186º Hitler, '861 Hitler,

1980, p. 152 (14 de dezembro de 194 1). 1980, p. 42 (2 1-2 de julho de 1941). 1980, p. 149 (1-2 de dezembro de 1941). 1 989, p. 422 (5 dejulho de 1942). 1980, p. 150 (13 de dezembro de 1941).

esse tema volta nas suas conversas à mesa: "Foi com Himmler que a SS se tornou essa milícia extraordinária, devota a uma ideia, fiel ate à morte. Em Himmler vejo o nosso Inácio de Loyola". 1 862 Sempre na esteira de Nietzsche, ou na tentativa de fazer eco ao pensa­ mento dele, também Hitler evidencia o papel catastrófico do mito da natureza boa nas agitações revolucionárias. Pense-se na Rússia: "Esta vontade de voltar ao estado natural é evidente nas suas revoluções". E tais revoluções continuam a ser sinônimo de "niilismo". 1 863 São finalmente retomadas as acusações lançadas a seu tempo também por Nietzsche aos comunardos, e o comportamento atribuído a estes últimos é inserido por Hitler num ciclo revolucionário-niilista milenar que é preciso debe­ lar de uma vez para sempre, se se quer salvar a civilização, a cultura e a arte: "Estou certo de que Nero nunca incendiou Roma. Foram os cristão-bolcheviques, do mesmo modo que a Comuna incendiou Paris em 1 8 7 1 e que os comunistas incendiaram o Reichstag em 1 93 3 ". 1 864

7. Übermensch, Untermensch e desconstrnção nominalista do con­

ceito de humanidade Para pôr fim a essa subversão igualitária que se alastra, é necessário reforçar "o pensamento de fundo aristocrático da natureza", que exige a "vitó­ ria do melhor e mais forte" e a "sujeição do pior e mais fraco". 1865 Topamos aqui com o tema recorrente do socialdarwinismo, que vai bem além de Nietzsche ou da Alemanha. Ao filósofo em particular parece, porém, remeter o temor de que, aproveitando-se de determinadas circunstâncias, exatamente os piores consigam levar vantagem. Exigindo o sacrifício dos mais generosos, daqueles que desdenham a .covardia e a fuga, a guerra pode redundar numa espécie de seleção ao contrário. Então é preciso intervir prontamente: "Se, para contraba­ lançar tais perdas, não extermino radicalmente a gentalha, um dia a situação poderia ficar grave". 1866 Não se trata apenas de atingir inexoravelmente aqueles que se subtraem ao esforço bélico. A seleção ao contrário é bloqueada também agindo-se de 1862 Hitler,

1 980, p. 169 (3-4 dejaneiro de 1942). Hitler, 1 980, p. 39 (5 dejulho de 1941). 1864 Hitler, 1 980, p. 107 (25 de outubro de 194 1 ) 1865 Hitler, 1939b, p. 42 1 . 1866 Hitler, 1 980, p. 349 (20 de agosto de 1942). 1863

.

maneira que "possam casar-se apenas os seres fisicamente sãos e não defeitu­ osos racialmente" . 1867 As medidas eugênicas, que, na esteira de Galton, Nietzsche recomenda, movendo-se em consonância com toda uma série de outros autores, são inseridas no âmbito de um programa eugênico sintetizado assim por Mein Kampf um Estado atento às leis da evolução, que não se deixa estorvar por uma falsa compaixão deve cuidar para que possa gerar filhos só quem é sadio [ . . . ]. Ele deve colo­ car os mais modernos instrumentos médicos a senriço desse conhecimento. Tem a obrigação de declarar incapaz de procriar quem é visivelmente doente e hereditariamente tarado, realizando esta medida também na prática. 1 868

Nesse caso, mais do que nunca resulta sem sentido o apelo à compaixão. Por outro lado, tal sentimento tão frequentemente invocado comete o erro de fazer referência a um "gênero" humano construído mediante a equalização artificiosa e violenta de indivíduos e, sobretudo, de povos reciprocamente sepa­ rados por um abismo. Junto com o ciclo revolucionário, o principal alvo da polêmica ideológica nazista é constituído pela ideia de uma humanidade como sujeito de uma história universal animada por uma tensão para o melhor, mais ainda se esse progresso devesse ser entendido no sentido de aumento de con­ forto e de bens materiais. O desprezo que Rosenberg reserva ao "historicismo materialista" (materialistischer Historizismus)1869 é ilimitado. Rosenberg não se cansa de ironizar o "sentido da história universal'', 1870 o "dogma de um suposto ' desenvolvimento geral da humanidade"'. 1871 É mítico o sujeito desse processo imaginário, com a "humanidade" que tomou o lugar do bom Deus da tradição judeu-cristã; 1872 sobretudo uma ruinosa carga igualitária caracteriza uma visão que pretende afogar o valor absolutamente peculiar dos indivíduos e das raças "na corrente de um presumido progresso". 1873 É clara a passagem da racialização transversal para uma racialização predominantemente horizon­ tal, com uma diferença sensível a respeito do teórico do radicalismo aristocrá­ tico, mas é também clara a capacidade do nazismo de tirar proveito da desconstrução nominalista do conceito de homem. 1 867 Hitler, 1989, p. 240 (24 de abril de 1942). 1 868 Hitler, 1939 b, pp. 446-7; sobre isto cf. Lifton,

1 869 Rosenberg, 1 870 Rosenberg,

1937 a, p. 237. 1937 a, p. 675. 1871 Rosenberg, 1 937 a, p. 40. 1 872 Rosenberg, 1 937 a, p. 1 27. 1873 Rosenberg, 1 937 a, p. 690.

1 988, p. 29 seg.

Nietzsche acaba desempenhando um papel importante também na elabora­ ção de algumas categorias centrais do discurso ideológico nazista. Isto é imedia­ tamente evidente no que diz respeito à Herren-Rasse ou a herrschaftliche Rasse, explicitamente teorizada pelo filósofo (XII, 426 e GM, 1, 5; XIII, 1 8) e imediata­ mente alvejada pelos contemporâneos preocupados com as graves implicações políticas dessa oposição entre "raça dos senhores" e "raça dos escravos".1874 Bem mais complexa é a história de outra categoria central, e particularmente funesta, do discurso ideológico nazista. Faço alusão à categoria de Untermensch, que mui dificilmente pode ser separada da categoria de Übermensch, pois são os dois termos constitutivos de uma única dicotomia conceituai. Mas esse é um exemplo particularmente ilustrativo para compreender que a alternativa para a hermenêutica da inocência não é o achatamento de Nietzsche sobre o III Reich. Encontramo-nos diante de uma vicissitude linguístico-ideológica surpreendente e ao mesmo tempo bastante instrutiva. Rosenberg exprime a sua admiração pelo estadunidense Lothrop Stoddard, que tem o mérito de ter sido o primeiro a cunhar a categoria de Untermensch (Under Man no original) : o termo sobressai como subtítulo de um livro que apareceu nos Estados Unidos em 1 922 e foi traduzido na Alemanha três anos depois.1875 Mas deve-se acrescentar que o autor estadunidense aqui citado e celebrado teve ocasião de estudar um ano e meio naAlemanha.1876 Tanto Stoddard como o tradutor alemão mostram que imitaram Nietzsche. Mostra-o a polêmica contra o "feitiço" ou o "ídolo" (GOtze) da "demo­ cracia", a evocação de uma "nova aristocracia" ou de uma "nova nobreza" (Neu­ Adel), a admiração por Teógnis e pela batalha por ele travada contra os matrimôni­ os mistos entre nobreza e plebe.1877 Enfim, a homenagem prestada a Galton e à eugenia, graças à qual agora é possível bloquear a reprodução dos piores: o autor estadunidense se preocupa, porém, em distinguir a "esterilização" recomendada por ele (então já tinha sido inventada a vasectomia) da bem mais brutal "castra­ ção". No entanto, a fim de "tornar impossível os cataclismos sociais", é levada em consideração também uma medida mais radical, ou seja, a "eliminação" dos doen­ tes ou degenerados irrecuperáveis. 1878 Assim como por Nietzsche, também por Stoddard a nova ciência é chamada a contribuir fortemente para a defesa da civili­ zação, bloqueando a reprodução do Under Man ou do Untermensch e favorecen­ do, ao contrário, o desenvolvimento de uma "super-raça" (super-race) ou de uma 1874 Nordau, s.d. vol. Il, pp. 3 1 1 e 3 13; Stein, 1893, pp. 73 e 77. 1 875 Rosenberg, 1937 a, p. 2 14; Stoddard, 1984; Stoddard, 1925. 1 876 Heise, 1925, p. 4. 1 877 Stoddard, 1 984, pp. 265, 237 seg. e 36-7; Stoddard, 1925, pp. 204, 181 seg. e 33. 1 878 Stoddard, 1984, pp. 42, 249 e nota e 253; Stoddard, 1 925, pp. 37, 1 90 nota e 193 .

"super-espécie" ( Überart) - a tradução alemã retorna um termo utilizado já por Zaratustra (supra, cap. 20 § 1) - ou também de "super-homem" (superman ou Übermensch) teorizado por Nietzsche. Sim, é "esplêndida" a figura cara ao filóso­ fo alemão - aqui explicitamente citado -, mas ela não tem razão em apoiar-se numa amplíssima e indistinta base "servil". 1879 Mais do que a urna racialização transversal, Lothrop Stod.dard está propenso por urna racialização horizontal, que tem em mente, no plano interno, '<>S negros e, no plano internacional, os povos colo­ niais e os bárbaros russo-bolcheviques. São claríssimas, portanto, as diferenças com respeito a Nietzsche que, com sua desconstrução norninalística do conceito de humanidade e com a sua teorização do "super-homem", de algum modo inspirou a teorização também do Untermensch . Sobre a história deste último termo pode ser interessante notar de que modo ele aparece já no final do Século XIX. Nordau polemiza assim contra Nietzsche: pela sua pretensão de reduzir a massa dos homens a simples instrumentos e pela carga de brutalidade que exprime, o Üb ermensch se revela na realidade um Untermensch .1880 O autor desta crítica também é conhecido de Lothrop Stoddard, 1881 que confere, porém, ao termo Untermensch um significado sensivelmente diferente . É a confirmação da complexidade da vicissitude linguístico-ideológica que estamos examinando e da insustentabilidade da teoria que pretende explicar a ideologia nazista a partir exclusivamente de um diabólico Sonderweg alemão. Quem elabora urna categoria chave do dis­ curso ideológico nazista é um autor estadunidense que dialoga com Nietzsche, mas que, ao mesmo tempo, pode gabar-se do solene elogio de dois presidentes dos Estados Unidos, a saber, Harding e Hoover. 1882 Mas essa vicissitude é também a confirmação da falta de sentido histórico da costumeira hermenêutica da inocência. Voltemos a Hitler. As próprias catego­ rias utilizadas por ele são significativas . Se o cristianismo celebra corno "santos" aqueles que negam a "vida", 1 883 agora se trata de restabelecer a ordem aristo­ crática natural, pondo fim a essa funesta inversão dos valores. Talvez seja exage­ ro afirmar - corno faz um recente estudo sobre o III Reich - que Hitler teria aproveitado sua permanência na prisão para fazer urna "leitura sistemática", en­ tre outros autores, também de Nietzsche. 1884 No entanto, há de se notar que outro estudo recente, e bastante autorizado, coloca o filósofo no primeiro lugar 1 879 Stoddard, 1984, p. 262; Stoddard, 1880 Nordau, s.d. vol. II, p. 328. 188 1 Stoddard, 1925, p. 85 nota.

1925, p. 200.

1882 Cf. Losurdo, 1996, cap. IV, 6. 1 883 Hitler, p. 2 10 (20-2 1 de fevereiro de

1989,

1942).

entre as leituras do Führer. 1 885 Aqui, porém, com base na metodologia já esclarecida, mais do que sobre a leitura dirigida e sobre a relação que assim se institui entre duas personalidades singulares, procurei me apoiar sobretudo sobre a história político-social de certos temas ideológicos e sobre o entrelaçamento entre continuidade e descontinuidade que a caracteriza.

8. "Antigermanismo " e "anti-antissemitismo " Vimos Chamberlain considerar os eslavos como membros da raça germânica superior; mas isto não impede que ele depois se tome o fiador de um partido que, chegado ao poder, desencadeia uma guerra de extermínio contra os eslavos Untermenschen da Europa oriental. Depois de ter incluído os ju­ deus entre as "raças melhores'', Ploetz não tem dificuldade especial em aderir ao III Reich, ou seja, ao regime protagonista da "solução final". 1 886 Mesmo tendo zombado da ideia de "pátria" e tendo pronunciado uma espécie de "panegírico" dos judeus, Gobineau se toma um ponto de referência para um movimento e um regime que se caracterizam por seu chauvinismo furibundo e pela infümia da "solução final". Se fizermos valer a explicação da manipulação ou do equívoco pelo uso nazista de Nietzsche, não se vê por que tal explicação não deva valer em relação também aos autores precedentemente citados. Com efeito, não faltam estudiosos segundo os quais, "ainda mais do que no caso de Nietzsche, a história do destino de Gobineau é a história dos seus equívocos". 1 887 Mas soa objetivamente como a reductio ad absurdum da hermenêutica da inocência a aplicação da categoria de "equívoco" também para a história do destino do teórico declarado da desigualdade das raças e da absoluta incapaci­ dade de "civilizar-se" dos negros e das outras "tribos humanas" . 1 888 Convém então voltar, para um balanço abrangente, às categorias de "antigermanismo" e "anti-antissemitismo", das quais as pessoas geralmente se servem para proteger Nietzsche de qualquer interpretação em perspectiva po­ lítica reacionária. Não há dúvida de que podemos ler nele uma denúncia do papel nefasto dos alemães a partir de Armínio e da crise e do colapso do Impé­ rio Romano. É por isso que, entre os séculos XIX e XX, o filósofo conhece uma 1884 Weill mann, 1995, p. 43. 1 885 Kershaw, 1999, p. 360. 1886 Poliakov, 1987, pp. 335-6. 1887 See, 1994, p. 290. 1 888 Gobineau, 1997, p. 103 (livro 1, cap. V).

utilização e até uma "anexação" por parte dos nacionalistas franceses compro­ metidos em difundir a revanche contra um inimigo intrinsecamente e irremedi­ avelmente bárbaro. É um clima ideológico que contagia também um intérprete da importância de Andler. Este, enquanto, por um lado, nos seus livros mais diretamente políticos e patrióticos, se empenha em perseguir os vestígios até mais remotos do pangermanismo, "presente desde sempre" num povo que "sem­ pre teve o gosto de glorificar enfaticamente a força alemã", por outro lado, na sua monografia sobre Nietzsche, lê em perspectiva sutilmente antialemã o amor do filósofo pelos "moralistas franceses" e pela "nação" francesa no seu con­ junto que, claramente ao contrário da nação alemã, não gosta de "mentir a si mesma". Não por acaso, esta monografia é dedicada por Andler a seus discí­ pulos "mortos na Grande Guerra pela pátria e pela humanidade". 1889 A excita­ ção chauvinista, que se alastra nas duas margens do Reno, pode ser bem compreendida à luz das paixões e dos ódios suscitados pela 1 Guerra Mundial. Mas os atuais seguidores inconscientes da inquietante mitologia de uma Ale­ manha eterna e eternamente nefasta (cuja condenação, seja qual for a pers­ pectiva a partir da qual ela for pronunciada, deveria de qualquer modo ser saudada com favor) fariam bem em ter presente a advertência de Simone Weil: "O preconceito racista, aliás inconfessado, leva assim a fechar os olhos para uma verdade bem clara: o que há dois mil anos se assemelhava à Alemanha hitleriana não são os alemães, mas os romanos".1890 Quando faz troça da "historiografia alemã", convencida de "que Roma era o despotismo e que os germanos trouxeram ao mundo o espírito da liberda­ de" (AC, 55), O Anticristo tem em mente um tema caro à tradição liberal. Pensemos em Montesquieu que, referindo-se a Tácito, julga poder indicar nos "bosques" habitados pelos germanos a origem do governo livre e representati­ vo. 1891 Em termos análogos se exprime já Hume, que celebra como "extrema­ mente livre" o "governo dos germanos", o qual se afirma sobre as "ruínas de Roma" e do seu "despotismo militar" (tampouco nesse caso falta a referência a Tácito). 1892 Quem quiser pode falar de "filogermanismo" em Montesquieu, Hume (e Tácito) e de "antigermanismo" em Nietzsche; mas ninguém ousaria partir disso para afirmar que os dois autores liberais e o historiador romano estariam mais perto da reação alemã e do nazismo do que o autor de O 1 889 Andler, 1958, vol. 1, pp. 8 e 107-08; cf. Digeon, 1959, pp. 455-7 (para o quadro de conjunto) e Losurdo, 1997 a, cap. XIII, 13 e XIV, 1 (para o antigermanismo de Andler). 1890 Weil, 1990, p. 2 10. 1 89 1 Montesquieu, 1949-5 1, p. 407 (livro XI, 6). 1 892 Hume, 1983, vol. 1, pp. 160-61 .

Anticristo ! Aliás, é possível encontrar vestígios de "antigermanismo" no pró­ prio Hitler. Em março de 1 945, quando se mostra com nitidez a derrota do III Reich, e o povo alemão não parece pronto a opor-se a ela com o heroísmo e o espírito de sacrificio que se impõe, eis que o Führer pronuncia a sua dura sen­ tença sobre a Alemanha enquanto tal : agora sobreviveriam "apenas seres infe­ riores'', incapazes de resistir ao "mais forte povo oriental"; é a este último e só a este último que "o futuro pertencia". 1893 Tendo caído em contradição com a sua essência guerreira, a Alemanha, agora ela mesma contagiada por uma visão filisteia da vida, não merecia nenhuma indulgência. Por outro lado, vimos Nietzsche denunciar nos termos mais ásperos a conversão dos germanos ao cristianismo, a uma religião totalmente estranha a eles e que lembra a odiada Judeia. Deveremos aqui falar de "germanismo"? É preciso não confundir problemas muito diferentes entre eles. Não há dúvida de que o colapso do Império Romano, sob crescente pressão dos germanos, re­ presenta para Nietzsche uma catástrofe para a civilização, mas uma catástrofe não menos grave é, no seu modo de ver, a sucessiva conversão dos germanos ao cristianismo, ou seja, a uma religião totalmente estranha a eles e intrinseca­ mente j udaica. Não estamos na p resença de uma osci lação entre "antigermanismo" e "filogermanismo". A derrocada do Império Romano e a difusão do cristianismo são duas etapas essenciais do longo ciclo da revolta servil; e em ambos os casos Nietzsche toma posição a favor dos "senhores". Esta ideologia está bem longe de estar em insuperável contradição com a ide­ ologia sucessivamente desenvolvida pelo nazismo: não se deve perder de vista o fato de que, bem antes da conversão dos germanos, para Nietzsche é já o colapso do Império Romano que representa a vitória da "Judeia". As etapas da revolta servil são outras tantas etapas do triunfo ideal do povo do ressentiment por excelência. Enfim, é de uma ingenuidade histórica desconcertante ler a sua polêmica furibunda contra Guilherme II como uma advertência antecipada quanto ao III Reich! Quando, ao indagar mais de perto, nos damos conta de que tal acusação rotula o imperador alemão como um "idiota negro", como uma espécie de negroide influenciado pela causa da emancipação dos escravos negros e dos povos co­ loniais, os lados são invertidos de modo radical. Somos ao contrário levados a pensar na linguagem e nos insultos aos quais, já antes da ascensão do nazismo ao poder, recorrem os círculos mais chauvinistas. A França, que se serve das tropas coloniais, é para Spengler um país "euroafricano". 1894 Tomando esse 1893

ln Hillgruber, 1994, p. 176.

1894 Spengler, 1937, p. 88.

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tema da chamada "revolução conservadora" e radicalizando-o depois, Hitler rotula a França como um "Estado mulato euroafricano", 1895 enquanto, por ou­ tro lado, denuncia o "aspecto negroide" da mulher de Roosevelt, culpada de manter relações com certos círculos afroamericanos. 1896 Também destituído de sentido histórico é invocar os planos delirantes do último Nietzsche, que visavam o fuzilamento de Guilherme II como paladino da emancipação dos escravos negros, em apoio à sentença que em Nurenberg con­ denou à forca os responsáveis pelo III Reich também pelo crime da reintrodução da escravidão, em primeiro lugar contra os Untermenschen da Europa oriental. É um insulto à lógica aduzir a requisitória do teórico do "radicalismo aristocrático" contra a Alemanha foco do contágio revolucionário em confirmação da requisitória de Nurenberg contra a Alemanha como expressão de um Antigo Regime teimo­ samente apegado à ideia da desigualdade natural dos homens e das raças e duro de morrer! Também nesse caso, somos antes levados a pensar na segunda gran­ de onda de reação antidemocrática, aquela que se verifica após a derrota da 1 Guerra Mundial. A polêmica contra a República de Weimar e contra a odiada democracia e a desprezada modernidade é desenvolvida com agitação de pala­ vras de ordem revolucionárias. Então se compreende a referência a um autor que se tinha comportado de modo análogo durante a sua luta contra o II Reich e os seus aspectos "piores"; mas enquanto identifica em Nietzsche o seu pai fun­ dador ou o seu "patriarca" (Erzvater), 1897 a revolução conservadora acaba de­ pois, através de um processo não sem contradições, sendo herdada ou absorvida pelo nazismo. A principal acusação formulada por Nietzsche contra o imperador, que namora com a socialdemocracia, faz pensar no modo como Hitler grita sem­ pre contra Guilherme II, que, ao acabar a 1 Guerra Mundial, se teria manchado com o horrível crime de ter "estendido a mão aos chefes do marxismo para uma reconciliação", ou seja, a um movimento que, rejeitando "o princípio aristocrático existente na natureza", põe em perigo o funcionamento ordenado da civilização e a civilização enquanto tal. 1898 Não mais persuasiva é a categoria de "anti-antisemitismo". Ainda uma vez surge a incapacidade dos hermeneutas da inocência de pensar em termos gerais a metodologia que enunciam ou põem em curso em relação a Nietzsche. Entre os profetas da resistência a Hitler devemos incluir também Gobineau, que vimos pronunciar algo semelhante a um panegírico dos judeus? Devemos 1 895

Hitler, 1939 b, p. 730. 1989, p. 399 (1 dejulho de 1942).

1 896 Hitler,

1897 Mohler,

1 898 Hitler,

1 989, Erganzungsband, pp. 29 seg. 1939 b, pp. 225 e 69.

também incluir aqueles teóricos da escravidão negra que, como demonstração definitiva da estraneidade absoluta e insuperável dos negros (e das "hordas selvagens" dos "ciganos") à civilização, aduzem a extraordinária capacidade dos judeus de desenvolver uma grande cultura mesmo em condições de extre­ ma dificuldade?1899 Em todo caso, nesse nobre grupo não poderia entrar o já citado Ploetz que, depois de ter generosamente cooptado os judeus entre as · raças superiores, se toma um autorizado expoente da higiene racial nazista. No que diz respeito a Nietzsche, é tão desmedido o ódio que ele nutre para com a figura do intelectual judeu que, no fim, acaba retomando, radicalizando­ ª de modo extremo, a teoria do complô acariciada nos anos de juventude. Que fique claro, não se trata de inverter no seu contrário o celebrado "anti­ antissemitismo". O filósofo continua até o fim a ser estranho ao racismo bio­ lógico. O problema real é outro. Como o "antigermanismo'', assim o "anti­ antissemitismo" é uma categoria posta a valer de modo totalmente abstrato, independentemente dos conteúdos. Deleuze desarma quando observa ou ex­ clama satisfeito: "A admiração de Nietzsche pelo rei de Israel e pelo Antigo Testamento é profunda". 1 900 Enquanto exprime seu ódio e seu desprezo pela figura do profeta e do próprio sacerdote, bem como pela ralé judia que dá vida ao cristianismo, e enquanto repetidamente convida a deixar cair como obsoleto e hostil à vida a proibição bíblica de "não matar'', Nietzsche celebra no Antigo Testamento os acontecimentos da conquista de Canaã e do extermínio dos seus habitantes. É a realidade que enche Simone Weil de horror. Olhando bem, na sua celebração da "besta loura", o último Nietzsche não está muito longe daquela linha velho-testamentista-romana que, segundo esta eminente filósofa judia (herdeira de algum modo da tradição profética), inspirou as páginas mais horríveis da história do Ocidente. Fazer uma leitura histórica e política do filósofo e inseri-lo no âmbito de uma longa tradição de crítica da revolução que, passando através do movimento privilegiado da reação antidemocrática do final do Século XIX, acaba desem­ bocando no nazismo, não significa absolutamente considerar fechadas as contas e ignorar o problema do excesso teórico. Verificou-se um processo ideológico singular a propósito da leitura de Nietzsche. O Ocidente vitorioso removeu as páginas negras da sua história. E eis que as declarações terríveis sobre o "aniquilamento dos mal sucedidos" ou sobre o "aniquilamento das raças decadentes" são colocadas em relação imediata com o horror do III 1899 Duttenhofer, 1855, p. 17. 1 900 Deleuze, 2002, p. 1 9 1 . Sobre o caráter "extravagante" desta admiração cf. scheim, 1997 pp. 3-20. ,

Reich. Para libertar o filósofo da sombra projetada sobre ele pela precedente remoção, os hermeneutas da inocência não souberam fazer outra coisa que recorrer, por sua vez, a uma ulterior remoção, que ignora ou passa em silêncio os trechos mais inquietantes ou mais sinistros do filósofo, ou seja os trans­ forma milagrosamente num conjunto de metáforas improváveis. Mas a de­ monstração da falta de fundamento da hermenêutica da inocência não é o encerramento do discurio. Bem longe de estar em contradição, a compreen­ são do excesso teórico de Nietzsche pressupõe a contextualização histórica e a leitura política do seu pensamento.

Sexta parte No laboratório filosófico de Nietzsche Fora dos grandes problemas de moral, não há nada de importante. XIV, 263 Nós desconfiamos de todos os contempladores do próprio umbigo, pelo fato de que a observação de si equivale para nós a uma forma de degeneração do gênio psicológico. XIII, 23 1 No fando, o senhor ensina sempre história e, neste livro, abriu algumas perspectivas histórias estupefacientes. Burckhardt a Nietzsche (B. III, 2, p . 288-9) Talvez gostasse de ver-me como sucessor na cátedra dele. Nietzsche a Lou Salomé, comentando a carta de Burckhardt (B, III, 1 , p. 259) Há uma estúpida humildade, nada rara, pela qual aquele por ela afetado revela-se inapto para sempre a tornar-se um seguidor do co­ nhecimento. De fato, no momento em que um homem desse tipo nota algo diferente, ele como que faz meia-volta e diz a si mesmo: "Tu te enganaste! Onde estavas com a cabeça? Isso não pode ser verdade! " E então, como que apavorado, em vez de olhar e ouvir de novo, mais atenciosamente, ele foge do caminho onde se encontra a coisa extraor-. dinária, e procura tirá-la da mente o mais rápido possível. FW, 25 O que faz a originalidade de um homem é que ele vê uma coisa que todos os outros não veem. IX, 5 9 1

18 UM FILÓ SOFO

TOTUS POLITJCUS

1 . A unidade do pensamento de Nietzsche

P

or que a denúncia e a crítica da revolução devem constituir o fio condutor da leitura de Nietzsche? De outro modo, não é possível ler e "salvar" o filó­ sofo na sua inteireza. Quer-se ver nele o teórico de uma critica afiada e impiedosa da ideologia que despedaça os mitos do germanismo e do antissemitismo? Salvo qualquer outra consideração, resta o fato de que esse tipo de interpretação com­ portaria a liquidação das obras da juventude, que ecoam os temas teutômanos e judeófobos bastante difundidos na cultura do tempo e que, todavia, são extraordi­ nariamente fascinantes . Quer-se ver em Nietzsche o campeão do "espírito livre" e o teórico da reabilitação da carne em contraposição ao ascetismo do Ocidente cristão? De novo seremos obrigados a cortes e renúncias dolorosas em prejuízo do discípulo de Schopenhauer, que exprime todo o seu desprezo pela galopante "mundanização", evoca com acentos angustiados as consequências catastrófi­ cas do "triste crepúsculo ateu" e defende contra Strauss "o lado melhor do cris­ tianismo'', o dos eremitas e dos santos. Dificuldades análogas encontraria quem quisesse assumir como fio con­ dutor a crítica ao niilismo. Ele se exprime - observa um fragmento da primave­ ra de 1 8 8 8 na tese pela qual "não ser é melhor do que ser" e "o nada é algo mais desejável" (XIII, 528). Como esquecer que O nascimento da tragédia faz seu o moto terrível de Sileno ("O melhor é [ ] não ter nascido, não ser, ser nada")? Por outro lado, os escritos da maturidade censuram ao cristianismo, mais que o niilismo, a sua desventurada incompletude, que mantém ainda agar­ rada à vida uma massa inumerável de miseráveis e mal sucedidos. Se alguém, na sua interpretação, quisesse partir da crítica da razão e da ciência, teria sérias dificuldades em explicar o pathos "iluminista" e "positivista" de certos escritos, empenhados em farejar não só os erros e as distorções, mas também as patologias que estão no fundamento de concepções do mundo pri­ vadas do sentido da realidade e propensas a entregar-se a fantasias e visões. O último Nietzsche descreve em termos bastante ofensivos o enlaçamento em Wagner entre o zelo patriótico-dinástico e a adesão a mitologias que podere­ mos definir como irracionalistas: "Uma reaproximação aos soberanos alemães, depois sujeitos ao imperador, ao Reich, ao exército, depois ao cristianismo [ . . ] -

...

.

e maldições contra a 'ciência'" (XI, 250). E se aqui o termo "ciência" aparece entre aspas, estas desaparecem de modo ideal quando o filósofo fala com gran­ de fervor e com grandes esperanças de Galton, o fundador da eugenia. Ainda menos a chave de leitura que faz tudo girar em torno da celebração da arte conseguiria superar as dificuldades aqui acenadas. Nesse caso, mais do que nunca a defesa voluntariosa se transforma em mutilação cruel e arbitrária: vimos Nietzsche aspirar à cátedra de Burckhardt e Burckhardt perceber a extraordinária riqueza da reflexão de Nietzsche sobre a história. Por outro lado, de qualquer modo autores eminentes como Lukács e Habermas julgaram opor­ tuno e necessário deter-se sobre as reflexões gnosiológicas e epistemológicas de Nietzsche. 1 901 Estas reflexões remetem a algo ulterior, mas a algo que não é a contem­ plação estética. Atacando com interrogações radicais o tema tradicional da "vontade de verdade", a propósito desse "problema" inexplorado Nietzsche declara com legítimo orgulho: "Fomos nós que o vimos primeiro, olhamos nos seus olhos e suportamos o seu olhar" (JGB, 1). Entra em crise de uma vez para sempre o dogmatismo acostumado a teorizar e celebrar um suposto bem em si: "A crença fundamental dos metafisicos é a crença nas antíteses dos valores" (JGB, 2), na distinção nítida entre bem e mal, com a construção, portanto, de um mundo metafisico de valores morais objetivos. Agora, esse mundo teológico mais ou menos camuflado está em ruínas: são incalculáveis as consequências que se seguem para a compreensão e construção do mundo humano. Somos reconduzidos à esfera ético-política, e a tal esfera nos reconduz também a metacrítica do criticismo. Na sua tentativa desesperada de salvar a objetivida­ de no campo teórico e ético, Kant descobre primeiro "a faculdade dos juízos sintéticos a priori" e, depois, a "faculdade moral no homem" (JGB, 1 1 ). A se­ gunda descoberta não se revela menos ridícula do que a primeira. A dogmática moral segue o destino da dogmática metafisica: "Não apenas negamos a ver­ dade absoluta, devemos abandonar toda pretensão absoluta e limitar-nos a juízos estéticos [ .. .] . Redução da moral a estética! ! ! " (IX, 47 1). Agora aparecem como infundados e absurdos os apelos à ')ustiça", as pretensões a pôr em discussão a inocência do devir. Enquanto zomba da "l 'art pour l 'art" (JGB, 208), Nietzsche celebra a arte enquanto benéfico antídoto ao universalismo da moral e da ciência: "A ciência e a democracia formam uma coisa só (seja o que for gue o senhor Renan diga), certamente como formam uma coisa só a arte e a 'boa socieda­ de"' (XII, 347). À anelada "inversão dos valores" dominantes, aqueles do re1 90 1 Lukács, 1974, pp. 378-9 e 387-9; Habennas, 1968 b, pp. 237-261.

banho, podem fornecer uma preciosa contribuição "certos artistas insaciavel­ mente ambiciosos, que lutam inexoravelmente e absolutamente pelos direitos especiais dos homens superiores e contra o 'animal de manada', e que com os meios de sedução da arte adormecem nos espíritos eleitos todos os instintos do rebanho e as prudências do rebanho" . Por outro lado, os grandes homens cha­ mados a acabar com os dogmas da "paridade de direitos" e da "piedade para todos aqueles que sofrem" devem dar prova de uma "vontade artística (Künstler­

Willen) de altíssima ordem" (XI, 5 8 1 -2). A arte desempenha uma função de primeiríssimo plano só na medida em que reforça a hierarquia. Não esquecer que "para o grego, a criação artística recai no conceito desonroso do trabalho, do mesmo modo que toda obra vulgar" (VII, 3 3 8) ; mas nem por isso a Hélade deixa de ser um modelo esplêndido . A referência à arte é instrumento de luta do radicalismo aristocrático e do "partido da vida". Particularmente significativo é um fragmento datável do verão de 1 8 86primavera de 1 8 87:

"Noblesse:

o que é a beleza? Expressão do homem que

venceu e se tomou senhor" (XII, 245). Na vertente oposta, sem apelo é a conde­ nação para "os demagogos em arte - Hugo, Michelet, Sand,

R.

Wagner" (XI,

546). Os artistas contagiados pela modernidade são "os doentes da mente" e fazem corpo com os "criminosos'', com os "anarquistas", com os chandala, com os falidos da vida (XIII, 5 04), com tudo o que há de mais repelente no mundo . Em conclusão : "A estética está indissoluvelmente unida a estes pressupostos biológi­ cos: existe um estética da

décadence,

existe uma estética clássica - um 'belo

em si' é uma quimera, como tudo quanto é idealismo" (WA, Epílogo). Os diversos aspectos sucessivamente mencionados, e outros ainda, da personalidade e da história evolutiva de Nietzsche poderiam ser compreendi­ dos com base na interpretação em perspectiva psicológica: nesse caso,

à muti­

lação se acrescentaria o reducionismo, como se fosse estranho a nosso autor o tormento para abraçar e compreender a realidade na sua totalidade e a obses­ são de intervir ativamente sobre ela. A figura do "vadio viciado nos jardins do saber" faz honra a Nietzsche e não se vê porque nela deva ser incluído o filósofo que tão eficaz e impiedosamente a tracejou; mais ainda se ·esses jardins devessem revelar-se uma mísera horta caracterizada por uma aborrecida monocultura artística ou psicológica. Veremos que, ao exprimir todo o seu des­ prezo pelos "contempladores do próprio umbigo", o filósofo se empenha na construção de uma psicofisiologia, à luz da qual toda expressão cultural, mesmo a aparentemente mais pura, revela a presença de uma alma e até de um corpo aristocráticos ou plebeus . Só não removendo o elemento que a atravessa em profundidade, só tendo bem presente a crítica e a denúncia

militante da revolução e da modernidade,

é possível colher a unidade do pensamento de Nietzsche e a sua coerência interna. O que marca a evolução do filósofo é o suceder-se de posições apa­ rentemente muito diferentes entre elas, as quais, porém, a um olhar mais aten­ to, se revelam como progressivos ajustamentos da mira para melhor atingir um alvo para sempre constituído pela modernidade e pela revolução. O filósofo, que termina a sua vida consciente sonhando com um golpe de Estado anticristão e antissocialista e trabalhando freneticamente para concluir os textos que pre­ tendem ser a plataforma teóríca da ansiada virada da história universal, chegou em Basileia carregando o entusiasmo suscitado nele pelos sucessos do proces­ so de unificação da Alemanha, que assim se preparava para desempenhar a sua missão na Europa, em oposição ao país da revolução e da civilização: A política é agora o órgão do pensamento na sua totalidade. Os aconteci­ mentos me deixam estupefato [ ... ]. Bismarck me agrada enonnemente. Ler os seus discursos é para mim como beber um vinho forte, e procuro não beber demasiado depressa para saborear longamente o seu gosto (B, 1, 2, p. 258).

O jovem Nietzsche fala também de si mesmo quando polemiza contra as interpretações correntes de um grande filósofo da antiguidade: Menos que nunca podemos ver em Platão apenas um artista [ ... ]. Caímos em erro quando consideramos Platão um representante do gênero artístico gre­ go: enquanto essa capacidade foi das mais comuns, aquela especificamente platônica, que é dialético-política, foi algo único (KGA, II, 4, p. 14).

E Nietzsche parece ainda falar de si quando denuncia a redução de Schopenhauer a "uma droga estupefaciente e excitante", a "uma espécie de pimenta metafisica": ao contrário, a terceira Inatual lê nele o teórico do "ho­ mem de Schopenhauer", chamado a opor-se e debelar o "homem de Rousseau" e da revolução. Chegar-se-ia a resultados igualmente inaceitáveis se, no lugar da arte, se colocasse a psicologia, a especulação pura ou a filologia. Quanto a este último caso, convém ter presente a carta que o recente professor de Basileia envia a Ritschl: "Aqui é necessário um completo radicalismo, uma real volta à antiguidade" (B, II, 1 , p. 1 73), com a retomada de relações e institutos desgra­ çadamente desaparecidos no mundo moderno. Desde o início, a própria filologia tem em Nietzsche um intenso significado político. O filólogo-filósofo não só dá atenção constante à história, mas também lê a história em termos de "luta de categorias e de classes" (Stande- und Classenkampj) (XII, 493), com uma definição que faz pensar naquela defini­ ção celebérrima de Marx, mesmo se no primeiro caso as classes acabam redu­ zindo-se esquematicamente e, às vezes, de maneira naturalista, fora de uma

dialética histórica concreta, àquela dos senhores e dos escravos. No entanto, na vontade e capacidade de ler o conflito de classe, de qualquer modo intenso, também na moral, na religião, na ciência, no "silogismo" socrático, Nietzsche é em certo sentido mais radical e mais imediatamente político do que o próprio Marx, pois este, ainda que entre oscilações e contradições, parece colocar a ciência numa esfera pelo menos parcialmente transcendente ao conflito. Ao contrário da denúncia nietzscheana, a denúncia marxiana da falsa consciência enquanto instrumento de legitimação de interesses inconfessados e inconfessáveis anda lado a lado com o pathos da objetividade do autêntico saber científico e com a celebração da sua carga emancipadora. Para Nietzsche, porém, não há mais territórios neutros. Como sabemos, também a fisica, com a sua teorização de leis válidas para todos, remete ao odiado igualitarismo. Nem sequer a arte é neutra. Marx pode exprimir o seu admirado estupor pelo fato de que, embora claramente "ligados a certas formas do desenvolvimento social", todavia "a arte e o epos grego [ . . . ] continuam a suscitar em nós um gozo estético e cons­ tituem sob um certo aspecto, uma norma e um modelo incomparáveis". 1902 Nessa leitura e neste gozo estético os conflitos políticos e sociais se calam. Não é por acaso que Marx é discípulo de Hegel: continua a agir a lição relativa ao espírito absoluto. Em Nietzsche, não; este surpreende na tragédia euripidiana um conflito político-social que, longe de estar concluído, faz sentir a sua presen­ ça e a sua aspereza no presente. Em relação aos poemas homéricos, eles nos transmitem a memória de uma comunidade volksthümlich heroica e orgânica, que constitui um modelo pelo menos na primeira fase da evolução do nosso filósofo (supra, cap. 4 § 1 ) . Exatamente pelo fato de que, aos olhos de Nietzsche, toda a evolução histórica está perpassada por um choque entre senhores e servos, que não só é plurimilenar, mas também, em última análise, é eterno, não há produção artística e cultural que possa ser considerada imune à presença e à atualidade deste choque.

2. Nietzsche e os historiadores O que desfaz a lenda segundo a qual o interesse do filósofo teria se volta­ do exclusivamente para a arte e a psicologia são também o empenho e o rigor com que ele procura reconstruir o milenar ciclo histórico que desembocou na Revolução Francesa e no emergir ameaçador do movimento socialista. A histó­ ria e os historiadores têm um papel central no discurso de Nietzsche: trata-se, 1902 Marx-Engels,

1955, vol. XIII, p. 641.

talvez, de um aspecto pouco pesquisado da sua biografia intelectual. Já em Pforta vemos o ginasiano ler atentamente textos de história e transcrever as passagens consideradas mais significativas. O estudante ginasial revela desde já uma amplidão de interesses e de conhecimentos históricos fora do comum. Não se interessa só por Mommsen e pela história romana; dedica atenção particular aos historiadores e aos escritores de história da idade moderna e contemporânea. Ei-lo a transcrever trecho após trecho não só de autores ale­ mães (Mundt, Menzel, GetVinus), mas também de europeus ilustres como Guizot e Macaulay (KGA, 1, 2, p. 3 89-4 1 2 e 487-5 09). Numa carta de novembro de 1 8 6 1 à irmã, Nietzsche indica seus "dese­ jos", para o Natal que se aproxima: livros de história sobre a Alemanha, sobre a Reforma e, sobretudo, sobre a Revolução Francesa. Se também não desde­ nha em ocupar-se com a história dos Estados Unidos, o estudante ginasial pa­ rece impaciente em mergulhar na leitura de obras em mais volumes sobre os acontecimentos iniciados em 1 789: "Deves saber que agora me interesso muito pela história" (B, 1, 1 , p. 1 89). Em seguida, comunica ter mudado de ideia sobre os livros desejados, mas só pelo fato de que a biblioteca de Pforta está muito bem fornida sobre o tema que mais lhe interessa (B, 1, 1 , p. 1 9 1). Alguns anos depois, sempre escrevendo à irmã (e à mãe), Nietzsche comunica que está seguindo com intensa participação as lições de Sybel (B, 1, 2, p. 1 8). Por outro lado, a correspondência desses anos dá testemunho do vivo interesse com que são seguidas as intervenções de Treitschke, um historiador e político de primei­ ra grandeza (B, 1, 2, p. 150 e 1 5 8). Um programa de estudos formulado entre o final de 1 869 e início de 1 870 vê no primeiro lugar "política e história" (VII, 6 1 ) . É bom deter-se por um instante neste binômio: o interesse histórico é de modo eminente um interesse político. Das páginas que transcrevem os textos de história cada vez mais lidos ou que relatam as reflexões do estudante de ginásio em Pforta surgem as figuras não só de Napoleão, Metternich, Castlereagh (KGA, 1, 2, p. 496-505), mas também de protagonistas de lutas naquele momento ainda longe da conclusão: Blanqui, Blanc, Ledru Rollin, Cavaignac, ou seja, os dirigentes do movimento operário e o protagonista da sanguinolenta repressão da revolta operária em Paris de junho de 1 848 . Sim, a luta entre revolução e contrarrevolução na França suscita particular interesse em Nietzsche. Explica-se assim a atenção reservada pelo jovem ginasiano a Luiz Napoleão - Napoleão III: é o "gênio" ou o "gênio do domínio" que, sem hesitar recorre à "força das armas" contra as intrigas subversivas de um gran­ de número de deputados, torna definitiva a derrota dos "socialistas", "republi­ canos" e "democratas" (KGA, 1, 2, p. 357-62) . Estamos entre 1 86 1 e 1 862. Quatro ou cinco anos depois, o imperador francês que obstaculiza o processo

de unificação nacional da Alemanha se toma Louis /e diab/e (cf. supra, cap. 1 , § 6): à atenção pelo conflito social s e entrelaça a atenção pelos acontecimentos da política nacional e internacional. Certamente, o interesse político nunca é de fôlego curto. Para poder com­ preender o presente é necessário também saber recuar para o passado, por isso o jovem Nietzsche se ocupa, além da história antiga já seguida por temas de algum modo "profissionais", também da "visão do mundo da Idade Média católica", da "visão do mundo da ortodoxia protestante" e até da "visão do mundo bíblica" (KGA, 1, 4, p. 69-75). Mas o olhar sobre o passado nunca se desvia realmente do presente. Como sabemos, também quando se ocupa com Teógnis, o filólogo não perde de vista a Prússia do seu tempo (supra, cap. 22 § 1). Por outro lado, o estudo dos períodos e contextos históricos entre si tão diferentes não comporta dispersão, dado o esforço constante de inserir os por­ menores e detalhes num quadro de conjunto, numa totalidade rica de significa­ do. Uma anotação da primavera de 1 868 documenta a atenção reservada a Herder e à sua filosofia da história (KGA, 1, 4, p. 573). Estamos agora na véspera da chegada a Basileia. Nietzsche continua a mostrar interesse por Mommsen, Niebuhr, Grote. Mas de importância particu­ lar é um novo encontro. Nos meses da gestação de O nascimento da tragé­ dia, o seu futuro autor ouve Burckhardt com tanta participação que escreve ao amigo Gersdorff: "Pela primeira vez sinto prazer em seguir um curso de aulas". É um curso que atinge até a dignidade de modelo aos olhos de Nietzsche, o qual acalenta a ideia de poder fazer algo semelhante na idade mais madura (B, II, 1, p. 1 55). Para o jovem professor começa a ficar limitada a cátedra de filologia, mas dir-se-ia que ele, para resolver o problema, pensa numa cátedra de histó­ ria, antes ainda que uma de filosofia. Ademais, a profundidade e a extensão dos seus interesses históricos não fogem a Burckhardt. Este, ao receber A gaia ciência, escreve ao ex-colega de ensino universitário: O que me faz sempre pensar de novo é a pergunta: o que produziria se o senhor tivesse de ensinar história? No fundo, o senhor ensina sempre histó­ ria e, neste livro, abriu algumas perspectivas históricas estupefacientes. No entanto, qual seria o resultado se o senhor quisesse iluminar ex professo a história universal com os feixes de luz caros ao senhor e sob os seus típicos pontos de vista? Quantas coisas seriam agradavelmente revertidas em rela­ ção ao atual consensuspopu/orum» (B, III , 2, p. 288-9).

Depois de ter recebido Além do bem e do mal, Burckhardt reforça o seu ponto de vista: "O que acima de tudo compreendo da sua obra são os juízos

históricos e, em particular, os seus olhares sobre o tempo histórico [ . . . ], sobre a democracia como herdeira do cristianismo" {B, III, 4, p. 22 1-2). Bem longe de irritar-se com tais julgamentos que o colocam num terreno que não seja o da pura filosofia, poesia, metáfora, caras aos atuais hermeneutas da inocência, Nietzsche se sente tão lisonjeado que por um momento parece até acariciar a ideia de se dedicar ao ensino universitário, desta vez como his­ toriador. Assim comenta, escr<Wendo a Lou Salomé sobre a primeira das duas cartas de Burckhardt aqui citadas: "Talvez gostasse de ver-me como sucessor na sua cátedra" {B, III, 1 , p. 259). Ao escrever a Peter Gast, discípulo de confiança, parece até ter desaparecido a sombra da dúvida: "Jacob Burckhardt quer que eu me tome professor de 'história universal' . Anexo para ti a sua carta" (B, III, 1 , p. 263). Em termos análogos o filósofo se exprime em duas cartas sucessivas ao amigo Overbeck {B, III, 1 , p. 354 e 496). A julgar pela última delas dir-se-ia que ele quer preparar-se concretamente para a nova pers­ pectiva: ''Nos últimos meses me ocupei com 'história universal', e com entusi­ asmo, mesmo se com algum resultado que me dá calafrios". Por outro lado, ao enviar ao grande historiador de Basileia Além, do bem e do mal, o filósofo inclui uma carta: "Não conheço ninguém que tenha como o senhor uma massa tal de pressupostos comuns comigo" {B, III, 3, p. 254). Obviamente, é preciso não exagerar os significados que são, em parte, expressões de circunstân­ cia; no entanto, também ajá citada carta a Lou Salomé sublinha que o historiador de Basileia ''tem algo de irresistível na sua personalidade" {B, III, 1 , p. 259). Dá, sobretudo, o que pensar o fato que, numa carta a Franz Overbeck, de 23 de fevereiro de 1 8 87, Nietzsche declara que "passou pela escola de Tocqueville e Taine {B, III, 5 , p. 28), sendo que, com o último, está em relações epistolares importantes, com estima recíproca. Nietzsche reconhece a ele o mérito de ter sabido descrever "a história dolorosa da alma moderna" {B, III, 5, p. 76). É com essa mesma metodologia que seria preciso "contar" Lutero: deixando de lado tanto "a adocicada e respeitosa verecúndia dos historiadores protestantes", como "o simplismo moralista de pároco de aldeia" próprio dos historiadores da parte católica, um "real psicólogo" deveria dar prova da "intre­ pidez à maneira de Taine, indagando a partir de uma galhardia da alma" (GM, III, 1 9). Em última análise, o entrelaçamento entre penetração psicológica e rigor histórico a que Taine recorre na reconstrução da crise do Antigo Regime e do desenvolvimento da Revolução Francesa é aproveitado por Nietzsche para reconstruir todo o ciclo revolucionário que parte já de Lutero e, ainda antes, da pregação evangélica e até da agitação dos profetas judeus. Depois de ter sublinhado a importância de Ritschl na sua formação - "o único erudito genial que vim a conhecer" - Nietzsche acrescenta: "Não quero,

nem de longe, subestimar meu compatriota mais próximo, o inteligente Leopold van Ranke" (EH, Por que sou tão ;nteligente, 9), lido com interesse já nos anos de Basileia {B, II, 3, p . 1 93) e celebrado como o "clássico advocatus de toda causa fortior" (GM, III, 1 9). Burckhardt, Tocqueville, Taine, Ranke: es­ tes grandes historiadores têm em comum o fato de se ter empenhado, de um modo ou de outro, numa análise impiedosa da Revolução Francesa. Como os Mestres, também os autores que Nietzsche percebe como anta­ gonistas são frequentemente historiadores. Isto vale em primeiro lugar para Michelet, este repugnante "plebeu" (XI, 5 88), analisado e sentido com uma carga de ódio lúcido. Trata-se de uma espécie de pendant historiográfico de Victor Hugo. Também ele é "um homem da compaixão" e da identificação simpática com as massas . Só que, "em lugar do olho pictórico", o historiador da Revolução Francesa revela "uma admirável capacidade de reconstruir em si os estados de espírito" da multidão que ele descreve e com a qual se identifica também emotivamente: "Quando alcança certo grau de excitação, é tomado cada vez pelas convulsões do tribuno do povo; conhece também por experiên­ cia pessoal os ferozes ataques de cólera da plebe" (XI, 602-3). Outro alvo polêmico é constituído por Buckle. Depois de ter lido a sua H;stór;a da civ;/;zação na Inglaterra, Nietzsche escreve a Gast: "Estranho! O resultado é que Buckle é um dos meus mais fortes antagonistas": é um "democrata" {B, III, 5, p. 79). Também nesse caso, o sentimento de hostilidade irredutível não embaça de modo algum a lucidez da análise. A obra do historia­ dor inglês tem um fio condutor ("A morada da ciência é o templo da democra­ cia"), que fascina o seu tradutor, Arnold Ruge, 1 903 expoente de ala da esquerda hegeliana. E, j unto com ele, encantada e fascinada está outra personalidade excepcional do movimento democrático, ou seja, Johann Jacoby, 1 904 o qual, como coroamento de uma longa e corajosa- militância nas fileiras da oposição, acaba aderindo, em 1 872, à socialdemocracia alemã. 1 905 Os "aborrecidos juízos de valor" de Buckle - observa sempre Nietzsche - suscitam ecos empáticos em Dühring e em certos ambientes do movimento socialista {B, III, 5, p. 79). E, ainda uma vez, o filósofo acerta no alvo. O historiador inglês exerce "uma grande influência" também sobre um dos diri­ gentes de ponta desse movimento, a saber: Wilhelm Liebknecht. 1 906 O que explica tudo isto não é tanto o pacifismo radical de Buckle como, sobretudo, a 1903 Ruge,

1886, vol. II, p. 243 (carta a Brückmann de 5 novembro de 1 864). Jacoby, 1978, p. 1 90 (carta a Fanny Lewald de 1 1 fevereiro de 1 862). 1905 Cf. Silbemer, 1976, pp. 492 seg. 1906 Mehring , 1 96 1 a, vol. VITI, p. 80; cf. também Mehring, 196 1 b, vol. II, p. 423.

1904

atitude empática que ele parece tomar em relação às massas populares ; ele, de fato, censura os grandes autores alemães de se terem expresso numa lingua­ gem incompreensível às classes inferiores. 1907 Exatamente por causa do seu "plebeísmo do espírito" (supra, cap. 25 § 2), Buckle é significativamente apro­ ximado por Nietzsche de, entre outros, Michelet (XIII, 1 8 9). Também nesse caso, estamos na presença de uma filosofia da história profundamente "democrática", que faz brotar do ambiente o "gênio" ou o "grande homem" (GD, Incursões de um inatual, 44) . O que suscita ecos empáticos na socialdemocracia alemã é exatamente a ironia de Buckle relativa à costumeira historiografia, toda concentrada nas "histórias insignificantes de reis, cortes, diplomatas, batalhas e cercos". 1 908 Trata-se de um trecho e de um tema bem presentes a Nietzsche, o qual, por sua vez, comenta: Até que ponto pode chegar a incapacidade de um plebeu agitador da multi­ dão de se esclarecer sobre o conceito de "natureza superior", disso Buckle fornece o melhor exemplo. A opinião que ele tão apaixonadamente combate que os "grandes homens", os indivíduos, os soberanos, os estadistas, os gênios e os líderes são as alavancas e as causas de todos os grandes movi­ mentos - é por ele instintivamente entendida de modo errado, como se com ela se afirmasse que aquilo que tal "homem superior" tem de essencial e de valioso esteja exatamente na capacidade de pôr em movimento as massas, em suma, no seu efeito. . . Mas a "natureza superior" do grande homem está em ser outro, na incomensurabilidade, na distância de categoria - não num efeito qualquer: nem que se fizesse tremer o globo terrestre (XIII, 497-8).

Sendo seguidos, como sabemos, já nos anos dejuventude, Sybel e Treitschke não são perdidos de vista nos anos posteriores. Só que, quanto mais radicaliza as suas posições, tanto mais Nietzsche se torna severo em relação aos dois autores nacional-liberais: agora eles aparecem como "pobres historiadores [ ... ], com aqueles seus textos pesadamente enxovalhados" (JGB, 25 1). Ainda nos primeiros meses de 1 8 87, o filósofo refere que está empenhado na leitura da "obra principal de Sybel" (B, III, 5, p. 28): embora duramente crítica da Revolução Francesa, ela parece querer arrastar no julgamento de condenação também o Antigo Regime, o que suscita o desprezo de Nietzsche (supra, cap. 1 7 § 1 ). Para completar o quadro dos interesses de Nietzsche pela história e pelos historiadores da época da revolução, se poderiam citar "o medíocre Thiers, elegante no mau sentido do termo" (XI, 5 88), benévolo demais em relação à 1907 Mehring, 1 96 1 a, vol. XIII , p. 43. 1 908 In Mehring, 1961 a, vol. VII, p. 427

Revolução Francesa e reservado demais em relação a Napoleão, incapaz de compreender a grandeza, porque ele mesmo não a tem (VII, 675-6); bem como Montlosier e Thierry, dos quais Nietzsche deduz a interpretação em perspecti­ va de algum modo racial do choque entre nobreza e Terceiro Estado. Enfim, é preciso não esquecer o interesse critico que Lecky suscita com suas reconstru­ ções da história do metodismo, da Inglaterra e das origens e dos desenvolvi­ mentos do iluminismo. Sobre o sentido político do encontro de Nietzsche com os grandes histori­ adores não pode haver dúvidas. Tocqueville e Taine, caros a ele, são sumaria­ mente liquidados por Engels como autores "divinizados pelos filisteus"; 1909 mesmo sem partilhar dos entusiasmos de outros expoentes da socialdemocracia alemã, o próprio Engels parece, porém, olhar com certo interesse para Buckle.1910

3. Continuidade e descontinuidade: gênio, espírito livre, hierar­ quia e super-homem Somente se não perdermos de vista a permanência e a centralidade do interesse histórico-político e do radicalismo aristocrático podemos captar o fio condutor da complexa e atormentada evolução de Nietzsche. "Gênio" é a pala­ vra de ordem do período "metafisico" da juventude: a celebração da Grécia anti­ ga é, em primeiro lugar, a homenagem reverente aos "gênios supremos" que ela soube produzir (PHG, l ; 1, 808). Infelizmente, tudo isso se dissipa no mundo moderno: "Os carreteiros estipularam entre si um contrato e decretaram o gênio como supérfluo" (HL, 7: 1, 301). O encontro entusiástico com Schopenhauer é também a descoberta do tema fascinante da "república dos homens geniais" evocada por ele. Abre-se a possibilidade de uma leitura da história bem diferente daquela filisteia e otimista, que desejaria garantir o progresso, a instrução e a felicidade para todos, mergulhando a individualidade excepcional numa massa anônima. Ao contrário: "Através dos desolados intervalos de épocas distantes, um gigante dirige a palavra a outro gigante, e este colóquio entre espíritos eleva­ dos (das hohe Geistergesprãch) prossegue, sem se preocupar com os anões petulantes e barulhentos que rastejam embaixo" (PHG, l ; 1, 808). Ao lado da categoria de "gênio", e como seus sinônimos, surgem também as categorias de "gigante" e de "espírito elevado". "Espírito livre" se torna, ao contrário, a palavra de ordem do período "iluminista", como emerge também do 1909 Marx-Engels, 191º Marx-Engels,

1955, vol. XXXVII, p. 154. 1955, vol. XXXI,II pp. 26 1 , 275, 283 e 289.

subtítulo de Humano, demasiado humano, que, sabemos, pretende ser Um livro para espíritos livres. Não estamos na presença de um corte, nem sequer no plano terminológico. Se examinarmos a gênese do O nascimento da tragé­ dia, vemos que um dos títulos inicialmente levados em consideração era: A tragédia e os espíritos livres. Considerações sobre o significado ético­ político do drama musical (VII, 97 e 1 03). A partir de agora os "espíritos livres" se opõem ao "povo" e, sobretudo, à "massa" (PHG, 1 9; 1, 869-70). No período "iluminista" os "espíritos livres" são também os "bons euro­ peus" (WS, 87) celebrados não só em oposição aos chauvinistas, mas também ao "bárbaro" e ao "asiático" (supra, cap. 7 § 6). A oposição entre élite e massa é então considerada também a nível internacional. O significado político da evocação da figura do espírito livre, chamado a superar as incertezas para empenhar-se com decisão na luta contra a modernidade, é desse modo escla­ recido por Nietzsche no Prefácio posto por ele, em 1 886, na reedição de Hu­ mano, demasiado humano : Pois foi assim que noutros tempos, quando precisava disso, também in­ ventei para mim os "espíritos livres", aos quais é dedicado este livro me­ lancólico-corajoso com o título de Humano, demasiado humano : seme­ lhantes "espíritos livres" não há, não havia [ . . . ]. Que um dia poderá haver semelhantes espíritos livres, que a nossa Europa terá entre os seus filhos de amanhã e depois de amanhã, tais companheiros alegres e ousados [ . . . ], disso gostaria de ser o último a duvidar. Já os vejo vir lentamente, lenta­ mente (MA, Prefácio, 2).

Para definir um espírito autenticamente livre não basta com certeza a refutação iluminista da superstição religiosa; ele deve também saber assimilar a crítica e a desmistificação da superstição democrática e igualitária, elevando­ se à visão do problema central, que é o da "hierarquia" (supra, cap. 1 O § 5 e 8). A hierarquia encontra a sua expressão mais alta no "super-homem". Se Hu­ mano, demasiado humano tinha sublinhado que o Estado está "em contradi­ ção" com o "gênio" (MA, 235), Assim falou Zaratustra afirma que só "lá onde o Estado cessa, aí começa o homem que não é supérfluo" e se descortinam "o arco-íris e as pontes do super-homem" (Za, 1, Do novo ídolo). O super­ homem está para o homem assim como o homem para o macaco : no homem moderno ainda há demais do macaco (Za, Prefácio de Zaratustra, 3). É um tema que, para confirmar a continuidade de fundo na evolução de Nietzsche, podemos já encontrar, de forma ligeiramente diferente, nos apontamentos dos anos da juventude: "Segundo Heráclito o filisteu mais inteligente (o homem) é um macaco em relação ao gênio (ao deus)" (VIII, 607).

É verdade, no período "iluminista" não faltam as ocasiões polêmicas con­ tra a "superstição do gênio" (MA, 1 64). Para essa finalidade, Aurora é parti­ cularmente pungente: Não há de se espantar se também na nossa época transbordou uma supervalorização de pessoas semidementes, desvairadas, fanáticas, as ditas pessoas geniais. "Elas viram coisas que os outros não viram'' - rertamente! e isto deveria deixar-nos prudentes em relação a elas, em vez de crédulos (M, 66).

Aqui se toma distância do tema que se difunde naqueles anos, que faz a ligação entre gênio e loucura. Mais tarde, na Alemanha, se pretenderá explicar a personalidade do próprio Nietzsche recorrendo exatamente a esta conexão. 1 911 Com base nela, o gênio é configurado como "uma variante especial, divina" do "mal sagrado" ou da epilepsia. 191 2 Quem se exprime assim é Lombroso que, entre os adoidados mais ou menos geniais, inclui também os grandes reformadores religiosos e os inspiradores de movimentos político-religiosos, com base social popular e plebeia. 1 913 Então se compreende que, embora continuando a falar de "gênio", Humano, demasiado humano sinta a necessidade de avisar: é "uma palavra que peço que seja entendida sem qualquer sabor mitológico ou religioso" (MA, 23 1); não faz nenhuma referência àquelas personalidades que mais tarde serão rotuladas como "santos epilépticos e visionários" (XIII, 245). Por outro lado, a condenação da "superstição do gênio" não está em con­ tradição com a celebração dos "grandes espíritos" (MA, 1 64), ou antes, dos "oligarcas do espírito, que existem em toda época" {VIII, 472), ou dos "espíri­ tos fortes, acabados, seguros, que se apoiam firmemente em si mesmos" (FW, 345), dos "homens excepcionais", dotados de uma "natureza superior" e, por­ tanto, a não confundir com as "naturezas vulgares" (supra, cap . 1 1 § 3). Uma vez estabelecido que o elitismo é um traço fundamental e permanen­ te do pensamento de Nietzsche, podemos distinguir as diversas fases da sua evolução: as duas primeiras segundo o princípio da celebração do gênio e do gênio artístico em particular, a terceira segundo o princípio da celebração do espírito livre e iluminado, a última segundo o princípio da celebração do super­ homem e da hierarquia. Embora existam referências nas declarações de Nietzsche, as costumei­ ras tripartições que veem suceder-se nele o romântico, o iluminista-positivista e o teórico do niilismo, ou "a metafisica do artista", o "iluminismo" e a "destruí1 9 11 Nordau, s.d. vol. II, pp. 301 seg. 1 912 Lombroso, 1995, p. 579. 1 91 3 CT. Frigessi, 1995, p. 365.

ção da metafisica ocidental", 191 4 não fazem justiça ao filósofo. Parece arbitrá­ ria a passagem do romantismo para uma cultura tão diferente como é. a iluminista e positivista, ou da celebração da metafisica do artista para o entusiasmo pelas luzes e pela ciência; e não menos misteriosa se torna a passagem do pathos da razão, orgulho do Ocidente, para a destruição da metafisica ocidental. Noutras palavras, perdem-se a seqüência e o rigor que caracterizam a evolução de Nietzsche. No entanto, sem essas características, se estivéssemos em presen­ ça de temas ainda que geniais, mas sem real conexão entre eles, dificilmente poderíamos considerar nosso autor um grande filósofo. Por outro lado, só o sentido político e a continuidade política aqui esboça­ dos podem permitir-nos conferir um significado determinado às categorias uti­ lizadas pelas costumeiras reconstruções da evolução de Nietzsche. Queremos falar de uma primeira faze "romântica"? Ao romantismo, ou a certos temas dele, parece remeter também a celebração do sujeito que Fichte faz, o qual institui um paralelismo entre a liquidação do incognoscível em si realizada pela sua filosofia e a destruição das cadeias e dos grilhões feudais feita pela Revo­ lução Francesa, entre a sua "luta interior" pessoal, por um lado, e o "esforço" poderoso da nação francesa para conquistar a "liberdade política", por outro lado. 191 5 Mas não é esse o romantismo de O nascimento da tragédia que, na ímpia pretensão de penetrar e transformar a essência da realidade, denuncia o pressuposto da desastrosa revolta servil que não cessa de se alastrar. Quer-se falar de uma fase "iluminista"? É o próprio Nietzsche que previne contra as confusões e especifica que o seu "iluminismo" nada tem a ver com a atitude daqueles que, em nome da razão e da universalidade da razão, pretendem fazer tábua rasa dos velhos "preconceitos", particularismos e privilégios, dando o assalto ao edifício do Antigo Regime. Também não é mais persuasivo falar, em relação aos anos da juventude, de "metafisica do artista" : é uma categoria que poderia ser usada para poucos expoentes do romantismo alemão; pensar no primeiro Schelling, ou em Novalis, ou em Jean Paul. Por outro lado, vimos que, até no momento em que presta homenagem a Wagner, Nietzsche se apressa a esclarecer que olha para a música e a arte não mais como para um "fármaco" ou um "narcótico", mas como para o terreno sobre o qual podem ser reunidas as forças necessárias para a anelada "revolução" (supra, cap. 6 § 1 0). O real significado da referência à arte surge com clareza a partir do fio con­ dutor do elitismo cultural e político. Apenas este fio condutor permite que captemos 1914 Assim pensa Fink, 1 993, pp. 1915 Fichte, 1967, vol. 1, p. 449.

129 seg.

a unidade da visão do mundo e da filosofia da história de Nietzsche. É a individua­ lidade excepcional, não importa de que modo for definida, que dá sentido à comumente chamada "história universal"; a massa dos homens pode constituir apenas o mate­ rial bruto do qual essas individualidades se servem para as suas criações artísticas em sentido estrito ou em sentido lato. Este tema ideológico, que vimos já em relação com o período impropriamente chamado de "romântico'', está bem presente tam­ bém no período impropriamente chamado "iluminista". O "Estado perfeito" ou o "Estado ideal" ou então "o Estado ideal" sonhado pelos "socialistas" há de ser decididamente rejeitado pelo fato de que nele poderiam encontrar lugar "apenas indivíduos enfraquecidos", ao passo que desapareceria qualquer "motivo de poe­ sia" e as "forças" que tornam a "arte" possível (MA, 234-5). Apresenta-se de novo a dicotomia que atua já em O nascimento da tra­ gédia: arte contra socialismo. E mais uma vez a arte é uma visão do mundo, uma filosofia da história que vê nos homens comuns um simples instrumento para a produção da beleza e da civilização: É muito discutível que, naquelas condições ordenadas que o socialismo reivindica, se possa ter grandes resultados análogos para a humanidade, como se tiveram nas condições desordenadas do passado. Provavelmente, o grande homem e a grande obra floresçam apenas no estado livre, selva­ gem. Mas a humanidade não tem outras finalidades senão os grandes ho­ mens e as grandes obras (VIII, 48 1 ) .

Quem determina "o valor ou o desvalor da vida" é apenas a "aparição do intelecto supremo". Portanto, é preciso partir daqui para exprimir um juízo so­ bre as ideologias e os ordenamentos políticos: Em quais circunstâncias surgirá esse intelecto supremo? Parece que aqueles que promovem o bem-estar humano no seu conjunto atualmente se põem ainda metas totalmente diferentes da produção desse intelecto supremo, determinador de valores. Procura-se proporcionar ao maior número possível o bem-estar e este bem-estar é entendido, ademais, de modo bastante exteri­ or (VIII, 365).

O problema da produção do gênio tomou-se agora o problema do apareci­ mento do intelecto supremo e tende já a configurar-se como o problema do restabelecimento da hierarquia e da "criação" necessária para a afirmação do tipo superior de homem. E, de novo, a referência à arte será a referência ao "fenômeno artístico fundamental que se chama 'vida"' (XI, 1 29) e que exige a impiedosa utilização da massa dos homens como material bruto das criações artísticas chamadas a dar sentido à sociedade e à vida.

4. Continuidade e descontinuidade: o "iluminismo " de Pilatos

ao Antigo Regime Portanto, nem sequer a fase "iluminista" põe em discussão o elitismo cultural, que constitui em Nietzsche um traço constante, mas que, no decorrer do tempo, se exprime com categorias e palavras de ordem sempre mais diferentes . Por "iluminismo" aqui é preciso cértamente não entender a expectativa confiante de que a difusão capilar das luzes estimule a emancipação e o progresso. Depois de ter desempenhado um papel importante na preparação ideológica da Revolução Fran­ cesa, tal atitude continua a estar presente no movimento protossocialista: "Se a arte da impressão tivesse sido descoberta antes, e os primeiros cristãos estivessem em condições de ler" - escreve Weitling - dificilmente Constantino teria conseguido eliminar da doutrina evangélica a sua carga igualitária e transformar a nova religião num instrumento de conservação. "Desde então se estendeu uma noite escura sobre os princípios puros do cristianismo" e, "protegidos pela escuridão", os privile­ giados tiveram a possibilidade de oprimir as massas populares; "mas a noite come­ ça a clarear". Outros expoentes daquele movimento - é o caso, por exemplo, de Owen - convocam "uma nova mentalidade racional" para substituir aquela "irraci­ onal", própria de uma sociedade fundada sobre a infelicidade da massa; graças à razão e à sua afirmação será possível superar os critérios "individuais e particula­ res" mesquinhos até agora dominantes, a fim de fazer valer princípios e direitos "universais".191 6 Ou, para citar um autor conhecido e odiado por Nietzsche, ou seja, Dühring, é preciso proceder à liquidação da "ignorância mumificada de massa e superstição de massa" de modo a lançar os pressupostos para a realização da ')ustiça política" e da "organização social, econômica e financeira do futuro". 1917 Poder-se-ia dizer que a este iluminismo a partir de baixo, que pretende deslegitimar e contestar o poder das classes dominantes, Humano, demasiado humano contrapõe um "iluminismo" do alto, que perscruta e expõe impiedosamente à luz o fanatismo, a credulidade, todos os elementos de fra­ queza dos movimentos plebeus de revolta. É um iluminismo decididamente elitista, que celebra de modo enfático o papel decisivo das grandes personalidades na história. A elas é confiada a difusão das autênticas luzes, a promoção da razão e da ciência em função da luta contra o fanatismo e o espírito visionário, que presidem as religiões tradicionais e o movimento revolucionário e socialista: "O obscurecimento da Europa pode depender do fato de cinco ou seis espíritos livres permanecerem ou não fiéis a si mesmos" (VIII, 338). 1916 1n Bravo, 1 973, pp. 26 1 e 218. 1 917 Dühring, 1 873, p. 563.

Mais do que fazer referência a um período e a um movimento histórico determinado, o "iluminismo" assim entendido tende a tornar-se uma categoria idealtípica. Nietzsche é consciente disso. Ao projetar aAujklãrnng já na antigui­ dade clássica, não por acaso Além do bem e do mal recorre às aspas. É assim descrita a luta que o poder é obrigado a travar com um cristianismo agora irreprimível: de um lado, a "nobre e frívola tolerância" de Roma, que tem no seu centro "não mais a fé, mas a liberdade da fé"; do outro lado "o escravo", que "quer o incondicionado, compreende apenas o tirânico, também na moral" e que, na "sorridente despreocupação" dos senhores vê um insulto ao seu sofrimento: "O 'iluminismo' suscita a revolta" (JGB, 46). O cristianismo se afirma em Roma e consegue revolver "um mundo cético e incrédulo à maneira meridional, o qual tinha atrás e dentro de si uma luta secular de escolas filosóficas, inclusive a educação à tolerância por parte do Imperium Romanum"; ocorre agora "um contínuo suicídio da razão - de uma razão tenaz, muito velha, vermiforme, que não se deixa matar de uma só vez e com um só golpe" (JGB, 46). Estamos na presença de um iluminismo com traços de antiguidade. No final da vida consciente, Nietzsche se refere ao "nobre romano" que "percebia o cris­ tianismo como foeda superstitio" (WA, Epílogo) . Trata-se provavelmente de uma reminiscência da exitiabilis superstitio da qual Tácito 1918 fala, ou da "nova e maléfica superstição" (superstitio nova ac ma/e.fica) de que fala Suetônio. 1 919 Em todo caso, bem mais que Voltaire, são os clássicos gregos e latinos que agem por trás do filósofo-filólogo. Quando lemos nos Anais que a partir da Judeia se difunde o "contágio" (ma/um) também em Roma, onde está presente uma massa urbana, pronta a acolher "toda monstruosidade e vergonha" (cuncta. . . atrocia aut pudenda), 1920 somos levados a pensar na descrição, já vista em Nietzsche, de uma difusão irresistível da "superstição", das "tolices apaixonadas", da "lou­ cura" de Rousseau e da revolução (supra, cap . 7 § 8). Se, por um lado, se aproveita da leitura de Taine, por outro lado, essa descrição parece fazer eco à polêmica dos autores pagãos contra os primeiros cristãos, os quais - observa Celso - "querem e podem converter apenas os tolos, os ignóbeis, os insensatos, os escravos, as mocinhas e os rapazinhos". Eles visam es se público escassamente inclinado, ou decididamente refratário, ao raciocínio pacato, a fim de difundir "as histórias mais mirabolantes"; não é por acaso que condenam como "um mal o fato de ser instruído e perito nas melhores disciplinas e ser e parecer inteligente". 1 921 No debate, a sua arma 1 9 1 8Anais, XV, 44. 1 9 1 9 Vida dos Césares: Nero, 16. 1 920 Anais, XV, 44. 192 1 O discurso da verdade, III, 44 e 49 e III, 55 (Celso, 1989, pp. 13 3-4).

preferida é o "subterfúgio absurdo", que pretende desembaraçar-se das difi­ culdades lógicas e das objeções dos adversários remetendo à fé e a Deus, a quem "tudo é possível".1922 Os cristãos - insiste Celso - dobram-se e preten­ dem que todos se dobrem a "uma fé imediata", ou antes, a "uma fé imediata e preventiva'', a qual foge de "todo procedimento racional fiel à verdade" e da discussão vigilante e serena, do "método das perguntas e das respostas" caro a Platão e à grande cultura pasã. 1 923 Nietzsche é herdeiro deste "iluminismo" pagão. Humano, demasiado humano se refere a ele de modo bastante explícito: "Ainda hoje, muitos erudi­ tos pensam que a vitória do cristianismo sobre a filosofia grega é uma prova da maior verdade do primeiro - embora nesse caso só o que era rude e violento vencera o que era espiritual e delicado". Isto é confirmado pelo fato de que, com a superação da Idade Média, "as ciências despertas juntaram-se ponto por ponto à filosofia de Epicuro, enquanto rejeitaram ponto por ponto o cristia­ nismo" (MA, 6 8). Tácito relata que Cristo, autor e primeiro responsável pela difusão da su­ perstição e do contágio, é condenado "ao suplício por ordem do procurador Pôncio Pilatos".1924 Em O Anticristo vemos Pilatos representar a "ciência", ao passo que Jesus e Paulo exprimem a "fé", a qual não é senão "o veto à ciência" (AC, 4 7). A primeira luta entre luzes, ciência e tolerância, por um lado, e fé e fanatismo, por outro, ocorre já no ocaso do mundo antigo: de um lado está Pilatos, que declara que não sabe o que é a verdade, do outro lado está Jesus, que com ela pretende identificar-se: "O nobre sarcasmo de um romano, ante o qual se comete um vergonhoso abuso da palavra 'verdade', enriqueceu o Novo Testamento com a única palavra que tem valor - que é a sua crítica e até a sua aniquilação: 'o que é a verdade' ?" (AC, 46). Nietzsche não esconde, antes sublinha a dimensão social do conflito. À atitude que segue os princípios do ceticismo e da tolerância da classe dominante de Roma, satisfeita consigo, se opõe a necessidade de certezas dogmáticas do "escravo", inspirado e agitado por ideias loucas de emancipação. Ainda nos escritos mais tardios, Wagner, posto sob imputação pelo seu cris­ tianismo e por suas persistentes ligações, muito além dos anos da juventude, com o socialismo (supra, cap. 25 § 3), é condenado ao mesmo tempo enquanto ex­ pressão do "mais negro obscurantismo", do "ódio mortal contra o conhecimento", da "perversão dos conceitos", do abandono do terreno da "ciência" (WA, Pós1922 O discurso da verdade, V, 1 4 (Celso, 1989, p. 179). 1 923 O discurso da verdade, VI, 7a e VI, 8 (Celso, 1989, pp. 1 97-9). 1 924 Anais, XV, 44.

escrito). Nele continua a viver o dogmatismo cristão que, com modalidades di­ versas, animou todas as revoltas servis: "Tu deves e não podes deixar de crer. É um crime contra o Altíssimo, contra o Santíssimo, ser cientista" (WA, 3). Assim como a "astrologia", também. essa "filosofia dos dogmáticos" está destinada a ser superada nos "séculos futuros" (JGB, Prefácio). A comparação com a astrologia é interessante, pois a ela é assimilada, como vimos (supra, cap. 8 § 4), a reivindicação da felicidade para todos. Somos de novo remetidos às esperanças e às falazes expectativas e certezas dos escravos, dos miseráveis, dos simplórios. É em oposição a esse mundo que tem lugar a celebração dos "céticos, o único tipo respeitável no povo dos filósofos, gente dotada de duplos ou até de quíntuplos sentidos!" (EH, Porque sou tão inteligente, 3). Portanto, não faltam os temas "iluministas" nem sequer no último Nietzsche, aquele empenhado na denúncia mais violenta da razão, da ciência, do silogismo e das "facadas" plebéias, e da carga de subversão implicada em tudo isso. Por diver­ sas vezes, alguns fragmentos de meados dos anos 1 880 anunciam um livro com o título bastante significativo: O novo iluminismo (Die neue Aujkltirung) (XI, 228 e 346; XII, 34). Trata-se, porém, de um iluminismo bem diferente do ''velho", funcio­ nal "ao rebanho democrático, ao nivelamento (Gleichmachung) de todos". O "novo", ao contrário, submetendo a moral à investigação dessagradora das luzes, "quer indicar o caminho para as naturezas dominantes, no sentido de que a elas é permi­ tido tudo o que não é consentido às naturezas gregárias" (XI, 295). Por outro lado, é possível ler uma defesa do mito contra a hybris da razão nas próprias obras que flertam com o iluminismo. Aurora lança uma espécie de apelo: Não zombeis da mitologia dos gregos, especialmente porque tão pouco se assemelha à vossa profunda metafisica! Deveríeis admirar um povo que exatamente aqui impôs um freio ao seu agudo intelecto e por longo tempo teve tato bastante para evitar o perigo da escolástica e da superstição da sutileza! {M, 85).

Mais tarde, A gaia ciência, ao avaliar positivamente o papel dos sacerdo­ tes como "sábios" para o "povo", cujo sentimento de "veneração" deve ser respeitado, sublinha ao mesmo tempo que os "filósofos" não podem inclinar-se diante "dessa crença e superstição" (FW, 35 1). O espírito livre deve saber emancipar-se de toda "superstição", mas a difusão indiscriminada das luzes seria ela mesma uma "superstição", e talvez a mais ruinosa de todas. Enquanto não põe em discussão o elitismo, o adeus à fase "metafisica" representa uma virada radical em relação à avaliação da Reforma protestante. Também nesse caso, é apenas o fio político da crítica da revolução que nos permite orientar-nos no aparente labirinto das leituras que Nietzsche faz sempre

mais de Lutero. No lugar de ponto de referência da recuperação dionisíaca da Alemanha, ele se toma o frade obscurantista escarnecido pelos escritos do perí­ odo "iluminista'', para configurar-se enfim como o protagonista da subversão provocada pela Reforma e pela Guerra dos Camponeses e como o intérprete privilegiado da alma irremediavelmente plebeia da Alemanha. Claramente, nos anos de O nascimento da tragédia e das esperanças recolocadas na nova Ale­ manha, Nietzsche se ressente da 1eitura liberal-nacional do tempo, que celebra em Lutero o protagonista de uma grande sublevação nacional contra Roma e contra uma latinidade sinônimo ao mesmo tempo de subversão e de rasura antimetafisica. A passagem para a perspectiva "iluminista" na crítica da revolu­ ção comporta a imputação também de Lutero, junto com os outros expoentes do obscurantismo e do espírito visionário, religioso ou revolucionário que seja. O último Nietzsche, enfim, parece subscrever, embora invertendo o seu juízo de valor, a leitura de Lutero difundida à "esquerda". Não só Engels e Lassalle, mas já antes a esquerda hegeliana e o próprio Hegel, embora com acentos diferentes, celebram na Reforma protestante a primeira marretada dada no Antigo Regime e instituem desse modo uma linha de continuidade que, passando também através da Guerra dos Camponeses, conduz à Revolução Francesa. 1925 É um tema pre­ sente, além de nesse ou naquele grande intelectual, também em amplos setores do movimento popular e socialista. Um expoente desse tema assim se exprime: "A Europa suspirou sob a servidão da gleba e da escravidão espiritual. Então vieram Lutero e Münzer - e foram entendidos". 1 926 É a confirmação, aos olhos do Nietzsche pós-"metafisico", que o campeão da Refonna é o desastrado pro­ tagonista de uma etapa essencial da revolta servil.

5. Continuidade e descontinuidade: da neutralização da teodiceia do sofrimento à celebração da teodiceia da felicidade Um entrelaçamento análogo de continuidade-descontinuidade pode ser lido também na atitude assumida por Nietzsche em relação à reivindicação da felicidade por parte dos escravos, em relação à "questão social". Para esclare­ cer esse ponto, convém fazer referência a duas categorias elaboradas por Weber. Ao analisar o fenômeno religioso, Weber distingue entre duas posições idealtípicas fundamentalmente diferentes . Temos de um lado a "teodiceia do 1 92 5 Losurdo, 1 997 a, cap. II, 10 e 12. ' 1 926 É o caso de August Becker in Bravo, 1973, p. 572; sobre a Reforma como revolução também pp. 287-8. ·

sofrimento", própria das religiões da redenção: ela cria raízes sobretudo nos estratos sociais menos privilegiados ou nos indivíduos de algum modo desafor­ tunados, os quais agitam o seu sofrimento como um título de mérito em vista da futura libertação. 1 927 Do outro lado temos a "teodiceia da felicidade", à qual fazem referência as classes dominantes ou de algum modo satisfeitas com a sua condição social e a vida em geral: O homem feliz raramente se contenta com o simples fato de possuir a própria felicidade. Ele tem necessidade também de ter direito a tal felicidade. Quer ser convencido de "merecê-la" e, sobretudo, de merecê-la em relação aos outros. E por isso quer ser também autorizado a crer que os menos afortuna­ dos, aqueles que não possuem uma sorte semelhante, recebem igualmente o que cabe a eles. A felicidade quer ser "legítima". 1928

A rejeição da teodiceia do sofrimento é uma constante na obra de Nietzsche. O nascimento da tragédia procura neutralizá-la não só liquidando toda espe­ rança de redenção do escravo com o argumento da imutabilidade da sua condi­ ção. Este escrito dajuventude vai além. Subscreve e reinterpreta a tese de Schopenhauer segundo a qual, em nível numênico, ou da "comunidade dionisíaca'', há identidade não só "entre existir e ser culpados", mas também entre todos os homens e todos os viventes : fica então sem sentido a oposição entre senhores e servos, entre aqueles que são chamados a guiar o carro da civilização e aqueles que estão destinados a ser as suas vítimas sacrificais ( cf. supra, cap. 1 , § 14). O período "iluminista" faz uma neutralização diferente da teodiceia do sofrimento. São os anos que veem Nietzsche bastante perto do liberalismo europeu. Quem sofre o peso maior de sofrimento são as classes populares (cuja sensibilidade está embotada pela fadiga diária e pela familiaridade com as privações), ou são antes as classes dominantes (oprimidas pelo peso da respon­ sabilidade e até do tédio)? Em Humano, demasiado humano Nietzsche expõe aquilo que ele define como "a minha utopia": Numa ordem social melhor, os trabalhos pesados e as penas da vida serão atribuídos a quem menos sofre com isso, portanto, ao mais insensível, e subindo assim gradualmente, até aquele que é mais sensível às formas mais elevadas e mais sublimadas do sofrimento e que, por isso, continua a sofrer mesmo quando a vida lhe é facilitada ao máximo (MA, 462).

1927 Weber, 1972, pp. 241-2 (= Weber, 1976, pp. 330-1); Weber, 1985, pp. 299-302. 1 928 Weber, 1972, p. 242 (= Weber, 1976, vol. 1, p. 3 3 1 -2).

A utopia aqui contemplada prevê uma distribuição das responsabilidades de modo perfeitamente correspondente ao grau de merecimento e de nobreza espiritual e uma repartição da carga de fadigas e de penas em medida inversa­ mente proporcional à capacidade de sofrer e ao grau de sensibilidade; poder­ se-ia chegar a esse resultado procedendo à divisão da sociedade em duas cas­ tas : de um lado "a casta do trabalho forçado'', do outro lado, "a casta do traba­ lho livre", ou "a casta dos oci-Osos", a élite constituída por aqueles que são "capazes do verdadeiro ócio" e capazes, ao mesmo tempo, de sofrer bem mais profundamente do que as naturezas vulgares (MA, 439). Uma última disposição pode servir para tomar o quadro ainda mais harmônico e a utopia ainda mais sedutora: Se depois houver um intercâmbio entre as duas castas, de modo que as famílias e os indivíduos mais obtusos e menos inteligentes forem degrada­ dos da primeira para a segunda casta, e, por outro lado, os homens mais livres desta última obtiverem o acesso à superior, então se terá atingido um estado além do qual se verá ainda apenas o mar aberto dos desejos indeterminados. Assim nos fala a voz esmorecida do tempo antigo; mas onde há ainda ouvidos para ouvi-la? (MA, 439).

Desse modo, a teodiceia cristã do sofrimento foi radicalmente neutraliza­ da. Não há sombra de sofrimento "injusto", pelo fato que a divisão do trabalho acabou sendo realizada no respeito rigoroso pelo critério do mérito e da sensi­ bilidade à dor. Na realidade, não há sequer sofrimento propriamente dito: aque­ les que têm tendência a percebê-lo são exonerados do trabalho duro e até do trabalho enquanto tal, ao passo que a fadiga e o trabalho são atribuídos àqueles que por definição são insensíveis. O grave erro dos socialistas é alvejar "a melhor casta da sociedade, exteriormente privilegiada, cuja verdadeira tarefa, a produção dos bens mais altos da civilização, toma a vida interior tanto mais dificil e dolorosa" (MA, 480). Mas as dúvidas sobre essa construção surgem imediatamente. O aforismo que acabamos de citar de Humano, demasiado humano deixa escapar que "o ponto de vista da repartição da felicidade não é essencial, quando se trata de produzir uma civilização superior" (MA, 439). É admitir indiretamente que a infe­ licidade continua a existir e que a sua repartição é tão pouco harmoniosa que não pode ser justificada fazendo referência aos méritos e ao grau de sensibilidade deste ou daquele indivíduo, mas só às exigências superiores da civilização. A última fase da evolução de Nietzsche o vê aguçar a um grau maior a polêmica contra "la religion de la soujfrance humaine" (JGB, 2 1 ), ou seja, contra o cristianismo e a ''teodiceia do sofrimento" em todas as suas formas .

Mas a novidade mais importante é outra. Se também o tema harmonicista con­ tinua a estar presente até o fim, no sentido de que o filósofo não renuncia jamais a sublinhar a carga de responsabilidade e de sofrimento que pesa sobre as almas mais nobres e delicadas (supra, cap. 1 3 § 3), o que caracteriza agora o seu pensamento é a afirmação franca ou brutal de que a marcha da civiliza­ ção exige de qualquer modo as suas vítimas sacrificais. Entrementes, Nietzsche deixou decididamente para trás dele também a tentativa feita, seguindo as pe­ gadas de Schopenhauer, em O nascimento da tragédia, de neutralizar a carga de negatividade mediante a referência a uma esfera numênica além do principium individuationis. Por outro lado, agora já desapareceu o mundo no âmbito do qual o escravo ou servo podia aceitar a sua condição como algo natural. De qualquer modo, as "tarântulas" socialistas conseguiram um resulta­ do, o de envenenar com o ressentiment a consciência dos submetidos. Ai, po­ rém, se agora conseguirem alcançar o ulterior resultado ao qual tendem: "Não poderia haver equívoco maior e mais fatal do que os felizes, os bem sucedidos, os poderosos de corpo e alma começarem a duvidar então do seu direito à felicidade" (GM, Ili, 1 4). Para poder rejeitar o ataque, a teodiceia da felicidade deve adquirir um suplemento de dureza. Ao exigir um rigoroso apartheid social, Genealogia da moral convida a não se deixar estorvar por escrúpulos sem sentido: "fora com esse debilitamento do sentimento" (GM, Ili, 1 4). A nova teodiceia da felicidade que se necessita não é mais o tranquilo gozo do poder e da riqueza, mas pres­ supõe a luta sem quartel para liquidar as ameaças que pesam sobre ela. A felicidade que "quer ser legítima", da qual Weber fala, é agora como uma ilha que corre o risco de ser engolida pelo oceano circunstante. A teodiceia da felicidade que se impõe implica a tomada de consciência da amplidão do mal a enfrentar e da dureza da qual os fiéis devein saber dar prova para defender o seu legítimo "direito à felicidade". É uma "teodiceia da felicidade'', trágica e dionisíaca, capaz de reforçar, apesar de tudo, a inocência do devir e chamada a liquidar de uma vez para sempre a teodiceia cristão-socialista do sofrimento.

6. O filósofo, o brâmane e o ''partido da vida " O filósofo, tão frequentemente interpretado em perspectiva metafórica, não só pensa em termos profundamente políticos, mas se coloca também o problema dos instrumentos necessários para conseguir os objetivos enuncia­ dos . Daí a sua aspiração a fundar ou a estimular a fundação de um "partido da vida", em função da realização da "grande política" (supra, cap. 1 1 § l e 7):

esta ultima se caracteriza, entre outras coisas, pela sua capacidade de "tirar de toda parte os valores cristão-niilistas e combatê-los sob qualquer máscara . . . , da atual sociologia, por exemplo, da atual música, por exemplo, do atual pessimis­ mo (todas formas do ideal cristão dos valores)" (XIII, 220). É o próprio Nietzsche quem lê em perspectiva política ou ético-política o seu pensamento. O mérito que se atribui não é em primeiro lugar o de ter dado impulso à pesquisa filológica 011 à pesquisa estética ou psicológica. Tudo isso desempenha um papel subordinado. Mesmo quando, nos anos de O nascimen­ to da tragédia, declara que "o devir não é um fenômeno moral, mas unica­ mente um fenômeno artístico" (PHG, 1 9; 1, 869), ele tem em mente, em primei­ ro lugar, como alvo polêmico, a visão moral do mundo que alimenta as revoltas dos escravos contra a "injustiça" . Como é confirmado pela evolução posterior: "Até hoje, ninguém examinou o valor do mais célebre dos medicamentos, que se chama moral: isto requer, antes de tudo, pôr esse valor em questão. Este é justamente o nosso trabalho" (FW, 345). É um trabalho cujo significado trans­ cende infinitamente o âmbito da pura pesquisa científica ou cultural: "O proble­ ma da origem dos valores morais é para mim um problema de primeira ordem, porque dele depende o futuro da humanidade" (EH, Aurora, 2). Resolver esse problema é uma "tarefa", uma "missão", um "destino". Nietzsche não se cansa de insistir nisso durante toda a sua evolução. Já em Basileia, encarrega-se voluntariamente da "missão" (Bestimmung) que - obser­ va o jovem professor numa carta a Rohde - Wagner "vê prefigurada em mim" (supra, cap. 3 § 2). A sucessiva mudança do conteúdo da "missão" não inclui a diminuição dessa forma de autoconsciência: "A nossa missão (Bestimmung) dis­ põe de nós, mesmo quando ainda não a conhecemos" (MA, Prefácio, 7). É um tema que volta insistentemente, ainda que com uma linguagem de vez em quando diferente: "A minha tarefa (Aufgabe) é: mudar as valorações" (IX, 470). Além de tornar evidente - declara o filósofo - "a desproporção entre a grandeza da minha tarefa (Aufgabe) e a pequenez dos meus contemporâneos" (EH, Prólogo, 1 ), a "transvaloração de todos os valores" implica em "poderes maiores do que aqueles que jamais existiram juntos em qualquer outra pessoa" (EH, Porque sou tão inteligente, 9). A pessoa empírica é o veículo de um destino: "Uma respon­ sabilidade indizível pesa sobre mim [ . . . ] . Pois eu trago o destino (Schicksal) da humanidade sobre os meus ombros" (EH, O caso Wagner, 4). É eloquente o título de um capítulo de Ecce Homo: Porque sou um destino (Schicksal). Nietzsche declara perceber um sentido de "responsabilidade para todos os milênios depois de mim" (EH, Porque sou tão inteligente, 1 0) . À luz dessa "missão", dessa "tarefa" e desse "destino", a precedente "existência de filólogo" se revela no seu "aspecto inútil, arbitrário" (EH, Hu-

mano, demasiado humano, 3). A filologia, a arte, a psicologia, qualquer outra disciplina é bem pouca coisa em relação às "tarefas que envolvem a história universal" (EH, As considerações inatuais, 3), antes, com respeito a tarefas cuja solução divide a história da humanidade em duas partes . Para aqueles que quisessem colocar Nietzsche numa esfera afastada do conflito político e mais próxima da pura contemplação estética ou da pura investigação psicológica, se poderia responder com as palavras do próprio filósofo: "Fora dos grandes pro­ blemas da moral, nada há de importante" (XIV, 263). Embora não sem contradições, Lou Salomé evidencia um aspecto essen­ cial do pensamento e da personalidade de Nietzsche: ele "não procura ensinar, mas converter". 1 929 Desde o início, ele nos fala como partidário e teórico de uma visão do mundo que vai bem além da sua pessoa, como membro e líder de um movimento absolutamente não confinado ao âmbito acadêmico, mas, ao contrário, empenhado numa luta política bastante áspera. Já quando jovem es­ tudante, numa carta a Rohde de 3 ou 4 de maio de 1 868, formula este programa preciso: "Fazer frutificar para o nosso próximo a nossa constelação de energias e de ideias [ ]. Não nos é lícito viver para nós mesmos" (B, 1, 2, p. 275). É uma atitude que caracteriza o jovem estudante, o filólogo, o filósofo até o fim. Pode ser útil percorrer de novo rapidamente, mesmo ao preço de alguma repetição, as expressões mais significativas a esse propósito encontradas no curso da reconstrução da biografia intelectual de Nietzsche. Tendo apenas che­ gado a Basileia, chama para uma "luta" sem quartel: muitos cairão, mas o importante é que outros estejam prontos para empunhar a "bandeira" (supra, cap . 1 § 1 7). Quem remete com nostalgia à terra de Ésquilo e dos filósofos pré­ socráticos não é um filólogo movido pelo desejo de reconstruir um capítulo de história, mas um militante em busca de um modelo político a opor à modernidade: "A Grécia tem para nós o valor que têm os santos para os católicos" (VII, 1 8); "aquilo que esperamos do futuro já foi realidade num tempo" (GMD; 1, 532). Considerações análogas se podem fazer a propósito da relação com Wagner. Ele é admirado e indicado para a admiração pública, no período pré­ "iluminista", enquanto "sublime combatente" de uma grande causa que envol­ ve o futuro da Europa e da civilização no seu conjunto (GT, Prefácio) . Em tomo do grande musicista deve ser organizada uma espécie de exército: "Para nós, Bayreuth significa a consagração matinal no dia da batalha" (WB, 4; 1, 45 1 ) É nítido o distanciamento daqueles que estão separados com respeito à realidade e a luta política: "Só quem age aprende" (Za, IV, O homem mais feio). É preciso alinhar-se. Se Strauss chama a reunirem-se aqueles que se ...

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1929 A.ndreas-Salomé,

1998, p. 13.

reconhecem na modernidade ("nós modernos", Wir Heutigen) (supra, cap. 4 § 7), Nietzsche, ao contrário, apela para os "inatuais": "nós, homens póstumos" (FW, 3 65); "nós, homens novos, sem nome, dificeis de compreender, nós, filhos precoces de um futuro ainda não verificado"! Agora se compreende por que Nietzsche, ao definir sua posição, recorre constantemente ao plural : "nós, argonautas do ideal" (FW, 3 82; EH, Assim falou Zaratustra, 2); "nós, espíritos livres" (JGB, 44; MA, Prefácio;?; WA, Pós-escrito); "nós, imoralistas" (JGB, 32); "nós, imoralistas e anticristãos" (GD, Moral como contranatureza); "nós, pagãos" (XIII, 487); "nós, alcíones", partidários da "gaia ciência" (WA, 1 0). Progressivamente, essas palavras de ordem se enchem de conteúdos po­ líticos precisos: ''Não sejamos humanitários"; "meditemos sobre a necessidade de novos ordenamentos, até de uma nova escravidão" (FW, 3 77). E exatamen­ te porque a contradição principal é aquela que opõe servos e senhores, "seja­ mos [ . . . ] bons europeus", "sem pátria" (FW, 377); mais exatamente, "a nossa pátria" é "a nossa altura", é a infinita distância com respeito à ralé (Za, II, Da canalha; EH, Porque sou tão sábio, 8). Olhando embaixo desse topo, os ódios nacionais que laceram a élite europeia parecem mesquinhos e insensa­ tos . Uma ruptura com o passado se impõe. O novo alinhamento anti-"humani­ tário" e antidemocrático, que está aparecendo, nada tem a ver com o tradicio­ nal provincianismo e chauvinismo, nem sequer com o conservadorismo clericalizante que com freqüência se entrelaça com ele. Os membros do novo "partido" são chamados a tomar consciência orgu­ lhosa de si, traçando uma linha intransponível de demarcação, em primeiro lugar, com respeito aos miseráveis e à "canalha". Mas não são apenas os mise­ ráveis que engrossam o movimento democrático e socialista; intervêm também os intelectuais, os artesãos, etc. O radicalismo aristocrático não deve ter nada a ver sequer com eles, com os "homens meramente 'produtivos '" (supra, cap . 1 1 § 3-4). A humanidade comum é medíocre e interiormente pobre e vazia. Sobretudo, é medrosa, incapaz de pensar grandes perspectivas e de correr aventuras e riscos. Que abismo - declara Nietzsche - com respeito ao "nosso gosto" ! E "portanto, deixamos tudo isso para muitos, para a maioria! Nós, po­ rém, queremos nos tomar aqueles que somos - os novos, únicos, incompará­ veis, os legisladores de si mesmos, os criadores de si mesmos! " (FW, 335). Enquanto traça uma linha intransponível de demarcação com respeito à ralé, a "maneira aristocrática de valoração" reforça a ligação que une os mem­ bros da é/ite: "Nós os nobres, nós os bons, nós os belos, nós os felizes" (GM, 1, 1 0); "nós, os pródigos e ricos do espírito" (FW, 378); "nós somos os artistas no desprezo'', "somos além disso os 'eleitos de Deus'" (FW, 379); "nós outros nos poremos imediatamente no grandioso e sublime trabalho da vida" (XIII, 644).

A conquistada ou reconquistada consciência de si estimula um espírito combativo e de desafio aberto: "Agitemos a poeira das estradas/nos narizes de todos os doentes/atemorizemos todo o bando dos enfermos!/Livremos a costa inteira/do alento dos peitos ressequidos/dos olhares sem coragem" (FW, Apên­ dice, Ao Mistral). A dissolução crítica dos dogmas e dos valores tradicionais não se traduz absolutamente num ceticismo inerte e impotente (supra, cap. 21 § 6). Um trecho de Além do bem e do mal esclarece a relação que Nietzsche institui entre ele e o "partido da vida" por ele auspiciado; aqui, indaga o possível papel de "indivíduos" de "origem nobre" (vornehme Herkunft), propensos, "pela sua alta espiritualidade, a uma vida mais retirada e mais contemplativa" e que reservam para si "apenas a espécie mais refinada do comando (aquele exercido sobre discípulos e colegas escolhidos)". São um pouco como "os brâmanes", os quais "atribuíram para si o poder de dar ao povo seus reis, en­ quanto se mantinham e se sentiam à parte e de fora, sendo eles os homens que tinham tarefas mais altas e superiores às do rei" (JGB, 6 1). Mais tarde Zaratustra se torna o ponto de referência para os reis decididos a lutar contra a massificação e a devastação modernas: "Tu fendes a mais densa treva do nosso coração . Tu descobristes a nossa miséria, porque, vê, nós mesmos estamos a caminho para encontrar o homem superior [ . . . ]. Tu continuas a varar nosso coração e nosso ouvido com as tuas máximas" (Za, IV, Colóquio com os reis, 1-2) . Zaratustra­ Nietzsche aspira a ser o brâmane do "partido da vida".

7.

"A u todisciplina lingüís tica " co ntra "anarquia " e "acana/hamento lingüístico "

Até os aspectos à primeira vista puramente literários e estéticos revelam alguma ligação com o interesse político. No entanto, a cura e o esplendor da prosa não são estranhos à tentativa pedagógica: "Acredita-se em tudo o que é bem dito" (FW, 23). Quem quiser agir sobre a realidade não pode limitar-se a apelar para a razão: "Quanto mais abstrata é a verdade que se quer ensinar, tanto mais é necessário que ela seduza primeiro os sentidos". Não se trata de um elemento meramente exterior: "O estilo deve fornecer a demonstração do fato de que se crê nos pensamentos próprios, de que não se pensa apenas, mas que também se sente"; nesse sentido, "o estilo deve viver", deve demonstrar que é vida. São as recomendações contidas naquela espécie de "decálogo" que o filósofo envia a Lou Salomé em agosto de 1 882 (B, III, 1 , p. 243-5). Por outro lado, a destinatária da carta sabe que seu autor "quer convencer o indivíduo inteiro, quer que a sua palavra mergulhe em sua alma", porque só desse modo

ele pode conseguir o objetivo que almeja, o da persuasão e até, como sabemos, da conversão dos leitores .1 93º Mas o esplendor e o vigor da prosa revestem um significado político tam­ bém num sentido mais profundo, independentemente da eficácia pedagógica que estão chamados a desenvolver. A mediocridade estilística da modernidade lembra a falta de otium própria de um mundo que, esquecido da escravidão como fundamento da civiliza�ão, celebra a "dignidade do trabalho" e a celebra até para o intelectual . Este acaba sendo reduzido à categoria de diarista e realiza "um trabalho por jornada" (Tagelõhnerei) à maneira do trabalhador assalariado, o Tagelõhner propriamente dito (BA, 1 ; 1, 670- 1 ); e, como o tra­ balhador assalariado, também o intelectual diarista é um "escravo do dia, ligado à cadeia do momento, e faminto, eternamente faminto !" (BA, 5; 1, 747). É um tema no qual Nietzsche insiste já desde os anos de O nascimento da tragédia. No âmbito deste produtivismo desenfreado não há mais lugar para a forma e o gosto pela forma: "Melhor fazer qualquer coisa do que nada" - este princípio é também uma regra para dar o golpe de misericórdia em toda educação e em todo gosto superior. E assim como todas as formas sucumbem visivelmente à pressa dos que trabalham, o próprio sentimento da forma, o ouvido e o olho para a melodia dos movimentos também sucumbem (FW, 329)

Portanto, a "perícia do ourives da palavra, que deve realizar um trabalho atento finíssimo e não consegue nada se não o fizer lentamente" (M, Prefacio, 5), a atenção reservada à forma é também ela um momento essencial da denún­ cia da modernidade. No que diz respeito à Alemanha, a fim de evitar um alemão reduzido a língua "estropiada e infamada", seria preferível "voltar o mais rápido a falar latim" (BA, 2: 1, 675). A "autodisciplina linguística", o convite e o empenho a percorrer "o caminho espinhoso da linguagem", a fim de conferir uma expres­ são também estilísticamente adequada ao pensamento próprio, tudo isso visa tor­ nar ainda mais radical o afastamento em relação ao presente, objeto de "desgosto fisico" também nesse plano e condenado agora em virtude de um ')uízo estético" (BA, 2; 1, 684), que é ao mesmo tempo um juízo político. Os intelectuais modernos parecem querer seguir a divisa: "Primum scribere, deinde philosophari" (FW, Brincadeira, astúcia e vingança, 34). As consequências de tal atitude são devastadoras: Pensamos muito rapidamente, andando, a caminho, em meio a negócios de toda espécie, mesmo quando pensamos no que há de mais sério; necessita1930 Andreas-Salomé,

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mos de pouca preparação, e mesmo de pouca tranquilidade: é como se levás­ semos na cabeça uma máquina incessante, que nas condições mais desfavo­ ráveis ainda trabalha (FW, 6).

Que abismo com relação à antiguidade clássica e ao seu hábito de medi­ tação: "permanecia por horas parado na rua, em silêncio, quando o pensamento 'vinha'; sobre uma ou também sobre duas pernas" (FW, 6). E à seriedade e à intensidade do pensamento correspondia a atenção e o respeito pela forma, como atesta já a "extraordinária seriedade" reservada à "língua" (supra, cap. 4 § 3). Felizmente, algo da grande herança continua a viver na figura do estu­ dioso que se formou na atenta leitura e interpretação dos grandes textos gregos e latinos. Antes e mais do que qualquer outro, o filólogo sente incômodo e repulsão por esse horror que é a "cultura" moderna: ''Na maioria dos trabalhos eruditos feitos pelos filósofos das universidades, o filólogo sente que eles são mal escritos, sem rigor científico e, no mais das vezes, com uma intolerável prolixidade" (SE, 8; 1, 4 1 7). Aqueles que se mediram realmente com a antigui­ dade clássica tendem a ser "mestres da leitura lenta" e acabam "também por escrever lentamente", colocando-se assim em nítida antítese em relação a "uma época do 'trabalho ' ", caracterizada pela "pressa", pela "precipitação indecoro­ sa e suada". E, portanto: "Filologia é aquela honorável arte que exige do seu cultor sobretudo uma coisa, pôr-se de lado, dar-se tempo, tomar-se silencioso, tomar-se lento'', renunciar a querer "'despachar' imediatamente cada coisa, também cada livro antigo e novo" (M, Prefácio, 5). Se forma e conteúdo tendem a ser a mesma coisa, não pode ser considera­ da externa ao conteúdo filosófico uma escritura que na sua própria configuração evidencia a rejeição do lixo e da vulgaridade modernas: "A pobreza da língua corresponde à pobreza das opiniões: pensemos nos nossos jornais literários" (VII, 83 0). Portanto, "escrever melhor significa contemporaneamente também pensar melhor; encontrar coisas sempre mais dignas de serem comunicadas e saber de fato comunicá-las" (WS, 87). É tema sobre o qual Nietzsche insiste com força: "Ora, o bom autor não se distingue só pela força e concisão do seu raciocínio. Ele também se adivinha, se fareja, contanto que seja homem de nariz fino. Um escritor assim se obriga e se dedica constantemente antes de tudo a estabelecer e a tomar sempre mais sólidos, de modo rigoroso, os seus conceitos (a unir conceitos unívocos às suas palavras) e, antes que isto aconteça, não gosta de escrever (XI, 445-6).

E mais uma vez a familiaridade com a antiguidade clássica e a distância, pelo menos ideal, da modernidade produzem um efeito bastante positivo: esp í­ ritos confusos, mal preparados" são aqueles "sem educação filológica", pois "

esta confere precisão e univocidade às categorias e aos conceitos utilizados, eliminando os "borrões de conceitos informes e flutuantes" (XI, 445). Obviamente, esses trechos têm um valor também autobiográfico que, às vezes se torna explícito: "Eu não sou daqueles que pensam tendo na mão a pena molhada" (FW, 93). E este outro trecho tem o valor de uma confissão: "Os grandes mestres da prosa foram quase sempre poetas também, seja publi­ camente ou apenas em segredo, e 'para os íntimos'; e, de fato, apenas em vista da poesia se escreve boa prosa" (FW, 92). Enquanto "mãe de todas as coisas boas, a guerra é também a mãe da boa prosa!" (FW, 92). No entanto, a perda de sentido da forma e a luta pela sua recuperação constituem um acontecimento que transcende de longe esta ou aquela persona­ lidade: mesmo além da antiguidade clássica, "a coação desconfiada na comuni­ cação dos pensamentos, a disciplina a que se submetia o pensador ao meditar dentro de uma regra eclesiástica e cortesã", tudo isso contribuiu para instilar "no espírito europeu a sua força, a sua curiosidade sem preconceitos e mobili­ dade refinada" (JGB, 1 8 8). O emergir e o impor-se do intelectual-diarista, cantor e escravo ao mesmo tempo do presente, é um sinal trágico de decadência e um momento de virada na história. Na figura dele se encarnam "todos os males do nosso ambiente literário e artístico, ou seja, a tendência a produzir de modo apressado e vaido­ so, a impaciência desprezível de escrever livros, a completa falta de estilo [ . . . ], a perda de todo cânone estético, a vontade da anarquia e do caos" (BA, 2 ; 1, 681). Mais tarde, O crepúsculo dos ídolos atribui a Sócrates, protagonista da subversão plebeia, "desregramento e anarquia dos instintos" (GD, O problema Sócrates, 4). Por outro lado, no que diz respeito ao presente, David Friedrich Strauss, cantor acrítico da modernidade, à qual adere com a sua despreocupa­ ção de filisteu (OS, 6; 1, 1 9 1 ), é ao mesmo tempo culpado de um "acanalhamento linguístico" (Sprach-Verlumpung) (MA, Prefácio ao vol. II, 1). "Anarquia", "acanalhamento": é tênue a fronteira entre juízo estético e juízo político. E não há dúvida de que a condenação da barbarização estilística é a condenação também da barbarização política da modernidade; "a lingua­ gem canalha" em que Strauss se exprime (DS, 1 2; 1, 235) - sublinha a primeira Inatual citando Schopenhauer - é "a linguagem canalha da nobre 'época de hoje'" (DS, 1 1 ; 1, 22 1 ). Rasura do conteúdo e desmazelo do estilo são o sintoma inconfundível do emergir de uma figura social desastrosa, a do intelectual ple­ beu: "Visto que a única forma de cultura de que os olhos acesos e os órgãos embotados de pensamento da classe dos trabalhadores eruditos gostam de ocu­ par-se é exatamente aquela cultura filisteia cujo evangelho Strauss anunciou" 'DS, 8; 1, 205).

O alimento principal dessa nova classe social é constituído pelos jornais. Já temos conhecimento, pelas versões e pelos textos preparatórios de O nasci­ mento da tragédia, Aque diz respeito às leituras do filisteu alemão à maneira de Strauss, "a preeminência [ . . . ] está, sem dúvida, do lado dos jornais, além das revistas e seus similares" (DS, 1 1 ; 1, 222). E daqui partem os "discursos políti­ cos diários" sim "sobre o matrimônio" e a "pena de morte", mas, sobretudo, "sobre o sufrágio universal" e"'sobre as greves dos operários" (DS, 9; 1, 2 1 5). Ainda uma vez, miséria da forma e miséria do conteúdo são a mesma coisa. É um tema retomado e radicalizado nos anos seguintes: A parte muito maior do que se lê é constituída pelos jornais ou coisas do gênero. Vejam-se as nossas revistas, os nossos jornais de cultura: qualquer um que escreve aí fala como que diante de um público não selecionado, e se deixa levar, ou melhor, cair, numa poltrona. - Aqui as coisas ficam ruim para quem atribui valor sobretudo aos pensamentos secretos e ama, nos livros, mais do que qualquer coisa expressa, as reticências. -A liberdade de impren­ sa arruína o estilo, e, no fim, também o espírito [... ]. A "liberdade de pensa­ mento" arruína os pensadores (XI, 440).

Em virtude da ligação indissolúvel entre forma e conteúdo, a luta pela forma se configura, pelo menos nos anos das esperanças suscitadas pela fundação do II Reich, como uma luta imediatamente política. Seria preciso pôr fim, pelo menos na Alemanha, "àquela moderna variedade de cores de feira", muitas vezes cele­ brada pelos intelectuais "como o 'moderno em si"' (DS, 1 ; 1, 1 63). Infelizmente, "a forma é comumente considerada como uma convenção, como disfarce e fin­ gimento, e é por isso, se não odiada, de qualquer modo não amada" (fil, 4; 1, 275). É considerada não essencial e exterior com respeito ao "conteúdo" e à "interioridade"; no entanto, separada da forma, tal interioridade pode ter todas as qualidades que quiser, "mas, no conjunto, ela permanece fraca, porque todas as belas fibras não estão interligadas no nó firme" (fil, 4; 1, 276). A impotência política do II Reich, a sua incapacidade de manter as promessas formuladas no momento da sua fundação, é também a sua impotência estilística.

8. Aforismo, ensaio e sistema A centralidade do interesse político ou ético-político explica também o suceder-se das formas literárias e estilísticas na evolução de Nietzsche. Ele inicia sua carreira filosófica com dois manifestos do "partido" ou do movimento da visão trágica do mundo (O nascimento da tragédia e as Conferências

sobre o faturo das nossas escolas) e prossegue com textos (as Considera­ ções inatuais) comprometidos ou a liquidar no plano teórico e político os expo­ entes mais em vista do "partido" da modernidade ou a analisar os autores de referência e os pontos centrais da plataforma do "partido" ou do movimento antimoderno que o filósofo pretende desenvolver. É apenas com a crise dessa plataforma, depois da evidência da vulgaridade moderna do II Reich e do desa­ parecimento das esperanças àe regeneração trágica da Alemanha, que Nietsche se aproxima do aforismo. Este permite a agilidade necessária num momento em que desabaram as antigas certezas sem que tenham surgido as novas. Por outro lado, no período "iluminista", chegam à maturação e expressão acabada tendências profundas . Veremos que, na base do pensamento e do modo de filosofar de Nietzsche, atuam um complexo entrelaçamento interdisciplinar e a persuasão da tradutibilidade da linguagem. Na passagem de uma linguagem para outra, a tradução é mediada pelo esforço de identificação psicológica, não certamente pelo tratamento sistemático de cada disciplina indi­ vidual, que resultaria evidentemente impossível. Compreende-se então o recur­ so ao aforismo. A esse gênero literário conduz também a rigorosa autodisciplina linguística, presente desde o início e à qual, como vimos, Nietzsche atribui um significado filosófico, de desinteresse pela pressa jornalística e da imundície que caracteriza o moderno em todas as suas manifestações. Nesse sentido, o aforismo é uma tendência inerente já no modo e no conteúdo do filosofar de Nietzsche. Ela se acentua à medida que se torna mais forte o sentido de isola­ mento e "inatualidade". O que se opõe a uma loucura secular que se tomou senso comum, e que permeia de de maneira penetrante toda manifestação da vida cultural e política, não pode ser um saber novo ainda todo por construir, mas só as marteladas de aforismos mortíferos. Tanto mais porque eles estão em condições de desenvolver uma grande eficácia pedagógica e política: "En­ fim, a minha brevidade tem também outro valor: ao enfrentar os problemas de que me ocupo, devo dizer de maneira breve muitas coisas, para ser ouvido ainda mais brevemente". Para poder influenciar também os leitores mais dis­ tantes do radicalismo antidemocrático - prossegue Nietzsche - "os meus es­ critos devem entusiasmá-los, elevá-los, incitá-los à virtude" (FW, 3 8 1). Ao fragmento conduz também a visão da filosofia como autoconfissão. A partir da persuasão de que "a vontade de sistema é uma falta de honestidade" e que, portanto, é preciso desconfiar de "todos os sistemáticos" (GD, Máximas e dardos, 26), uma conclusão se impõe: "Os livros mais profundos e inexauríveis terão sempre algo do caráter aforístico e repentino dos Pensamentos de Pascal . As avaliações e as forças que dão o impulso estão muito abaixo da superficie; o que vem para fora é o efeito" (XI, 522). Mas é preciso não perder de vista o

significado também político desta primazia concedida à psicologia. O que real­ mente conta numa filosofia não são a sua construção sistemática e os seus nexos lógicos e especulativos, mas a alma nobre ou plebeia que nela se expri­ me, a natureza sadia e vital do bem sucedido ou aquela doente e turva do fracassado da vida. Atribuir importância excessiva às cadeias de demonstra­ ção já é indício de plebeísmo porque significa colocar no centro a comunidade do conceito, em última análise o rebanho, no lugar da personalidade egrégia e excepcional. Em dois fragmentos da primavera-verão de 1 885, Nietzsche adverte so­ bre a necessidade de refletir não só sobre o percurso intelectual realizado por ele, mas também sobre as formas expressivas às quais recorreu em cada etapa da sua evolução. Depois de ter comparado os seus escritos a "redes lançadas" com a finalidade de conseguir outros homens para a sua visão ideal e política (supra, cap. 1 § 1 7), o filósofo se pergunta: A quem se dirigir? Fiz a minha tentativa mais longa com aquele homem mul­ tilateral e enigmático, por cuja mente talvez se tenham passado mais coisas boas e más do que pela de todos os outros homens deste século, com Richard Wagner. Mais tarde imaginei-me "seduzindo" a juventude alemã [ . . . ]. Ainda mais tarde construí uma linguagem para as cabeças e os corações viris e ousados, para que esperassem num canto qualquer perdido da terra as minhas coisas inusitadas. Enfim - mas não se quererá crer em qual "en­ fim" cheguei. Basta, poetai o Assimfalou Zaratustra (XI, 507).

O segundo fragmento prossegue assim: Não escrevo ensaios (Abhandlungen): os ensaios são para os asnos e para os leitores de revistas. E muito menos discursos! Dirigi minhas considera­ ções inatuais, jovem, para os jovens, aos quais falei de minhas esperanças interiores e de meus votos, para atraí-los aos meus labirintos [ . . . ]. Pois bem, agora não tenho mais razão alguma para ser "eloquente" e daquela maneira antiga; hoje, talvez não seja mais capaz (XI, 579).

Considerada a continuidade da preocupação pedagógico-política, esta en­ contra expressão em formas literárias cada vez mais diferentes. À tentativa de influir sobre o "partido" wagneriano, através de O nascimento da tragédia e dos Cinco prefácios não por acaso dedicados a Cosima Wagner, seguem-se as Considerações inatuais que, colocando-se na esteira das conferências de Basileia, parecem configurar-se como "discursos" (Reden), perpassados como estão pela preocupação de influenciar a 'juventude" a fim de conquistá-la para a luta contra a modernidade. Tendo essa tentativa se mostrado sem resultado,

surge o apelo aos "corações viris e ousados'', os espíritos solitários aos quais se destinam os aforismos, em particular, do período "iluminista". Assim falou Zaratustra continua dirigindo-se a eles, mas recorrendo a um gênero literário diferente. Não se trata mais, observa Nietzsche em suas cartas - de "uma coletânea de aforismos", mas de um "poema" (Dichtung), que ao mesmo tempo toma a forma de um "quinto 'Evangelho"' (B, III, 1 , p. 3 26-7). Ficou agora decididamente para trás o "gelo" do período "iluminista", e a essa "nova saúde", à reconquistada confiança de poder agir politicamente corresponde uma forma literária mais incisiva. No segundo fragmento citado acima, Nietzsche exprime o seu desprezo pelo gênero literário dos ensaios. Faltam dois anos para a publicação de Genealogia da moral, que está exatamente constituída por três "ensaios" (A bhandlungen), ou dissertações. As "pregações morais" de Assim falou Zaratustra (B, III, 1, p. 32 1 ) são substituídas agora por uma reflexão mais organizada. Por outro lado, já numa carta de agosto de 1 883, Nietzsche se compraz em sublinhar "a ininterrupta densidade e coerência dos pensamentos, embora não conscientemente perseguida, na massa variada dos meus recentes livros" (B, III, 1 , p. 4 2 9) . E, em 1 885, ele fala dos seus "livros de aforismos" como "correntes de pensamentos" (XI, 579). Portanto, aqui já estão os pressu­ postos para desenvolver a reflexão sistemática que se impõe. Faz tempo que Nietzsche acalenta o plano de elaboração da obra definitiva, A vontade de potência, chamada a definir de modo organizado a plataforma teórica e políti­ ca do "partido da vida" e em cujo âmbito os aforismos deveriam conectar-se numa sequência fechada, para tomar a forma não diferente das proposições, dos corolários e dos escólios na Ética de Spinoza.

29 C OMO

P Ô R DOIS MIL ANOS DE HIST Ó RIA E M DISCUSS ÃO .

ANTIDOGMATISMO E DOGMATISMO D O RADICALISMO ARISTOCRÁTICO

1 . Philosophia facta est quae philologia fuit ublinhar o caráter totus politicus e coerentemente reacionário do pensa­ ao reducionismo e perder de vista a excedência teórica. Pelo contrário, é apenas agora que ele pode emergir em toda a sua força. Colocar dois milênios de história em discus­ são é uma empresa à primeira vista impossível, e que não pode sequer ser tentada se não se tiver a coragem de pôr em discussão não só a aparente "evidência" da ideologia dominante, mas também, e sobretudo, as categorias políticas, epistemológicas, filosóficas, científicas sobre as quais ela se baseia. O radicalismo aristocrático não pode atacar um inimigo tão profundamente arrai­ gado sem se armar de modo adequado no plano teórico, sem aprontar para essa empresa uma poderosa máquina de guerra; não pode refutar dois milênios de "mentira" sem problematizar e redefinir, junto com todo o resto, o próprio conceito de "verdade". Vimos a segunda Inatual zombar da "religião da potência historiográfica", que desejaria consagrar como racional e irreversível o mundo nascido da Revo­ lução Francesa, a modernidade enquanto tal. Mas, como neutralizar concreta­ mente essa religião e essa potência? Talvez os filólogos se encontrem numa posição privilegiada: não perderam, antes são obrigados a guardar a memória de um mundo vivo e esplêndido num tempo passado de apenas "34 vidas humanas sucessivas, calculadas em 60 anos cada uma" para trás (supra, cap. 6 § 3), ou seja, num passado que se revela não demasiado remoto quando nos livramos da superstição do fim da história e recuperamos a dimensão de longa duração. Os anos de colégio e de semi-reclusão em Pforta e os sucessivos estudos universitários estimulam em Nietzsche a identificação empática com a Grécia, essa "verdadeira e única pátria da cultura" (BA, 2 ; I, 686), celebrada e interior­ mente vivida em irremediável antítese com o presente: "Quão miseráveis nós modernos somos com relação aos gregos e aos romanos (SE, 2; I, 343). A filologia tem, então, a tarefa, para dizer com Rohde, de "manter desperto e

S mento de Nietzsche não significa absolutamente entregar-se

claro para a humanidade envelhecida a lembrança da idade mais florescente da sua juventude feliz". 1 931 Delineia-se assim uma filologia-filosofia animada por uma forte paixão política, mas por uma paixão política que, longe de fixar-se sobre a contingência das vicissitudes parlamentares, governativas e partidárias em sentido estrito, percebida como mesquinha e enganosa, visa recolocar em discussão todo o ciclo histórico da modernidade. Tornando possível ou estimulando a sedução exercida pela antiguidade clássica, a formação filológica fornece argumentos e armas essenciais para a luta contra a massificação e o igualitarismo modernos. Nietzsche é plenamente consciente disso. Quem pode perceber "a mais sutil e imperceptível de todas as seduções" ou "a mais sutil e eficaz de todas as sedu­ ções antidemocráticas e anticristãs" são apenas as "almas mais fortes", as "almas exitosas", aquelas "fortes e empreendedoras", aqueles que podem com­ preender e aceitar "uma moral diferente daquela de hoje" e que estão prontos para lutar ou já "lutam inexoravelmente e absolutamente pelos direitos especi­ ais dos homens superiores e contra o 'animal de manada'" (XI, 80 e 582-3). Como um agradecimento indireto, mas solene, pela sua formação filológica soa o capítulo final de O crepúsculo dos ídolos: O que devo aos antigos. Só é possível colocar em discussão as ideias morais e políticas correntes sob condição de acertar as contas com o cristianismo. E, mais uma vez, preciosa e decisiva se revela a familiaridade com o mundo e com os textos da antiguidade clássica. Sobre a importância da filologia na formação intelectual de Nietzsche há um testemunho interessante de Deussen, colega de estudos do ginásio: A nossa fé cristã durou, em certa medida, até depois do exame de madureza. Ela é involuntariamente minada pelo excelente método histórico-crítico com o qual em Pforta eram tratados os antigos, e que automaticamente se mudou depois para o campo da Bíblia. 1932

Já em 1 862, o ginasiano de Pforta exprime a aspiração a "um ponto de vista mais livre, que poderia permitir que pronunciemos um juízo imparcial e adequado ao tempo sobre a religião e sobre o cristianismo" (FG, 43 1 -2). Mais tarde, Nietzsche observa que os "filólogos" são os "destruidores de toda fé que repousa nos livros" (FW, 358). Os resultados, os efeitos explosivos da disciplina por eles cultivada vão muito além da liquidação da crença na inspiração divina de um texto sagrado subtraído às contingências da história. A terceira Inatual observa que "o ho1931 Rohde,

1 972 e, p. 293. 1 90 1 , p. 4.

1932 Deussen,

mem moderno vive nessa oscilação entre cristianismo e antiguidade, entre cris­ tandade medrosa ou mentirosa dos costumes e um apego ao antigo igualmente sem coragem e inibido" (SE, 2; 1, 345). Começa assim a ser posta em discus­ são uma longa tradição que tinha construído a identidade do Ocidente, referin­ do-se ao mesmo tempo tanto à antiguidade clássica como ao cristianismo, sem perceber a contradição, ou antes, as contradições de fundo inerentes a essa construção genealógica. Chegou a hora de levar em conta a inconciliabilidade entre os "sentimentos cristãos" e o "gosto antigo" (JGB, 2 1 O). Torna-se mítica, sobretudo, a própria identidade cristã, a unidade do texto sagrado sobre o qual repousa a ortodoxia vigente no Ocidente. É irreprimível o desprezo de Nietzsche pela "filologia do cristianismo", com a sua "despudorada licença de interpretação" e a "inaudita farsa filológica" por ele posta em cena em torno do Antigo Testamento, violentado e instrumentalizado como profecia da figura de Cristo: "um filólogo, ao perceber isso, para na metade do caminho entre cólera e riso" (M, 84). Já um apontamento preparatório de O nascimento da tragédia observa: "O bem-estar na terra é a tendência religiosa do judaís­ mo. A cristã reside na dor. O contraste é enorme" (VII, 1 1 9). A influência de Schopenhauer e de Wagner explica o áspero antijudaísmo que caracteriza nes­ se momento a posição de Nietzsche. Mais tarde se assiste a uma inversão na hierarquização dos dois componentes constitutivos da Bíblia cristã. Permanece a tese da sua absoluta incompatibilidade: Ter coladojuntos num só livro esse Novo Testamento, essa espécie de rococó do gosto sob todos os aspectos, e o Antigo Testamento, para formar deles a "Bíblia", o "Livro em si": essa foi talvez a maior temeridade e o maior "pecado contra o espírito" que a Europa literária leva na consciência (JGB, 52). O "pecado contra o espírito" é, em primeiro lugar, um pecado contra a filologia. Uma vez que esta é levada a sério, reduz-se a pedaços, junto com a ortodoxia religiosa, também a ortodoxia política do Ocidente. A tradição unitária, da qual pretende ser o representante e o herdeiro, está, na realidade, composta de tradições diferentes e opostas.

Ao olhar atento do filólogo, a modernidade se revela não só repelente, mas também insustentável, exatamente, no plano filológico. Invertendo o dito de Sêneca, Nietzsche sintetiza assim o sentido de sua vivência intelectual de filólogo que se descobre filósofo, e filósofo radicalmente crítico da modernidade: philosophia facta est quae philologia fuit (HKP, p. 268). Obviamente, a filologia em questão aqui não é a costumeira, marcada pela "mais embotada, mais micrológica e árida cientificidade" (BA, 3, 1, 706), não é a disciplina culti­ vada por "filólogos" que "trabalham com perseverança numa pequena horta" e

se contentam em "dominar o seu minúsculo campo", ignorando as "questões restantes até da sua ciência" e de modo total a "filosofia"; esses devem ser considerados simples "operários a serviço da ciência", totalmente subordina­ dos à divisão intelectual do trabalho e à routine profissional, e incapazes de ter uma visão do conjunto (FS, III, 329). Não se pode tomar em consideração nem sequer filólogos "excessiva­ mente moles" (weichlich), ou seja, sem coragem de olhar na cara a realidade da antiguidade clássica e, por isso, propensos a afastar dela tudo o que resulta em contradição com o mundo moderno. De tal modo, junto com a coragem desaparece o efeito de estranhamento. A coragem não faltou, porém, a um grande estudioso dos poemas homéricos: "O fato de Friedrich August Wolfter afirmado a necessidade da escravidão no interesse de uma civilização constitui uma das intuições mais vigorosas do meu grande precursor" (VII, 1 56). Ex­ presso por quem nesse momento ainda é professor de filologia clássica, esse reconhecimento é reforçado nos anos sucessivos: "O melhor que a Alemanha tinha dado é disciplina crítica"; em confirmação disse é citado, junto com outros poucos autores, exatamente Friedrich August Wolf (XI, 496), inserido, com Lessing, Herder, Kant e Niebuhr, na "bela raça temerária" dos "corajosos", capazes de exprimir "um certo 'militarismo' e 'fredericianismo' espiritual" (XIV, 362-3), recomendado por Nietzsche, como sabemos, como antídoto ao gosto mole da modernidade. Agora, uma filologia não "mole" suscita uma interroga­ ção acerca do nexo entre civilização e escravidão, obrigando-nos a olhar a modernidade não como uma coisa óbvia, mas como um desvio pavoroso.

2. In terpre tação do "texto da natureza " e da his tória e problematização do "óbvio " Não por acaso, ao definir o filosofar, Nietzsche se serve de categorias cla­ ramente tiradas da filologia. O mundo, o real no seu conjunto, é um texto que é preciso interpretar. É mérito de Schopenhauer a intenção de "interpretar" (deuten) o "quadro da vida". A natureza se apresenta como uma "grande escritura'', e dela é preciso partir para compreender "a nossa pequena escritura" (IX, 463). Em outro lugar se fala de "interpretação do mundo" (Welt-Ausdeutung) (JGB, 20). Em última análise, "o compreender humano [ . . . ] é apenas um interpretar com base em nós e em nossas necessidades" (XI, 624). Eis então um "velho filólogo" - assim Nietzsche se define - empenhado em "rever algumas artes interpretativas más", criticar as "falsas interpretações (Ausdeutungen) das coisas" (XI, 5 0 1 ). É clara a analogia entre acuidade filológica e rigor filosófico:

Do mesmo modo que um bom filólogo (e em geral todo erudito que tenha estado na escola de filologia) sente aversão pelas interpretações erradas dos textos (por exemplo, por aquelas dos pregadores protestantes nos púlpitos razão por que as classes cultas não vão mais à igreja), assim também, e não por uma grande "virtude", "honestidade", etc., se sente desgosto pela falsidade da interpretação religiosa de todas as experiências da vida (XI, 435). Como a natureza, também a história parece tomar a forma de um texto. O que é, por exemplo, a Revolução Francesa senão um grande texto que espera ser interpretado (JGB, 3 8)? A forte presença do modelo da filologia estimula uma epistemologia antissensualista e consciente da sua problematicidade in­ trínseca, que rechaça a ilusão da imediatez e da evidência: a realidade, também aquela que aparece imediatamente aos nossos sentidos, deverá ser sempre interpretada. Não por acaso, exatamente Além do bem e do mal, que mais difusamente elabora a teoria dos sistemas filosóficos e das visões do mundo enquanto "interpretações" do "texto" constituído pela natureza e pela história, polemiza com particular vigor contra a crença numa "certeza imediata", esta "contradictio in adiecto" (JGB, 1 6); "a fé em 'certezas imediatas' [ . . . ] é uma estupidez", ela não "traz muita honra" aos filósofos (JGB, 34) . Até o prazer e a dor, mais exatamente as sensações de prazer e de dor, são em última análise uma interpretação; elevá-los à dignidade de dado imediato e incontrovertível significa abandonar-se à "superficialidade" (supra, cap. 2 1 § 4). Junto com as presumidas certezas imediatas desaparece a ilusão de conhecimentos adquiríveis sem esforços apropriados e, por isso, tornados ou suscetíveis de tornar-se sa­ ber comum indiscutido: '"Toda verdade é simples' - Isto não é uma mentira dupla?" (GD, Máximas e dardos, 4). As ciências naturais tampouco estão em condição de fornecer um saber ao abrigo de todo problema de interpretação (ou de qualquer dúvida) : "Em cinco ou seis cérebros começa talvez hoje a despontar o pensamento de que também a tisica seja apenas uma interpretação do mundo e uma ordem impos­ ta a ele (segundo o nosso modo de ver! - tomando liberdade de falar) e não mais uma exposição do mundo" (JGB, 1 4).popr Não só as ciências naturais são uma interpretação do mundo ao lado das outras, mas são uma interpretação formulada e afirmada a partir de preocupa­ ções e de escolhas de caráter não já epistemológico, mas estético e político, a partir do gosto democrático e plebeu de achatar e igualar o real. Mal entendida e transfigurada como lugar de certezas incontrovertíveis, a '"ciência"' acaba por revelar-se na realidade um "preconceito" (FW, 3 73).

3. O filólogo-filósofo e o olhar de fora e do alto Com o peso atribuído à interpretação e, portanto, com a potencialidade antidogmática implícita nela, a filologia exerce uma influência profunda tam­ bém no próprio modo de filosofar de Nietzsche. A antiguidade clássica se toma um ponto de observação tão remoto, e tão elevado, que permite abranger com um olhar problemático séculO's, ou antes, dois milênios e mais de história do Ocidente no seu conjunto. Daí surge um efeito de deslocamento em relação ao presente tanto mais radical quanto mais forte são a familiaridade e a identifica­ ção com o passado: a "antiguidade", tomada no seu sentido mais profundo, "toma inatuais" (VIII, 49), evidencia a mudança e o "devir" que caracterizam o processo histórico, suscitando diante da realidade político-social existente aquele eáõiáreâéí ?que, aristotelicamente, é o fundamento do filosofar (VII, 387). A consciência comum "se sente em pleno acordo com este presente, e o assume como algo 'óbvio "' (etwas "Selbstverstãndliches ) (BA, Introdu­ ção ; I, 646). Destruindo a presumida evidência imediata e a obviedade do mo­ derno, a filologia clássica estimula a interrogação filosófica, "aquele estupor filosófico durável sobre o qual apenas, como sobre uma base fecunda, pode ser fundada e crescer uma cultura mais profunda e mais nobre" (BA, 5 ; 1, 74 1). Colocada diante do espetáculo degradante do mundo moderno, a filosofia se vê obrigada a "partir não mais da maravilha, mas do horror" (BA, 2; 673 -4), "daquele sentimento de vergonha para o qual nós, diante de um mundo como é o grego, não temos sequer o direito de existir" (BA, 3 ; 1, 70 1 ) . De qualquer modo, continua firme o efeito de estranhamento com respeito a um presente e a uma realidade, em geral vivida como óbvia e pacífica, que não precisa de ulterior explicação e interrogação. Nietzsche é bem consciente da importância da filologia na sua formação filosófica. Ainda nos últimos anos da sua vida consciente observa: "Não por nada fui filólogo e talvez ainda o seja"; isto per­ mite amadurecer e exprimir as convicções próprias "mais friamente, com mais distância, com maior sabedoria, mais do alto" (M, Prefácio, 5). Para ser autêntica e radical, a reflexão filosófica deve saber incorporar o olhar de fora, que é também o olhar do alto: "Erro dos erros, o conhecido é o habitual, e o habitual é o mais dificil de 'conhecer' , isto é, de ver como proble­ ma, ou sej a, de ver como desconhecido, como distante, como 'fora de nós ' " (FW, 3 5 5). É uma declaração que pode ser comparada com um célebre dito da Fenomenologia do Espírito : "O notório em geral, exatamente porque notório, não é conhecido". 1 933 Se em Hegel é a dialética que problematiza os conceitos, "

1933 Hegel, 1969-79, vol. III, p. 35.

que perdem assim a sua fixidez e aparente unívocidade, em Nietzsche o olhar é chamado a desempenhar esse papel, o qual também perde a sua aparente unívocidade: "O que faz a originalidade de um homem é que ele vê uma coisa que todos os outros não veem" (IX, 5 9 1 ) . Mas a novidade do olhar não é um "fato" no sentido positivista do termo. Para que a novidade do olhar possa dar­ se e desenvolver-se, é necessário a coragem de saber distanciar-se das repre­ sentações aparentemente óbvias e incontrovertíveis: Há uma tola humildade, nada rara, pela qual aquele por ela afetado se revela inapto para sempre de tomar-se um seguidor do conhecimento. No instante em que um homem desse tipo nota algo diferente, ele como que faz meia­ volta e diz a si mesmo: "Tu te enganaste! Onde estavas com a cabeça? Isto não pode ser verdade!" E então, como que apavorado, em vez de olhar e ouvir de novo, mais atenciosamente, ele foge do caminho onde se encontra a coisa diferente, e procura tirá-la da mente o mais rápido possível (FW, 25).

É um ponto sobre o qual Nietzsche insiste com força: "Até mesmo o mais corajoso dentre nós poucas vezes tem a coragem de enfrentar o que realmente sabe" (GD, Máximas e dardos, 2), no entanto, "nos aproximamos da verdade tanto quanto a coragem pode aventurar-se adiante" (EH, O nascimento da tragédia, 2). O que estimula o filósofo na sua tentativa de "ir para fora e para cima" é o imperativo, o "tu deves" percebido - observa Nietzsche - por "nós homens do conhecimento". Não se trata de uma operação fácil: "É preciso ser muito leve, a fim de levar a própria vontade de conhecimento a uma tal distân­ cia e como que acima do seu tempo, a fim de criar para si um olhar que abarque milênios e, além disso, um céu puro nesse olhar" (FW, 3 8). Então . o filósofo deve saber idealmente sair do círculo restrito da própria cidade e da própria civilização: "Para que se possa olhar de longe a nossa moralidade europeia, medi-la em relação a outras moralidades anteriores ou vindouras, se deve fazer como o andarilho". O pensamento e uma posição autenticamente críticos "pres­ supõem sempre um além do nosso bem e do nosso mal, uma liberdade de toda a 'Europa', entendida esta como uma soma de imperiosos juízos de valor, que nos foram transmitidos na carne e no sangue" (FW, 380). Trata-se de realizar uma enorme ampliação do campo de observação: "Com a força do seu olhar espiritual e da sua penetração visual cresce a distância e, por assim dizer, o espaço em torno do homem; o seu mundo se torna profundo e se tomam visí­ veis sempre novas estrelas, sempre novos enigmas e imagens" (JGB, 57). É um tema sobre o qual Nietzsche não se cansa de insistir. A força extra­ ordinária de Bizet é assim sintetizada: nele, "o mundo é como que perscrutado do alto de um monte. - Defini exatamente o pathos filosófico" (WA, 1). Tam-

bém depois de ter tomado a distância de Schopenhauer e da sua veneração por religiões que agora começam a revelar-se afetadas de niilismo, Nietzsche con­ tinua a reconhecer no ex-Mestre um mérito fundamental: "Há momentos até em que vê com olhos orientais (XI, 47 1). Comparado a este, como Strauss parece provinciano, porque, mesmo comportando-se como crítico radical do cristianismo, não só não faz nenhum esforço para observar desde fora o mundo cultural em que vive, mas não é sequer capaz de olhar além da Europa cristã: "A esse respeito, ele esqueceu completamente que a maior parte da humanida­ de é ainda hoje budista e não cristã. Como se pode, com a expressão 'velha fé', pensar sem dúvida no cristianismo?" (DS, 9; 1, 2 1 0). Voltando atrás, algo de análogo ao que foi observado para Schopenhauer pode ser dito de Leonardo, esse espírito do Renascimento que, graças à sua estranheza em relação à Europa e à Idade Média cristãs, consegue desenvol­ ver "um olhar verdadeiramente sobrecristão" e "sobreeuropeu" (XI, 470 e 5 1 2). É preciso aproveitar esse exemplo; é necessário saber perscrutar "com olho asiático e ultra-asiático" (JGB,56). A fim de produzir o olhar a partir de fora, a filologia se entrelaça com outras disciplinas, a começar pela "etnologia comparada" (MA, 1 33). 1 934 Além dos antigos gregos e dos antigos romanos, Nietzsche faz referência aos "anti­ gos germanos" (X, 329) bem como às culturas e aos povos mais diversos: os povos primitivos em geral, o "livre pensador inca" (VII, 1 07), os "parses" (VII, 1 06), os "indianos" (IX, 605 e GT, Tentativa de uma autocrítica, 1), o "negro" com o seu "feitiço" (IX, 422), os "tibetanos" (FW, 1 28), os "vaabitas" (FW, 43), os "hotentotes" (IX, 549), os "canchadal" (M, 1 6), "os bogos" (GM, III, 14), a "seita árabe dos assua encontrada na Argélia" (FW, 306), "os habitantes das ilhas Tonga", "os povos das antigas culturas da América", "os chineses", "o siamês", "os tupinambá", "os habitantes das ilhas Fiji" (GT, 1 5 ; 1, 1 00; X, 325 e 3 29), "os habitantes das ilhas dos mares do Sul" (IX, 422), para não falar do mundo hebraico, islâmico, budista e hinduísta, mantidos constantemente pre­ sentes pelo filólogo-filósofo que, na esteira também de Schopenhauer, está pro­ fundamente interessado no estudo comparado das grandes religiões. Por que a "moral judaica" (herdada pelo Ocidente) deveria ser a priori considerada su­ perior à moral "árabe, grega, indiana, chinesa" (IX, 22-3)? É preciso nunca perder de vista o fato de que "em povos diversos as avaliações morais são necessariamente diversas" (FW, 345). A "verificação dos fundamentos da diversidade do clima moral ('por qual razão brilha aqui 1934 É uma disciplina à qual Nietzsche dirige a sua atenção a partir sobretudo da ruptura com a plataforma teórica e política do O nascimento da tragédia; cf. Orsucci, 1996.

este sol de um juízo moral e medida de valor fundamental, e ali aquele outro')" (FW, 7) é parte integrante da interrogação filosófica. Às vezes, os povos objeto da investigação da filosofia clássica ou aqueles objeto da investigação da etnologia comparada são postos lado a lado, acentuando o efeito de estranhamento com respeito à modernidade: "Assim entre os vaabitas há somente dois pecados mortais [ . . . ] . Do mesmo modo para os antigos romanos" (FW, 43). Não é só Nietzsche que entrelaça de maneira audaz disciplinas à primeira vista tão diferentes entre si. Também no amigo Rohde e na sua Psyche se exprime, como foi observado, a "fecunda compenetração entre estudos de an­ tropologia e de antiguidade clássica em curso exatamente na passagem dos dois séculos", de modo que - nota polemicamente um resenhador ilustre (Eduard Meyer) - para esclarecimento de um esplêndido capítulo de história da civiliza­ ção intervêm nada menos que as "concepções dos selvagens americanos, afri­ canos, australianos". 1935 Embora não totalmente original, essa abordagem re­ vela seu valor e sua força filosófica só em Nietzsche. E ele, de fato, à objeção de Meyer poderia responder: "Também os 'selvagens' são homens extrema­ mente evoluídos, se vistos em tempos muito longínquos" (X, 333). Nietzsche sublinha a necessidade que o filósofo tem de "perambular entre as muitas morais, mais refinadas e mais rudes, que dominaram até hoje ou domi­ nam ainda na terra" (JGB, 260). Só assim ele conseguirá alcançar resultados apreciáveis: "Os verdadeiros problemas da moral [ . . . ] surgem todos apenas de uma comparação das muitas morais". É preciso finalmente romper com uma tradição de etnocentrismo e provincianismo: os habituais estudiosos de moral "eram mal instruídos ou também pouco ávidos de notícias sobre os povos, sobre as épocas, sobre as idades passadas" (JGB, 1 86). A pesquisa histórica enquanto tal liga entre si a etnologia comparada e a filologia clássica: "O senso histórico e o exotismo geográfico-climático um ao lado do outro" (XI, 481 ). É a partir daqui que podemos compreender a radicalidade e a grandeza da interrogação filosófica de Nietzsche. Não resta dúvida, há uma tradição agindo por trás dele. Um autor particularmente caro a ele, ou seja, Montaigne, por um lado, faz referência aos "costumes antigos'', que dão o titulo a um capítulo dos seus Ensaios, para pôr em discussão a tendência a "não ter outro modelo nem outra regra de perfeição senão os costumes e usos próprios". Por outro lado, refere-se também à China, cuja rica cultura e história - observa ele - "ensina-me quão mais amplo e vário é o mundo daquilo que os antigos e nós chegamos a conceber". 1936 1 935 Canfora, 1986, p. 35.

1936

Montaigne, 1996, p. 384 (livro 1, cap. 49, Des coutumes anciennes) e p. 1433 (livro III, cap. 13, De l'expérience).

Conhecer uma grande cultura extraeuropeia é como entrar em contato com "gente de outro planeta", e então - acentua por sua vez Leibniz - "é impossível que uma descrição, embora nua, mas exata, do seus usos e costu­ mes não nos forneça luzes muito importantes e, no meu parecer, bem mais úteis do que o conhecimento dos ritos e dos móveis dos gregos e dos romanos aos quais se dedicam tantos estudiosos". 1 937 Mas a oposição aqui instituída se re­ vela errada à luz exatamente da vicissitude intelectual de Nietzsche, que en­ contra o "outro planeta" a partir também dos estudos olhados por Leibniz com um certo desdém. Dir-se-ia até que é ainda mais radical o efeito de estranhamento inserido no modo de comportar-se de um autor que observa o presente com os olhos de um heleno do século VI a. C. ou de uma época ainda mais remota ! Por outro lado, vimos Montaigne fazer referência, na sua crítica do etnocentrismo, tanto ao mundo antigo como ao mundo extraeuropeu con­ temporâneo dele. É uma observação que pode valer também para o Século XVIII francês no seu conjunto. Outro autor bem conhecido de Nietzsche, ou seja, Taine, ao condenar a "grande expedição bélica" desenvolvida pelo iluminismo contra as crenças e as certezas do Antigo Regime, analisa com agudeza o modo dos philosophes se comportarem: Montesquieu olha a França com os olhos de um persa, e Voltaire, ao voltar da Inglaterra, descreve os ingleses, espécie desconhecida. Em oposição ao dogma e ao culto dominantes, são expostas, com ironia aberta ou mascarada, as características de diversas seitas cristãs: anglicanos, quacres, presbiterianos, socinianos, ou então, as dos povos antigos ou distantes: gregos, romanos, egípcios, maometanos, guebros, adoradores de braluna, chineses e simples idólatras. 1 938

Poder-se-ia acrescentar Rousseau aos autores citados. Nesse caso, o efeito de estranhamento é conseguindo mediante o recurso à figura do bom selvagem: é ridicularizada a atitude de todos os que, "sob o nome pomposo de estudo do homem", na realidade analisam e absolutizam apenas os "homens do próprio país" e da própria área política e cultural.1939 Resta de qualquer modo o fato que, enquanto nos Setecentos francês a critica do etnocentrismo é em primeiro lugar a critica do Antigo Regime, em Nietzsche é a crítica do mundo nascido da Revolução Francesa e da modernidade enquanto tal. 1937 ln Widmaier, 1990, pp. 2 13-4 (carta de 18 de agosto de 1705 ao padre Antoine Verjus); sobre isto cf. Gernet, 1978, pp. 490-1 . 1 938 Taine, 1899, vol. II, pp. 17-8 (= Taine, 1986, pp. 387-8). 1 939 Rousseau, 1 959, vol. III, pp. 2 12-3 .

Se, num autor como Montesquieu, o olhar do exterior é uma divertida embora genial experiência intelectual, em Nietzsche é um estilo sofrido de pen­ samento adquirido a partir já da adolescência, vivida como uma intensidade existencial talvez sem comparação. Um radicalismo extremo está ligado a isso. Já Rousseau se lança à frente dos seus contemporâneos na denúncia do etnocentrismo. Além do "jugo dos preconceitos nacionais'', ele pretende problematizar ou pôr em discussão o "homem civilizado" (homme civil) en­ quanto tal. 1940 Mas Nietzsche vai ainda além. Cultiva a aspiração a colocar-se de fora não já de uma determinada cultura, mas do homem enquanto tal: "Que­ remos curar da grande estultice fundamental de medir tudo a partir de nós mesmos [ . . . ] . Ver com outros olhos, exercício de ver sem referir-se aos ho­ mens, portanto com distanciamento (sachlich) ! Curar a megalomania huma­ na ! " (Menschen-Grõj3enwahn) (IX, 444). É um objetivo ao qual Nietzsche aspira com todas as suas forças: "Meu desejo supremo, o olho de Zaratustra, um olho que domina com o olhar, de uma distância imensa, a espécie humana inteira" (WA, Prefácio). A seriedade da interrogação filosófica exige que o olhar do exterior se radicalize a um ponto extremo: Se não conseguirmos imaginar seres diferentes dos outros homens, perma­ necemos no provincianismo, numa humanidade mesquinha. A invenção dos deuses e dos heróis foi algo inestimável. Temos necessidade de seres que nos sirvam de comparação; até os homens de quem se dá uma interpretação errada, os santos e os heróis foram um meio importante (IX, 577).

Assim a mitologia e a hagiografia podem ser recuperadas, e se tomam úteis na medida em que concorrem, também, para estimular uma perspectiva capaz de transcender o homem enquanto tal . Nessa direção agem igualmente a etologia, a "história dos animais" (Thiergeschichte) (FW, 354) e a "zoologia" (VTI, 695). Mesmo quando não ex­ plicitamente postas em causa, essas disciplinas fazem sentir sua presença já nos escritos de juventude. Esquecendo que o impulso cognoscitivo é apenas uma função vital, Sócrates o absolutiza e desse modo o torna perigoso e nocivo para a própria vida. Convém então não perder de vista que o recurso ao intelecto é apenas o modo como o homem se compara, no âmbito da natureza, com as espécies animais fisicamente mais fortes (WL, 1 ; 1, 876). De modo análogo é combatida a superfetação da consciência histórica: ao sublinhar que "em todo agir é necessário o oblívio", a segunda Inatual remete ao "rebanho" e ao animal que "vive de modo não histórico" (HL, 1 ; 1, 250 e 249). Nesse mesmo contexto 1 940 Rousseau, 1 959, p. 2 10.

são colocadas a definição do homem como "o animal ainda não definido" (XI, 125) ou como "um animal multiforme, mendaz, artificial e não transparente" (JGB. 29 1 ) e até como "animal louco" {IX, 473); e a observação com base na qual, no que diz respeito à esfera do prazer, o homem "herdou toda espécie de coisas dos animais" (MA, 98), e é em última análise "um animal de rebanho" {VII, 695).

4. O olhar metacrítico Mas o que caracteriza Nietzsche e define sua força e seu fascínio é so­ bretudo aquilo que poderemos definir como o olhar metacrítico . Em esclareci­ mento desse ponto convém citar um trecho da terceira Inatual: "É muito acon­ selhável pesquisar e dissecar (sezieren) de vez em quando os intelectuais, de­ pois que eles se habituaram a apalpar e a desarticular (zerlege) descarada­ mente tudo o que está no mundo, também o que nos é mais venerável" (SE, 6; 1, 3 94). Noutras palavras, não se deve hesitar em dissecar os dissecadores; os intelectuais e a "ciência" professada por eles não são um com freqüência obje­ to mais venerável do que aquilo que é pesquisado e dessacracizado por eles. O nascimento da tragédia já se empenha em analisar "o homem teóri­ co'', o qual "se alegra e se satisfaz em tirar o véu (Hülle) e encontra o seu supremo fim e prazer no processo de um desvelamento (Enthüllung) sempre feliz, que consegue por força própria" (GT, 1 5 ; 1, 98). Submetido, por sua vez, à pesquisa e desvelamento, o homem teórico se revela movido por motivações bem mais complexas e bem menos puras do que o simples e desinteressado amor pela verdade. Na realidade, "o intelectual (der Gelehrte) é feito de um complicado entrelaçamento de estímulos diversos, é um metal absolutamente impuro". É preciso tomar nota: ''Não é propriamente a verdade que se busca, mas o próprio pesquisar, e o prazer principal consiste no astuto armar a cilada, cercar e matar com arte" (SE, 6; 1, 394-5). Nietzsche problematiza "a vontade de verdade", submete-a à investiga­ ção, pondo radicalmente em discussão o estatuto tradicionalmente conferido a ela de dado imediato e intranscendível. A qual função ela responde no âmbito da vida e que lugar ocupa na longa evolução da espécie humana? Num certo sentido é feito valer o critério da auto-reflexão: é a vontade de verdade que surge por si mesma e ela está em condições de autolegitimar-se e autojustificar­ se? Tem razão o filósofo, que assim se interroga, de ser orgulhoso pelo fato de fazer perguntas até então inauditas. Mas eis que, ao desconstruir a crença no sujeito-substância movido exclusivamente pelo amor do verdadeiro, Nietsche argumenta desse modo:

Assim como o ato de nascer não pode ser levado em consideração no pro­ cesso e progresso da hereditariedade, também "estar consciente" não pode ser contraposto, de algum modo decisivo, ao que é instintivo - geralmente, o pensamento consciente de um filósofo é secretamente guiado pelos seus instintos e colocado em determinadas bitolas. Por trás de toda lógica e de sua aparente soberania de movimentos existem valorações, ou, falando mais claramente, exigências fisiológicas para a preservação de uma determinada espécie de vida (JGB, 3). Nesse mesmo contexto pode ser colocado o primeiro capítulo de Além do bem e do mal, cujo título é: Dos preconceitos dos filósofos. Depois de ter feito ele mesmo profissão de "iluminismo" e ter criticado, colocando-se no pon­ to de vista dos philosophes, os preconceitos do vulgo, agora Nietzsche se coloca, de um ponto de vista por assim dizer meta-iluminista, empenhando-se em criticar os preconceitos dos quais os philosophes pretendem erroneamen­ te estar imunes . Mesmo proclamando o De omnibus dubitandum, Descartes (e Kant e tantos outros juntos com ele) permaneceu apegado à dogmática e à metafisica do sujeito (JGB, 2). Pode-se chegar a uma conclusão de caráter geral: embora gostem de exibir uma crítica radical, na realidade "os filósofos" são "os sacerdotes dissimulados" (EH, Aurora, 2), são afetados por preconcei­ tos não menos pesados do que aqueles que pretendem trazer à luz e denunciar. Longe de estar imune ao "preconceito do vulgo", Schopenhauer o acolhe "le­ vando-o ao exagero" (JGB, 1 9). O olhar metacrítico empenha-se também em indagar "sobre a psicologia do psicólogo" (XIII, 230), sobre a "superstição dos lógicos" (JGB, 1 7), sobre a história do conhecimento histórico, sobre a ideologia dos críticos da ideologia. Essa mesma atitude é colocada em ação com relação à moral e os seus teóri­ cos . O juízo moral exprime apreciações de valor sobre ações humanas, mas agora se trata de avaliar o próprio ato de avaliar. Depois de ter-se declarado "imoralista'', Nietzsche prossegue assim: "Eu tenho orgulho de possuir esta palavra, que me distingue de todo o resto da humanidade. Ninguém ainda sentiu a moral cristã como se estivesse abaixo de si [ . ] Quem antes de mim entrou nas cavernas donde sobe o bafio venenoso dessa espécie ideal - a difamação do mundo?" (EH, Porque eu sou um destino, 6). O olhar metacritico se mani­ festa também no convite a desprezar os indignos desprezadores do mundo. No cristianismo primitivo, "a psicologia servia não só para tomar suspeito, mas também para difamar, para flagelar, para crucificar tudo o que era humano"; calu­ niava-se o homem a fim de "tornar suspeitos a ele a natureza, o eros, a vitalidade, a vida enquanto tal (MA, 1 4 1 ) . Agora, suspeita é essa atitude moral: "Os meus escri­ tos foram chamados de escola da suspeita e, mais ainda, de desprezo"; "eu mesmo . .

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não creio que alguém tenha jamais olhado o mwido com uma suspeita igualmente profunda" (MA, Prefácio, 1). A moral cristã lança uma espécie de maldição e de "mau olhado" contra os bem sucedidos (AC, 25); e eis que a tal operação Nietzsche contrapõe aquilo que ele define "o meu 'mau olhado"' (GD, Prefácio). O mau olhado da visão moral do mwido é assim alvejado pelo contra-mau olhado ou pelo meta-mau olhado do imoralista e do destruidor de ídolos. O olhar metacritico é essencial. Só a capacidade de uma disciplina de subme­ ter a si mesma à investigação com a metodologia e os critérios que ela faz valer para os objetos por ela geralmente pesquisados, só essa capacidade de auto-refle­ xão confere autêntica dignidade cognoscitiva à disciplina. Nesse sentido, Nietzsche pode afirmar: "Antes de mim a psicologia não existia" (EH, Porque eu sou um destino, 6); a psicologia começa propriamente a existir apenas a partir do momento em que é capaz de configurar-se como "psicologia da psicologia".

5. Comparatística, tensão para a totalidade e tradutibilidade das linguagens Começa a surgir com clareza a intrincada rede de disciplinas que funda­ menta o discurso de Nietzsche. Acrescentam-se àquelas já vistas numerosas outras, não já citadas incidentalmente, mas invocadas como essenciais para a correta construção do discurso filosófico: vimos a importância concedida à "fí­ sica", a "fisiologia, medicina, ciências naturais", "estatística" e "higiene" (su­ pra, cap. 1 9 § 1). Entram em campo a "matemática" (é um dos "ramos do conhecimento em que são úteis personalidades fracas'', IX, 466); a "economia política" ( Volskwirtschaft) (também nesta disciplina aparentemente tão objeti­ va se pode perceber a onipotência do niilismo, XII, 1 27 e 1 3 0); a "criminologia" (chamada a selar com autoridade o diagnóstico relativo à natureza decadente e doente do mestre de Platão, GD, O problema Sócrates, 3 ), a "fisiologia e história dos animais" (chamadas a confirmar o papel do inconsciente também na vida do homem) (FW, 354). Percebida como nova por Mill (que fala a esse propósito de "barbarismo conveniente") e, do outro lado do Atlântico, por Fitzhugh,1 94 1 nem mesmo a "so­ ciologia" escapa à atenção e ao interesse de Nietzsche: seu surgimento é a prova cabal do processo de equalização e massificação que avança com a modernidade (GD, Incursões de um inatual, 37 e XIII, 220). Enfim, as mais diversas e ousa­ das articulações do saber histórico são chamadas a remediar aquela "falta de 1 94 1

Mill, 1 968, p. 886 (livro VI, cap. IX, § l); Fitzhugh, 1854, p. V

sentido histórico" que é "o defeito hereditário de todos os filósofos" (supra, cap. 8 § 4 e 28 § 2). A biblioteca de Nietzsche é decididamente variegada. Como é possível dominar essa multiplicidade de disciplinas e a massa imensa de materiais por elas produzida? Dura é a polêmica de Nietzsche con­ tra o intelectual empenhado em cultivar de modo minucioso e supersticioso o seu restrito campo de especialização, esquecido da totalidade: Talvez todos nós, filósofos, estejamos atualmente mal colocados em relação ao saber: a ciência cresce, os mais eruditos entre nós estão quase a descobrir que sabem muito pouco. Mas seria ainda pior se fosse diferente - se soubés­ semos demais; nossa tarefa é e continua sendo, antes de tudo, não nos confundirmos com outros. Nós somos algo diferente de eruditos [ ... ]. Não é gordura, mas maior flexibilidade e força aquilo que um bom bailarino requer da alimentação - e eu não saberia o que o espírito de um filósofo mais poderia desejar ser, senão um bom bailarino (FW, 3 8 1).

A leveza e a graça do bailarino se contrapõem ao "espírito de castor e de formiga do erudito" (XI, 590); na realidade, "o especialista é necessário, mas há de ser classificado entre os instrumentos" (XII, 62). À luz disso tudo, Nietzsche considera o abandono da profissão e da cátedra de professor universitário como momento fundamental de virada da sua evolução intelectual e da sua vida: Ao mesmo tempo, a doença me deu o direito a uma virada completa em todos os meus hábitos; ela permitiu, ela ordenou que eu esquecesse; ela me pre­ senteou com a urgência de ficar imobilizado, de ficar ocioso, de esperar e de ser paciente. . . Mas isto significa pensar! . .. E meus olhos, só eles, já puseram um fim em meus hábitos de traça de livros, noutras palavras, com a filologia; eu estava livre do "livro" e durante anos não li mais nada - o maior favor que jamais fiz a mim mesmo! (EH, Humano, demasiado humano, 4).

No entanto, já antes dessa espécie de chamada do destino, o discurso filosó­ fico de Nietzsche se caracteriza pela sua tendência a fazer intervir as mais diver­ sas disciplinas. Em O nascimento da tragédia, reconstrução histórica e denún­ cia política se entrelaçam de modo indissolúvel com a "metafisica da arte" nas suas diversas expressões, com a análise de caráter epistemológico sobre o esta­ tuto dos universais, desenvolvida por Schopenhauer, e com ulteriores considera­ ções sobre o valor também cognoscitivo do instinto. Num escrito contemporâneo, linguística, glossologia e fisiologia são chamadas conjuntamente a explicar a ori­ gem da linguagem: "Um estímulo nervoso, transferido antes de tudo numa ima­ gem: primeira metáfora. A imagem é depois plasmada num som: segunda metá­ fora" (WL, 1 ; 1, 879). A passagem para o "iluminismo" não modifica o quadro;

essa nova fase se abre com a afirmação na base da qual a filosofia não pode passar sem a história e o "senso histórico" e, por sua vez, a "filosofia histórica" não pode fazer abstração das "ciências naturais" (supra, cap. 8 § 4). Certamente, depois do abandono do ensino, ao qual se tinha dedicado com grande escrúpulo profissional, o filósofo pode seguir mais livremente sua voca­ ção. Permanece o problema: como é possível conferir uma forma e um sentido unitários para uma pesquisª que se alimenta das mais diversas disciplinas, evi­ tando descambar para a desprezada erudição? O nascimento da tragédia lê a visão trágica da vida nos sons da música sedutora de Beethoven e nos sons e no texto da música de Wagner, nas análi­ ses sutis e rigorosamente científicas de Kant e Schopenhauer, na eloquência religiosa de Lutero, bem como na filosofia, na arte, no modo de viver enquanto tal da Grécia pré-socrática. Na vertente oposta, um mesmo conteúdo ideal (nesse caso, o funesto otimismo) transparece da filosofia de Sócrates e das tragédias de Eurípedes, do romance pedagógico de Rousseau, da ópera musi­ cal neolatina e dos movimentos políticos jacobinos e socialistas. Também no período "iluminista", o balanço histórico segundo o princípio da longue durée continua a investir contra as mais diversas expressões da vida cultural e política. Beethoven é agora aproximado de Rousseau; as gran­ des sinfonias do musicista alemão não são senão "moralismo em sons" (WS, 2 1 6), ou seja, exprimem em linguagem musical o conteúdo filosófico e político do autor que presidiu o processo de radicalização da Revolução Francesa. "A velha moral, especialmente a de Kant", a "moral universal'', que exige a perse­ guição de "objetivos ecumênicos" é o cumprimento de "ações" desejáveis para todos os homens, revela a mesma ingenuidade da teoria econômica da "livre troca, a qual pressupõe que a harmonia geral deve produzir-se por si, segundo leis inatas de melhoramento" (MA, 25). Se "na música de Hãndel ressoou o melhor da alma de Lutero e dos seus afins'', ou seja, "o grande traço judeu­ heroico" da Refonna, na "nossa mais recente música alemã'', ou seja, em Wagner, encontra expressão não só "o gosto por tudo o que se refere à essência patrió­ tico-nacional", mas também o "catolicismo do sentimento'', e, nesse sentido, ela remete a um mundo destinado, segundo Nietzsche, a acabar (VM, 1 7 1 ). Portanto, como fundamento desse modo de proceder de Nietzsche age aquela que, com as palavras de um autor bastante distante dele, poderemos definir como a "tradutibilidade das linguagens". 1 942 Não só é possível compa1 942 Retomo a categoria de Gramsci ( 1 975, pp. 1 468-73), o qual, porém, a faz valer para uma operação mais limitada, ou seja, para a comparação entre Revolução Francesa e filosofia clássica alemã e, mais em geral, entre política e filosofia.

rar as diversas expressões artísticas: Wagner é "o Victor Hugo da música en­ quanto linguagem" (WA, 8), assim como Michelet é o Victor Hugo da historiografia (supra, cap. 28 § 2). Mas se deve acrescentar também que a arte pode ser comparada com a filosofia: vimos atuando em Bizet o olhar "de cima", que é sinônimo de "pathos filosófico". Nietzsche conclui: "Tomamo-nos tanto mais filósofos à medida que nos tomamos mais músicos" (WA, 1 ). Esse "labirinto" que é a alma moderna pode ser identificado também na "arquitetura" e, sobretudo, na música. Aqui ele transparece com particular cla­ reza, porque consegue dissipar ou reduzir o elemento de vigilância e de autocensura da consciência: ''Na música, de fato, os homens se deixam levar, porque se iludem que não existe ninguém capaz de vê-los em si mesmos, debai­ xo da sua música" (M, 1 69). No conjunto, pelo que diz respeito à compreensão da modernidade, o valor ou desvalor da igualdade e da equalização atua tanto no incessante ciclo revolucionário do Ocidente como no silogismo socrático e na férrea legalidade afirmada pela ciência fisica; além da moral, da religião e da filosofia, "o niilismo que surge, teórico e prático", a "tendência niilista" pode ser surpreendida também nas "ciências naturais" bem como em certas tendên­ cias da "política", da "economia política", da "historiografia", da "arte", da "psicologia" (XII, 129-30). Seria totalmente ingênuo limitar-se a buscar um conteúdo de pensamento apenas nas obras filosóficas ou literárias em geral. É preciso comparar "tudo o que é traduzido em pensamento, em poesia, em pintura, em composição musi­ cal, até tudo o que é construído e plasmado numa forma" (FW, 3 67). Pode-se e deve-se ir ainda além: "Não há dúvida de que se pode pensar por imagens, por sons; mas se deve também admitir que se pode pensar por sensações de pres­ são" (XI, 644). A tradutibil idade das l inguagens é também a t radutib ilidade e comparabilidade das emoções: Quando se praticava o jogo enxuto e rigoroso do conceito, o jogo da gene­ ralização, refutação e dificultação (der Verallgemeinerung, Widerlegung, Engführung), então as almas se sentiam cheias de embriaguez - aquela em­ briaguez que talvez também os grandes contrapontistas antigos da música conheceram, tão enxutos e rigorosos {M, 544).

Assim, no que diz respeito à Alemanha, do século 1 7 e 18, "o barroco alemão das igrejas e dos palácios é um parente próximo da nossa música - ele dá lugar, no reinado do olho, ao mesmo gênero de encantos e seduções que a nossa música produz por outro sentido"; também a filosofia que se desenvolve nesse período de tempo, "com as suas perucas e teias de aranha de conceitos,

com a sua ductilidade, melancolia, com a sua remota infinidade e o seu misticis­ mo, faz parte da nossa música e é uma espécie de barroco no campo da filoso­ fia" (XII, 69). A chave desta tradutibilidade das linguagens é a psicologia, que permite a Nietzsche não só fazer comparação entre as expressões culturais mais diver­ sas e, junto com elas, até as "sensações de pressão", mas também ultrapassar audaciosamente todo limite temporal e espacial. O papel ocupado na Idade Média pela teologia é substituído agora pela psicologia, a verdadeira "rainha das ciências" (JGB, 23).

6. "Silogismo retroativo " e olhar a partir de dentro Nietzsche define com precisão a sua tarefa: a partir da "nossa ótica psico­ lógica" (XII, 395), ele se propõe a indagar "a história inteira, até agora vivida, da alma e as suas possibilidades ainda não exauridas até o fundo". É uma empresa nova que exige esforços prolongados e conjuntos; seriam necessários "cães de caça bem treinados para poder soltar na história da alma humana" (JGB, 45). É neste sentido que o filósofo se define "um psicólogo nato", ou seja um "psicólogo adivinhador de almas constitucional e inevitavelmente tal" (JGB, 269). Objeto de pesquisa não são apenas personalidades individuais, mas tam­ bém "a secreta angústia no coração dos gregos" (M, 156), ou para chegar aos nossos tempos, "a consciência (Gevissen) do europeu de hoje" (JGB, 20 1), ou então "os instintos fundamentais do nosso movimento político, intelectual e so­ cial da Europa" (XII, 1 55). Compreende-se então o fato de que Nietzsche sublinhe a radical novidade da sua abordagem. Impõe-se um "psicólogo novo" (JGB, 1 2). A "psicologia" por ele praticada tem pouco ou nada a ver com a introspecção: "Nós psicólogos do futuro temos pouca boa vontade de observar a nós mesmos", "desconfiamos de todos os contempladores do próprio umbi­ go". Pode-se dizer do "grande psicólogo" que ele "não busca nunca a si mes­ mo, não tem olhos, não tem interesses, não tem curiosidade para consigo". Olhando bem, a obsessão da introspecção é apenas uma secularização de um tema e de uma preocupação religiosa. Mas nós - declara Nietzsche - "não somos Pascal"; o que move a pesquisa psicológica não é certamente o "inte­ resse pela 'salvação da alma', pela nossa felicidade, pela nossa virtude" (XIII, 23 1 ). É preciso precaver-se contra a "psicologia de confessores e a psicologia de puritanos, duas formas de romantismo psicológico" (XII, 1 3 0). É necessário concentrar a atenção não mais na própria interioridade, mas ·1os autores ou nas correntes filosóficas e culturais e nos movimentos políticos

e sociais sucessivamente pesquisados, em última análise na objetividade do processo histórico, nas suas diversas manifestações e articulações . É aqui que intervém a "psicologia". É sintomática a opinião no outono de 1 88 1 expressa sobre Wagner, o qual nutre "sentimentos (Empfindungen) cristãos" antes ain­ da de formular "pensamentos (Gedanken) cristãos" (IX, 59 1). Trata-se, por­ tanto, de ir além da esfera conceituai e consciente para colher os sentimentos, os amores e os ódios, as visões morais, os valores e desvalores que movem e caracterizam as personalidades, os movimentos, as civilizações sobre as quais seguidamente se detém essa nova "psicologia". Depois de ter conquistado um lugar externo e mais elevado em relação ao próprio ambiente cultural e com respeito até à própria condição humana, agora o filósofo-psicólogo deve saber colher a partir de dentro as "valorações" de um autor ou de um movimento histórico: elas "denunciam algo da estrutura da sua alma" (JGB, 268). E é para essa compreensão ou percepção dessa "estrutura da alma" que o filósofo­ psicólogo deve tender com todas as suas forças . Junto com a exigência do olhar de fora e de cima, com respeito ao mundo em que se vive, surge a exigên­ cia do olhar a partir de dentro do mundo que se aspira a compreender e colher no seu significado mais profundo. Já ao ler O mundo como vontade e representação refere Nietzsche "esforcei-me por ver através do livro e representar-me o homem vivo", que havia sido o seu autor (SE, 2 ; 1, 350). Por outro lado, é desse modo que procede o próprio Schopenhauer. A sua "grandeza" reside no fato de "estar colocado diante do quadro da vida como diante a um todo, para interpretá-la como um todo". É uma lição que não se deve esquecer. Infelizmente, nem sequer "as mentes mais agudas" conseguem libertar-se de uma abordagem que não con­ duz a lugar aalgum; elas se empenham em pesquisar "escrupulosamente as cores com que esse quadro foi pintado; talvez com o resultado de que se trata de uma tela tecida de modo terrivelmente intricado com cores em cima, que não podem ser investigadas quimicamente". Não procedem de modo diverso os intérpretes que, ao analisar um sistema filosófico, se concentram sobre deta­ lhes, perdendo de vista o conjunto, a personalidade concreta do filósofo, a sua alma, os seus valores, a sua visão do mundo. Schopenhauer, ao contrário, sabia bem que "é preciso adivinhar (errathen) o pintor para compreender o qua­ dro" (SE, 3; 1, 35 6-7). No que diz respeito à filosofia, "a única critica de uma filosofia que seja possível e que demonstre algo" é "a tentativa de ver se é possível viver conforme ela" (SE, 8 ; 1, 4 1 7) e agarrar o "sentido" da "vida" (SE, 3 ; 1, 357) que nela age e se exprime. Mas como conseguir esse resultado? É necessário saber fazer intervir "aquela fantasia refinada de tentativas do psicólogo e do historiador, que facil-

mente antecipam um problema e o apanham no voo, sem saber direito o que foi apanhado" (FW, 3 4 5 ) "O senso histórico" é então definido como a "capacida­ de de adivinhar rapidamente a ordem hierárquica das apreciações de valor, segundo as quais um povo, uma sociedade, um homem viveram". É "o 'instinto adivinhador'" (JGB, 224) que coloca o historiador-psicólogo em condições de captar o objeto. Certamente, este "instinto divinatório" pressupõe por sua vez um esforço de historização. Infelizmente, a "falta de sentido histórico" é bastante difusa: "A maior parte dos filósofos morais representa apenas a hierarquia atualmente dominante [ . . . ] Eles mesmos são dominados pela moral, que ensina tanto o que vale no presente como o que é eternamente válido" (XI, 5 1 O) . Desse modo, eles impedem para si mesmos a compreensão do mundo antigo e da perturbadora novidade que o cristianismo representa em relação a ele: .

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Os homens modernos, com a sua obtusidade face à terminologia cristã, já não conseguem mais identificar-se com aquilo que havia de horrivelmente enfático {jühlen das Schauer/ich-Super/ativistische nicht mehr nach) para um gosto antigo (antiker Geschmack) no paradoxo da fórmula "Deus na cruz" (JGB, 46).

O esforço de historização não é um processo meramente intelectual. O historiador deve saber tomar-se também psicólogo no sentido de que deve ser capaz de reatualizar em si o modo de ver, de sentir e de avaliar dos antigos, deve saber fazer aflorar de novo à superficie aquele "gosto antigo" espezinhado e afastado por quase dois mil anos de cristianismo. Só assim poderá chegar a captar também no plano emotivo, nachfahlen (compreender) a catástrofe que se verificou com o advento e o triunfo da religião da cruz e dos escravos ; só assim estará em condições de "reconstruir (nachbilden) em si" o passado: nisto reside "o sentido histórico" (XI, 509). Esses nachfahlen e nachbilden são sinônimo, em última análise, de iden­ tificação empática, e sem ela a antiguidade clássica em geral e a Hélade em particular permanecem para sempre um segredo sob sete chaves: "Parece que o mundo grego é cem vezes mais escondido e estranho do que a natureza indiscreta dos modernos eruditos pode desejar. Se alguma coisa for conhecida algum dia nesse campo, será certamente apenas o igual que poderá conhecer o igual" (IX, 424). Então se compreende porque, apesar de tudo, Goethe e Winckelmann tiveram de sofrer um revés. Prisioneiros que eram da modernidade, não podi­ am penetrar no segredo, ou antes, no íntimo de uma civilização como a grega, em cujo centro está a aguda consciência da "imutável hierarquia e desigualda-

de de valores entre homem e homem". Uma distância intransponível parece separar da modernidade esse mundo. No lugar de se aproximar dele sem ade­ quada preparação histórica e espiritual, com olho profano e profanador, é pre­ ferível e talvez até inevitável um período de silenciosa e ansiosa espera: Eis a grande profundeza, o grande silêncio com respeito a tudo o que é grego os gregos não serão conhecidos enquanto aquele acesso subterrâneo escondi­ do permanecer sepulto. Os indiscretos olhos eruditos nada verão dessas coisas, por mais doutrina que se empregar ao serviço daquelas escavações; até o nobre zelo de apaixonados pela antiguidade como Goethe e Winckelmann tem exata­ mente aqui algo de ilícito, de quase imodesto (XI, 681-2).

Uma compreensão adequada da Hélade autêntica pressupõe um contramovimento ou o início de um contramovimento com respeito à modernidade. Em primeiro lugar, é necessário um olhar do exterior e de cima de modo a "superar tudo o que é cristão com algo de sobrecristão". Mas isto não basta. Os esforços para se libertar da subaltemidade com respeito ao pre­ sente e ao moderno configuram-se ao mesmo tempo como uma espécie de exercícios espirituais: "Esperar e preparar-se, esperar o jorrar de novas nas­ centes, preparar-se na solidão para vozes e rostos estranhos; lavar a própria alma e tomá-la sempre mais limpa do pó e do alarido de feira desta época" (XI, 682). Embora se exprimindo com a linguagem de um devoto da Hélade autên­ tica, Nietzsche põe um problema real: o esforço de historização do intérprete deve considerar não só as categorias conceituais, mas também o mundo emotivo; para compreender adequadamente o helenismo e a antiguidade clássica é ne­ cessário compreendê-los na sua autonomia real, abstraindo da "obviedade" não só das representações conscientes, mas também dos sentimentos próprios da modernidade. Em conclusão, em relação ao método de pesquisa sugerido por Nietzsche, vemos o lugar do silogismo (Sch/uss) tradicional ser tomado por um inédito "silogismo retroativo" (Rückschluss) : O meu olhar se tomou cada vez mais agudo para a dificílima e insidiosíssima (schwierigst und verfanglichst) forma do silogismo retroativo no qual se comete a maioria dos erros, aquele silogismo retroativo pelo qual se vai da obra ao autor, da ação ao agente, do ideal àquele que dele necessita, de toda maneira de pensar e de valorar à necessidade que por trás dele impõe o seu comando (FW, 370).

Mesmo na sua problematicidade e no risco de arbitrariedade que contém, o olhar a partir do interior, ou seja, a ligação entre abordagem psicológica e aborda-

gem histórica, permite que Nietzsche consiga resultados significativos. Pense­ mos, por exemplo, nas observações finas e penetrantes sobre o papel da mulher em particular no movimento abolicionista, confirmadas também por pesquisas históricas que se movem de modo mais tradicional (infra, cap. 30 § 5-6).

7. "Não há fatos, mas só interpretações ": junto com o ''fato " de­

saparece o "texto " Em virtude de uma problematização da "obviedade" e de uma historização tão radical que investe contra a própria esfera emotiva, a leitura da história e da realidade em geral perde qualquer sinal de imediatez e de evidência. A onipresença do papel da interpretação permite uma conclusão radical: ''Não há fatos, só interpretações" (XII, 3 1 5). Então se compreende por que Foucault achou que podia concluir que em Nietzsche "a interpretação é sempre inacabada". 1 943 Mas é exatamente assim? Analisemos essa tese famosíssima. Assistimos a uma extrema dilatação da categoria de interpretação: agora ela abrange seja os discursos que se esforçam por mover-se no terreno da argumentação lógica e científica, conservando uma coerência interna e fazendo referência a "provas" suscetíveis de serem verificadas; seja os discursos que se movem num terreno radicalmente diferente e que se autolegitimam referindo-se à autoridade da tradição ou à revelação privilegiada desse ou daquele Mestre. Contudo, pelo menos num ponto não se pode não estar de acordo com Nietzsche: também a teoria mais rigorosamente científica é uma "interpretação", e ela se fundamenta em outras "interpretações": não conduz a lugar nenhum um processo que quisesse ir em busca de um "fato" elementar, totalmente livre e limpo de teoria, ou seja, de "interpretação". Lukács compara o perspectivismo nietzscheano com o empiriocriticismo alvejado por Lênin. 1 944 Este, para refutar as oscilações idealistas, entre os tan­ tos exemplos possíveis, aduz, tirando-o do Antidühring de Engels, o exemplo de uma verdade incontestável e, portanto, "eterna": Napoleão morreu em 5 de maio de 1 82 1 . 1945 Contudo, nem sequer nesse caso estamos na presença de um "fato". A cronologia, a datação, a divisão do tempo envolvem uma comple­ xa "interpretação". Não é por acaso que esse acontecimento é expresso de modo diverso pelo calendário cristão (juliano ou gregoriano), judeu ou islâmico. 1 943 Foucault,

1964, p. 1 88. 1944 Lukács, 1974, pp. 378-9 e 387-9. 1 945 Lênin, 1 955, vol. XIV, pp. 128-9 e 1 39; Marx-Engels, 1955, vol. XX, p. 83.

Está, portanto, plenamente confirmada a tese de Nietzsche? Na realidade, uma vez escolhido um determinado calendário, não é mais possível ignorá-lo ou modificá-lo à vontade, segundo a conveniência do momento e do capricho indi­ vidual . Ou seja, no âmbito da "interpretação" gregoriana do tempo, é um "fato" que Napoleão morreu em 5 de maio de 1 82 1 . As considerações aqui desenvol­ vidas poderiam ser reformuladas com uma linguagem kantiana. A partir da revolução copemicana, sabemos do papel do sujeito e, portanto, da "interpreta­ ção", no âmbito também das ciências naturais. Mas trata-se de distinguir entre sujeito transcendental e sujeito empírico. A informação com base na qual Napoleão morreu em 5 de maio de 1 82 1 é a "interpretação" de um sujeito transcendental, que fez uma divisão do tempo certamente bem determinada, mas também rigorosamente estruturada. No âmbito dessa divisão do tempo, a eventual afirmação de que Napoleão teria morrido. . . em 1 92 1 é a "interpreta­ ção" (errada) de um sujeito empírico (por exemplo, um estudante com escassa familiaridade com a história). Estas distinções faltam em Nietzsche, e isto leva ao perigo de transformar a categoria de "interpretação" na noite em que todas os gatos são pardos. Estamos na presença de um problema de caráter geral. Assistimos ao constan­ te recurso a categorias muito amplas, que abrangem fenômenos entre si nitida­ mente diferentes. Por exemplo, a categoria de vontade de potência subsume as ações tanto do santo como do delinquente, e neste caso a subsunção comum tem um significado reducionista, é a negação da possibilidade de qualquer hierarquização axiológica dos diversos comportamentos. Como tudo é vontade de potência, assim tudo é crueldade: Posso pelo menos reconhecer que hoje a crueldade se refinou e que as suas formas mais antigas são agora de péssimo gosto; mas os ferimentos e tor­ mentos infligidos com a palavra e o olhar atingem em tempos de corrupção o seu pleno aperfeiçoamento - somente então se cria a malícia e o prazer da malícia. Os homens da corrupção são argutos e caluniadores; eles sabem que ainda há outros modos de matar além do punhal e da agressão (FW, 23).

Não parece haver qualquer diferença de valor entre a crueldade sublima­ da (o mote espirituoso ou a tirada pungente), por um lado, e a violência brutal infligida ao corpo, por outro lado. A dilatação extrema das categorias de cruel­ dade e de vontade de potência toma impossível a condenação mesmo das for­ mas mais imediatas e radicais de crueldade e de vontade de potência. De modo análogo, a amplidão excessiva e indiferenciada da categoria de "interpretação" escancara as portas ao arbítrio. Depois de ter tomado o lugar do "fato" caro ao positivismo, o "texto" evidenciado pelo filósofo-filólogo pare-

ce agora desaparecer junto com o fato: fica impossível distinguir entre as diver­ sas interpretações com base no seu conteúdo de verdade; a "interpretação" tisico-matemática pode tranquilamente ser comparada com a leitura da reali­ dade em perspectiva de fábula e de milagre. Vale a pena notar que, mesmo sem se referir, pelo menos de modo explícito, ao filósofo alemão, há círculos fundamentalistas protestantes estadunidenses que, a partir da tese em base à qual "todo juízo sobre a origem�da vida deveria ser considerado como teoria e não como fato", reivindicam, no âmbito do ensinamento das ciências naturais na escola, o mesmo espaço para o discurso evolucionista e para o discurso velhotestamentista. 1946 Mais interessante ainda é a posição de certos discípulos de Nietzsche. Quando se depara com a doutrina do eterno retomo do idêntico, Vattimo percebe um certo embaraço, e eis como se livra do incômodo: é verdade que Nietzsche a lê como uma teoria científica; no entanto, essa doutrina é contemporânea à tese pela a qual "não existem fatos, mas só interpretações"; e por isso ela não tem nem pode ter "uma base 'descritiva"' (e o filósofo está de alguma maneira cons­ ciente disso). 1947 Aqui Vattimo, por um lado, entende mal o ponto forte de Nietzsche, por outro lado, herda os seus elementos de fraqueza. Também a teoria da gravitação universal de Newton é uma "interpretação'', mas nem por isso está privada de "uma base 'descritiva"'. Sem dúvida se pode narrar a morte de Napoleão em 5 de maio de 1 82 1 , mas ela continua a ser uma "interpretação". Embora apresen­ tando uma eficácia que é também pedagógico-moral, a doutrina do eterno retorno não tem aos olhos de Nietzsche um valor de verdade e de "interpretação" dife­ rente daquele que ele atribui à teoria de Newton (a qual, com a sua insistência nas leis gerais tem, também, como sabemos, um valor político): não por acaso, não só o filósofo se empenha em demonstrar o caráter rigorosamente científico da sua doutrina, mas chega até a acusar de teologismo aqueles que se opõem a ela. Vattimo, porém, se serve da tese segundo a qual "não há fatos, mas só interpretações" para "enfraquecer" certos aspectos e só alguns do pensamento de Nietzsche, não outros (por exemplo, não pretende "enfraquecer" as tomadas de posição contra a teutomania e o antissemitismo) . Enquanto no caso dos fundamentalistas cristãos estadunidenses a excessiva amplitude da categoria de "interpretação" permite assimilar e achatar, de modo indiferenciado, discursos qualitativamente diversos, no caso de Vattimo permite tratar de modo diferencia­ do e arbitrário os diversos aspectos do pensamento do filósofo .

1946 Glanz, 1999. 1 947 Vattimo, 2000, p. 88.

8. Identificação empática e liquidação da mediação conceituai Se, por um lado, no seu radicalismo extremo, a crítica e o problematicismo de Nietzsche abrem as portas ao arbítrio, por outro lado, acabam por transfor­ mar-se no seu contrário. Para compreender essa ulterior dialética, voltemos ao "silogismo retroativo". A atenção reservada à totalidade, à personalidade do autor, a captar mediante o olhar a partir de dentro, anda junto com a subvalorização ou negação da importância da dimensão conceituai ou, para usar a linguagem depreciativa de Nietzsche, da "crítica das palavras às pala­ vras". Totalmente sem resultado se revelam, a seus olhos, os filósofos que, "ao edificar grandes filosofias, põem-se logo a pensar onde está academicamente o pró e o contra, onde é permitido escavar, duvidar, contradizer" . Assim, acabam ficando "enredados numa escolástica conceituai", perdendo de vista o todo e sofrendo "a sorte dos dialéticos desenfreados" (SE, 3; 1, 35 6-7). Zaratustra celebra os "temerários da pesquisa e da prova'', os quais "odeiam argumentar" (erschliessen), quando estão "em condições de adivinhar" (errathen) (Za, III, A visão e o enigma; EH, Porque escrevo livros tão bons, 3). A radicalização do papel da coragem no processo cognoscitivo se configura agora como a liquidação pura e simples do momento da mediação conceituai: entre a alma do intérprete e a do interpretado se estabelece uma relação que é de identificação empática ou de repugnância radical recíproca. Esse é o sentido do "adivinhar". A cadeia de argumentações e demonstrações, a busca das incongruências e a refutação lógica, o aparato categorial, a "escolástica conceituai", as "palavras", as ideias formuladas de modo consciente e explícito, tudo isso é fundamental­ mente sem valor. E é tanto mais insignificante para o intérprete quanto é insig­ nificante já no autor interpretado: Pouco a pouco foi ficando claro para mim o que toda grande filosofia foi até o momento: a confissão pessoal do seu autor, uma espécie de mémoires involuntárias e inadvertidas; e também se tomou claro que as intenções morais (ou imorais) de toda filosofia constituíram sempre o germe a partir do qual cresceu a planta inteira (JGB, 6).

Paradoxalmente, nos deparamos aqui com uma posição que apresenta alguma semelhança com a posição assumida pelo tão desprezado Fichte: A escolha de uma filosofia depende do que se é como homem: um sistema filosófico não é um adorno inerte que se pode usar ou deixar de lado, como nos agradar, mas é animado pelo espírito do homem que o usa. Um tipo de natureza fraca, ou enfraquecido e dobrado pela servidão espiritual, pelo

luxo refinado ou pelas frivolidades, não poderá nunca elevar-se ao idealis­ mo. 1948

Um intérprete autorizado como Jaspers não hesitou em aproximar Fichte e Nietzsche como teóricos da dissolução do discurso filosófico na pluralidade das psicologias das visões do mundo. 1949 Na realidade, um abismo separa os dois autores . O primeiro se rest�inge a anotar o fato de que a refutação racional é impotente diante de um dogmático que se recusa a priori a medir-se no terreno racional e conceituai. Do ponto de vista de Fichte, deveria ser conside­ rada dogmática a atitude do próprio Nietzsche, e este, por sua vez, veria nesse apego à "escolástica conceituai'' a manifestação de uma personalidade e de um sentido da vida repugnantes. Nietzsche opõe um verdadeiro método alternativo ao método tradicional da demonstração-refutação racional : nesse sentido, ele tem pouco ou nada a ver com o "dogmático" comum que Fichte tinha em mente. Às vezes pode parecer que não funcione o "silogismo retroativo" sobre o qual se fundamenta o olhar a partir do interior, no sentido de que se toma fraca a relação entre o texto e as convicções expressas nele por um lado, e o autor por outro lado. Mas isto na realidade constituiria um indício bastante revelador: Faz considerável diferença que um pensador se coloque pessoalmente ante seus problemas, de modo a achar neles o seu destino, a sua extrema miséria e também a sua felicidade, ou então se coloca numa relação "impessoal'', isto é, que saiba tocá-los e apreendê-los somente com os tentáculos da fria e curiosa reflexão. Neste último caso nada se conseguirá, por mais que se deixe prometer (FW, 345).

O texto pesquisado se apresenta como uma autoconfissão. A essa altura, não constitui mais um problema insuperável aquele posto pela multiplicidade das disciplinas chamadas em campo pela abordagem de Nietzsche, pela sua ambição de captar a "alma" dos mais diversos autores e movimentos nas mais diversas culturas e épocas históricas. De que modo dominar a enorme massa de material que temos diante de nós? Não é possível, mas também não é necessário: "Lemos raramente, nem por isto lemos pior - oh! como somos rápidos em adivinhar de que modo alguém chegou aos seus pensamentos [ . . ]" (FW, 366). Reduzida a filosofia a autoconfissão, mais ou menos involuntária, uma vez posta a nu a alma de um autor, todo o resto se torna sinônimo de redundância ou, pior, de artificio e mentira, de "hipocrisia da científicidade" (XI, 522). Para .

1948 Fichte, 197 1 , vol. 1, p. 434. 1 949 Jaspers, 1 985, p. 38.

dar um exemplo: "Kant falsifica a sua íntima tendência psicológica na sua 'mo­ ral "' e no seu sistema fatigante e barroco (XI, 522). Muito além do autor da Crítica da razão prática, a polêmica de Nietzsche investe contra a história da filosofia enquanto tal : "O que nos estimula a olhar, com ar desconfiado e sarcástico, todos os filósofos" é sobretudo o "fato de que neles não há suficiente honestidade". Mesmo prestando homenagem ao valor da "veracidade", "todos" procedem de modo completamente diferente na cons­ trução do seu sistema: Todos eles agem como se tivessem descoberto ou alcançado suas opiniões próprias pelo desenvolvimento autônomo de uma dialética fria, pura, divina­ mente imperturbável [ . . . ] quando no fundo é uma tese adotada de antemão, uma ideia inesperada, uma "sugestão", em geral um desejo íntimo tornado abstrato e submetido a um crivo, que eles defendem com razões que buscam posteriormente - eles são todos advogados que não querem ser chamados assim, e na maioria defensores manhosos de seus preconceitos, que batizam de "verdades" (JGB, 5).

9. Como orientar-se entre as interpretações: da psicologia à fisiopsicologia Vimos a centralidade atribuída à "ordem hierárquica das apreciações de valor". Mas o que em geral impede que os historiadores e os filósofos perce­ bam sua importância? Diante de um texto, no sentido amplo do termo, o intér­ prete corajoso se coloca numa relação imediata ou de identificação empática ou de percepção de recíproca repugnância radical. É o "silogismo retroativo" que já conhecemos . Se A gaia ciência prevenia contra as insídias e os perigos que nele se aninhavam, em seguida a cautela tende a desaparecer. Um abismo intransponível separa agora os corajosos capazes de conhecimento dos medro­ sos para os quais a mentira é uma razão de vida: O conhecimento, o dizer sim à realidade, é uma necessidade para o forte, da mesma maneira que o são, para o fraco, a covardia e a fuga da realidade - o "ideal" - sob a inspiração da fraqueza. O conhecimento não lhes é permitido: os décadents têm necessidade da mentira - ela é uma das condições da sua preservação {EH, O nascimento da tragédia, 2).

É clara a passagem da psicologia para a psicopatologia. A falta de cora­ gem remete, por sua vez, a um elemento mais profundo e ainda mais inquietan-

te. Vimos três dicotomias: verdade/erro; coragem/medo; saúde/doença. A se­ gunda se revela sobre o fundamento da primeira e, sucessivamente, a terceira sobre o fundamento da segunda. Portanto: Para um psicólogo, poucas questões são tão atraentes como as da relação entre filosofia e saúde [ . . ] . Posto que se seja uma pessoa, tem-se necessari­ amente a filosofia da próJ:?ria pessoa: mas há aqui uma notável diferença. São as deficiências que filosofam num homem, no outro, as riquezas e forças. O primeiro necessita da sua filosofia, seja como apoio, calma, medicamento, libertação, redenção, elevação, alienação de si; no segundo, ela é apenas um formoso luxo, no melhor dos casos a volúpia de uma triunfante gratidão, que afinal tem de se inscrever, com maiúsculas cósmicas, no firmamento dos conceitos (FW, Prefácio, 2). .

A doença eleva-se a critério universal de explicação: "Todas as duas reli­ giões mundiais, o budismo e o cristianismo, poderiam ter tido sua origem, e mais ainda o segredo da rápida propagação, em um enorme adoecimento da vonta­ de. E na verdade, foi o que aconteceu" (FW, 347). Não é só o deslizamento da psicologia para a psicopatologia, mas a do­ ença psíquica tende sempre mais nitidamente a assumir uma dimensão ou um fundamento fisiológico. No tocante às duas religiões, elas são o resultado de "uma espécie de hipnose de todo o sistema sensório-intelectual" (FW, 347). Noutros casos, a explicação é ainda mais gravemente naturalista: "Tome-se como sintomático que alguns filósofos, como, por exemplo, o tuberculoso Spinoza, consideravam, tinham de considerar decisivo justamente o chamado instinto de autoconservação : eles eram, precisamente, homens em estado de indigência" (FW, 349) . Portanto, da psicologia à psicopatologia e da psicopatologia à fisiologia. Depois de ter lido as Confissões de Agostinho, numa carta a Overbeck (3 1 de março de 1 8 85), Nietzsche escreve que "este livro", cheio de "falsidade psico­ lógica" e cujo "valor filosófico é igual a zero", apresenta de qualquer modo a vantagem de que nele "se vê o cristianismo a partir das vísceras" (in den Bauch). Não se trata de uma simples metáfora, porque logo depois o filósofo acrescenta: "Estou assistindo com a curiosidade de um médico e fisiólogo radi­ cal". A "falsidade psicológica" se revela em última análise como uma falsidade ou corrupção fisiológica (B, III, 3, p . 34). Se ainda houvesse qualquer ambiguidade, ela desaparece rapidamente. Há um tema sobre o qual Nietzsche não se cansa de insistir: "As vísceras contraídas (das geklemmte Eingeweide) se revelam" (FW, 366); ''todos os preconceitos vêm das vísceras" (Eingeweide) (EH, Porque sou tão inteligente, 1). É tam-

bém esta a interioridade no âmbito da qual é preciso colocar-se para poder expri­ mir um correto juízo de valor sobre homens, movimentos e culturas : O meu instinto de limpeza é de uma sensibilidade verdadeiramente inquie­ tante, de modo que eu percebo fisiologicamente, farejo a proximidade ou - o que digo? - o fundo mais íntimo, "as "entranhas" de todas as almas (das Jnnerlichste, die "Eing_e weide "feder See/e) ... Esta sensibilidade me dá an­ tenas psicológicas com as quais tateio e capto todos os segredos: desde o primeiro contato percebo toda a imundície escondida no fundo de certas naturezas, talvez proveniente do sangue ruim, mas branqueada pela educa­ ção (EH, Porque sou tão sábio, 8).

É preciso nunca perder de vista a dimensão fisiológica da decadência. Desgostoso e nojento é ter de aturar a vizinhança ou também só aproximar-se de "algo mal sucedido", ter de "sentir o cheiro (riechen) das vísceras de uma alma mal sucedida" (GM, 1, 1 2) . Além da presença fisica, também um texto decadente, literário ou musical que seja, provoca reações de repugnância que vão bem além do âmbito estritamente psicológico: Minhas objeções à música de Wagner são fisiológicas: por que disfarçá-las em fórmulas estéticas? A estética é totalmente diferente da fisiologia aplica­ da. O meu "dado de fato" ( Thatsache}, o meupetitfait vrai é que não respiro mais com facilidade quando essa música começa a agir sobre mim; imediata­ mente o meu pé se irrita e se revolta contra ela [... ]. Mas também não protesta o meu estômago? o meu coração? a minha circulação sanguínea? Não se afligem as minhas vísceras (mein Eingeweide)? Não fico rouco sem me dar conta? (FW, 368; NW, Onde eufaço objeções).

Por outro lado, quem consegue penetrar no mundo nobre e aristocrático dos livros de Nietzsche não poderão ser aqueles que estão bichados no corpo, antes ainda que na alma. Trata-se de dois aspectos indissoluvelmente interliga­ dos de uma mesma realidade: Toda fraqueza da alma impede o acesso a eles, de uma vez por todas, até mesmo uma simples dispepsia [ ... ]. Não só a miséria, mas o ar viciado de uma alma o impedem, mas muito mais ainda a covardia, a sujeira, o secreto rancor de vingança nos intestinos (in den Eingeweiden): uma palavra minha obriga todos os instintos ruins a mostrarem a cara [. . . ] . Os "espíritos" completamente viciados, as "almas belas", os mentirosos dos pés à cabeça não sabem abso­ lutamente o que fazer com esses livros (EH, Porque escrevo livros tão bons, 3).

A acentuação da dimensão fisiopsicológica do discurso não só restringe ou anula o espaço da comunicação, mas acaba fazendo aparecer sem sentido a 899

própria refutação: "Quem não apenas compreende a palavra ' dionisíaco', mas também compreende a si mesmo na palavra ' dionisíaco ', não tem necessidade de refutar Platão, ou o cristianismo, ou Schopenhauer - fareja a putrefação (Verwesung)" (EH, O nascimento da tragédia, 2). "Um filósofo precisa la­ var as mãos depois de ter-se ocupado por muito tempo com o 'caso Wagner' . - Eis a minha concepção do moderno" (WA, Epílogo). A passagem para a "grande saúde", anunciada ou invocada várias vezes por Nietzsche, é também algo mais que uma simples metáfora: Eu espero ainda que um médico filosófico, no sentido excepcional da palavra - empenhado no problema da saúde coletiva de um povo, de uma época, de uma raça - tenha futuramente a coragem de levar ao cúmulo a minha suspeita e de arriscar a seguinte afirmação: em todo o filosofar, até o momento, a questão não foi absolutamente a "verdade", mas algo diferente, como saú­ de, futuro, crescimento, potência, vida (FW, Prefácio, 2).

A refutação lógica é substituída por medidas higiênicas e de profilaxia, e esta profilaxia pode também ser de caráter policial: uma vez configurado o cristianismo como "contranatureza", eis que a natureza sã tem necessidade de prevenir a contaminação recorrendo a medidas de detenção também a cargo do "sacerdote" (supra, cap. 1 8 § 9).

1 O. Dois tipos de máscara radicalmente diferentes É o próprio Nietzsche quem se faz explicitamente promotor de "uma fisiopsicologia peculiar" (JGB, 23). Da psique é preciso descer a um outro estrato ainda mais profundo: "As próprias opiniões não são senão a expressão conhecida por nós de um processo fisiológico": as opiniões erradas "são gran­ des doenças que se transmitem por muitas gerações, das quais finalmente se cura fisiologicamente e que, por isso, morrem"; e não esquecer que "há doen­ ças individuais e super-individuais" (IX, 473). É absurdo pensar que os diversos sistemas morais podem ser pensados independentemente do corpo do qual são expressão: Hoje não conseguimos mais pensar a degeneração moral separada da dege­ neração fisiológica : a primeira é uma mera síndrome da segunda; é-se neces­ sariamente mau, como se é necessariamente doente [ . ] . O vício não é causa; o vício é efeito . . O vício é uma delimitação conceituai, arbitrária, para resumir certas consequências da degeneração fisiológica (XIII, 290). ..

.

Por sua vez, os juízos de valor "têm valor apenas como sintomas", sintomas do corpo, além de sintomas da alma, sintomas da sanidade ou insanidade daquele que os exprime. Sócrates e Platão podem ser avaliados positivamente apenas por outros doentes. O pressuposto de tal atitude é "concordar fisiologicamente" (GD, O problema Sócrates, 2) . É necessário dar-se conta disso de uma vez por todas: "No fundo de todas as chamadas 'almas belas' há um mal-estar fisiológico" (EH, Porque escrevo livros tão bons, 5). Mais em geral, para compreender o tipo do homem de que se trata, "é preciso em primeiro lugar ter claro o seu pressuposto fisiológico" (EH, Assim falou Zaratustra, 2). A oscilação do mundo ocidental contemporâneo entre cristianismo, de um lado, e reconquista de uma visão pagã e trágica da vida, do outro lado, não exprime apenas um conflito de civilização: "O homem moderno representa, biologicamente, uma contradição dos valores'', mas isto significa que são, "do ponto de vista fisiológico, falsos"; assistimos ao entre­ laçamento e ao choque entre duas naturezas reciprocamente incompatíveis, a natureza sadia e a doente (WA, Epílogo). A essa altura, a fisiologia se toma o elemento decisivo pra a compreensão das diversas esferas da cultura, quer se trate da "estética" ou da "esfera dos chamados valores morais". No tocante a esta última, a "moral das noções cristãs de valores" aprofunda as suas raízes "num terreno infecto até o fundo" e já por isto resulta irredutivelmente antitética com respeito à "moral dos senhores", que se fundamenta sobre a "vontade de potência como princípio de vida". Agora, não só o conflito dos valores se configura como um conflito entre saúde e doença, mas, sobretudo, tanto a saúde como a doença encontram de modo imediato e necessário a sua expressão teórica numa visão do mundo correspondente: Essas formas opostas na ótica dos valores são ambas necessárias: são mo­ dos de ver dos quais não nos aproximamos com argumentos ou refutações. Não se refuta o cristianismo, não se refuta uma enfermidade do olho. O ponto culminante da idiotice erudita é ter combatido o pessimismo como uma filosofia. As noções de "verdadeiro" e de "não verdadeiro", parece-me que não têm qualquer sentido na ótica (WA, Epílogo).

Não há espaço para a argumentação e a refutação pelo fato de que as teorias e os conceitos remetem a uma esfera mais profunda, da qual derivam de modo determinista e na qual o seu significado se resolve de modo completo e sem resíduos. Nietzsche continua a falar de ciência até o fim, mas ela não tem nada a ver com uma comunidade do conceito na qual todos podem, poten­ cialmente, reconhecer-se. A ciência é sinônimo de saúde assim como a supers­ tição é sinônimo de doença, ao passo que a psicologia é a capacidade de perce­ ber a presença da saúde e da doença: "Nunca ninguém teve um faro mais fino

do que o meu para os sinais da ascensão e da queda" (EH, Porque sou tão sábio, 1). É tanto mais necessário ir além do nível da consciência e das declarações explícitas, pelo fato de que o sujeito tende a ocultar-se: "Como se pode crer que um filósofo tenha jamais expresso em livros as suas opiniões íntimas?" (XIY, 374). Na realidade, "quando se escreve, não se quer apenas ser compreendido, mas sem dúvida também não ser compreendido" (FW, 38 1). Ou antes, é exatamente este o aspecto principal: "Não se escrevem livros para esconder precisamente o que se guarda dentro de si? [. . .] Toda filosofia esconde uma outra filosofia, toda opinião é também um esconderijo, toda palavra é uma máscara" (JGB, 289). Portanto, para interpretar é necessário "olhar atrás das máscaras" (XI, 48 1). Deparamo-nos aqui com um tema sem dúvida fascinante, que não por acaso encontrou intérpretes excepcionais. 1950 E, por outro lado, é indiscutível a contribuição de Nietzsche para a elaboração da psicologia da p rofundeza e da psicanálise. Talvez, porém, raramente se tenha pesquisado o significado político do tema da máscara e da p rofundidade. Estamos na realidade diante de dois tipos de máscara radicalmente distintos. Por um lado, trata-se de entrar numa di­ mensão profunda, protegida pelos silêncios, pelos afastamentos e pelos disfar­ ces de quem está interessado em manter a escuridão, o ocultamento ou a re­ moção da própria enfermidade. Na vertente oposta vemos surgir uma máscara de tipo fundamentalmente diferente: Um homem cujo pudor é profundo [... ] instintivamente usa as palavras para calar e guardar e é incansável em esquivar-se à comunicação, deseja e solici­ ta que uma máscara ande em seu lugar, nos corações e nas mentes dos amigos [. . . ] . Todo espírito profundo necessita de uma máscara: mais ainda, ao redor de todo espírito profundo cresce continuamente uma máscara, gra­ ças à interpretação perpetuamente falsa, ou seja, superficial de cada palavra, de cada passo, de todo sinal de vida que ele dá (JGB, 40).

Se os mal sucedidos acabam inevitavelmente confinados no círculo da doença e da mentira (em comparação a si mesmos antes ainda que aos outros), as naturezas aristocráticas querem evitar qualquer ocasião de contaminação com a ralé, inclusive a ralé intelectual e historiográfica: Os historiadores hoje querem demais e pecam todos contra o bom gosto: atropelam-se para penetrar nas almas dos homens a cuja categoria e a cuja sociedade não pertencem. É o que faz, por exemplo, um agitado e suado 1950 Sobre isto cf.

Vattimo, 1 983.

plebeu como Michelet com Napoleão! Não faz diferença se o ama ou o odeia; dado que sua, não deve estar perto dele (XI, 588). Não há dúvida, "tudo o que é profundo ama a máscara (JGM, 40); ou antes, "quanto mais é de natureza superior, tanto mais o homem tem necessida­ de do incógnito" (XI, 543). Os homens superiores são bem conscientes disto: "Sabemos que somos dificeis de conhecer, e que temos todas as razões de munir-nos de fachadas" (XI, 5 45). O homem superior, que sofre muito mais que os homens comuns e vulgares, "acha necessárias todas as formas de dis­ farce para proteger-se do contato de mãos importunas e compassivas" (JGB, 270). Depois de ter sido configurada como Grande Corrente da sensibilidade à dor, a Grande Corrente do Ser se manifesta como Grande Corrente na neces­ sidade do disfarce. Mesmo que tomem um significado oposto, os dois tipos de máscara agem de modo convergente na produção de um resultado: a impossibilidade da comu­ nicação entre homens de natureza superior e homens de natureza inferior.

1 1 . Psicologia e etnologia das visões do mundo A análise da história das ideias e dos conflitos políticos e ideológicos de­ semboca na construção de tipologias psicológicas e antropológicas. Voltemos a O nascimento da tragédia. Sócrates representa "o tipo de uma forma de existência que antes dele nunca existira, o tipo do homem teórico, do qual é nossa tarefa imediata compreender o significado e a finalidade" (GT, 15; 1, 98); mais exatamente, ele "é o protótipo do otimista teórico" (GT, 15; 1, 1 00). Por isso, ao "homem teórico", ao "homem socrático" (GT, 20; 1, 1 32), ou seja, ao "homem abstrato", que representa "a educação abstrata, o costume abstrato, o direito abstrato, o Estado abstrato" (GT, 2 3 ; 1, 1 45), se contrapõe "o homem trágico" (GT, 18; 1, 1 1 9). Assistimos assim à "eterna luta entre a concepção do mundo teórica e a trágica" (GT, 17; 1, 1 1 1 ) ; enfrentam-se, sem possibilidade de mediação, "duas formas diversas de existência" (GT, 1 9; 1, 1 28). A terceira Inatual faz uma nova tipologia que distingue, como sabemos, entre o "homem de Rousseau", que está no fundamento de "todo frêmito e terremoto socialis­ ta", "o homem de Goethe", imune aos entusiasmos subversivos e propenso ao filisteísmo, e, enfim, o "homem de Schopenhauer", o único realmente capaz de enfrentar e vencer o desafio colocado pela revolução (supra, cap. 6 § 8-9). A história das ideias, ou antes a história enquanto tal, tende a ser suplantada, mais do que apoiada, por uma psicologia (e fisiopsicologia) das visões do mundo,

a qual, aliás, parece às vezes articular-se em base nacional, com o risco, portanto, de uma caída no estereótipo exatamente nacional. A fim de recuperar a sua "aptidão dionisíaca" intrínseca e apenas superficialmente embaciada {GT, 24; 1, 1 5 3), a "essência alemã'', fixada e transfigurada de modo tendencialmente meta­ histórico e mítico, é chamada nos anos de O nascimento da tragédia a expulsar de si o "elemento neolatino" {GT, 23; 1, 149), ou antes, a "essência neolatina" (BA, 2; 690), também ela mais ou menos imóvel no tempo. Compreende-se que, a partir desta psicologia-etnologia das visões do mundo, Sócrates e Strauss sejam suspeitos de ser estranhos, respectivamente, à essên­ cia grega e à essência alemã, pelo fato de remeter ambos ao mundo judeu (supra, cap. 3 § 2-4 e 1 5 § 2). Esse modo de argumentar não desaparece com o desaparecimento da fase "metafisica" e romântica. Além do bem e do mal desenvolve uma consideração de caráter geral: o filosofar é na realidade não tanto uma descoberta quanto um renovado reconhecimen­ to, um renovado recordar, retorno a uma primeva, longínqua morada perfeita da alma (uralten Gesammt-Haushalt der Seele), de onde os conceitos um dia brotaram - nesse sentido, filosofar é uma espécie de atavismo de primeira categoria. A prodigiosa semelhança de família, própria de todo filosofar india­ no, grego, alemão, se explica de modo bastante simples. Onde há parentesco linguístico é inevitável que, graças à comum filosofia da gramática - quero dizer, graças ao domínio e à direção inconsciente das mesmas funções grama­ ticais - tudo esteja predisposto para uma evolução e uma sequência seme­ lhante dos sistemas filosóficos; do mesmo modo que o caminho parece inter­ ditado a certas possibilidades diferentes de interpretação do mundo ( Welt­ Ausdeutung). Filósofos do âmbito linguístico uralo-altaico (no qual o conceito de sujeito teve o desenvolvimento mais precário) com toda probabilidade olharJo "para dentro do mundo" de maneira diversa e se acharão em trilhas diferentes das dos indogermanos ou muçulmanos (JGB, 20).

É uma teoria que faz pensar em Renan, que, nesse mesmo período de tempo, mais qu e de "raças antropológicas ", prefere falar de "raças linguísticas";1951 de modo que, por exemplo, as línguas semitas são "os órgãos de uma raça monoteísta", a "raça religiosa por excelência", 1952 enquanto há povos, em virtude da sua língua (estranha ou refratária às "revoluções"}, "vota­ dos à imobilidade". 1953 1951

Renan, 1947, vol. VIII, p. 1224. 1947, vol. VIII, p. 97. 1953 Renan, 1947, vol. VIII, p. 1 62; sobre tudo isto cf. Olender, 1 99 1 , pp. 87- 128.

1952 Renan,

Mas em Nietzsche assistimos a um ulterior enrijecimento naturalista: "O encanto de determinadas funções gramaticais é, em última instância, o encanto de condicionamentos raciais e juízos de valorfisiológicos" (JGB, 20). Funda­ das como estão, em ultima análise, sobre a filologia - é o próprio filósofo quem evidencia esse aspecto com itálico - as diversas visões do mundo são incomu­ nicáveis entre elas : "Numa língua, o que menos se presta à tradução, é o tempo do seu estilo, o qual tem o seu fundamento no caráter da raça ou, falando mais fisiologicamente, no tempo médio do seu 'metabolismo "' (JGB, 2 8) . A tradutibilidade das linguagens vale só para as múltiplas manifestações de uma mesma cultura, mas não para a relação entre culturas distintas. São graves as implicações dessa articulação das visões do mundo segun­ do o seu fundamento étnico e fisiológico: incomunicáveis entre si, elas se tor­ nam imóveis e permanentemente hierarquizadas, com uma hierarquização que vale também para os diversos povos que as exprimem. Os que exprimem uma visão do mundo hostil à natureza e à vida podem ser "indivíduos", "classes" ou "raças inteiras" (FW, Prefácio. 2). Talvez seja possível surpreender também aqui uma alusão aos judeus, em outros lugares repetidamente rotulados como a encarnação da visão moral do mundo antiaristocrática e antinatural.

1 2. Reaparição do "texto " e sua transformação em ''fato " A passagem da psicologia para a fisiopsicologia na leitura e interpretação dos indivíduos, bem como dos povos e das "raças'', tem um resultado paradoxal. Vimos desaparecer, junto com o fato, também o texto, mas agora o texto não só reaparece, mas tende a configurar-se como uma objetividade e uma evidência ineludíveis. Contra as mistificações idealistas, Nietzsche convida a reconhecer e respeitar "o terrível texto fundamental homo natura". É preciso, portanto, "retraduzir o homem na natureza, dominar as muitas interpretações e conotações vaidosas exaltadas, que até o momento foram rabiscadas e pintadas sobre o eterno texto homo natura" (JGB, 230). À luz dessa abordagem não é apenas "o 'milagre"' que se revela "um erro de interpretação" e "uma falta de filologia" (JGB, 47). Também a moral acaba sendo uma superposição arbitrária ao texto da natureza. Tão fácil aparece agora a distinção entre as interpretações que a sua pluralidade tende a dissipar: a "interpretação moral e religiosa" do mundo tornou­ se agora "impossível para nós". É necessário afirmar uma "nova interpretação" totalmente diferente (XI, 63 3): é "a interpretação estética" (IX, 6 1 5), ou a "inter­ pretação dinâmica do mundo" (XI, 565), fundada no alegre reconhecimento da realidade da vontade de potência e da inocência do devir.

Essa nova interpretação, mais válida, ou melhor, a única verdadeiramente válida, deve abranger "todo acontecer" (XI, 6 1 9 e 629); junto com a "interpre­ tação moral de todos os fatos naturais" é condenada também "a interpretação moral do nosso agir" (XI, 50 l ) Da natureza passamos para a história. Ao ler a Revolução Francesa, Kant e não poucos contemporâneos procederam de modo arbitrário. Em vez de respeitar o texto na sua autonomia, projetaram nele pre­ ocupações e esperanças morai� totalmente estranhas a ele. Nessa "farsa hor­ rível e, observada de perto, desnecessária [ . . . ] os espectadores nobres e entu­ siastas (edlen und schwãrmerischen) de toda a Europa interpretaram à dis­ tância os seus próprios arrebatamentos e indignações, por tanto tempo e tão apaixonadamente que o texto desapareceu sob a interpretação" (JGB, 3 8). A evidência do texto constituído pela realidade é tão incontestável que as interpretações que o ignoram ou o entendem mal, mais ainda do que como erros, se apresentam como falsificações: .

Quem "explica" a passagem de um autor "mais profundamente" do que ele a entendeu, não esclareceu, mas obscureceu o autor. O mesmo fazem os nos­ sos metafisicos com o texto da natureza; e ainda pior. Pois, para aduzir suas explicações profundas, eles frequentemente preparam o texto para essa fina­ lidade: quer dizer, o corrompem (WS, 17). Finalmente, o texto da realidade parece até tomar uma espessura física. Vimos o aforismo de A gaia ciência empenhado em polemizar contra o "pre­ conceito" dos cientistas, que desejavam fazer valer como única e exclusiva a sua interpretação matemática e contábil do mundo. Mas eis a conclusão do raciocínio: tal pretensão "é uma estupidez e uma ingenuidade, posto que não seja uma enfermidade do espírito, um idiotismo" (FW, 373). A problematicidade, implícita na configuração da relação entre mundo e visão do mundo sobre o modelo da relação entre texto e intérprete-filólogo, mudou-se no seu contrário. A alma cultivada mediante o "adivinhar" remete, por sua vez, ao corpo: "Por trás dos supremos juízos de valor que até hoje guiaram a história do pensamen­ to se escondem más compreensões (Missverstãndnisse) da condição corpórea". Nesse sentido, romper com uma visão do mundo que se arrasta há dois milêni­ os significa romper com "uma interpretação (Auslegung) do corpo e uma má compreensão (Missverstãndniss) do corpo" (FW, Prefácio, 2). Aqui estamos na presença de um genitivo mais subjetivo ainda do que objetivo; em última análise, é o corpo doente que entende mal a si mesmo. O modelo filológico, a categoria de interpretação, continua bem presente, apenas o seu significado passou por uma mudança completa: "Toda filosofia que põe a paz acima da guerra" é "uma interpretação do corpo e uma má compreensão do corpo". É

lícito perguntar "se não foi a doença que inspirou o filósofo"; é preciso não se deixar enganar pelo "inconsciente disfarce de necessidades fisiológicas sob o manto da objetividade, do ideal, do puro-espiritual" (FW, Prefácio, 2). Mais ainda do que a alma, o sistema ou a mediação conceituai oculta o corpo e a doença do corpo, que devem assim ser trazidos à luz e denunciados por esta nova "psicologia" e fisiopsicologia. Em conclusão, a epistemologia antissensualista, implícita na abordagem filológica, entra em contradição com a profissão de fé sensualista que, no plano político e moral, Nietzsche contrapõe a platonismo, cristianismo e socialismo. Nas suas diversas configurações, o "idealismo" abandona o terreno da objetivi­ dade real para ir atrás de um mundo fantástico de ideais e evasões religiosas e políticas, de reivindicações e recriminações morais, um mundo que pode ape­ nas ser o resultado da insânia, da doença e da corrupção do corpo. Para um olhar mais atento e mais profundo, uma proposição ou interpretação errônea se revela ser fisiológica e patologicamente condicionada e determinada. Decidi­ damente suspeita é agora também a atitude cética, em contraposição da qual é celebrada "a segurança das medidas de valor": "nós não somos céticos, cre­ mos ainda numa hierarquia dos homens e dos problemas" (XI, 529) . Agora não parece mais haver dúvida: "O ceticismo é, de fato, a expressão mais espiritual de uma complexa condição fisiológica, que na linguagem corrente chamam de astenia nervosa ou constituição doentia" (JGB, 208). Explica-se assim a singular contradição para a qual numa mesma página po­ demos ler a tese segundo a qual "bem e mal são apenas interpretações e de modo algum um fato" e, portanto, é hora de livrar-se da "obrigação enraizada de interpre­ tar moralmente" e, logo depois, a censura à interpretação moral de descuidar do "fato fimdamental", ou seja, a "contradição entre o 'tornar-se mais moral' e a elevação e o reforço do tipo homem" (XII, 1 3 1-2). Por outro lado, ao Nietzsche que chama rudemente a ater-se ao "terrível texto fundamental homo natura" se pode­ ria contrapor a polêmica desenvolvida por ele contra a pretensão dos estoicos de querer viver "segundo a natureza". Na realidade, a natureza é "a própria indiferen­ ça como potência". Portanto, "como poderíeis viver conforme essa indiferença? Viver - isto não é precisamente ser diverso da natureza? Viver não é avaliar, pre­ ferir, ser injusto, ser limitado, querer ser diferente?" Além do bem e do mal prosse­ gue: "O vosso orgulllo quer prescrever e incorporar à natureza, até à natureza, a vossa moral, o vosso ideal" (JGB, 9). Nietzsche, porém, não procede de modo análogo, limitando-se a colocar a "interpretação dinâmica", elevada à categoria de "fato" incontestável, no lugar da "interpretação moral do mundo"? Embora se acentue com o passar dos anos, o recurso à categoria da doen­ ça é um traço que caracteriza Nietzsche em toda a trajetória da sua evolução.

Os germes desse tipo de leitura podem ser vistos já em O nascimento da tragédia : Sócrates aparece aí como a expressão de uma visão doente da vida, de uma psicologia turva. Nele (e em Eurípedes) uma filosofia dissolvedora do mito e da ordem social existente anda lado a lado com a "progressiva atrofia ( Verkümmerung) das forças físicas e espirituais"; agora desapareceu "a anti­ ga e grosseira capacidade do corpo e da alma" (GT, 13; 1, 88). Com Sócrates "vem ao mundo pela primeira vez" aquela "profunda alucinação" (tiefsinnige Wahnvorstellung) para a qual o pensamento pretende penetrar "até os mais profundos abismos do ser e estaria em condições de não só conhecer, mas também de corrigir o ser" (GT, 15; 1, 99). A partir disso, "a ciência, estimulada pela sua robusta ideia fixa ( Wahn), corre sem parar até os seus limites" e até o naufrágio (GT, 1 5 ; 1, 1 0 1). Os escritos e os apontamentos contemporâneos a O nascimento da tragé­ dia não só reforçam a tese da "ideia fixa" ( Wahn) e da "alucinação" (Wahnvorstellung) (VII, 134 e 1 32), mas desenvolvem depois a acusação, que se apresenta sempre mais claramente como um diagnóstico sem esperança: Sócrates é um "homem totalmente anormal", já no seu aspecto físico; além disso, é caracte­ rizado por uma "inteligência unilateral" e hostil ao "instinto" sadio e por uma "von­ tade desmedida", e vive "num mundo absurdo e invertido" (ST; 1, 54 1 -2). É um tema bem presente também no período "iluminista". Elevando à dignidade de "demônio" aquilo que talvez seja uma banal "doença de ouvido", Sócrates se toma responsável por uma "falsa interpretação" de um sintoma patológico: de modo análogo se comporta o santo em relação às suas "visões" e aos seus "estados de doença" (MA, 1 26). Irrompe assim no discurso de Nietzsche um pathos exaltado da verdade que contrapõe a verdade e a sua "revelação" a milhares de interpretações errôneas e doentes do texto da natureza. A linguagem do filólogo cede lugar à linguagem do profeta. Este último celebra assim a virada inaudita representada pelo seu Zaratustra: "Até agora não se sabia o que é a altura, o que é a profün­ didade; e muito menos o que é a verdade. Nessa revelação da verdade não há momento que já tenha sido antecipado, adivinhado por qualquer um dos maio­ res" (EH, Assim falou Zaratustra, 6). Vimos Nietzsche contrapor o nobre iluminismo e ceticismo de Pi latos à pretensão do visionário e fanático de representar e encarnar a verdade. Mas o filósofo acaba assumindo mais a posição de Jesus do que a do governador por ele admirado. A minha verdade é terrível : pois até hoje a mentira é que foi chamada de verdade. - Transvaloração de todos os valores: Esta é a minha fórmula para o ato com o qual a humanidade toma a decisão suprema sobre si mesma, um

ato que em mim se tomou carne e gênio. Quer a minha sorte que eu deva ser o primeiro homem decente, que saiba opor-me a uma falsidade que dura milênios . . . Eu fui o primeiro a descobrir a verdade, exatamente porque fui o primeiro a sentir a mentira como mentira, cheirei-a . O meu gênio está nas minhas narinas [ ... ]; só a partir de mim há de novo esperanças (EH, Porque eu sou um destino, 1). .

.

Tão exaltado é o pathos da verdade que Nietzsche chega a se autodefinir como "aquele espírito íntegro na história do espírito, aquele espírito com o qual a verdade leva ao tribunal os falsários de quatro milênios" (EH, O caso Wagner, 3), a moeda falsa do longo e ruinoso ciclo em que grassou o erro ou, mais exatamente, o delíriojudeu-cristão. Exatamente porque a dicotomia saúde/doença toma o lugar da dicotomia verdade/erro, Nietzsche pode formular a tese segundo a qual "talvez prevaleçam os pensadores doentes na história da filosofia" (FW, Prefácio, 2).

13. "Silogismo retroativo ", "estrutura da alma " e onipresença da vontade de potência O "silogismo retroativo" deve visar captar a "estrutura da alma" de um autor ou de um movimento, mas qual é o elemento essencial de tal estrutura? Já vimos que é totalmente estranho ao "psicólogo novo" o cultivo da própria interioridade cara aos "psicólogos mais antigos". Mas há um ulterior elemento de diferenciação. Na sua nova configuração, a psicologia é chamada a "prepa­ rar um fim para a superstição, que até hoje vicejou com luxúria quase tropical em tomo da representação da alma" (JGB, 1 2). Trata-se de romper com a tradição moral e religiosa que pesou sobre a psicologia e a impediu de tomar consciência dos problemas reais, antes ainda que de elaborar respostas adequadas : a própria "curiosidade científica" foi ini­ bida (FW, 345). Decidindo-se finalmente a superar uma inibição milenar para "descer ao fundo" e ler realmente na profundeza do homem e da sua "alma", eis que a "psicologia" assume uma configuração nova e inédita: Concebê-la como morfologia e teoria evolutiva da vontade de potência, como eu a concebo - isto é algo que ninguém tocou sequer em pensamento: na medida em que é permitido ver, no que foi até agora escrito, um sintoma do que foi até aqui silenciado (JGB, 23). Agora está rompido "o poder dos preconceitos morais", mesmo "tendo pe­ netrado profundamente no mundo mais espiritual, aparentemente mais frio e mais livre de pressupostos". Uma vez neutralizada a penetração "nociva,

inibidora, ofuscante e deturpadora" (JGB, 23), pode-se finalmente reconhe­ cer a realidade da vontade de potência. Esta age também no discurso e na atitude moral que pretende ocultá-la ou negá-la. Mas de que modos radical­ mente diversos podem manifestar-se a vontade de potência! Examinemo-los. Como nos toma venenosos, astuciosos e maus, toda guerra longa que não é conduzida com franca violência ! Como nos toma pessoais um longo temor, um longo olhar em direçãó a inimigos, a possíveis inimigos! Esses proscritos da sociedade, esses homens longamente perseguidos - e também os eremi­ tas forçados, os Spinoza ou os Giordano Bruno - acabam sempre se trans­ fom1ando, ainda que sob a mascarada mais espiritual, e talvez sem que eles mesmos saibam, em refinados vingativos e envenenadores (que se desen­ terre o fundamento da ética e da teologia de Spinoza!) (JGB, 25). A universalidade da realidade da vontade de potência não significa abso­ lutamente a equivalência das suas diversas manifestações. Sua hierarquização é a chave para julgar personalidades e movimentos. Na medida em que é pos­ sível distinguir entre as suas diversas manifestações, é a vontade de potência que se torna superior, pois não se disfarça, exprime-se de modo mais sincero. À primeira vista, é o valor moral da sinceridade que constitui o elemento discriminante; mas aqui a sinceridade é sinônimo da imediatez com que se exprime o corpo e esta imediatez é sinônimo, por sua vez, de saúde. Como sabemos, toda visão do mundo, toda filosofia, até toda estética é expressão de uma subjetividade psicofisica; no entanto, há subjetividade e subjetividade, há corpo e corpo, há corpo sadio e corpo doente. Bem longe de ser "infinito", como queria Foucault, o jogo e o confronto das interpretações encontram uma conclusão bastante definida. O "modo de avaliar altruísta" é expressão do "instinto que sabe que é mal sucedido". Ele é sem dúvida uma "interpretação"; no entanto "é um sintoma de decadência (Ver/ali) ter necessidade de interpretações dessa espécie". Além de psíquica, a decadên­ cia de que se fala aqui tem uma dimensão fisiológica precisa; ela denota "a falta dos grandes sentimentos de potência (nos músculos, nos nervos, nos centros do movimento)" (XIII, 232). Como a crueldade e a vontade de potência, também o egoísmo se manifesta no chamado altruísmo, tanto de um modo tortuoso como deslocado, que remete mais uma vez a uma natureza malograda em todos os níveis. O que Nietzsche afirma de modo explícito a propósito do egoísmo ("o egoísmo vale quanto vale fisiologicamente o seu portador") poderia ser dito da interpretação: ela vale quanto vale fisiologicamente o seu portador. Mais do que a um erro, a interpretação a rejeitar remete à doença e, ademais, a uma doença que é incurável. O dessacralizador cético se transforma em dogmático positivista.

Com consequências também no plano prático. Dado que entre corpo sadio e corpo doente, entre saúde e doença não pode haver nem argumentação real nem comunicação real, seria ingênuo pensar numa refutação do egoísmo do indivíduo fisiologicamente defeituoso. Quer "se trate de indivíduos ou de estratos inteiros de povo que se deterioram, definham'', de qualquer maneira se impõe "a repres­ são do egoísmo" doente, que "se manifesta às vezes de maneira absurda, doentia, rebelde" (XIII, 23 1 -2). É má literatura a afirmação de Foucault segundo a qual a loucura final de Nietzsche poderia ser lida como a metáfora do revés, interior na tarefa infinita e infinitamente complexa da interpretação.1954

14. "Doença ", "má fé " e impossibilidade de autorrefiexão Com o recurso de Nietzsche, sempre mais obsessivo durante a sua evolu­ ção, à categoria de degeneração para explicar o conflito e a história, acaba faltando a possibilidade de autorreflexão, isto é, a capacidade de um autor apli­ car ao discurso próprio e a si mesmo os critérios de l eitura e de crítica que enuncia para os discursos alheios. Ele não se cansa de repetir que doentes são os seus antagonistas e apenas eles: "todas as questões relativas à política, à ordem social, à educação são, por isso, falsificadas até a raiz, de modo que foram tomados por grandes os homens mais perniciosos [ . . . ] . Se agora me comparo com os homens que até hoje foram louvados como homens de primei­ ra, a diferença é palpável". De um lado temos seres tomados por uma "doen­ ça" incurável e que são a mesma coisa com ela. Do outro lado: Eu quero ser o antípoda de tudo isto: meu privilégio é ter a maior das finuras para todos os sinais que têm a ver com instintos sadios. Em mim falta qual­ quer indício de doentio; mesmo em tempos de doenças graves eu jamais me tornei emermo; em vão haverão de procurar em mim um traço de fanatismo (Fanatismus) (EH, Porque sou tão inteligente, 10).

É em oposição à doença, que se espalha, da religião e da subversão que o filósofo define o pensamento próprio e a si mesmo: "Aqui não fala um 'profe­ ta', um desses híbridos horríveis de enfermidade e vontade de potência, aos quais se chama de fundadores de religiões" (EH, Prólogo, 4); "Aqui não fala um fanático, aqui não se 'prega', aqui não se exige fé" (EH, Prólogo, 4). No entanto, do ponto de vista do homem religioso, é o ateu que tem uma humanidade mutilada (e automutilada), que o impede de compreender o sagrado. 1954 Foucault, 1964, pp. 188-9.

A acusação de doença repercute de um ao outro exatamente pelo fato de que ambos fazem uso de uma categoria incapaz de autorreflexão. Por outro lado, A gaia ciência surpreende em Sócrates moribundo a confissão indireta e todavia fatal que o desmascara definitivamente, segundo a qual "a vida é uma doença" (FW, 340). Seria fácil aduzir a isto às declarações explícitas às quais Nietzsche se entrega nos momentos de sofrimento mais agudo. Forçado a ficar acamado por causa de um "ataque violentí�imo", ele faz a Lou Salomé, em 25 de agosto de 18 82, uma confissão sofrida: "Eu desprezo a vida" (B, III, 1 , p. 245) No final do Século XIX, alguns admiradores fanáticos de Nietzsche cele­ bram nele a "intuição psicofisiológica" ou a "intuição psicofisica", entendida como a capacidade de "espreitar e espiar todos os processos e os recantos secretos", para depois subir deles até as características psicológicas e fisiológi­ cas da personalidade ou do movimento pesquisado. 1 955 Não por acaso, Nordau retoma de Nietzsche, e da cultura do tempo, a categoria de "degeneração" para voltá-la contra ele. A conclusão é bastante significativa: "Os degenerados devem sucumbir pelo fato de não saber adaptar-se às condições da natureza e da vida associada, nem poder afirmar-se na luta pela existência contra os sãos". Em última análise, aqueles que são inadequados também "no organismo", estão destinados a ser excluídos: "tomam-se histéricos e neurastênicos, produzem degenerados, e com eles termina a sua estirpe". 1 956 Deixando o otimismo de lado (com base no qual parece estar garantida a vitória dos melhores e dos mais sadios), trata-se do quadro de Nietzsche. Lou Salomé argumenta de modo não muito diferente de Nordau na bio­ grafia por ela dedicada a Nietzsche: ''No fundo, ele pensava apenas para si, escrevia para si, já que descrevia apenas a si mesmo, voltava em pensamentos ao próprio eu"; portanto seria inútil buscar uma "importância teórica" que vá além da riqueza e da "força interior" do filósofo. 1 957 Apesar dos reconheci­ mentos significativos que esta biografia teve, ela não só não faz justiça ao autor pesquisado, mas absolutiza o seu aspecto mais fraco. É uma interpretação, aliás, contraditória, dado que, como vimos (supra, cap. 28 § 6), é a própria Lou Salomé que sublinha a vontade de conversão que animava Nietzsche. Portanto, a irmã do filósofo tinha razão em rejeitar, com aspereza, essa leitura. As ideias fundamentais da senhora Andreas sobre o meu irmão são total­ mente erradas e até contrárias à verdade. Em particular, ela cria de sua cabeça

1 955 Nordau, s.d. vol. II, p. 367, faz ironia sobre isto. 1 956 Nordau, s.d. vol. II, pp. 527-8. 1957 Andreas-Salomé, 1998, pp. 49-50.

a verdade segundo a qual procura reconduzir o núcleo fundamental do cará­ ter e do desenvolvimento do meu irmão a causas puramente patológicas e demonstra não possuir a mínima sensibilidade pela sua verdadeira persona­ lidade. O efeito dessa falsa representação é óbvio: de fato, a senhora Andreas vem com essa concepção ao encontro de uma corrente dessa época, que quer explicar toda grandeza espiritual a partir da patologia. 1 958

Mesmo fazendo valer a crítica de modo unilateral, poupando generosa­ mente o irmão, resta o fato que, ao rejeitar o reducionismo psicológico e biográ­ fico, Elisabeth revela maior finura filosófica do que Lou e até, nesse caso con­ creto e limitado, do que Friedrich Nietzsche. Este, um século depois da sua morte, continua a estar no centro do debate filosófico pelo fato de ter elaborado ideias e feito sugestões que, qualquer que tenha sido a gênese psicológica de­ las, revelam um valor que vai muito além da esfera da autoconfissão. De resto, a própria Lou Salomé sublinha, de modo mais uma vez contraditório, "a presen­ ça, em Nietzsche, de uma aspiração sem reservas ao conhecimento que cons­ titui de algum modo a força unificadora de todo o seu ser"; o filósofo "se entre­ ga a este deus do conhecimento que é o seu". 1 959 Em confirmação de sua crítica, Elisabeth recorda a carta de fevereiro de 1 8 88 na qual o irmão se lamenta do fato de que, em vez de resenhar e discutir criticamente seus livros, "agora a gente é tratado com as palavras 'excêntrico', 'patológico', 'psiquiátrico"' (B, III, 5, p. 248). 1 960 Na realidade, esta declaração revela um grave problema. Enquanto, por um lado, não se cansa de insistir na leitura psicopatológica das posições dos seus adversários, por outro lado, o último Nietzsche se preocupa em especificar que esta leitura não vale no seu caso. Depois de ter acentuado que, como já revela "o caso de Sócrates", a dialética é "um sintoma da décadence'', o autor de Ecce Homo prossegue assim: Nunca conheci distúrbios do intelecto por causa da doença, nem mesmo aquele semi-atordoamento, que é decorrência da febre; tudo o que aprendi sobre a natureza e a frequência desses fenômenos me vêm dos livros. O meu sangue circula lentamente. Jamais alguém conseguiu constatar febre em meu sangue. Um médico, que me tratou como doente nervoso por longo tempo, disse ao fim: "Não! o problema não está em teus nervos, eu é que estou um pouco nervoso". Era simplesmente impossível ser demonstrada qualquer degeneração local; nenhuma moléstia do estômago de origem orgânica, em-

1958 Fõrster-Nietzsche, 1 895-1904, vol. II, p. VII. 1959 Andreas-Salomé, 1998, pp. 12-3. 1 96º Fõrster-Nietzsche, 1895-1904, vol. li, pp. VII-VIII.

hora sofra bastante devido a uma gravíssima fraqueza do meu sistema gástri­ co, como consequência de um esgotamento geral. Também a moléstia dos olhos, a cegueira se aproximando pouco a pouco e perigosamente, era ape­ nas consequência, não era a causa. De fato, com qualquer acréscimo em força vital também a visão ficaria mais forte (EH, Porque sou tão sábio, 1).

Não tendo uma base orgânica e sendo apenas o resultado de esgotamen­ to, a doença desenvolveu, no caso de Nietzsche, um papel meramente positivo. Permitiu a ele alguma familiaridade com a "décadence", sem todavia ser real­ mente afetado por ela: "Como summa summarum, eu era saudável; como de­ talhe, como especialidade, eu era um décadent". É esta a condição ideal para descrever com maior penetração e combater com decisão mais firme a chaga da decadência e da degeneração (EH, Porque sou tão sábio, 2). Dá o que pensar essa insistência do último Nietzsche de que nele, apesar das aparências, não há doença, a qual, porém, devasta os seus adversários e opositores. É a prova de que não há mais espaço para a autorreflexão; e se a autorreflexão constitui um requisito irrenunciável de toda teoria autenticamente critica, 1 961 não dogmátjca, é preciso dizer que o último Nietzsche é decididamente dogmático. Chegamos ao mesmo resultado a partir da análise de outra categoria cara ao nosso filósofo. Já sabemos que, no seu modo de ver, o sacerdote divulga mentiras, das quais é bem consciente. Aqui, a dicotomia entre verdade e erro é tão nítida que fica perfeitamente clara não só ao sacerdote (mas também a todos aqueles mentirosos por profissão que são os inimigos do partido da vida). A luta fundamental contra o padre, "este negador, caluniador, envenenador por profi s ­ são da vida" é absolutamente necessária se se quer dar uma "resposta à pergun­ ta: o que é a verdade?" De fato, "a verdade já foi posta de cabeça para baixo quando o advogado consciente do nada e da negação é considerado o represen­ tante da 'verdade"' (AC, 8). Vale a pena observar que aqui o termo "verdade" aparece três vezes, mas Nietzsche recorre às aspas só em referência aos seus adversários. Aqui o filósofo não se exprime mais como o Pilatos admirado por ele (Quid est veritas?), mas como o Jesus por ele desprezado (Ego sum veritas). De fato, numa carta de 18 de outubro de 18 8 8 opõe si mesmo enquanto "gênio da verdade" a Wagner como "gênio da mentira" (B, III , 5, p. 452). É verdade, a mentira da qual se fala tem às vezes um significado mais amplo do que o corrente: ·

Chamo de mentira não querer ver algo que se vê, não querer vê-lo tal como se vê: se a mentira ocorre na presença de testemunhas ou não, é algo que não 1961

Cf. Habermas, 1968 a e Ferry-Renaut, 1 985, pp. 225 seg.

importa. A mentira mais habitual é aquela com que se mente a si mesmo; mentir para outros é, relativamente, uma exceção. Esse não querer ver o que se vê, não querer ver tal como se vê, é praticamente a primeira condição de todos os que são um partido (Partei) em algum sentido: O homem de partido (Parteimensch) toma-se mentiroso necessariamente (AC, 55). A ampliação do conceito de mentira agrava ulteriormente as coisas, e não só pelo fato de que o campo dos mentirosos levado em consideração se tome mais amplo. Agora a dicotomia verdade/mentira ou verdadet'verdade" se configura como a dicotomia homem imparcial/homem de partido. E assim o critério da autorreflexão vem a faltar de modo até ingênuo; como se na maio­ ria das vezes Nietzsche não se comportasse como líder ou ideólogo do par­ tido da vida !

O mentiroso mais ou menos consciente é de qualquer modo radicalmente incapaz de captar e exprimir a verdade pelo fato de estar interior e irremedia­ velmente bichado.

E,

à má fé do à sua natureza, até à sua fisiologia, elimina o espa­

de novo, a tendência a reconduzir o conflito

adversário ou, diretamente,

ço da comunicação. Com o próprio Nietzsche reconhece de modo explícito: "Quem está em desacordo comigo neste ponto [sobre o desastre representado pelo triunfo da 'moral da décadence'], eu considero infectado . . . Mas o mundo inteiro está em desacordo comigo . . . Para um fisiólogo, tal antinomia de valores não deixa a menor dúvida"

(EH, Aurora, 2).

30 D o MITO

SUPRA-HISTÓ RICO À ABERTURA D E NOVAS P ERSPECTIVAS PARA A PESQUISA HISTÓ RICA

1. Ódio contrarrrevolucionário e evidenciamento dos aspectos "re­ acionários " do processo revolucionário radicalismo aristocrático não mantém, não está em condição de manter as

O suas promessas antidogmáticas. Nem por isso fica sem resultado o pode­

roso esforço teórico desenvolvido por ele. Sua carga crítica e desmistificadora põe em discussão muitas certezas, fragmenta muitos lugares comuns. É possí­ vel dar-se conta disso só com a condição de não perder de vista a coerência reacionária do radicalismo aristocrático. Pode-se ignorar ou remover a conde­ nação do liberalismo, da democracia, da igualdade dos direitos, ou então reinterpretar tudo isto em perspectiva mais ou menos vagamente metafórica. O resultado não é nada generoso para Nietzsche. O filósofo que, ao fazer profis­ são de aristocratismo, faz intervir uma leitura nova e original do ciclo bimilenar da revolução que se alastra pelo Ocidente, consubstanciando tal leitura no con­ fronto constante com os grandes historiadores do seu tempo, tal filósofo não é sequer levado em consideração, mesmo quando se concede a ele a honra duvido­ sa de imergi-lo numa aura rarefeita em que não há lugar nem para a história nem para a política. Tentemos, porém, levar a sério o radicalismo aristocrático. Vemos que problemas, dificuldades, dilemas do projeto reacionário são capazes de desenvolver uma análise certamente impiedosa, mas muito mais rica de ensinamentos não só para o historiador profissional, mas até para o revolucio­ nário, para aquele que, apesar de tudo, não pretende renunciar a uma perspecti­ va de emancipação das classes e dos povos sob condições subalternas. Vivendo em condições materiais de restrição, por razões também de sobre­ vivência, as classes subalternas são obrigadas a desenvolver o que Adam Smith define como a "moral austera", caracterizada pela glorificação do trabalho e do sacrificio, pela desconfiança e hostilidade em relação ao luxo e a liberdade se­ xual e espiritual, da "moral liberal" própria das classes dominantes. 1962 É esta "moral austera", cheia de inveja e de frustração, que Nietzsche vê agir nos 1962

Smith, 198 1 , p. 794 (l ivro V, cap. 1, parte III, art. 3).

movimentos p lebeus de revolta, desde Jesus até Lutero e desde Rousseau até os socialistas do seu tempo. Em cada etapa da trajetória revolucionária, o filósofo opõe a maior rique­ za cultural e a maior agilidade de espírito do Antigo Regime periodicamente derrubado. Rousseau sai-se mal diante de Voltaire ou Montaigne e mais ainda Lutero em relação a Erasmo e ao Renascimento, para não falar de Jesus frente aos autores da antiguidade clássica: Ainda em pleno esplendor greco-romano, que era também um esplendor de livros, diante de um antigo mundo ainda não emurchecido e arruinado, num tempo em que ainda se podia ler livros em troca dos quais daríamos hoje literaturas inteiras, a tolice e a vaidade de alguns agitadores cristãos agora denominados "Pais da Igreja" - ousavam decretar: "também nós ternos a nossà literatura clássica, não precisamos daquela dos gregos" - e nisso apontavam com orgulho para volumes de lendas, cartas de apóstolos e tratados apologéticos, mais ou menos como hoje o "exército da salvação" inglês, usando uma literatura semelhante, trava o seu combate contra Shakespeare e outros "pagãos" (GM, III, 22).

Sabemos que o cristianismo representa um momento de subversão tam­ bém no âmbito do mundo judaico. E, mais uma vez, quem brilha é o Antigo Regime, o mundo dos senhores e dos guerreiros posto em crise primeiro pela pregação dos profetas e, depois, subvertido pelo cristianismo. Com respeito a esse mundo, "o 'Novo Testamento'" é totalmente diferente (ele não é posto entre aspas por acaso por Nietzsche) : aqui se agita "gentinha de província", acometida de obsessão maníaca pelos próprios pecados e pecadilhos (GM, III, 22). As classes superiores cedem lugar ao povo miúdo - é constante a análise social dos processos históricos pesquisados - e, junto com o povo miúdo, um mundo pequeno e medíocre faz a sua irrupção: a hostilidade pela comodidade e o luxo das classes dominantes é também a hostilidade contra a cultura superior que elas exprimem: a tudo isso acrescentam o "desprezo pela vida sexual" e a "imundície da mesma através do conceito de 'impuro ' ", a "pregação da castidade", esse "incitamento público à contranatureza" (AC , Lei contra o cristianismo). A seu modo, Nietzsche acerta no alvo . Nós o vimos denunciar o pathos da "virtude" próprio de Robespierre (supra, cap. 8 § l ); mas os historiadores sa­ bem que tendências análogas apareceram também no curso de outras revolu­ ções, e não só na revolução "puritana" por definição. A tendência ao "ascetismo organizado" e a "cruzada contra os vícios comuns" não estão ausentes nem sequer na revolução estadunidense, apesar de que nela o protesto social das

classes subalternas desempenhe um papel reduzido.1963 Na véspera daquela es­ pécie de revolução abolicionista que acaba sendo a Guerra de Secessão, expo­ entes do abolicionismo censuram o Sul por ser uma "sociedade erótica" e de prazeres, dominada pela libertinagem sexual; tal sociedade pode viver sem frei­ os graças ao instituto da escravidão que se obstina em querer perpetuar.1964 Para melhor compreender a posição de Nietzsche, convém fazer algumas comparações. Marx e Engels submetem a dura critica a pretensão de dar um "verniz socialista" ao "ascetismo cristão"1965 ou ao "ascetismo universal'', pre­ tensão de que se fazem portadores movimentos que, sentindo a angústia das condições de vida de sua base social, exprimem frequentemente sua carga de rebelião anticapitalista em formas e com aspectos "reacionários".1966 Ao con­ trário, não há espaço para tais distinções em Nietzsche, que traça uma férrea linha de continuidade entre o ascetismo cristão e o socialista, liquidando ambos . A condição carola de virtude, própria, no modo de ver de Nietzsche, dos movimentos revolucionários, se entrelaça com o seu espírito gregário. Não há dúvida de que, já de per si estimulada pela base social plebeia, a tendência à "moral austera" é reforçada depois pelas situações de crise que aqueles movi­ mentos são chamados a enfrentar, quando só a abnegação e o espírito da unida­ de coral podem salvá-los da repressão e assegurar-lhes a possibilidade de sobre­ vivência e de sucesso. Mas, como sabemos, a análise de Nietzsche desliza con­ tinuamente do plano histórico-social para o plano psicológico ou psicopatológico: "O 'crente' não pertence a si, pode apenas ser meio, tem de ser usado, necessita de alguém que o use [ . . . ] . Toda espécie de fé é, em si mesma, uma expressão de abnegação, de alienação de si" (AC, 54). Chegamos assim ao fideísmo e ao fanatismo censurado nos movimentos revolucionários. Com efeito, a aspiração a uma renovação radical da sociedade parece implicar alguma fé num futuro melhor; para pôr em movimento as for­ ças necessárias à desejada mudança, um projeto de uma sociedade diferente não pode não exprimir também uma forte tensão moral e exalar uma carga de algum modo missionária. Se é condizente com a classe dominante, ou melhor, com os seus membros mais equilibrados e iluminados, o ceticismo condenaria à resig­ nação ou à impotência as classes subalternas. Pouco propenso a distinções ou justificações, Nietzsche contrapõe aos "homens de convicções" os "céticos", que são "os grandes espíritos" (AC, 54 ). Uma linha de continuidade conduz do 1 963 1964 1965 1966

Brinton, 1 953, pp. 209-2 10. Fogel, 1 99 1 , p. 327. Marx-Engels, 1955, vol. IV, p. 484. Marx-Engels, 1 955, vol. IV, p. 489.

Ego sum veritas de Jesus e do Credo quia absurdum de Tertuliano à fé do movimento socialista na palingenesia social . Todavia, o antidogmatismo aqui celebrado pelas classes dominantes não deve chegar ao ponto de prejudicar a sua capacidade de agir vigorosamente no plano político: nesse caso é Nietzsche quem despreza um ceticismo suscetível de inibir ou paralisar a enérgica respos­ ta que se impõe ao permanente desafio plebeu da ordem hierárquica (supra, cap. 2 1 § 6). Se, por um lad� se zomba, pela boca de Pilatos, das disputas dogmáticas e fanáticas que dividem a plebe judaica, por outro lado, a Roma pagã e aristocrática, ainda não afetada por um ceticismo fraco, não tem dificul­ dade ou hesitações em reprimir no sangue os sonhos de emancipação e as revol­ tas da gentalha zelota. De novo pode ser útil uma comparação . Mesmo olhando com simpatia para a primeira pregação e a primeira comunidade cristã, Engels não esconde o quanto de irracional e até de atrasado há nela. No entanto, com essa finalidade acrescenta: "Trata-se exatamente de resolver a questão de como acontece que as massas populares do Império Romano preferem esse absurdo, além do mais pregado por escravos e oprimidos, a todas as outras religiões". 1967 Como resul­ ta da oposição que já conhecemos entre o "nobre" cético e o "escravo" ávido de certezas e de verdades absolutas, também em Nietzsche acaba de algum modo aparecendo a dimensão político-social do conflito; mas a vantagem vai para a caracterização em perspectiva psicológica ou psicopatológica. A posição aqui assumida pelo filósofo acaba evidenciando uma fraqueza de fundo do iluminismo. No final do Século XVIII, Frederico II da Prússia se aproveita dos sentimentos anticatólicos dos iluministas para justificar a anexa­ ção de territórios poloneses, apresentando-a como uma contribuição para a di­ fusão das luzes e para a defesa da causa da tolerância. Numa carta enviada a ele, D' Alembert celebra os "versos deliciosos" do soberano iluminista que, in­ terligando de maneira feliz "imaginação" e "razão", zomba dos poloneses e da "Santa Virgem Maria'', na qual eles colocam as suas ingênuas esperanças de "libertação". 1 968 A liquidação das aspirações à emancipação nacional do povo polonês parte das formas religiosas, frequentemente ingênuas, em que elas en­ contram expressão. O "iluminismo" de Nietzsche não se comporta de maneira diferente; ele condena o interminável ciclo revolucionário que devasta o Oci­ dente como uma espécie de gigantesca onda fundamentalista e obscurantista. Junto com o "ascetismo universal" - observam Marx e Engels -, o protes­ to ainda imaturo das classes subalternas tende a professar um "igualitarismo 1967 1968

Marx-Engels, 1 955, vol. XIX, p. 298. Fréderic II Roi de Prusse, 179 1 , pp. 169-170 (carta de 3 de março de 1 772).

grosseiro".1969 Mas o "igualitarismo grosseiro", alimentado pelo ressentiment, é a característica, segundo Nietzsche, de todos os movimentos revolucionários, a começar pelo cristianismo. Como expl icar o quadro em tintas escuras que os Evangelhos traçam dos fariseus e dos escribas? "No fundo, tratava-se de privi­ legiados: isto basta, o ódio chandala não precisa de mais razões"; o cristão "é um rebelde contra tudo que é privilegiado, a partir de seu mais básico instinto ele vive, combate, sempre por •direitos iguais "' (AC, 46). Mais uma vez N ietzsche capta um problema real da dialética da revolu­ ção, um problema que continua a manifestar-se também no âmbito do "socialis­ mo científico" teorizado pelos dois autores do Manifesto do partido comunista. Não é só Mao Tsetung que se empenha numa luta contra o "igualitarismo abso­ luto": na sua mesquinhez e na sua carga de inveja e, poderemos dizer, até de ressentiment (quando o Exército vermelho se aquartela, "pretende-se que a cada um seja destinado o mesmo espaço, e se o comando dispõe de um local um pouco maior, chovem insultos"), ele é a expressão de relações sociais restritas, o "produto da economia artesã e da pequena economia camponesa" e de qual­ quer modo estorva ou impede a formação do bloco social chamado a derrubar o Antigo Regime .1970 Tudo isto, se por um lado valoriza a análise de Nietzsche, por outro lado a refuta. Não é possível fazer nascer de modo unívoco uma revolução do ressentiment: o seu sucesso envolve necessariamente uma política de alianças e, portanto, a expulsão da inveja nas relações dos estratos sociais contíguos ou imediatamente superiores, que constituem o alvo natural de tal sentimento. Contrariamente à tese do teórico do radicalismo aristocrático, e ao lugar comum presente j á na tradição do pensamento l iberal, o ressentiment se revela um instrumento da reação para desviar em direção a falsos alvos o pro­ testo social, para dividir as classes subalternas em inumeráveis ramos corporativos. É por isso que Gramsci identifica no "movimento 'catártico' [ . . . ] o ponto de partida para toda a filosofia da praxe" e da teoria revolucionária. 1971 Não esquecer que essa reflexão dos Cadernos do cárcere se desenvolve en­ quanto na Alemanha o nazismo atiça o ressentimento e a inveja dos estratos populares mais atrasados contra os intelectuais, sobretudo revolucionários, e canaliza contra os judeus a frustração das massas empobrecidas pela guerra e pela crise econômica. O reconhecimento do "momento catártico" implícito nas grandes revoluções está ausente em Nietzsche, empenhado em evidenciar e absolutizar a carga lama1 1 969 Marx-Engels, 1 955, vol . IV, p. 489. 1 970 Mao Tsetung, 1969, p. 1 1 5. 197 1 Gramsci, l 975, p. 1 244.

centa de :frustrações, de invejas e até de tendências regressivas que todo processo revolucionário leva em si. A essa altura se poderia lembrar polemicamente a lição de Marx: "A inimizade abstrata entre sentidos e espírito é inevitável enquanto não se produzir pelo trabalho próprio do homem o sentido humano pela natureza, o sentido humano da natureza, portanto, também o sentido natural do homem" . 1972 A "moral austera" tem o seu fundamento, por um lado, no desenvolvimento insuficiente das forças produtivas, por outro lado; num sistema social que, por declaração explícita do próprio Nietzsche, repousa sobre a mais-valia e as privações de uma massa a ser sacrificada no altar da civilização. Analogamente, à celebração do Antigo Regime subvertido pela revolução se poderia responder com a observação feita por Freud a propósito do advento do cristianismo: "Em alguns aspectos, a nova religião signifi­ cou um regresso de civilização em relação àquela mais antiga, a judaica, como sempre acontece com a irrupção ou a introdução de novas massas humanas de nível inferior". 1 973 Ou, então, a Nietzsche se poderia opor Gramsci que, mesmo pronun­ ciando-se pela "ordem nova'', é plenamente consciente do fato de que o "canto do cisne" do Antigo Regime pode ser às vezes de "admirável esplendor". 1 974 Tudo isso é verdade, mas não elimina de modo algum os importantes ele­ mentos de conhecimento contidos na análise de Nietzsche. A atual pesquisa histórica confirma a "contrarrevolução cultural no âmbito dos costumes sexu­ ais" de que o cristianismo é protagonista.1975 Mas não é esse o elemento mais interessante. A partir das grandes convulsões do mundo contemporâneo, desen­ volveu-se a comparatística das revoluções: a tendência dominante é de isolar negativamente a Revolução Francesa (e a revolução bolchevique). As obras mais maduras se empenham, porém, em reconstruir uma fenomenologia dos processos revolucionários, da qual, além das óbvias diferenças, acabam surgin­ do traços que aproximam revoluções entre si tão diversas como poderiam ser a revolução puritana, de um lado, e a bolchevique, do outro. Nietzsche vai muito além, partindo da pregação evangélica, a mãe de todas as revoluções . Certa­ mente, ele liquida o ciclo revolucionário ocidental bimilenar rotulando os traços "reacionários" que ele manifesta no seu conjunto e durante cada etapa singular. Permanece, todavia, intacta a carga desmistificadora desta comparatística tão ambiciosa. Basta refletir sobre este fato. Aos gritos de horror, que também eco­ am em O nascimento da tragédia, por causa dos incêndios de obras de arte atribuídos à Comuna de Paris, Marx responde assim: 1 972 Ma rx-Engels, 1955, Ergãnzungsband 1, pp. 552-3 . 1973 Freud, 1 995, p. 4 10. 1 974 Gramsci, 1 975, p. 733 . 1 975 Seccombe, 1 997, p. 128 .

Se os atos dos operários de Paris foram vandalismo, foi o vandalismo de uma defesa desesperada, não o vandalismo do triunfo, como aquele que os cristãos perpetraram em prejuízo dos tesouros de arte verdadeiramente inapreciáveis da antiguidade pagã; e até este vandalismo dos cristãos foi justificado pelos historiadores como elemento concomitante inevitável e relativamente insignificante da luta titânica entre uma sociedade nova que está nascendo e uma velha sociedade no seu ocaso. 1976

Deparamo-nos aqui de novo com uma comparatística das revoluções que não poupa o cristianismo, ao qual se refere a ideologia dominante. São, porém, Marx e Nietzsche que, embora com modalidades bastante diversas entre elas, evidenciam as tendências iconoclastas presentes de maneira diferente nas diver­ sas revoluções, inclusive a cristã ou a protestante.

2. Radicalização da consciência histórica e longue durée Nietzsche inicia sua carreira filosófica acusando a "monstruosa necessi­ dade histórica da cultura moderna insatisfeita'', com o consequente "enfeixar-se de inumeráveis outras culturas", de levar "à perda do mito, à perda da pátria mítica, do seio materno mítico" (GT, 23; 1, 146). Iniciada com O nascimento da tragédia, a requisitória contra a consciência histórica é ulteriormente desenvol­ vida, como sabemos, na segunda Inatual, que recomenda "o anti-histórico e o supra-histórico" como "remédios naturais contra a asfixia da vida por parte da história" (HL, 1 0; 1, 33 0-3 1 ) . Essa plataforma teórica entra rapidamente e m crise. J á a terceira Inatual acha que "é precioso ocupar-se com a história de povos passados ou estrangei­ ros", de modo particular "para o filósofo que quer fazer um juízo imparcial sobre toda a história do homem"; ele "deve avaliar bem a própria época na sua diferença em relação às outras" (SE, 3; 1, 361) . A virada, porém, se delineia com nitidez a partir, sobretudo, do período "iluminista". A luta contra a modernidade é agora travada não mais remetendo ao mito supra-histórico, mas empunhando o "martelo do conhecimento histórico", que faz em pedaços ideias que, apesar da sua gênese no tempo, se apresentam como óbvias e naturais (supra, cap. 8 § 4) . Todo um capítulo de Humano, dema­ siado humano empenha-se em reconstruir a "história dos sentimentos morais".

1976 Marx-Engels, 1 955, vol. XVII, pp. 358-9.

Esses sentimentos e, mais em geral, a esfera emocional se tornam o objeto privilegiado da pesquisa histórica: Até o momento, tudo o que deu colorido à existência não teve ainda uma história: se não, onde está a história do amor, da cupidez, da inveja, da consciência, da piedade, da crueldade? Mesmo uma história comparada do direito, ou apenas da pena, falta inteiramente até hoje (FW, 7).

Nesse aforismo da A gaia ciência podemos ler uma espécie de antecipação dos desenvolvimentos atuais da pesquisa histórica, a qual não limita certamente a sua atenção aos acontecimentos políticos em sentido estrito, mas pesquisa também a vida privada, os sentimentos, as mentalidades e emoções coletivas; dissolve-se a aura de imutável naturalidade e eternidade que parecia envolver certos temas. Eis então que surge a exigência de traçar uma "história da cruel­ dade, da dissimulação, do prazer de matar"; este último deve ser reconstruído nas suas diversas configurações : pode também manifestar-se "na destruição de opiniões, no juízo sobre obras, pessoas, povos, passado"; no fundo, "o juiz é um carrasco sublimado" (IX, 477) . Objeto de história se torna toda manifestação da vida e a própria morte ou a percepção da morte: "a nossa 'morte' é bastante diferente" em relação ao passado (FW, 1 52) . No esforço de pesquisar não este ou aquele acontecimento político singular, mas os sentimentos e as emoções coletivas que presidem o conflito político-social, Nietzsche alarga decisivamente o âmbito da pesquisa histórica. Depois de ter acentuado com vigor o "dano da história", antes de sucumbir à sedução do "eter­ no retorno do idêntico", Nietzsche acaba na realidade ampliando e radicalizando ainda mais a consciência e a interrogação histórica que agora, junto com a "facul­ dade de conhecer" {MA, 2) e as "origens da moral" (GM, 1, 1), ataca numerosos outros campos . Para promover o conhecimento da realidade social são convoca­ dos também a "história dos sistemas éticos", que deve ser distinguida da "história da origem desses sentimentos e estimativas de valor" {FW, 345); a "história dos narcóticos" (FW, 86); a "história do gosto" (IX, 48 1 ); a "etimologia" e a história das palavras e a história dos "conceitos'', mas também a "história do linguagem humana" (XI, 6 1 3-4); a "história das mulheres" (FW, 36 1). Na medida em que a atenção do historiador não fica na sequência cotidia­ na dos acontecimentos políticos, os tempos da história e da mudança histórica se alongam. Através de batalhas e de guerras se modificam incessantemente as relações de força entre os diversos Estados, é continuamente reescrita a geogra­ fia política, governos e dinastias se sucedem a governos e dinastias, mas nem por isso mudam os modos de produção. Presente já em Marx, a perspectiva da "longa duração" adquire importância ainda maior em Nietzsche, que convida a

pesquisar aspectos da cultura e do comportamento humano cuja mudança é possível perceber apenas em tempos bastante longos, ainda mais longos do que aqueles que presidem o suceder-se dos modos de produção: medimos os efeitos sobre os indivíduos, o máximo com base em séculos" (IX, 458).

3. "Luta de categorias e de classes " e leitura do fenômeno religioso Vimos Nietzsche insistir com força na linha de continuidade que do messianismo cristão conduz ao messianismo socialista. À primeira vista, parece­ ria que esse tema triunfara na cultura dos nossos dias. Mas só à primeira vista. São, certamente, inumeráveis os autores e os livros empenhados em liquidar su­ mariamente a filosofia de Marx e Engels e, mais em geral, a aspiração a um mundo não lacerado por antagonismos de classe ou não submetido à lei do mais forte, sobretudo nas relações internacionais, como a nova proposta, em forma superficialmente laicizada, da escatologia cristã. No entanto, não é esse o ponto de vista de Nietzsche, e se comete grande injustiça quando se lhe atribui isto. Desse modo não se pode compreender sua originalidade e sua força. A denúncia do messianismo dos revolucionários não é certamente um tema novo. Nós o vimos em Gentz (supra, cap. 7 § 9). Em Schelling, o encontramos de novo. Para Schelling, são culpados de entregar-se a uma "fantasia apocalíptica" não só os socialistas, mas todos aqueles que, seguindo os seus mirabolantes projetos de transformação em sentido constitucional e democrático das instituições políticas, esquecem que "a verdadeira ôi'eiôãéá existe apenas no céu".1977 Nós o encontramos de novo em Gobineau, que, depois de Sedan, aproveita para zombar da visão de 1 789 como "ano da salvação" para a França e para o mundo. 1978 Nesse contexto, numerosos outros autores poderiam ser citados (além da Alemanha, pensemos em particular em Donoso Cortés): nenhum deles ousa ler em perspectiva político-social o cristi­ anismo e a tradição judeu-cristã, como faz Nietzsche. Nele não assistimos mais à retranscrição da história dos movimentos soci­ alistas em termos de história sagrada, mas, ao contrário, à leitura dos próprios movimentos religiosos em perspectiva político-social. Se, para Lõwith (e tantos outros), a teoria de Marx, ''o materialismo histórico é uma história da salvação expressa na linguagem da economia política", 1979 para Nietzsche (bem como para o marxista Kautsky) o cristianismo ou a tradiçãojudeu-cristã são um capí1 977 Schelling, 1856-1861, vol. XI, 1 978 Gobineau, 19 17, p. 19. 1 979 Lõwith, 1 96 1 , p. 48.

p.

552 e Schelling, 1856-186 1 , vol. VII, pp. 46 1-62.

tulo essencial da história da revolta servil expresso na linguagem da religião. Se, para Lõwith, a obra de Marx está "animada por uma fé escatológica da primeira à última proposição", 1 980 para Nietzsche a escatologia judeu-cristã está animada de cima abaixo por um forte protesto social e até por um implacá­ vel ódio de classe. Bem longe de resolver sem resíduos o projeto revolucionário na literatura apocalíptica, o autor de O crepúsculo dos ídolos surpreende a presença do protesto social e da áspiração à revolução também nessa literatura e, de modo todo particular, na expectativa cristã do juízo final. De modo análogo argumentam Marx e Engels e os autores que se colocam na sua esteira. Se também aos escravos o cristianismo promete uma emancipa­ ção que só acontece com o final do mundo histórico propriamente dito, seria todavia precipitado - adverte Engels - ler este tema como uma simples evasão. Na realidade, o "reino milenar" ocorre, sim, depois da morte, mas parece fazer referência a "esta terra" e é "descrito com tintas terrenas".1981 Poder-se-ia obje­ tar que o que diferencia radicalmente do movimento operário o cristianismo é, de qualquer modo, a atitude em relação à violência. Mas não é essa a opinião de Engels, o qual, com referência particular ao Apocalipse, afirma: "Aqui não se fala ainda da 'religião do amor ', do 'amai os vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem' etc.; aqui se prega a vingança aberta, a sadia e honesta vingança sobre os perseguidores dos cristãos".1982 Não muitos anos mais tarde, Kautsky, diretor da revista Die neue Zeit, na qual Engels tinha publicado o artigo que se acabou de citar, reconstruindo, por sua vez, num amplo volume as origens do cristianismo, chega até a afirmar que "quase nunca o ódio de classe do proletariado moderno alcançou formas tão fanáticas como as do cristão". Sobretudo no Evangelho de Lucas, Kautsky divi­ sa "um feroz ódio de classe contra os ricos". É o que emerge em particular da parábola de Lázaro: O rico vai para o inferno e o pobre para o seio de Abraão, não porque aquele era pecador e este era justo; a esse respeito não se diz realmente nada. O rico é condenado simplesmente porque era rico. Abraão grita para ele: "Lembra-te de que recebeste os teus bens em tua vida, e que Lázaro recebeu de modo semelhante os males; mas agora ele é consolado e tu és atonnentado". Era o desejo de vingança do oprimido que se agitava nessa imagem do futuro. 1983 1980

Lõwith, 1 96 1 , p. 48. Marx-Engels, 1955, vol. XXXIX, p. 277. 1982 Marx-Engels, 1 955, vol. XXII, p. 465. 1983 Kautsky, 1 908, pp. 343-45 (= Kaustski, 1 970, pp. 301-02) 1981

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Destaquei em itálico o recurso, em Engels e Kautsky, ao termo "vingança" e "ódio de classe". São as categorias que desempenham um papel central na análise de Nietzsche: "O Apocalipse de João" constitui "a mais caótica de todas as invectivas escritas que a vingança tem na consciência" (GM, 1, 1 6), o cristi­ anismo enquanto tal encarna "o bacilo da vingança" (XIII, 425), enquanto nos Evangelhos se percebe um "ódio" não só furibundo, mas que se exprime nas "formas mais desonestas", camuflando-se de discurso amoroso e edificante (XII, 3 8 1). Na realidade, no discurso evangélico encontramos expressões e sentimen­ tos de uma "pobre ralé de hipócritas'', que se arrasta agitando contra os seus adversários e inimigos a "maldição", a ameaça de condenação eterna e dos mais terríveis tormentos (XII, 577-8). Se, no juízo de áspera condenação, Nietzsche não parece distinguir entre os Evangelhos, Kautsky acha que pode surpreender uma ambiguidade ou uma contradição de fundo. Para demonstrar isto, ele compara as duas versões do discurso das bem-aventuranças em Lucas e em Mateus. Leiamos o primeiro: "Felizes vós que sois pobres porque vosso é o reino de Deus". E agora o segun­ do: "Felizes os pobres de espírito porque deles é o reino dos céus". Lucas: "Felizes vós que agora tendes fome, porque sereis saciados". Mateus: "Felizes aqueles que têm fome e sede dejustiça, porque serão saciados". As reivindica­ ções de Lucas são destituídas da sua carga material e espiritualizadas pela mão de Mateus . Este, não por acaso, deixa totalmente fora a maldição dos ricos que em Lucas serve de pendant para a felicidade do pobre: "Mas ai de vós, ricos, porque já tendes a vossa consolação. Ai de vós que agora estais fartos, porque tereis fome". Desta comparação sinótica - conclui Kautsky - surge claramente o "revisionismo habilidoso" de Mateus, que procura expurgar o discurso de Lucas da sua dimensão mundana e material, reinterpretando-o em perspectiva intimista.1984 Nietzsche, porém, faz uma leitura de conjunto: os Evangelhos são a bandeira "dos pobres, dos famintos, dos chorosos, dos odiados, dos rejeita­ dos, dos mal afamados" empenhados em combater, desacreditar e maldizer "os ricos, os saciados, os serenos, os doutos, os respeitados" (XII, 577). Compreen­ de-se a ausência da distinção valorizada por Kautsky: independentemente das referências à fome e à sede na sua materialidade, Nietzsche está empenhado em surpreender a "luta de categorias e de classes" também no discurso mais espiritualisticamente rarefeito, também na condenação aparentemente mais ge­ nérica do poder, da riqueza, da cultura enquanto tais .

1 984 Kautsky, 1 908, pp. 343-7 (= Kautsky, 1 970, pp. 301-4). 927

4. A mpliação do campo do conflito social e papel da psicologia Encontramos aqui um dos pontos mais altos da lição do filósofo, justa­ mente orgulhoso da sua finura e capacidade de penetração psicológica. Nós o tínhamos visto, a partir sobretudo do encontro com os grandes moralistas, am­ pliar com decisão o campo do conflito. Este pode ser travado com armas bem mais sutis e insidiosas do que aquelas próprias do discurso político explícito. Trata-se de proporcionar a si mesmos e aos grupos no âmbito dos quais se está inserido a "boa consciência" de estar do lado do justo (em termos morais) ou da inevitabilidade (em termos de filosofia da história). Ao mesmo tempo, se procu­ ra "paralisar a vontade crítica" dos adversários, não tanto refutando logicamente a sua argumentação, quanto inserindo neles o caruncho do remorso e do sentido de culpa ou da dúvida e da resignação e reduzindo-os a uma impotência subs­ tancial com uma espécie de "encantamento" . Sabemos que Nietzsche está de­ nunciando o "encantamento" da moral, a "vingança" das classes subalternas, ou melhor, dos mal sucedidos, em prejuízo dos melhores, da élite (supra, cap. 8 § 6). Mas, independentemente dos objetivos políticos imediatos por ele perse­ guidos, ele abriu uma pista de pesquisa extraordinariamente fecunda, chaman­ do a atenção para uma frente até àquele momento amplamente inexplorada da luta entre classes sociais, partidos políticos e países rivais. Referindo-se explicitamente a Nietzsche, numa Berlim sobre a qual já se projetou a sombra do III Reich, Theodor Lessing analisa a ''autofobia" (Selbsthass) durante séculos ou milênios introjetada pelos judeus após a derrota e a violência exercida pelos vencedores também a nível psicológico. 1985 Para todos os grupos que de várias maneiras passaram pela discriminação e pela opressão (os judeus, os negros, as mulheres, os homossexuais), a redescoberta e a reafirmação da própria identidade e diferença constituem o momento salutar e alegre da superação da autofobia, imposta pelo grupo dominante mas interiorizada. Trata-se do momento em que o Selbsthass ou Seljhate transfor­ ma-se no seu contrário, quer dizer, não só na afirmação orgulhosa da própria identidade e diferença, mas também na culpabilização da classe dominante que, pelo menos nos seus membros melhores ou mais sensíveis, começa a perceber a inquietação da má consciência. Agora se pode compreender o esforço desse ou daquele grupo no sentido de chamar a atenção para as perseguições e para as tragédias de que foi vítima: notável difusão conhece no âmbito do atual debate historiográfico (e político) a categoria de "Holocausto esquecido", de vez em quando identificado no "Black 1985

Lessing, 1 984.

Holocaust (o holocausto sofrido pelos negros) ou no American Holocaust (o sofrido pelos peles-vermelhas) ou nos massacres que dizimaram ou aniquilaram os ciganos, os armênios, os aborígenes australianos e assim por diante. 1 986 É interessante notar que algo análogo se manifesta também em nível das relações internacionais. Unilateralmente obrigada pelo tratado de Versalhes a assumir a "culpa" exclusiva por ter desencadeado a guerra e ter transgredido a "moral internacional", a Alemanha soube depois reconhecer o horror do III Reich. Por que o Japão não reconhece também francamente os crimes horríveis com que manchou a Ásia? - perguntam polemicamente países como a China, a Coreia, etc. Mas por que - objeta por sua vez o Japão - os Estados Unidos continuam obstinadamente a considerar legítimo o aniquilamento nuclear da população civil de Hiroshima e Nagasaki, perpetrado na véspera da rendição do inimigo? Poder-se-ia continuar longamente. Resta o fato de que todos esses conflitos não podem ser compreendidos sem levar em conta a dialética psicoló­ gica analisada por Nietzsche. A sua grandeza, mais uma vez, é a de um autor que, longe de ser realmente não político, farejou o conflito político e social também em territórios e em âmbitos até aquele momento considerados neutros.

5. A mulher, os sentimentos e a subversão Mas é possível evidenciar a dimensão psicológica do conflito sem levar em conta o papel da mulher? Ao reconstruir a história de longa duração da subver­ são que se alastra no Ocidente, Nietzsche é obrigado a colocar-se mais uma importante questão. Em Taine se pode ler esta significativa análise de um ele­ mento essencial da crise do Antigo Regime : Uma palavra temível, cidadão, importada de Rousseau, entrou na lingua­ gem comum e, o que é decisivo, as mulheres ornaram-se com ela como se fosse uma fita [ ... ] . Um sopro de humanidade e, ao mesmo tempo, de liber­ dade penetrou nos corações femininos. Os pobres, as pessoas de pouco valor, o povo se interessam por isso. 1987

A partir desse momento, os "corações sensíveis" influem profundamente na opinião pública; batalhas decisivas são travadas e vencidas "graças às mulheres, à sua ternura, a seu zelo, à conjuração das suas simpatias". Só assim se pode compreender o progressivo enfraquecimento da aristocracia e do Antigo Regime: 1986 1987

Cf. Losurdo, 1996, cap. V, 1 3 . Taine, 1899, vol. II , pp. 1 46 e 148 (= Taine, 1 986, pp. 5 1 5 e 7). 929

Não esqueçamos que neste século as mulheres eram rainhas, ditavam a moda, conduziam a conversação, por conseguinte as ideias, por conseguin­ te a opinião pública. Quando as encontramos na primeira linha no campo político, podemos estar certos de que os homens as seguirão: cada uma delas arrasta consigo todo o salão. 1 988

Michelet, embora colocado em posições bem diferentes das de Taine no p lano político e ideológico, chega a conclusões análogas . O livro - As mulheres e a revolução - por ele dedicado às mulheres da revolução coloca em evidência desde o início o papel central desenvolvido nos desdobramentos revolucionários da "nova fé" da "maternidade" e da "piedade", de que as mulheres são portado­ ras, "menos estragadas do que nós pelos hábitos so:fisticos e escolásticos". 1 989 A propósito dos autores particularmente caros aos jacobinos, Michelet declara: "O verdadeiro Rousseau nasceu das mulheres". 1 990 Obviamente, a análise dos dois historiadores franceses recém-citados pode ser posta em discussão, mas poucas dúvidas pode haver sobre a importância do papel das mulheres no movimento abolicionista e, pelo que diz respeito aos Estados Unidos, na preparação ideológica da revolução abolicionista, ou seja, da Guerra de Secessão. Entre o fim do Século XVIII e primeiras décadas do Século XIX, as mulheres provam pela primeira vez o gosto pela ação política e a expressão da própria personalidade no cenário público, empenhando-se na agitação contra a escravidão, recolhendo fundos e nomes para as petições que chamam a atenção em termos angustiados para a tragédia dos negros. 1991 Algu­ mas décadas depois, o romance de uma mulher, Beecher-Stowe, se toma um best-seller muito além das fronteiras do país em que é publicado: "Os desgostos de famílias casualmente separadas, sob a pressão econômica, dos traficantes e proprietários de escravos, inflamou o público internacional pelo l ivro, em parti­ cular as mulheres, cuja primeira crença era a sacralidade cristã da família". O sucesso do romance toma-se mais fácil pelo fato de ele instituir uma "conexão entre os escravos e os 'humildes' de toda raça e condição": o título integral é A cabana do Pai Tomás: Ou, Vida entre os humildes ( Une/e Tom s Cabine: Or, Life Among The Lowly).1992 1988 Taine, 1 899, vol. II, p. 149 (:;::;; Taine, 1986, p. 5 1 8). 1 989 Michelet, 1 980, pp. 363 e 367. 1 990 ln Barthes, 1 975, p. 1 49. 1 99 1 Bolt and Drescher, 1 980, pp. 5-6; Walwin, 1 982, pp. 6 1-3 ; Kraditor, 1 989, pp. 3877; Ziegler, 1992, p. 49. 1992 Kazin, 1 994, p. 39.

Somente à luz disso tudo podemos compreender o balanço histórico traçado por Nietzsche: Continuação do cristianismo por obra da Revolução Francesa. O sedutor é Rousseau: ele tira as cadeias da mulher, que desde então é representada, de maneira sempre mais interessante, como sofredora. Depois os escravos e Mistress Beecher-Stowe. Depois os pobres e os operários. Depois os vicio­ sos e os doentes - tudo isso é posto em destaque (XI, 6 1).

Ao contrário do Século XVII, "aristocrático" e "severo com o coração" (o "aristocratismo" é acompanhado pelo "domínio da razão"), o Século XVIII "é dominado pelas mulheres", pelo "coração" e por tudo o que se segue: "Feminis­ mo: Rousseau, donúnio do sentimento, afirmação da soberania dos sentidos; men­ tiroso ". É u m entrelaçamento de sentimentos e de ideias que "mina dissimuladamente todas as autoridades"; faz-se notar com força o peso da "cana­ lha" (XII, 440-1 ). Para Nietzsche, a intervenção da mulher, humanitarismo, peso crescente dos sentimentos e da compaixão na formação da opinião pública, por um lado, e crise do Antigo Regime, por outro lado, é tudo a mesma coisa. Nesse caso, é preciso também não perder de vista os elementos de concreta e penetrante análise histórica aqui presentes . Vimos Tocqueville destacar o papel da "compai­ xão geral" em colocar em crise uma sociedade fundamentada sobre rígidas barrei­ ras de categoria e de raça. E é também significativo o fato de que o movimento abolicionista estadunidense, fortemente marcado pela participação das mulheres, sinta necessidade de proclamar uma "Declaração dos Sentimentos". i m Nas palavras de Nietzsche, propensas à indignação moral, as mulheres são em primeiro lugar "comediantes" (FW, 36 1); tendo talvez por trás a l ição de Michelet, um fragmento da primavera de 1 8 88 observa: com seu "culto da p ie­ dade, da compaixão, do amor, a mãe representa o altruísmo conscientemente" (XIII, 366). Na sua incapacidade de aceitar o real na sua dureza, a moral da "decadência" é "visionária, sentimental, cheia de mistérios, tem para consigo as mulheres e os 'belos sentimentos '" (XIII, 422). Ao especificar o papel da mu­ lher na revolução, Nietzsche argumenta de modo não diferente de outros autores mais ou menos contemporâneos dele. Depois de ter denunciado o processo de massificação moderna e ter afirmado que "as multidões são [ . . . ] femininas'', Le Bon define assim as suas características: "a impulsividade, a irritabilidade, a incapacidade de raciocinar, a ausência de julgamento e de espírito crítico, o exagero dos sentimentos'', o amor pelas "virtudes exaltantes". 1994 1993 Kraditor, 1 989, p. 5. 1994 Le Bon, 1 980, pp. 63 , 59 e 84.

Somos reconduzidos a Nietzsche. A originalidade deste reside no esforço de colocar temas presentes na cultura do tempo no âmbito da visão cara a ele da longa duração do ciclo da subversão : bem antes que do "espírito visionário (schwãrmerisch) do Século XVIII", a mulher "foi mimada pelo cristianismo" {FW, 362). Por outro lado, com o seu "sentimentalismo", o cristianismo é "uma religião para mulheres"; exatamente porque é "fraca, tipicamente doente", a mulher precisa de "uma relígião que exalte como divino o ser fraco, o amar, o ser humilde" (XIII, 3 64-6) . A mulher se confunde com o ciclo da revolução já desde os seus inícios: "A mulher sempre conspirou com os tipos da decadência, com os sacerdotes, contra os 'poderosos ' , os 'fortes ', os homens" (XIII, 366). No curso da sua "história interna", as mulheres agitam os bons sentimentos morais dos quais a subversão se alimenta {FW, 36 1). "Feminilidade" e "senti­ mentos bondosos" minam a "rigorosa autodisciplina" que são o fundamento de todo regime aristocrático (EH Humano, demasiado humano, 5). Conhecemos a comparação, que em Nietzsche não tem qualquer significa­ do crítico, entre a condição da mulher e a do escravo. Como este, também a mulher busca suprir a sua "fraqueza" mediante a astúcia, o embuste e a malícia: a mulher é "mais sagaz" e "tem indizivelmente mais maldade do que o homem"; nela "a bondade é já uma forma de degeneração", de indiferença doentia pela natureza que lhe é própria. Se, por um lado, a leva a identificar-se com a sub­ versão, por outro, a "excitabilidade diante das dores alheias" a expõe mais fa­ cilmente à indignação moral, ao rancor e, portanto, à violência cega que a sub­ versão comporta: "a mulher é vingativa" (EH, Porque escrevo livros tão bons, 5; Porque sou tão sábio, 7).

6. Um perfil feminino da história da subversão Sendo semelhantes a figura do servo e a da mulher, as pretensões à eman­ cipação apresentadas por um e outra exprimem a mesma carga ruinosa; devem ser rejeitadas com a mesma determinação. No entanto, não faltam as leitura simpáticas de certas feministas, que em Nietzsche buscam e encontram a confir­ mação do seu pathos da diferença. Não é ele que previne contra um projeto de equalização guiado por "direitos iguais, igual educação, reivindicações e deve­ res iguais" (JGB, 23 8)? A mulher emancipada "sacrifica os seus instintos mais femininos", acaba por se "desfeminizar" (JGB, 23 9). Se quiser conservar a própria peculiaridade, a própria natureza autêntica na sua diferença irredutível, a mulher deve em primeiro lugar precaver-se contra o movimento que deseja emancipá-la:

Ai de nós, se ela começar a desaprender radicalmente e por princípio a sua arte e manha, a da graciosidade, do jogo, do afastar aflições, de aliviar e tomar com leveza, ai de nós se ela começar a desaprender a sua refinada aptidão para desejos agradáveis! (JGB, 232). Absurda e ruinosa é a reivindicação dos direitos políticos para a mulher, mas, de resto, ela é a "coisa Il!aiS delicada, mais frágil, mais selvagem, mais estranha, mais doce, mais rica de sentimento" (JGB, 237). A leitura de Nietzsche em perspectiva feminista é bastante fácil. Por séculos, a discriminação em prejuízo das mulheres foi motivada pela sua incapacidade de argumentar em termos rigorosamente e abstratamente lógicos e com a sua falta de coragem e de espírito guerreiro, com a sua tendência a deixar-se guiar pela emotividade e pelos sentimentos, em primeiro lugar pelo sentimento da compai­ xão. Basta inverter o juízo de valor, e eis que os inumeráveis teóricos da "diferen­ ça" feminina (entendida em sentido negativo) se transformam, senão em campe­ ões, pelo menos em profetas da causa da "diferença" feminina (entendida desta vez em sentido positivo). Tudo isto é fácil, mas, exatamente por isto, ocioso. Certamente, pode-se ler com interesse e prazer a impiedosa descrição crí­ tica da condição das "mulheres de condição nobre" da era vitoriana: "Todos estão de acordo em educar para a máxima ignorância possível in eroticis" e para um sentido de mal-estar e de culpa em relação à sua sexualidade (FW, 7 1 ). Com relação a esse "emporcalhamento" da relação sexual e da natureza, agigantam-se as religiões estranhas à Europa e ao cristianismo : "Não conheço livro algum em que foram ditas sobre a mulher tantas coisas delicadas e boas como no código de Manu", que sabe falar com ingenuidade e inocência da "boca de uma mulher" ou do "seio de uma menina" (AC, 56). Aqui não há espaço para a visão da mulher como "porta do diabo" (diaboli ianua), para citar Tertuliano, 1995 um autor conhecido e odiado por Nietzsche. E este, ao celebrar o código de Manu como "gentil para com as mulheres" (AC, 5 6), dá ele mesmo prova de gentileza, mas de uma gentileza que se preocupa em reforçar as rela­ ções de poder existentes, longe de querer prejudicá-las. Por outro lado, é preciso não esquecer que a reivindicação também para a mulher de uma vida sexual não agravada com o sentido do pecado e das proibições sociais opressivas não é um discurso declinado em termos universalistas : não vale certamente para aqueles (homens e mulheres) que são condenados a serem "escravos do trabalho" . Nes­ se caso, qualquer germe de individualidade autônoma pode ser apenas um ele­ mento de distúrbio : ao código de Manu não cabe só o mérito de falar com delicadeza e ingenuidade da "boca de uma mulher" ou do "seio de uma meni1995 De cu/tu feminarum, 1, 1 .

na", mas também o mérito de não pôr em crise, com absurdas doutrinas iguali­ tárias, o funcionamento das "máquinas inteligentes" (homens e mulheres) aos quais convém a "mediocridade no poder e no desejar" (AC, 57), bem como de prever "a retirada dos pequenos lábios" e, portanto, a mutilação sexual para as filhas dos chandala (GD, Os que "melhoram " a humanidade, 3). Podemos perceber as novidades e os resultados mais importantes de Nietzsche a partir das suas .preocupações políticas. Na tentativa de sublinhar a onipresença da vontade de potência, ele rejeita a visão edificante do eros e do amor e, com a costumeira finura psicológica, evidencia, ainda que de modo unilateral e enfático, o elemento de polemos contido também no eros. Sobretu­ do, no esforço de traçar um quadro mais completo possível do longo ciclo de desordens que devastam o Ocidente, aproveitando a lição de um historiador como Michelet, mas radicalizando-a e invertendo o juízo de valor, Nietzsche é estimulado a esboçar uma espécie de perfil do feminino da história da subver­ são. Não faltam os estudiosos contemporâneos que negam ter Rousseau exerci­ do uma real influência na preparação ideológica da Revolução Francesa: afinal, na véspera, os seus livros mais difundidos eram o Emílio e A nova Heloísa. Nietzsche é bem mais lúcido ao sublinhar o papel dos "belos sentimentos", aos quais os romances de Rousseau certamente não são estranhos, em solapar as hierarquias e as barreiras de classe do Antigo Regime.

Sétima parte Nietzsche e nós - Radicalidade e carga desmistificadora do projeto reacionário A "abolição da escravatura ", essa presumida contribuição para a "dignidade do homem ", é, na realidade, o aniquilamento de uma estirpe profundamente diversa, mediante o enterro dos seus valores e da sua felicidade. XII, 43 7 Cristianismo, revolução, abolição da escravidão, igualdade de direitos, filantropia, amor à paz, justiça, verdade: todas essas grandes palavras têm valor somente na luta, como estandartes; não como reali­ dade, mas como palavras de ordem deslumbrantes em função de algo totalmente diverso (ou, antes, oposto!). XIII, 62 E ninguém mente tanto como o indignado. JGB, 26 Schopenhauer, um pensador honesto [. . .]; há até momentos em que vê com olhos orientais. XI, 4 71

31 Ü ARISTOCRATA RADICAL E O GRANDE MORALISTA

1. Celebração da escravidão e condenação da parcelização e acrisia do trabalho intelectual abemos que, para Nietsche, a relação de trabalho é inevitavelmente servil. No entanto, a visão da escravidão (no modelo da antiguidade clássica e em áspera polêmica com o cristianismo) como condição para garantir a uma restri­ ta minoria aquele otium necessário para o desenvolvimento da cultura e da civi­ lização, tudo isso o impede de reconhecer-se na escravidão moderna. De fato, esta última, tanto aquela propriamente dita, recentemente desaparecida nos Es­ tados Unidos ou que ainda existia nas colônias, como aquela representada pelos operários de fábrica, está de qualquer modo plenamente inserida no mundo capi­ talista, isto é, num mundo marcado pela ideologia da produção e do trabalho. A propósito disso, é ilustrativo um fragmento dos anos 1 880: "A escravidão do presente: uma barbárie! Onde estão aqueles para quem os escravos traba­ lham? Não se deve sempre esperar uma contemporaneidade das duas castas reci­ procamente complementares". De fato, o que caracteriza o mundo moderno é a "incapacidade para o otium" que contagiou as classes dominantes, elas próprias agora propensas a entoar o coro da "bênção do trabalho" (X, 296). Isto é demons­ trado pelos Estados Unidos, onde por mais tempo, no que diz respeito ao Ociden­ te, a escravidão propriamente dita resistiu e onde de maneira mais incontestada domina em todas as esferas a "asfixiante pressa com que trabalham" (FW, 329). E, nesse aspecto, o país europeu que mais pode ser comparado com a república do outro lado do Atlântico é a Alemanha, que se revela, mais uma vez, como um dos lugares mais espantosamente devastados pela modernidade. A denúncia do desaparecimento do otium é ao mesmo tempo uma análise crítica extraordinariamente rica da imposição da divisão do trabalho também em âmbito cultural, com a consequente perda da percepção e da necessidade da totalidade e com a redução da atividade intelectual a simples artesanato e a produção parcelizada, conduzida com espírito gregário e incapaz de exprimir um mínimo de criticidade. Desde o início, Nietzsche não se cansa de denunciar os efeitos de acrisia e de mutilação da personalidade produzidos por uma divisão do trabalho que perdeu o sentido da totalidade e a capacidade de autorreflexão. Já nas conferên­ cias de Basileia podemos ler:

S

Quem ainda se pergunta pelo valor que pode ter uma ciência que, como um vampiro, devora os seus filhos? A divisão do trabalho na ciência tende praticamente à mesma finalidade que cá e lá visam conscientemente as religiões, ou seja, a uma redução da cultura (Bildung), ou antes, ao seu aniquilamento (BA, 1 ; 1, 670). Ele pode assumir poses iluministas, mas, se não conseguir olhar para além do espaço restrito de especialização a que se limitou, também o intelectual mais ousado não é muito diferente do teólogo. Ao denunciar o caráter limitado e medíocre da "mentalidade dos especialistas'', essa "espécie de sabedoria de pei­ xes frios'', chovem as metáforas desdenhosas: "O pouquinho de cérebro que está aberto ao conhecimento do seu mundo nada tem a ver com a totalidade, é um pequeno talento limitado"; estamos na presença de "camelos da instrução sobre as corcovas dos quais estão sentadas muitas boas ideias e noções, mas isso não impede que o conjunto seja, exatamente, apenas um camelo" (IX, 556). Com "a sua supervalorização do canto em que se está sentado tecendo a sua teia", o "especialista" ou o "erudito" é como "o empregado de armazém do espírito" ou como o '"carregador ' da cultura"; nos seus livros "há sempre algo opressivo, oprimido" (FW, 366). O "moderno grito de batalha e de sacrificio: 'divisão de trabalho ! Em fila! "' produziu resultados catastróficos; os intelectu­ ais se tornam "escravos empregados" na "fábrica da ciência", enquanto o saber enquanto tal é parte integrante de um mundo em que dominam "as palavras 'fábrica', 'mercado de trabalho', 'oferta', 'utilização'" (HL, 7; I, 300-1). Junto com a "fábrica da ciência", quem marca os tempos e os modos da vida do intelectual é o "boletim da Bolsa": a gente se envergonha do repouso e "a meditação demorada quase cria remorso de consciência" (FW, 329). É uma aná­ lise que apresenta não poucos pontos de contato com aquela desenvolvida por Engels, que denuncia o desaparecimento do "velho espírito teórico arrojado" e a atual submissão também dos intelectuais diante do "tempo na Bolsa de valo­ res ".19% Também nesse caso é possível perceber a saudade de uma época em que os grandes intelectuais "não estavam sujeitos à divisão do trabalho" e não sofriam os efeitos que dela se seguem e que os "tornam limitados e unilaterais" . 1997 Devemos então ler Nietzsche como um dos grandes críticos da divisão do trabalho? Dificilmente se poderia imaginar uma leitura mais arbitrariamente seletiva. Na realidade, estamos na presença de um filósofo incansavelmente empenhado em acentuar a inevitabilidade de uma dramática divisão do trabalho tendo em vista a sobrevivência e o desenvolvimento da civilização . O modelo é 1996 Marx-Engels, 1 955, vol. XXI , pp. 306-7. 1997 Marx-Engels, 1955, vol. XX, p. 3 12.

constituído pelas castas do mundo ariano e hinduísta: "O pressuposto é em toda parte uma verdadeira separação natural: o conceito de casta sanciona apenas a separação natural" (XIII, 3 95). Portanto, não só uma divisão do trabalho, mas uma divisão do trabalho enrijecida por natureza e que toma a forma de uma barreira insuperável. A catástrofe do Ocidente acompanha o fim desse mundo: Houve tempos em que se acreditava, com rígida confiança e até com devo­ ção, estar predestinado para essa detenninada ocupação, para esse determi­ nado oficio a fim de ganhar o pão, e não se queria absolutamente reconhecer nisso, no papel, a presença do acaso e do elemento arbitrário: com a ajuda de tal crença, classes, corporações, privilégios hereditários de oficio chegaram a erguer aquelas imensas torres de amplos sodalícios que distinguem a Idade Média, na qual resta ao menos uma coisa digna de louvor: a capacidade de durar (e isto é, na terra, um valor de primeira ordem!) (FW, 356).

O declínio desse mundo, que tinha uma longa história, inicia com a Grécia e termina com os "americanos de hoje'', os quais infelizmente fazem escola também na Europa. Durante a sua evolução, Nietzsche formula em termos sem­ pre mais ásperos a sua rejeição de uma sociedade fundada na mobilidade social, até conferir um selo metafisico a essa rejeição com a doutrina do eterno retorno do idêntico (supra, cap. 1 5, § 5). Sempre mais se impõe à atenção e à admiração do filósofo o modelo de castas. Igualmente unilateral seria uma leitura que absolutizasse em Nietzsche o tema da crítica da ideologia do trabalho e da celebração do otium. Um fragmen­ to do outono de 1 8 80 é de uma clareza inequívoca. O sucesso principal do trabalho é de impedir o ócio (Müssiggang) às natu­ rezas vulgares (gemein), por exemplo, também aos funcionários, aos co­ merciantes, aos soldados, etc. A objeção fundamental contra o socialismo é que ele quer proporcionar o ócio às naturezas vulgares. A pessoa vulgar ociosa é um peso para si e para o mundo (IX, 221).

Nada estaria mais longe de Nietzsche do que a ideia da reivindicação do otium ou de um mínimo de otium para os escravos atados ao carro da civiliza­ ção, ou seja, para a enorme maioria da humanidade. Esse tema deve ser busca­ do numa tradição cultural diferente e oposta. Pensemos em Lafargue, que teoriza "o direito ao ócio" e polemiza contra o "dogma desastroso" ou a "loucura" do "amor do trabalho". 1 998 Antes, já Marx identifica um dos acontecimentos cen­ trais do seu tempo na campanha pela redução do horário de trabalho, na rebe1998 Lafargue, 1996, p. 43 .

lião dos escravos ou semiescravos brancos contra relações sociais que os obri­ gam a "trabalhar até a morte" e a "morrer de simples sobrecarga de trabalho" (o outro acontecimento central é constituído pela Guerra de Secessão, pela luta pela abolição da escravatura negra). 1 999 Voltando atrás, convém ter presente Fichte, cuja celebração do trabalho e da figura social do trabalhador não impe­ de a reivindicação do direito de todos a "repouso e gozo, ou seja, liberdade e ócio".2000 Nesse contexto se perderia colocar também Rousseau, que, pelo me­ nos numa ocasião (a sua estadia na ilha de Saint-Pierre), canta "a ocupação deliciosa e necessária de um homem que se dedicou ao ócio" e que pode "sabo­ rear em toda a sua doçura" o "precioso fazer nada". 2001 Em conclusão, podemos reconstruir duas tradições opostas de pensamen­ to. Aquela que, partindo de Rousseau, chega até Marx e Lafargue, embora se opondo a ele de vez em quando de modo diferente, coloca o problema do traba­ lho e do otium em termos universalistas. Em Nietzsche, porém, assistimos à radicalização de um tema já presente na tradição liberal e, em particular, em Constant: o otium de uma minoria restrita se fundamenta no trabalho semi­ servil ou na escravidão verdadeira da maioria dos homens. Como Nietzsche, também Lafargue, na sua polêmica contra a ideologia do trabalho, se refere à antiga Grécia, onde reinava "o desprezo do trabalho" e "só aos escravos era permitido trabalhar".2002 No entanto, aos "proletários embrutecidos pelo dogma do trabalho" Lafargue sugere a leitura de textos gregos (não afetados pela "tartufice cristã" e pelo "utilitarismo capitalista") a fim de tirarem motivos de inspiração na luta necessária contra "o minotauro moderno, a oficina capitalis­ ta".2003 Aos olhos de Nietzsche, porém, esse minotauro deve tomar-se ainda mais eficiente e mais cruel a fim de garantir a isenção do trabalho e o pleno desenvolvimento da personalidade para a minoria privilegiada. Nesse caso, a celebração do otium é apenas uma face da moeda; a outra é constituída pela afirmação da necessidade do trabalho mais duro. Analogamente, a crítica da divisão do trabalho no âmbito das classes superiores pressupõe uma divisão do trabalho extremamente rígida entre classes superiores e classes su­ balternas . Parafraseando Marx, poderemos dizer que em Nietzsche, assim como na sociedade que ele reflete, "o mais-trabalho da massa" ou "o furto do tempo 1 999 200°

Marx-Engels, 1955, vol. XXIII, pp. 269 e 271 . Fichte, 1971, vol. IV, p. 44 1 ; sobre isto cf. Buhr, 1991, pp . 7 1 -2. 2001 Rousseau, 1 959, vol. 1, p. 223 . 2002 Lafargue, 1996, p. 44. 2003 Lafargue, 1996, pp. 84-5 e 5 1 .

de trabalho alheio" são a condição do "não-trabalho dos poucos". 2004 Aqui nos deparamos com um filósofo que é o teórico do "não-trabalho dos poucos", mas só enquanto é, ao mesmo tempo, o teórico do "mais-trabalho da massa" e da necessidade, para a élite, de organizar e desenvolver "o furto do tempo do tra­ balho alheio". Nietzsche celebra os gregos como "o povo do otium" (Muj3e) (IX, 24), mas também como o povo que aceita "ingenuamente" e sem proble­ mas a realidade inevitável da escravidão e do mais-trabalho dos escravos. E não é certamente a estes últimos que se dirige o discurso de evocação de um saber capaz de captar a totalidade: ao contrário, no caso deles, "a mestria numa só coisa, a especialização, é um instinto natural", uma "determinação natural"; e se trata de uma especialização tão acentuada que reduz a "maior parte dos homens" ao significado de "uma roda, uma função" (AC, 57). Resta, porém o fato que a figura ideal de um intelectual e de um indivíduo libertado da obrigação do trabalho e da divisão do trabalho e, portanto, não mutilado pela parcelização, pronto a interrogar-se sobre o sentido da sua ativi­ dade e capaz de desenvolver todas as suas potencialidades criticas, essa figura foi analisada e celebrada por Nietzsche de modo não menos fascinante do que por Marx e Engels. E ninguém soube ser mais inflamado do que Zaratustra, quando este, retomando e fazendo eco a Hõlderlin, 2005 descreve assim as consequências nefastas da divisão do trabalho: "Eu caminho entre os homens como entre fragmentos e membros avulsos de seres humanos. E o mais terrível para os meus olhos é que encontro o homem feito em pedaços e esparso como num campo de batalha ou num matadouro" (Za, II, Da redenção). A constatação da incapacidade para o otium da burguesia capitalista se torna em Nietzsche ocasião para evocar de novo com acentos apaixonados a totalidade perdida ao analisar em profundidade o processo de parcelização da cultura e de sua escravização ao mundo da riqueza e da produção. Se, por um lado, desemboca na reivindicação da escravidão, por outro, a nostalgia do otium estimula uma crítica impiedosa de um aspecto essencial da sociedade capitalista em que a divisão do trabalho penetra sempre mais profundamente no âmbito das mesmas classes dominantes e das mesmas categorias intelectuais.

2004 Marx, 1953, p. 593 (= Marx, 1968, vol. II, p . 401). 2005 Hõlderlin, 1 978, vol. 1, p. 739.

2. Desprezo pela democracia e denúncia da "nacionalização das massas " Pronunciada como é desde um observatório tão elevado e tão distante em relação ao presente em que o filósofo vive, a crítica a todo o campo da modernidade é a liquidação sem apelação da democracia, mas também a denún­ cia antecipada de alguns processos inquietantes, que vão encontrar sua expres­ são mais cabal e trágica no Século XX. É o que parece emergir da furibunda polêmica contra Wagner: a sua música é não só principalmente teatro, "essa arte de massa por excelência", mas um teatro que exige a presença de "massa" e não de "indivíduos"; os espectadores são todos transformados em "povo, horda, mulher, fariseu, gado eleitoral, membros do patronato, idiotas - wagnerianos" (FW, 368; NW, Onde faço objeções). Assim irrompe a sua "teatrocracia [ . . . ], algo não desbastado, algo predis­ posto, arteiramente predisposto para as massas". É preciso tomar nota: "O tea­ tro é um forma da demolatria nas coisas do gosto, o teatro é uma revolta das massas, um plebiscito contra o bom gosto". É desse modo que Wagner "con­ quistou a multidão" (WA, Pós-escrito); ele "tinha em tudo e por tudo os instin­ tos autoritários de um grande comediante" (FW, 368). Destaquei com itálico os termos que revelam o caráter político dessa aná­ lise: ela parece denunciar antecipadamente a cenografia que marca o processo de "nacionalização das massas". 2006 Tudo em função da sua excitação em pers­ pectiva chauvinista e em preparação dos gigantescos conflitos que surgem no horizonte: Wagner marcha com tambores e flautas à frente de todos os artistas da declamação, da representação, do virtuosismo [ . ]. O cenário de Wagner precisa apenas de uma coisa - de germanos!. .. Definição do germano : obe­ diência e pernas compridas [ ... ]. Nunca se obedeceu melhor, nunca se co­ mandou melhor. Os maestros de orquestra wagnerianos, particularmente se forem dignos de uma idade que os pósteros chamarão um dia, com tími­ da reverência, a idade clássica da guerra (WA, 1 1). ..

É uma música que parece particularmente indicada para aquele rito sagra­ do ou rito fúnebre que é a guerra: ''Nunca houve um Mestre maior nas sombrias fragrâncias hieráticas" (WA, Pós-escrito). Junto com o fenômeno que será depois chamado de "nacionalização das massas", Nietzsche parece analisar e criticar a psicologia das multidões, que se 2006

Sobre essa categoria cf. Mosse, 1 975.

desenvolve e difunde na onda do processo de democratização. Aconteceram mu­ danças decisivas: ''Não é no público de Comeille que Wagner deve pensar, mas simplesmente no público do Século XX" {WA, 9). Agora, tudo "é excogitado para convencer as massas" {WA, 7); Wagner "quer o efeito, nada quer senão o efeito" {WA, 8). É preciso anotar um fenômeno novo e inquietante: "O grande sucesso, o sucesso de massa, não está do lado dos genuínos - é preciso ser comediante para tê-lo! [ . . . ] Assim chega para o comediante a idade de ouro" {WA, 1 1). Wagner é exatamente "um grandíssimo comediante" {WA, 8). Com a sua música impõe-se "uma retórica teatral, um instrumento da expressão, do aumento da capacidade mímica, da sugestão, do elemento psicológico pitoresco" {WA, 8). · O efeito é mortal : não há saída, "mesmo a consciência mais pessoal sucum­ be à magia niveladora do grande número" (FW, 368; NW, Ondefaço objeções). Wagner é "magnetizador", a sua "ambição não vai além de agir sobre os nervos" {WA, 7); a sua música "age como um uso prolongado de álcool"; "sem dúvida, a coisa mais sinistra continua sendo o esfacelamento dos nervos". Estão presentes agora todas as condições para um abandono cego, tanto mais que irrompe "a fé no gênio". Nesse sentido, a música de Wagner "é o mais negro obscurantismo, que ele oculta nos luminosos invólucros do ideal" {WA, Pós-escrito). Não há dúvida de que, nessa impiedosa análise crítica, Nietzsche vise à democracia enquanto tal e, sobretudo, os movimentos de protesto social, ou aqueles nos quais, de um ou de outro modo, afloram as inquietações, a indigna­ ção, as esperanças das classes subalternas, das massas por ele consideradas irremediavelmente privadas de individualidade e intrinsecamente bichadas : "Savonarola, Lutero, Rousseau, Robespierre, Saint-Simon" são "epilépticos do conceito" que, todavia, "influem na grande massa". Infelizmente, "os fanáticos são pitorescos, a humanidade prefere ver gestos a ouvir razões" (AC, 54). To­ davia, mesmo com o grave limite de reducionismo psicopatológico, esse diag­ nóstico acaba objetivamente chamando a atenção para os processos de naciona­ lização das massas e manipulação da psicologia das multidões que se desenvol­ veram de modo cabal durante o Século XX.

3. Elitismo e construção da personalidade individual A relação existente entre a celebração da escravidão e da ordem de castas - expressões extremas e naturalmente enrijecidas pela divisão do trabalho - e a condenação da divisão do trabalho dentro da casta dos livres e dos ociosos podem apresentar-se também de forma diferente. Estamos na presença de um problema de caráter geral. O aristocrata radiqal restringe de modo drástico o

círculo da humanidade ou da humanidade provida de senso e de dignidade. Mas, dentro desse círculo rigorosamente delimitado, ele analisa com uma finura incomparável os problemas da vida individual, do desenvolvimento livre e har­ monioso da personalidade, do sentido a ser conferido à existência. Noutras pa­ lavras, o aristocrata radical é também um grande moralista. É uma figura que a agitação do mundo moderno parece querer engolir. "Onde foi parar aquele que reflete sobre questões morais,'que, em todo tempo, ocupou lugar em toda soci­ edade nobre e evoluída?" (SE, 2� 1, 344). Superada a teutomania dos anos imediatamente passadas do ascenso triunfal do II Reich, o grande moralista se revela também na paixão com que condena o provincianismo e o etnocentrismo, com que convida o jovem a libertar-se dessas angústias e dessas cadeias para reencontrar o gosto da própria autonomia e da própria liberdade: Temos de assumir diante de nós mesmos a responsabilidade por nossa existên­ cia, por conseguinte, queremos agir como os verdadeiros timoneiros desta vida e não permitir que nossa existência pareça uma contingência privada de pen­ san1ento. Esta existência quer que a abordemos com ousadia e também com temeridade, até porque, no melhor ou no pior dos casos, sempre a perderemos. Por que se agarrar a esse pedaço de terra, a essa profissão, por que dar ouvidos aos propósitos do vizinho?

É igualmente provinciano jurar obediência a con­

cepções que, em centenas de outros lugares, já não obrigam mais. O Ocidente e o Oriente são linhas imaginárias que alguém traça com um giz diante dos nossos olhos, para enganar a nossa pusilanimidade. Vou tentar alcançar a li­ berdade, diz para si a jovem alma. Não obstante, ela disso poderia ser impedi­ da pelo fato de que duas nações se odeiem e entrem em guerra, ou pelo fato de um mar separar dois continentes, ou pelo fato ainda de

se

ensinar em tomo

dela uma religião que já não existia há milhares de anos (SE, l ; 1,

339).

Talvez nenhum iluminista tenha sabido desmascarar com tanta eficácia o "preconceito" e cantar com tanta capacidade de sedução a liberdade de espírito. Além da embriaguez chauvinista, é preciso saber resistir também ao frenesi do trabalho e do lucro dos Gründerjahre: Sabemos que entregamos precipitadamente nossa alma ao Estado, ao lu­ cro,

à vida social ou à ciência, simplesmente para não mais possuí-la, as­

sim como nos sujeitamos a uma pesada tarefa diária com mais ardor e mais inconsciência do que é preciso para viver, porque nos parece necessário não atingir a reflexão. [ . . . ] Quando estamos sós e silenciosos, tememos que se fale algo nos nossos ouvidos, mas também odiamos o silêncio e nos aturdimos na vida social (SE, 5; 1,

379).

Parece ler Pascal de vez em quando, não por acaso, não obstante o seu cristianismo, amado e indicado como modelo: "Talvez fosse preciso ser tão profundo, tão imenso e tão ferido quanto a consciência intelectual de Pascal" (JGB, 45). Nas condições novas da modernidade, a prevenção contra o divertissement visa em primeiro lugar aos intelectuais: Ora, Pascal acha em geral que os homens se dedicam tão assiduamente a seus negócios e às suas ciências apenas para fugir desse modo aos problemas mais importantes que toda solidão, todo verdadeiro ócio imporia a eles, ou àqueles problemas acerca da finalidade, o onde e o para onde. Estranhamente, aos nossos eruditos não vem à mente sequer o problema mais imediato: para que seive o seu trabalho, o seu frenesi, a sua dolorosa agitação.

Pobre e vazia se revela "uma cientificidade semelhante, tão agitada e sem fülego, que corre, ou antes, se debate de cá e de lá" (DS, 8; 1, 203).0 que preside a grandeza é, ao contrário, a falta de pressa, a disponibilidade aos tempos lon­ gos : ''Para o pensador e para todos os espíritos inventivos, o tédio é aquela desagradável 'calmaria' da alma, que precede a viagem venturosa e os ventos joviais; ele tem de suportá-la, tem de aguardar em si o seu efeito" (FW, 42). Saber dizer não à agitação moderna é também a condição para uma cons­ trução autônoma da própria personalidade. Deve estar bem alerta para "não querer pertencer à massa" e não querer ser "mercadoria de fábrica" (SE, 1 ; 1, 338). Certamente, '"dar um estilo' ao seu caráter é uma arte grande e rara", que inclui o esforço da autodisciplina, da qual fogem "os caracteres fracos, impo­ tentes em si mesmos" (FW, 290). E eis Nietzsche apelar para o jovem: "Conti­ nua sempre a tomar-te o que és - educador e plasmador de ti mesmo ! " (IX, 555): "queremos ser os poetas de nossa vida e em primeiro lugar nas coisas mínimas e cotidianas" (FW, 299). Para conseguir esse resultado, é necessário nunca perder de vista a "verda­ deira libertação da vida", resistir à corrente mais do que seguir de modo cego e irrefletido as ideologias dominantes e os mitos do tempo e dobrar-se servilmente a "uma época, regida não por homens vivos, mas por pseudo-homens com uma opinião pública" (SE, 1 ; 1, 3 3 8). Não há dúvida, esse apelo se insere no contex­ to de uma crítica reacionária da modernidade; mas isto nada tira do fascínio dessa lição de vida e desse apelo à autonomia do juízo. A escolha da profissão e da ocupação deve visar, em primeiro lugar, à satisfação espiritual: Buscar trabalho pelo salário - nisto quase todos os homens dos países civi­ lizados são hoje iguais; para eles o trabalho é um meio, não um fim em si mesmo; e por isso são pouco refinados na escolha do trabalho, desde que

proporcione uma boa renda. Mas existem homens raros que preferem mor­ rer a trabalhar sem ter prazer no trabalho.

Aqui a lição do grande moralista não só se entrelaça com o gesto de distin­ ção do aristocrata radical, mas cede às vezes lugar a um filisteísmo desarmante: "dessa rara espécie de homens" prontos a renunciar à vida para não submeter sua espontaneidade e criatividade ao jugo do trabalho assalariado fazem parte não só "os artistas e os contemplativos de todo gênero'', mas também "os ocio­ sos que passam a vida a caçar, em viagens ou em atividades amorosas e aventu­ ras". A conclusão do aforismo soa decididamente falsa: Todos esses querem o trabalho e a necessidade, enquanto estejam associa­ dos ao prazer, e até o mais duro e dificil trabalho, se tiver de ser. De outro modo são de uma resoluta indolência, ainda que ela traga miséria, desonra, perigo para a saúde e a vida. Não é o tédio que eles tanto receiam, mas o trabalho sem prazer (FW, 42).

Considerações análogas podem ser feitas a propósito da análise da dor. Também nesse caso estamos na presença de uma grande lição, tanto mais persu­ asiva na medida em que resulta de uma direta e profunda experiência vital: "A grande dor é apenas a libertadora extrema do espírito". Dela se sai sempre como "outra pessoa, com algumas interrogações a mais, sobretudo com a vontade doravante de questionar mais, mais profundamente, severamente, duramente, maldosamente, silenciosamente do que até então se questionou" (FW, Prefácio, 3; NW. Epílogo, 1 ) . É só agora que o filósofo ou indivíduo pode realmente repetir, com Agostinho, mihi quaestio factus sum. Compreende-se agora o desapontamento pelo fato de ter desaparecido a educação "à tolerância da dor" (FW, 48). Perde-se assim uma condição essenci­ al da grandeza: é necessária a escola mais severa, a infelicidade, a doença; "de outro modo não haveria espírito na terra, tampouco êxtase e júbilo". É preciso não perder de vista uma verdade essencial: "Só as almas que passam através da tensão das grandes provas (groj3gestimmte gespannte Seelen) sabem o que é arte, o que é serenidade" (XI, 540). De novo, porém, o grande moralista cede o lugar ao aristocrata radical. O discurso prossegue levando em conta aqueles que, exagerando-a e dilatando-a, gostariam de pôr remédio à dor realmente existente: Da inaptidão geral à dor [ ... ] e do fato de que é bastante rara a vista de um sofredor, segue-se agora uma consequência importante: hoje a dor é muito mais odiada do que antigamente, mais do que nunca se fala mal dela, con­ sidera-se dificil de suportar até mesmo a presença da dor como pensamen-

to, e faz-se dela um caso de consciência e uma censura à existência na sua totalidade. O surgimento de filosofias pessimistas não é, em absoluto, sinal de grandes e terríveis condições de miséria (Nothstande); mas essas inter­ rogações sobre o valor da vida toda são feitas em épocas nas quais o refina­ mento e o aligeiramento da vida julga sangrentas e malignas demais até as inevitáveis picadas de mosquitos na alma e no corpo (FW, 48).

Mesmo reconhecido ou posto em evidência em outros contextos, o sofri­ mento dos escravos atados ao carro da civilização é negado aqui ou minimizado. Nietzsche não pode agir de forma diferente porque acha que não há alternativas : Haveria uma receita para filosofias pessimistas e a sensibilidade excessiva que me parece a autêntica "angústia do presente" (Noth der Gegenwart), mas talvez essa receita já tenha demasiado sabor de crueldade e seria ela também incluída entre os sintomas que levam as pessoas a julgar que "a existência é algo ruim". Pois bem, a receita para "a an�a" tem nome: angústia (FW, 48).

E assim, o tema da educação para a tolerância à dor desenvolvido, com a sensibilidade e a mestria do grande moralista, se toma parte integrante do pro­ grama político do radicalismo aristocrático, que rejeita com desdém a ideia de que possa haver uma "questão social". E parte integrante desse mesmo progra­ ma político acaba sendo também a crítica de uma moral que toma impossível a educação para a tolerância à dor, que termina "enfraquecendo todas as almas e corpos e quebrando os homens independentes, autônomos, arrojados, as colu­ nas de uma robusta civilização" (M, 1 63). Ao contrário, é preciso saber reavaliar "as paixões do ódio, da inveja, da cobiça, da ânsia de domínio como algo funda­ mental e originalmente indispensável para a economia global da vida". De novo se mostra o grande moralista, para imediatamente e definitivamente ceder lugar ao aristocrata radical: ''Navegamos, deixando sem receios a moral para trás, sufocamos, esmagamos com isso nosso próprio resto de moralidade, enquanto realizamos e ousamos fazer a viagem até lá - mas, nessa aventura, nada impor­ ta a nós!_Jamais um mundo tão profundo de conhecimento se revelou para navegantes e aventureiros audazes" (JGB, 23). As figuras do grande moralista e do aristocrata radical se entrelaçam es­ treitamente para que ambos se dirijam a um mesmo interlocutor, um círculo bastante restrito, separado por uma barreira intransponível em relação à massa dos homens destinados a ter a função de instrumentos de trabalho: "Zaratustra pode tomar felizes só depois que a hierarquia for estabelecida". É o próprio Zaratustra quem declara: "O meu dom só poderá ser recebido quanto houver os destinatários: é a finalidade da hierarquia" (XI, 541).

4. Zaratustra entre poema pedagógico do espírito livre e catecis­ mo do radicalismo aristocrático Rohde tem razão quando define Assimfalou Zaratustra como uma espécie de "poesia pedagógica" (B, III, 2, p. 4 1 2). Por trás está agindo a grande tradi­ ção alemã do Bildungsroman, do romance em cujo centro está o processo de formação e construção da personalidade individual. Em páginas absolutamente fascinantes o "espírito livre", ou que aspira a se tomar tal, é chamado a diferen­ ciar-se nitidamente do "último homem", capaz apenas de deixar-se arrastar pela corrente e levar uma existência gregária, cujo sujeito é um "si", um man total­ mente impessoal. Ama-se (man) o vizinho e nele nos esfregamos, porque se (man) precisa do calor [... ]. Ainda se (man) trabalha porque o trabalho é um passatempo. Mas se (man) cuida que o passatempo não canse [ ... ]. Têm-se (man) os seus pequenos prazeres para o dia e seus pequenos prazeres para a noite; mas se (man) respeita a saúde (Za, Prefácio de Zaratustra, 5). 2001

O espírito livre é chamado a comportar-se de um modo bem diferente, pois, ao construir de modo autônomo e consciente a vida e a personalidade próprias, deve saber ir contra a corrente: "A voz do rebanho ainda ecoará em ti. E quando disseres: 'Não tenho mais a mesma consciência que vós ', haverá lamentos e dores" (Za, 1, Do caminho do criador). Junto com a forma e o estilo, os conteúdos também são essenciais . O espí­ rito livre está empenhado não só em encontrar o sentido da terra e reabilitar a carne, mas também em superar o provincianismo e o chauvinismo (intraeuropeu), em ser um viajante no melhor sentido do termo: "em nenhum lugar encontro pátria; ando por todas as cidades, e estou de partida em todas as portas" (Za, II, Do país da cultura); é preciso saber remover "as pedras de fronteira" (Za, III, Do espírito de gravidade, 2). Além disso, o "espírito livre" é chamado a voltar as costas ao gosto faná­ tico do absoluto e do incondicionado: "Deve-se exatamente maldizer onde não se ama? Isto me parece de mau gosto [ . . . ] . Evitai todos esses incondicionados. São apenas uma pobre ralé doente, uma ralé plebeia [ . . . ]. Afastai todos esses incondicionados ! Têm os pés pesados e o coração sufocante - não sabem dan­ çar" (Za, IV, Do homem superior, 1 6) . Para o espírito livre, assimilar realmente a lição de Zaratustra significa construir de modo autônomo a própria persona2001 É uma análise que deve ter influenciado profundamente o Heidegger de Ser e tempo: cf. Losurdo, 199 1 , cap. 2 § 8.

tidade, libertando-se também de toda forma de dependência acrítica com rela­ ção ao Mestre: "Ainda não vos havíeis procurado a vós mesmos: e, encontrastes a mim. Assim fazem todos os crentes: mas que importam todos os fiéis? Agora eu vos mando perder-me e achar a vós mesmos; e somente depois que todos me tiverdes renegado, eu voltarei a vós" (Za, 1, Da virtude dadivosa, 3). O espírito livre deve aspirar a um saber que tenha o sentido da totalidade, evitando, por isso, reduzir-se a "um grande olho e uma grande boca ou um grande ventre" ou a uma "enorme orelha" (ZA, II, Da redenção); não pode contentar-se com um saber que é sinônimo de pedantismo e de fuga: do mesmo modo que o Fausto anterior ao encontro com Mefistófeles, é "sombrio" o inte­ lectual que "ainda não aprendeu o riso e a beleza" (Za, II, Dos seres sublimes). Por outro lado, o saber não deve sequer reduzir-se a um prazer narcisista. Ao contrário, deve saber encontrar uma relação apaixonada e fecunda com a vida e com a realidade. Sim, não poucos intelectuais aspiram a "olhar a vida sem desejo" e "com a vontade extinta"; "estão frescos e na sombra fresca", querem ser apenas "espectadores" e, portanto, "tomam cuidado para não ficar onde o sol queima sobre os degraus" (Za, II, Do imaculado conhecimento e Dos doutos). Mas - objeta Zaratustra - "não creio em espíritos resfriados" (Za, IV, Do ho­ mem superior, 9). Definitivamente, o autêntico "espírito livre" ou o "super­ homem" sabe reconhecer-se no mundo e gozar dele, sem recuar com medo dian­ te do negativo e da dor: "Somente onde há sepulcros há ressurreições" (Za, II, O canto fúnebre). Dizer sim à vida, no entrançamento de alegria e dor, significa dizer sim à doutrina do eterno retomo: "'Era esta a vida?' Quero dizer à morte: 'Pois muito bem, outra vez ! "' (Za, IV, O canto ébrio, 1). No entanto, o grande moralista é apenas uma face da moeda, a outra é constituída pelo aristocrata radical, que ferve de desprezo e de nojo por um mundo em que a plebe "tomou-se senhora", na qual domina "aquilo que é femi­ nino e de origem servil" (Za, IV, Do homem superior, 3). Para remediar essa catástrofe é chamada uma batalha política sem exclusão de golpes . O ajuste de contas com o movimento socialista e os seus miseráveis ideais de justiça é tam­ bém o ajuste de contas com o filisteísmo do "último homem": "Acabai com eles, acabai com os bons e os justos ! Meus irmãos, tendes compreendido também esta palavra de ordem?" Aqueles para os quais essa palavra é dirigida parecem recuar horrorizados. Aqui de novo intervém o moralista, mas agora ele se apre­ senta no seu rosto mais inquietante: Fugis de mim? Estais amedrontados? Tremeis ante esta palavra?

Ó meus irnlãos, quando mandei acabar com os bons e os justos e as tábuas dos somente então embarquei o homem no rumo do seu mar alto.

bons e dos justos:

Falsos litorais e falsas certezas vos ensinaram os bons e os justos; em suas mentiras nascestes e vos julgastes a salvo. Tudo foi falseado e desfigurado, do princípio ao fim, pelos bons e os justos (Za, III, Das tábuas antigas e novas, 27-8).

Uma virada é absolutamente necessária. Além da intervenção nas relações político-sociais, impõem-se medidas eugênicas tão radicais que não excluem a eliminação dos mal sucedidos. Estes, difundindo o seu ressentiment, muitas vezes são também "moscas venenosas" e vorazes. Mesmo consciente da gravidade do perigo, o espírito livre não parece ter adquirido a resolução que a situação exige. E de novo se faz ouvir a admoestação do moralista e aristocrata radical: "Dema­ siado altivo eu te julgo para matar esses gulosos. Mas toma cuidado em que não se tome teu destino suportar-lhes toda a venenosa injustiça!" (Za, 1, Das moscas venenosas). O espírito livre ainda hesitante é solicitado a não se deixar estorvar por "tábuas antigas" e obsoletas que, ao anunciar a proibição bíblica do "não matar", acabam na realidade assassinando a "própria verdade"; é chamado a não absolutizar ou a deixar cair a proibição bíblica de "não matar" para, em vez dela, fazer valer a "lei suprema da vida" (supra, cap. 1 9 § 5). Agora está claro. Em Assim falou Zaratustra, a leveza do romance ou poema pedagógico se entrelaça indissoluvelmente com a dureza e a brutalidade do catecismo e do radicalismo aristocrático. Bastante significativo é o retrato que Nietzsche traça de Zaratustra (e de si mesmo): "O espírito mais afirmador entre todos" (EH, Assim falou Zaratustra, 6). Os sequazes e "companheiros" de Zaratustra "serão chamados" não só de "desprezadores do bem e do mal", mas também de "exterminadores" (Vernichter) (Za, 1, Prefácio de Zaratustra, 9). E não menos significativo é o retrato que Nietzsche traça de si mesmo (e de Zaratustra): "Eu sou o destruidor par excellence" (EH, Porque eu sou um des­ tino, 2). Esse destruidor reivindica para si o "direito ao aniquilamento" (supra, cap. 1 9 § 6). Contudo, pode acrescentar e especificar: "contradigo e sou, toda­ via, a antítese de um espírito negativo" (neinsagend); estamos diante de uma contradição que, liquidando "muitos milênios" de negação da vida (a tradição judeu-cristã no seu conjunto), é uma poderosa afirmação da vida (B, III, 5, p. 503). O fato é que, no filósofo e no protagonista do seu poema pedagógico, "todos os opostos são ligados numa nova unidade". Assim é também na realida­ de: "As forças mais altas e mais baixas da natureza humana, aquilo que é mais doce, mais leviano e mais terrível jorra de uma só fonte com segurança imortal" (EH, Assim falou Zaratustra, 6). Algumas semanas depois da publicação de Além do bem e do mal, Nietzsche escreve a um "caro amigo" que o seu novo trabalho "é uma espécie de comentá­ rio ao meu Zaratustra" (B, III, 3, p. 270). Entrementes, Peter Gast viu o novo 950

livro e o lê como uma "campanha contra a democratização e o abaixamento e apequenamento do homem moderno". O "devoto discípulo" ou o "grato discí­ pulo'', como ele se afirma, exprime ao Mestre todo o seu entusiasmo: São esplêndidas as vossas teorias político-morais agora expressas com clareza. Muitos, que no nosso tempo não sabiam C9mO defender-se contra a onda cres­ cente do domínio popular, serão por vós ajudados a superar a sua angústia: penso que ainda há numerosas forças humanas, só que elas são guiadas de modo errado e percebem que são guiadas de modo errado; no entanto, adquiri­ riam nova vitalidade se alguém esclarecesse a sua tarefa, o que dificilmente poderiam perceber nesse ar filantrópico doentio. A partir de vós deve ser data­ do uma sublevação do Ocidente inteiro (B, m, 4, p. 1 93-4 e 1 95-6).

Por outro lado, Peter Gast já tinha se expressado em termos semelhantes para Assim falou Zaratustra: "A este livro desejo a difusão da Bíblia, o seu prestígio canônico, a sequência de comentários sobre os quais em parte tal pres­ tígio repousa". O livro deveria ser inserido entre os "textos sagrados" e "a partir dele seria preciso datar o tempo de modo novo": antes ou depois o seu autor será venerado mais do que os "fundadores asiáticos de religiões" (B; III, 2, p. 3 60- 1 e 420). Não se trata apenas das expressões enfáticas de um discípulo entusiasta, também Niétzsche é fundamentalmente da mesma opinião. Agora ele, na visão do mundo elaborada na última fase da sua evolução, vê o ponto de virada da história universal com a conclusão definitiva do ciclo bimilenar da subversão e da degeneração que começou a partir da religião judeu-cristã. Tanto para o Mestre como para o discípulo, Assim falou Zaratustra e Além do bem e do mal são a mesma coisa. O primeiro exprime numa linguagem poética o mesmo conteúdo que o segundo exprime com uma prosa mais clara e mais nítida. São vãs as tentativas de mergulhar a figura de Zaratustra numa aura de inocência. Também nesse caso vemos em ação a ligação entre o grande moralista e o aristocrata radical, que caracteriza Nietzsche no seu conjunto. O "super-homem" anunciado por Zaratustra é, por um lado, o "espírito livre", o qual assimilou o melhor do poema pedagógico que já conhecemos; por outro lado, é o aristocrata radical, o qual não hesita em tomar próprio um pro­ grama eugênico que se lança até o limiar da teorização do genocídio. O espírito livre, o super-homem é chamado a libertar-se de todo resíduo de "contranatureza" (XIII, 6 1 1 ), a tomar plena consciência do fato de que a moral, o modo de se comportar dos "bons'', é sinônimo de "mentira" interior, de incapacidade de olhar a realidade na cara sem fingimentos, é "não querer ver a qualquer custo como no fundo e feita a realidade, que não é certamente feita para suscitar continuamente instintos benévolos" (EH, Porque eu sou um destino, 4).

Como Rousseau, também Nietzsche apoia "a volta à natureza" {WA, 3), mas agora a reafirmação da natureza é a reafirmação ao mesmo tempo da terrí­ vel carga de negatividade e de violência nela presente. É só o "hipocondríaco" que se retrai horrorizado e impotente. A denúncia da hipocondria desempenha um papel bastante importante em Hegel; e, por outro lado, também a sua Fenomenologia do espírito tem por trás a tradição do Bildunsroman. Mas aqui e na filosofia hegeliana em gera1, a hipocondria consiste, não na elaboração de um ambicioso projeto de transformação da ordem político-social existente a partir de ideias e valores universais, mas na incapacidade de compreender que, para poder edificar uma nova ordem social, o universal deve saber tomar-se particular e concreto, deve saber descer à história e acertar as contas com as resistências, as dificuldades, as tortuosidades, as mediações, os compromissos, os dilemas, os dramas que são parte integrante do processo histórico e da ação política. 2008 Para Nietzsche, porém, a hipocondria é a incapacidade de aceitar a natureza na sua ligação indissolúvel de belo e de terrível, é a pretensão de bloqueá­ la mediante presumidas regras morais que mortificam a carne, a vitalidade, a vontade de poder. Ao "hipocondríaco" Zaratustra opõe o "desejoso de guerras e de festas" (Za, IV, A ceia). Reabilitar a carne significa honrar de novo não só a guerra, mas também "o ódio, a alegria com o mal alheio, a ânsia de rapina e domínio e tudo o mais que se chama de mau" (FW, 1).

5. Eros e Polemos: Heine e Nietzsche Não é certamente a denúncia da "moral austera" própria do cristianismo que constitui o aspecto mais novo e mais importante de Nietzsche. Ele pode ler essa denúncia já em Heine que, em contraposição à visão "nazarena" do mundo, celebra a serena aceitação pagã da sensualidade. Também a lê em Strauss, que, ao se referir a Buckle, observa: ao amaldiçoar a riqueza, a única que pode tomar possível o otium, a pregação evangélica condena também "ciência e arte" e se revela por isso afetada por um "princípio inimigo da civilização".2009 No entanto, é dura a polêmica do primeiro Nietzsche contra Heine e seu otimismo judeu; ao passo que a primeira Inatual não hesita em defender o cristianismo contra o otimismo filisteu e judaizante censurado em Strauss. Também depois dos anos da juventude Nietzsche se exprime com aspereza tanto sobre Buckle 2008

Losurdo, 200 1, pp. III-XV e passim. 2009 Strauss, 1 872, pp. 63-4. A observação de Strauss é, por sua vez, relatada por outro utor muito mais conhecido de Nietzsche: cf. Lange, 1 974, vol. II, p. 976.

como sobre o autor alemão que o cita. Ou seja, o que constitui o fio condutor da evolução do filósofo não é a crítica da moral austera, mas a luta contra a revo­ lução, denunciada desde o início, mas sempre mais pesquisada nos seus diver­ sos aspectos e nas suas origens mais remotas . A partir da crítica da moral austera, também Heine identifica com clareza os componentes reacionários da Reforma: Leão X, o sutil florentino, aluno de Poliziano, amigo de Rafael, [ . .. ] Leão X Médici, dizia, como devia sorrir do pobre, casto e simples monge que andava proclamando que o Evangelho era a Carta do cristianismo e que esta Carta devia tornar-se a verdade. 2010

Lutero aparece aqui como uma espécie de aiatolá fundamentalista que queria impor o rigor grosseiro, que ele retira do texto sagrado, a uma civilização niti­ damente mais avançada e mais pluralista. É numa polêmica não só contra o papado, mas também contra o luxo, a lascívia, o paganismo censurados ao Renascimento, que brota a atitude "fanaticamente iconoclasta" da Reforma: 2º1 1 "As encantadoras imagens de Nossa Senhora foram destruídas". 201 2 A o monge fanático se contrapõe um papa que, além de exprimir uma cultura mais refina­ da, é decididamente "mais racional". 2013 Junto com as razões da cultura, Leão X sabe escutar com sabedoria também as razões da carne: Lutero, de fato, não compreendeu que a ideia do cristianismo, a anulação dos sentidos, era por demais contrária à natureza humana para poder ser realizada integralmente na vida; ele não entendeu que o catolicismo era por assim dizer - um acordo entre Deus e o diabo, ou seja, entre o espírito e a matéria, mediante o qual em teoria era proclamado o predomínio abso­ luto do espírito, mas a matéria era depois colocada em condições de exer­ cer na prática todos os seus direitos cassados. Daí um hábil sistema de concessões feitas pela Igreja em proveito dos sentidos, ainda que sempre em formas que estigmatizam todo ato de sensualidade e garantem ao espí­ rito as suas usurpações zombeteiras. 2014

Mas o catolicismo "não é compreendido no Norte alemão". É aqui que o "puritanismo inimigo acérrimo dos sentidos" encontra o seu lugar de eleição; aqui 2010

Heine, Heine, 2012 Heine, 2013 Heine, 2º14 Heine, 201 1

1969-78, vol. 1 969-78, vol. 1 969-78, vol. 1 969-78, vol. 1 969-78, vol.

III, VI, III, III, III,

p. 532. 1, pp. 383-4. p. 534. p. 53 1 . p. 53 1 .

"o clima facilita o exercício das virtudes cristãs"; cria raízes assim um cristianis­ mo que faz "o menor número possível de concessões à sensualidade". 2015 Corno se vê, estamos diante de urna análise que por muitos motivos leva a pensar na análise de Nietzsche. Ao esplendor de Shakespeare e do seu tempo, Heine contrapõe "o tempo nivelador dos puritanos [ . . . ] que, junto com a monar­ quia, teriam dado um fim também a toda alegria vital, a toda poesia e a toda arte serena". 2º1 6 Nos puritanos ingleses, o "fanatismo republicano" se entrelaça es­ treitamente com o "zelo ascético da fé".2017 De novo somos levados de volta a Nietzsche e à sua denúncia da carga de fanatismo, ascetismo e espírito "nivelador" presentes na Reforma e no puritanismo, incapazes de compreender tanto as razões da arte (e do luxo) corno as razões da carne. No entanto, Heine não hesita em celebrar Lutero e a Reforma corno um capítulo essencial da história da liberdade.2018 Embora com incertezas e oscilações e não sem um tormento inte­ rior, o grande poeta discípulo de Hegel não se aproveita dos aspectos regressi­ vos das grandes revoluções para liquidá-las em bloco. Nesse sentido Heine é mais profundo: vê que esse movimento parcialmente reacionário (ou fundamentalista), que é a Reforma, prepara o caminho para a revolução não só pelo que diz respeito à liberdade de pensamento, mas também no plano do costume sexual: ·

Disse antes que o espiritualismo atacou entre nós - o catolicismo. Mas isto vale apenas para o início da Reforma; assim que o espiritualismo abriu uma brecha no antigo edificio eclesiástico, explodiu o sensualismo com todo o seu ardor há tempo reprimido, e a Alemanha se transformou no cenário em que a embriaguez de liberdade e alegria dos sentidos endoide­ ciam selvagemente [ . . . ] . Pode-se dizer, antes, que a história exterior daque­ la época tenha consistido quase exclusivamente em revoltas sensualistas. 201 9 -

Não é por acaso que a Reforma promove a abolição do celibato eclesiástico e, portanto, a legitimação plena da sexualidade conjugal. Os camponeses que se rebelam contra os senhores podem muito bem estar animados por furor ascético, mas quais são os resultados objetivos da sua sublevação? "Em Münster, o sensualismo girava nu pelas ruas nas vestes de Jan von Leyden, que ia depois deitar-se com suas doze mulheres na grande alcova que ainda hoje se admira no 2º 1 5 20 16 201 1

Heine, 1969-78, vol. III, pp. 533-4. Heine, 1969-78, vol. IV, pp. 175-6. Heine, 1969-78, vol. IV, p. 1 76. 2º1 8 Losurdo, 1997 a, cap. II, 2-3 . 201 9 Heine, 1 969-78, vol. III, pp. 535-6.

município". 2020 A mesma dialética se desenvolve em relação à arte e à cultura em geral. A iconoclastia inicial da Reforma se transforma num resultado totalmente oposto, com o desenvolvimento de uma esplêndida época artística e cultural. Por outro lado, a luta empreendida pela Reforma, a partir de posições antissensualistas contra o compromisso católico com a carne, favorece objetiva­ mente a sucessiva luta que, contra este mesmo compromisso, mas a partir de posi­ ções opostas, o iluminismo francês desenvolve. Sim, no âmbito da Igreja Católica, o espiritualismo "dominava só de jure, ao passo que o sensualismo, às escondidas, exercia o domínio efetivo e dominava defacto". A contestação de Lutero ao domínio defacto do sensualismo acaba aplanando a estrada para a contestação do domínio de jure do espiritualismo, a que procede a filosofia francesa dos "séculos XVII e XVIII" no decorrer de sua batalha contra o catolicismo. 2021 Heine procede de modo análogo na sua leitura do cristianismo. Mais uma vez, há aspectos que levam a pensar em Nietzsche. Trata-se de uma religião que institui um "contraste artificial" entre a alma e o corpo e que se difunde "com incrível rapidez em todo o Império Romano como uma doença contagiosa". 2022 Roma é assim derrotada por Jerusalém, a qual tinha destruído: A Judeia, traiçoeiramente assassinada, ao confiar aos romanos seu espiritualismo tenha talvez querido vingar-se do inimigo vitorioso, como uma vez o centauro ao morrer soube entregar tão astutamente ao filho de Zeus a roupa fatal envenenada com o próprio sangue. Com efeito, Roma, Hércules das nações, foi contaminada com o veneno judeu tão eficazmente que o elmo e a couraça caíram sozinhos dos seus membros entorpecidos, e a sua voz imperial de guerra enfraqueceu-se em choromingueira padresca e em gorjeios de castrado. 2023

Por outro lado, apesar das aparências, não são de modo algum tão inocen­ tes "os novos, tristes deuses dominantes, felizes por fazer o mal (schadenfroh) sob o manto de ovelha da humildade". 2024 A longa época do cristianismo faz ainda pesar sobre a Europa uma "atmosfera geral de lazareto". 2025 No entanto, passa também através do cristianismo, com a sua afirmação da unidade do gênero humano e com a eficácia positiva por ele desenvolvida sobre a "natureza 2020 2021 2022 2023 2º24 2025

Heine, Heine, Heine, Heine, Heine, Heine,

1969-78, vol. 1 969-78, vol. 1 969-78, vol. 1969-78, vol. 1969-78, vol. 1 969-78, vol.

III, p. 536 . III, p. 533-4. III, p. 5 1 8 . III, p. 363 . 1, p. 207. III , p. 518.

bárbara, sanguínea demais" dos povos do Norte", 2026 o advento de uma fase nova, segundo o princípio de uma reabilitação geral da carne: Um dia, quando a humanidade tiver readquirido a sua plena saúde, quando a paz for de novo concluída entre a alma e o corpo e eles tornarem a fundir­ se na harmonia original, não será mais possível compreender o artificioso contraste criado entre o� dois pelo cristianismo. As gerações mais felizes e mais belas que, procriadas num livre amplexo, floresceram numa religião de paz, deverão sorrir melancolicamente ao pensar em seus iruelizes pro­ genitores que se abstiveram tristemente de todos os prazeres desta bela terra e, assassinando a quente e colorida sensualidade, desbotaram até qua­ se se tornarem frios fantasmas. 2027

Poder-se-ia dizer que aqui é anunciado um "super-homem" bem diferente do de Nietzsche. No filósofo é constante a polêmica contra aqueles que "nos induziram a crer que as tendências e os instintos dos homens são maus" (FW, 294). É também desse ponto de vista que Carmen é contraposta às heroínas de Wagner: "Finalmente o amor, o amor retraduzido na natureza ! " (WA, 2) . No entanto, continuam radicais as diferenças em relação a Heine. E não apenas pelo fato de que a reabilitação da carne a que Nietzsche faz referência exclui os instrumentos de trabalho, aos quais ele continua a recomendar uma religião da renúncia e da ascese. Há outra razão. O amor, cuja ausência o filósofo lamenta no musicista condicionado pelo "úmido Norte" e ainda influenciado pelo cristianismo, é "o amor como/atum, como fatalidade, cínico, inocente, cruel - e, exatamente nis­ to, natureza", é "o amor que nos seus instrumentos é guerra, no seu fundo é o ódio mortal dos sexos! " (WA, 2). Vimos que já o jovem Nietzsche se distingue entre a imaginária natureza boa, querida de Rousseau, mas também de Heine, e a natureza captada na sua real tragicidade. É uma tragicidade que se manifesta também no eros . Podemos agora compreender melhor a contraposição entre islã e cristianis­ mo que fazem sobretudo O crepúsculo dos ídolos e O Anticristo. O que caracte­ riza o cristianismo é a hostilidade contra o corpo: "O corpo é desprezado, a higi­ ene é repudiada como sensualidade; a Igreja se opõe até à limpeza (a primeira medida cristã após a expulsão dos mouros foi o fechamento dos banhos públicos, dos quais apenas Córdoba possuía 270)" (AC, 2 1 ). Nisto Nietzsche retoma a posição dos iluministas, que tinham contraposto "o relativo liberalismo sexual do 2026 2021

Heine, 1969-78, vol. III , p. 363. Heine, 1 969-78, vol. III, pp. 5 1 8-9.

islã (para o sexo masculino)" à sexofobia cristã.2(128 "O maravilhoso mundo da civilização moura da Espanha" - observa O Anticristo revela a sua superiorida­ de e fala de modo "eloquente" já "aos nossos sentidos e ao nosso gosto" (AC, 60). Desprovidos de "instintos respeitáveis, decorosos, asseados", os "Pais da Igreja" na realidade "não são sequer homens" (AC, 59). Contudo, diversamente do que nos iluministas, a reabilitação do corpo em Nietz.sche não é apenas o reconheci­ mento do valor da vida sexual, da limpeza, da saúde: O islã diz "sim à vida" seja "com as raras e refinadas preciosidades da vida moura", seja com os seus "instin­ tos aristocratas e viris" (AC, 60), sabendo reconhecer os valores implícitos na figura do macho e do guerreiro. Considerações análogas podem valer para o códi­ go de Manu, também ele capaz de perceber o fascínio do "seio de uma menina", mas, ao mesmo tempo, cheio de respeito pela figura do guerreiro: "valores nobres por toda parte, um sentimento de perfeição, um dizer sim à vida", um dizer sim à visão hierárquica, agônica e viril do mundo (AC, 56). Na vertente oposta, no cristianismo, a sexofobia se entrelaça com a pusilanimidade diante da realidade e dos conflitos que a caracterizam. Ao "realismo audaz", com a sua "veneração por tudo o que é real", se opõe "altruísmo", "hipersensibilidade" e "feminismo no gosto" (GD, Incursões de um inatual, 50). Portanto: "Niilismo e cristianismo (Nihilist und Christ) são coisas que rimam, mas não rimam apenas" (AC, 5 8). Este niilismo e essa incapacidade de apreciar os valores do eros, do polemos e da hierarquia remetem a estratos sociais irremediavelmente bichados, carregados de ressentiment em relação aos melhores e sempre prontos a agitar a bandeira da "igualdade" e da 'justiça". Em conclusão, o amor-natureza de Nietzsche não se confunde com o "livre amplexo" de Heine. A vicissitude e o fim trágico de Carmen são a demonstração última do fato que não há zona do real que se subtraia ao polemos. Este invade tudo para caracterizar em profundidade o próprio eros. E, ainda uma vez, a figura do grande moralista, que põe em guarda contra uma visão edificante do eros e que condena a mutilação da personalidade implícita na mortificação da carne, se en­ trelaça indissoluvelmente com a figura do aristocrata radical e brutal. -

2028

Cf. Rodinson, 1 993 , pp. 72-4.

CRISE DO MITO GENEALÓ GICO DO ÜCIDENTE E CRÍTICA DO UNIVERSALISMO IMPERIAL

1. Celebração da escravidão e condenação da ideia de missão

Ppoliticus e coerentemente reacionário do pensamento de Nietzsche é possí­ ara confirmar o fato de que só a partir do reconhecimento do caráter tatus

vel compreender a sua excedência teórica, voltamos ao tema da escravidão como fundamento da civilização. No entanto, também nesse caso as boas intenções que motivam a leitura em perspectiva metafórica lançam uma sombra pesada sobre o filósofo, em geral considerado ingenuamente ignorante do debate e do conflito político que se espalham em tomo dele. Tentemos, porém, envolver o contexto histórico. Então, a própria celebração da escravidão acaba desenvol­ vendo uma eficácia crítica insuspeita. Ela ocorre no momento em que o colonialismo europeu transfigura a sua expansão como uma contribuição deci­ siva para a causa da luta contra a barbárie da escravidão. A abolição desta, primeiro nas colônias inglesas e depois nos Estados Unidos, dá impulso à mar­ cha triunfal do Ocidente em escala planetária; os círculos abolicionistas e evan­ gélicos mais fervorosos veem na "cristianização da África" a necessária repara­ ção do pecado da escravização e do tráfico de negros. 2029 É assim anunciada uma Cruzada, às vezes entendida no sentido literal e cristão do termo; mas seu avanço vai lado a lado não só com a subjugação da população ao trabalho mais ou menos forçado e até com um verdadeiro "recrudescimento do trabalho ser­ vil", 2030 mas também com a desagregação e a destruição da cultura indígena. Portanto, a celebração nietzscheana da escravidão se entrelaça, parado­ xalmente, com a desmistificação das reais práticas coloniais de escravidão e etnocídio: '"A abolição da escravatura', esta presumida contribuição para a 'dignidade do homem', é, na realidade, o aniquilamento de uma estirpe profun­ damente diversa, mediante o abandono de seus valores e da sua felicidade" (XII, 437). Teórico, junto com muitos contemporâneos seus, do "aniquilamento das raças decadentes", Nietzsche chega paradoxalmente a uma conclusão não dife2029 2030

Fogel, 199 1, pp. 235-7 e 252. Hobhouse, 1909, p. 37.

rente daquela de um grande crítico do colonialismo e do imperialismo, segundo o qual "o extermínio das raças inferiores" é realizado pelo Ocidente "com a imposição forçada dos hábitos de uma civilização que para eles era de qualquer modo destrutiva", entre outras coisas . 203 1 A teorização da escravidão é em Nietzsche ao mesmo tempo a reivindicação do significado e do valor do otium reservado à élite, com o consequente escárnio da presumida "dignidade do tra­ balho"; mas é exatamente agitando essa palavra de ordem que nesses anos o imperialismo leva adiante a sua marcha expansionista e a imposição do traba­ lho forçado às populações subjugadas. 2032 Nietzsche descreve de modo pungente as modalidades do etnocídio que estão se consumando: "O que os povos selvagens tomam primeiramente dos europeus? Aguardente e cristianismo, os narcóticos europeus . E o que os leva mais rapidamente à ruína? Os narcóticos europeus" (FW, 147). É uma tese acentuada também depois: "O cristianismo, o álcool - os dois grandes meios de corrupção" (AC, 60). Uma comparação pode servir para tornar mais evidente a carga dessagradora que promana das páginas de Nietzsche. Em 1 790, Benja­ min Franklin se exprime assim a propósito dos peles-vermelhas: Se está entre os desígnios da Providência extiipar estes selvagens a fim liberar espaço aos cultivadores da terra, me parece provável que o rum é o instrumento apropriado. Ele já aniquilou todas as tribos que antes habita­ vam a costa.2033

É uma visão bem difundida no Século XIX: o presumido desígnio provi­ dencial revela em Nietzsche um rosto bem diferente. Podemos aqui fazer uma comparação com Marx. Vejamos as célebres páginas sobre a difusão do ópio na China por parte da Inglaterra cristã; é mais importante sublinhar o fato de que também ele é da opinião segundo a qual o cristianismo, exatamente em virtude do seu "culto do homem abstrato", destroi os laços comunitários e culturais, favorecendo a penetração e desagregação capitalista e colonial. 2034 Mas voltemos a Nietzsche. Nos últimos anos da sua vida consciente, ele se exprime sobre o cristianismo com severidade bem maior do que sobre as religi­ ões (hinduismo, budismo, islamismo) próprias dos países vítimas da expansão colonial europeia; desse modo mina, objetivamente, a ideologia que preside a cruzada abolicionista e a prática da escravização. Na Europa desses anos o islã 2031 2032 2º33 2034

Hobson, 1974, p. 2 14. Hobson, 1 974, p. 137. ln Slotkin, 1994, p. 79. Marx-Engels, 1955, vol. XXIII, p. 93 e vol. XXVI, 3, pp. 44 1 -442.

é acusado como sinônimo de despotismo e escravismo. Segundo Nietzsche, po­ rém, o cristianismo tem o grave defeito de ter defraudado o Ocidente, além da "herança da civilização antiga'', também "aquela da cultura islâmica". Foi uma perda bastante grave. Sobretudo a cultura "dos mouros da Espanha" é "uma cultura perante a qual nosso Século XIX parece muito pobre, muito 'atrasa­ do"'. Mas então, que julgamento devemos fazer dos cruzados? "Indubitavelmente, queriam saquear; o Oriente era rico ... Sejamos imparciais! As Cruzadas - pira­ taria em grande escala, nada mais !" (AC, 60). E, novamente, podemos fazer uma comparação com Marx. Este compara as Cruzadas com as descobertas-conquistas realizadas pela Europa: tanto a primeira como as segundas partiram da "cobiça do ouro" e da busca com afã do "Graal de ouro".2035 Às "Cruzadas", das quais fala com desprezo, o Manifesto do partido comunista opõe as empresas bem maiores da burguesia, que soube realizar um grandioso desenvolvimento das forças produtivas também porque "afogou na água gelada do cálculo egoísta os santos frêmitos da exaltação reli­ giosa" e do "entusiasmo cavalheiresco".2036 Deparamo-nos aqui com uma me­ táfora que encontramos em Nietzsche: "Refuta-se uma causa colocando-a aten­ ciosamente sobre o gelo - da mesma forma refuta-se um teólogo" (AC, 53).

2.

Uma crítica ante litteram à "guerra humanitária " e ao "imperi­ alismo dos direitos humanos"

Junto com o otium, que tem seu fundamento na escravidão e no mais­ trabalho da massa, Nietzsche celebra também o bel/um. Mas, nesse período de tempo, é exatamente em nome da causa da paz que são travadas não poucas guerras coloniais: vimos o próprio Cecil Rhodes transfigurar as guerras de con­ quista por ele promovidas ou desejadas como etapas progressivas para a reali­ zação da paz perpétua. Nietzsche condena o cristianismo como religião imbele e feminina; mas, a sua denúncia é contemporânea à difusão ou o triunfo do "cristianismo imperial", que vê o sacerdote empenhado em abençoar a conquis­ ta do guerreiro e a penetração do mercador. 2037 Em termos análogos o filósofo imoralista acusa a moral, que cometeu o erro de pôr obstáculo ao pleno e franco desenvolvimento da vontade de potência; mas essa requisitória ocorre nos anos em que um dos cantores (Dilke) do imperialismo britânico e da superior raça 2035 Marx-Engels, 1 955, vol. XIII, p. 133. 2036 Marx-Engels, 1955, vol. IV, pp. 464-5. 2037 Hobson, 1 974, p. 1 99.

anglossaxã reivindica para eles o direito de exercer a "ditadura moral sobre o globo terrestre". 2038 Os ocidentais - observa um fragmento do início da década de 1 880 reivindicam o domínio do planeta em virtude do seu "caráter moral". Por algum tempo, na sua fase liberal-nacional e liberal, Nietzsche partilhou dessa preten­ são ao primado moral (supra_, cap. 9 § 5). Mas a dúvida começa a aflorar já naquele momento: "Talvez pertença à essência da moralidade judia o fato de que ela se considera a primeira e a mais alta; talvez se trate de presunção" (IX, 23). A sucessiva evolução radicaliza progressivamente a dúvida, até ao ponto que, na comparação entre a Europa e as culturas extra-europeias, o resultado pareça até se inverter. Os ocidentais tiraram do Antigo Testamento a orgulhosa autoconsciência que os leva a crer que são o povo eleito, e tudo isto como encarnação de valores morais absolutos. Desse ponto de vista, mais do que remeter a um único filósofo, o pathos moral de Kant é a ideologia da missão que preside à marcha conquistadora do Ocidente:

-

Como? Tu admiras o imperativo categórico em ti? Essa "estabilidade" do que é chamado de teu juízo moral? Essa "incondicionalidade" do senti­ mento de que "nisso todos têm de julgar como eu"? Admira antes o teu egoísmo (Selbstsucht) nisso! E a cegueira, estreiteza e modéstia do seu egocentrismo. Pois é egocentrismo sentir o próprio juízo como lei univer­ sal (FW, 335)

Kant cometeu o erro de "conferir um valor científico, sob o conceito de 'razão prática', a essa forma de corrupção, essa falta de rigor (Gewissen) inte­ lectual", essa pretensão de ser expressão imediata da universalidade: Se considerarmos que em quase todos os povos o filósofo é apenas o pros­ seguimento do tipo sacerdotal, já não surpreende esse legado do sacerdote, a cunhagem de moedas falsas para si mesmos. Quando se tem tarefas sa­ gradas, como melhorar, salvar, redimir os homens, quando se carrega no peito a divindade, se é portavoz de imperativos do além, já se está fora, com tal missão, de toda avaliação apenas racional - já se está em si mes­ mos santificados por tal tarefa, já se forma em si mesmos o tipo de uma ordem superior! . . . Que importa a ciência para um sacerdote? (AC, 12).

Nesse sentido, o kantismo se revela como uma máquina de guerra: é um elemento constitutivo da autoconsciência exaltada do Ocidente, da sua incapa­ cidade de olhar-se de fora. Compreendem-se as resistências de outros povos e 1�8 Eldridge, 1973, p. 48; Bodelsen, 1968, p. 69.

de outras culturas: "Os chineses não estão absolutamente dispostos a admitir que os europeus se destacariam em relação a eles por causa da moralidade" (IX, 23). A tais objeções se responde remetendo a supostas evidências incontestáveis e não necessitadas de demonstração (JGB, 34). Assim se busca refúgio no dogmatismo e no etnocentrismo. Naturalmente, não se deve esquecer que a condenação dos processos de escravização implícitos num expansionismo colonial que agita palavras de or­ dem abolicionistas é sempre pronunciada a partir da p ersuasão da insuperabilidade da relação do escravo e também da utilidade de colocá-lo, na medida do possível, fora da Europa; assim como o "egocentrismo" kantiano é condenado, como vimos, por ser ainda "limitado e medíocre", automutilado da busca da universalidade. É verdade, em Nietzsche podemos ler que "o caráter dos europeus, a julgar pela sua relação com o exterior, no processo de coloniza­ ção, é extremamente cruel" (XI, 6 1 ). Mas, além dos temas certamente geniais, mas sempre ocasionais, o julgamento impiedoso do filósofo tem em mente não já a brutalidade do expansionismo colonial, mas as frases filantrópicas que, apesar de tudo, ressoam na metrópole. Mais uma vez, as flores da ideologia civilizadora e abolicionista do colonialismo são rasgadas para reafirmar a inevitabilidade das cadeias; e a denúncia da mistificação do universalismo é funcional para a liquidação da própria forma da universalidade. Continua ine­ gável a carga dessagradora da análise de Nietzsche. Demolidor implacável da universalidade em todas as suas expressões, ele soube denunciar o universalismo imperial em todas as suas formas: "Cristianis­ mo, revolução, abolição da escravatura, igualdade de direitos, filantropia, amor pela jaz, justiça, verdade, todas essas grandes palavras têm valor só na luta, como bandeiras ; não como realidade, mas como palavras de ordem deslum­ brantes em função de algo totalmente diverso (e até oposto !)" (XIII, 62). Este fragmento parece criticar com grande antecipação as ideologias da guerra que se encontraram no Século XX e são vitais ainda em nossos dias. O fragmento, que remonta aos últimos meses de vida consciente do filóso­ fo, é contemporâneo da decisão de Bismarck de agitar também ele a palavra de ordem da abolição da escravatura no mundo colonial e da expansão da civiliza­ ção e dos princípios humanitários. E ele se dirige a seus colaboradores nestes termos: ''Não seria possível achar detalhes horripilantes sobre episódios de cru­ eldade?"2039 Na onda da indignação moral suscitada por eles teria sido mais fácil proclamar a cruzada contra o islã escravista e reforçar o papel internacio­ nal da Alemanha. Poder-se-ia comentar com Além do bem e do mal: "Ninguém ·

2039

Morlang, 2002.

mente tanto quanto o indignado" (JGB, 26). Não há dúvida de que uma critica à "guerra humanitária" e ao "imperialismo dos direitos humanos" não pode pres­ cindir da lição de Nietzsche.

3. A crise do mito genealógico ''judeu-cristão-grego-ocidental " Junto com a ideia de missão do Ocidente, ele desconstruiu o mito genealógico sobre o qual repousa esta ideia. A partir do ambicioso projeto reacionário já visto para identificar e arrancar de uma vez para sempre as raízes ruinosas da modernidade que há dois milênios devasta o Ocidente, Nietzsche define desde­ nhosamente o cristianismo como um simples "fragmento de antiguidade orien­ tal" (supra, cap. 15 § 6), mostrando assim partilhar do pathos exaltado da Europa e do Ocidente que constitui um elemento central da ideologia dominante no seu tempo (e não só no seu). Mas, a denúncia de tudo o que haveria de orientalizante na história do Ocidente, e até na sua história sagrada, evidencia a labilidade das fronteiras entre Ocidente e Oriente ou entre civilização e barbárie. Mas por que o cristianismo, ou antes, a tradição judeu-cristã no seu con­ junto há de ser considerada estranha ao Ocidente autêntico? Intrínseca e intole­ ravelmente "oriental" é um deus "ávido de honras na sua sede celeste'', que vê um crimen /esae maiestatis no pecado de toda mínima infração à norma por ele soberanamente publicada. Não obstante o seu poder desmedido, ele é também "ávido de vingança" e exige de cada homem uma humilhação terrível e igual, com a completa renúncia de todo senso de dignidade: "Ser contrito, aviltado, rolar no pó - esta é a primeira e derradeira condição para unir-se à sua graça" (FW, 1 35 e 141). Aos olhos de Nietzsche, quem tem algo de oriental é o monoteísmo enquanto tal, com o seu culto de um deus único, onipotente e per­ feito, cuja infinita distância em relação aos homens toma impercebíveis ou anu­ la as diferenças existentes entre estes últimos: "O deus único como preparação moral do rebanho" (XI, 542). Não pode haver aristocracia na terra se esta for cancelada e negada no céu: "Deve haver muitos super-homens [ . . . ] . Um só deus seria sempre um diabo ! " (XI, 541 ). A ideia de igualdade que é afirmada no Ocidente e da qual este se orgulha, chegando a apresentá-la como motivo da sua primazia e da sua missão univer­ sal, aprofunda suas raízes numa religião oriental, em cujo centro está a afirma­ ção da escravidão dos homens em relação a um senhor absoluto. A difusão no mundo helenista e romano do judaísmo e do cristianismo, o triunfo conseguido por este último sobre o politeísmo e sobre um mundo que considerava óbvia e natural a desigualdade dos homens e a escravidão dos bárbaros, tudo isto signi-

ficou, aos olhos de Nietzsche, o triunfo do Oriente sobre o Ocidente. Ao mundo oriental remete também a concepção unilinear do tempo e a espera mais ou menos messiânica de um Novum: no mundo antigo ela penetra entre os escra­ vos, servos e fracassados da vida de todo tipo e depois age ruinosamente no curso da tradição revolucionária. Nietzsche contrapõe à ascendênciajudeu-cristã a ascendência greco-romana do Ocidente. Essas duas genealogias ou esses dois mitos genealógicos eram e ainda hoje são tranquilamente unificados. É uma operação com uma longa histó­ ria. Empenhada na luta contra o Império otomano, a Europa dos séculos 1 7 e 1 8 a interpreta e celebra como luta contra o despotismo bárbaro e oriental, relendo nesta mesma perspectiva o choque entre a Grécia antiga e a Pérsia (e o embate entre Roma e os bárbaros). Desaparecida a escravidão que floresceu na Grécia e em Roma, mas também o tráfico dos negros de que naquele momento são prota­ gonistas países como a Espanha e a Inglaterra, a Europa e o Ocidente se autocelebram como a ilha exclusiva da liberdade que, assumindo a herança ao mesmo tempo do mundo greco-romano e da republica christiana, compromete-se na luta contra o Oriente irremediavelmente despótico que vai da Pérsia em guerra com os gregos ao islã em guerra com os europeus e os cristãos. O artificio dessa construção não pode enganar um filólogo perspicaz e um filósofo sem preconceitos como Nietzsche, o qual, desde o início, faz um balan­ ço histórico totalmente diferente: A Grécia enfraquecida, romanizada, vulgarizada, tomada decorativa e pos­ teriormente, como cultura decorativa, percebida como aliada do cristianis­ mo enfraquecido e difundida com a violência entre os povos não civiliza­ dos - essa é a história da civilização ocidental. Assim a acrobacia é levada a termo e o elemento grego e o elemento sacerdotal estão assim interliga­ dos (VIII, 103).

Junto com o mito genealógico cristão-germânico ou cristão-ariano­ germânico, Nietzsche acabou colocando em crise também o mito genealógico "judeu-cristão-grego-ocidental", que é aquele hoje chamado a legitimar a mis­ são planetária imperial do Ocidente. Um não é menos ridículo do que o outro. Se o primeiro procura ocultar as origens judaicas de Jesus, que se toma contra sua vontade ariano e até germânico, o segundo afasta as origens orientais de judaísmo e cristianismo, que se tomam sem querer tão ocidentais que são cha­ mados a legitimar as recorrentes cruzadas contra o Oriente. Em polêmica con­ tra o primeiro mito, Nietzsche observa que o termo "alemão" significa original­ mente "pagão" (supra, cap. 7 § 4): um áspero conflito dividiu profundamente os dois termos que o mito genealógico cristão-germânico pretendia unir num

binômio indissolúvel. Nietzsche evidencia também a antítese que por tanto tem­ po opôs a antiguidade clássica a judaísmo e cristianismo e a evidencia ao ponto de ler toda a história do Ocidente como a história do conflito entre Roma e Judeia. A propósito, se poderia sintetizar o pensamento do filósofo parafrasean­ do um célebre aforismo: Judaea capta Romam cepit; a derrota sofrida por Roma no plano cultural é a derrota do Ocidente pagão, politeísta e aristocrático. Por outro lado, mesmo. entre oscilações e contradições, Nietzsche chama a atenção para os conflitos acontecidos entre judaísmo e cristianismo, conflitos tão ásperos que, por algum tempo, os judeus tiveram relações mais amigáveis com o islã do que com o cristianismo; isto é demonstrado, entre outras coisas, pela esplêndida civilização mourisca, da qual o filósofo faz o mais alto elogio. Olhando bem, o mito genealógico ')udeu-cristão-grego-ocidental" é a retoma­ da, nas condições novas, do mito cristão-ariano-germânico: o tema "ariano" e "germânico", que por tanto tempo foi funcional para a celebração do Ocidente no seu conjunto, mas que depois ficou definitivamente comprometido pelo hor­ ror do III Reich, cedeu agora o lugar ao tema "ocidental"; mas permaneceram fundamentalmente imutáveis o material mitológico e a função ideológica. Pois bem, é preciso reconhecer que, qualquer que seja a opção política da qual ele parte, ninguém mais do que Nietzsche contribuiu para desconstruir e ridiculari­ zar o mito genealógico e, portanto, a ideologia da guerra do Ocidente.

4. Denúncia da revolução e fuga do Ocidente Junto com o rigor filológico, na desconstrução do mito genealógico do Ocidente, como expressão de uma fantástica alma grego-romano-judeu-cristã, age também a fuga ideal do Ocidente como lugar privilegiado da massificação e da devastação da modernidade. O alastrar-se na França de incessantes desor­ dens, que pareciam acabar com toda forma de civilização, põe o pensamento antirrevolucionário diante de um dilema. Pode-se ter clara a visão do Ocidente como lugar sagrado da civilização, excluindo e excomungando dele os protago­ nistas da revolução, ou se pode pôr em discussão o Ocidente enquanto tal, bus­ cando refúgio longe dele, num lugar não contaminado pela revolução. O colap­ so ruinoso do Antigo Regime estimula os dois tipos de reação. Os jacobinos em particular são cada vez mais comparados aos "turcos'', aos "bárbaros", aos "selvagens", aos "antropófagos". Mas não faltam aqueles que denunciam a putrefação do Ocidente: é o caso, por exemplo, de Maistre. 2040 2040 Cf.

Berlin, 1 986, pp. 13 1 -2.

Esse segundo tipo de resposta se difunde em particular num país como a Alemanha, que serve de divisor de águas entre Ocidente e Oriente. As desordens na França e na Europa são alimentadas pela esperança da realização, num futuro próximo ou remoto, de melhorias mirabolantes e fantásticas ordens ideais; e eis que, com respeito a isso tudo, Friedrich Schlegel toma distância no tempo e no espaço, evocando a antiquíssima "sabedoria dos índios". Ele ridiculariza a "opi­ nião quase universalmente aceita segundo a qual o homem teria partido de uma condição de rudeza totalmente animal", ou seja, refuta a ideia de progresso, que

desempenha uma papel essencial na preparação ideológica da revolução . 2041

Semelhante é a posição de Schelling, também ele crítico do "princípio consi­ derado sagrado do constante progresso do gênero humano'',2042 de uma visão da história à qual "falta o que há de melhor, ou seja, o início".2043 Para remediar a isso, é necessário ir em busca do "sistema original de sabedoria"

Weisheitssystems);2044

(urweltlichen

e de novo somos levados para longe, do Ocidente para o

Oriente e do presente para o passado. A arte egípcia, hindu e grega são a demons­ tração do absurdo da tese de um começo do processo histórico a partir de "inícios insignificantes".2045 Por isso se deve rejeitar "a opinião dominante" segundo a qual os homens "abandonados a si mesmos e às cegas, sine numine e entregues ao poder do acaso mais incerto, teriam buscado o caminho próprio de algum modo às apalpadelas",2046 indo da barbárie inicial para um objetivo ao mesmo tempo fan­ tástico e mesquinho, a "realização de uma ordem jurídica perfeita, um desenvolvi­ mento completo do conceito de liberdade

et similia".2041

Mas é Schopenhauer quem envereda com mais decisão por esse caminho. No seu modo de ver, o Ocidente cometeu o grave erro de ser o lugar em que se espalhou a superstição da história e da "filosofia da história", como demonstra em particular a grande fortuna de Hegel, o qual pretende conceber "a história universal como um todo determinado segundo um plano", finalisticamente des­ tinado a conduzir à realização de um maravilhoso destino mundano para a hu­ manidade. 2048 Como sabemos, além desse ou daquele filósofo, é a tradição reli­ giosa no seu conjunto, até certo ponto afirmada no Ocidente com o otimismo

2º41 2042 2043 2044 2º45 2046 2º47 2048

Schlegel, 1 975, p. 1 93. Schelling, 1856-1 86 1 , vol. XI, p. 239. Schelling, 1856-186 1 , vol. XI, p. 239. Schelling, 1856-1 86 1 , vol. XI, p. 236. Schelling, 1 856-1 86 1 , vol. XI, p. 238. Schelling, 1856-186 1 , vol. XI, p. 239 (também em Lukács, 1 974, p. 1 78). Schelling, 1856-1861, vol. XI, p. 230. Schopenhauer, 1976-82 b, pp. 567-9; Schopenhauer, 1 976-82 a, pp. 523-4.

judeu e o cristianismo judaizado e pelagianizado, que é corresponsável pela catástrofe revolucionária: se a tensão messiânica prefigura a sucessiva mitolo­ gia progressista, o criacionismo prefigura, em perspectiva teológica, as ruino­ sas experiências de engenharia social realizadas pela revolução. A fuga desse Ocidente é ao mesmo tempo a descoberta do Ocidente autêntico, do lugar de onde partiu o extraordinário acontecimento dos arianos, esse povo não afetado pelas doenças do progressismo � do criacionismo próprias da tradição judeu­ cristã. Em conclusão, a Europa é chamada a purificar-se de toda mitologia judaica: isto se torna tão mais necessário, e tão mais fácil, porque se trata de uma mitologia que marcou profundamente a sua história, mas que é sempre a mitologia de "um povo estrangeiro, oriental". Sabemos também que nessa linha se coloca o autor de O nascimento da tragédia. Também ele depura do Ocidente autêntico, que se reconhece na ver­ são "ariana" do pecado original, não só os revolucionários (essa "categoria bárbara de escravos"), mas também os seguidores de uma visão do mundo fátua segundo o princípio do otimismo e da '"elegância francês-judia". O pathos da Europa e do Ocidente continua a se fazer notar ao longo das páginas de Nietzsche. Contudo, o progressivo aprofundar-se da crítica da modernidade estimula uma acusação sempre mais áspera contra a Europa. É aqui que se percebe como perigoso toda "espiritualidade elevada, autônoma", "tudo o que eleva o indiví­ duo acima do rebanho" (JGB, 20 1 ); é aqui que há "dezoito séculos" domina "apenas a vontade de transformar o homem num sublime aborto". É, em primei­ ro lugar, o "cristianismo europeu" o protagonista desse processo de "degenera­ ção voluntária" e de "definhamento do homem" (JGB, 62); foi a tradição judeu­ cristã que destruiu "a saúde e o vigor de raça" em primeiro lugar da Europa, em cujo âmbito entram também os Estados Unidos; o ideal ascético "pode ser defi­ nido como a verdadeira fatalidade na história da saúde do homem europeu" (GM, III, 2 1 ). Portanto, quem primeiro deve sentar no banco dos réus é "a moral cristão-europeia" (JGB, 203) . Processos ulteriores de degeneração entram em campo para desfigurar e tornar irreconhecível o Ocidente: "Fugir por todos os meios do tédio é vulgar; trabalhar sem prazer é vulgar. Talvez o que distingue os asiáticos dos europeus seja o fato de que eles são capazes de uma calma mais prolongada e mais pro­ funda" (FW, 42). No Ocidente, porém, a marcha funesta do ascolíquen parece insuperável : À medida que se vai para o Oeste (nach dem Westen), a agitação moderna se toma sempre maior, de modo que, para os americanos, os habitantes da Euro­ pa se apresentam no conjunto como seres amantes do sossego e que dele usu­ fruem, enquanto estes esvoaçam em confusão como abelhas e vespas. Essa

968

agitação toma-se tão grande que a cultura superior não

pode amadurecer os

seus frutos; é como se as estações se seguissem rapidamente demais. Por falta de sossego a nossa civilização corre para

uma nova barbárie (MA, 285).

É o Ocidente que faz o perigo da barbárie ameaçar o mundo inteiro. A fim de evitar tal ameaça resta apenas misturar "o sangue asiático e russo-camponês com o sangue europeu e americano" (XIY, 1 4 1 ). Estamos diante de um proble­ ma decisivo, e ele não pode ser enfrentado adequadamente se não se opuserem obstáculos aos "preconceitos higiênicos e de raça" ou de qualquer outro tipo. Será o enxerto do "elemento contemplativo próprio do camponês russo e do asiático" na "agitação europeu-americana" que corrigirá "em grande medida o caráter da humanidade" e até levará "a solução o enigma do mundo" (VIII,

306). Nu/la salus nisi a Oriente!

Ou, pelo menos :

nu/la salus sine Oriente !

Esse resultado é devastador para a ideologia dominante. Mas isso não nos autoriza absolutamente a ler Nietzsche em perspectiva "progressista".

É a fuga

da modernidade e da Europa revolvida pela ideologia do progresso e pelas revo­ luções que conduz a uma valoração positiva de um Oriente tão remoto no espa­ ço e no tempo que se desvanece no mito. Além de Schopenhauer, também Gobineau desenvolve uma dialética análoga. Por um lado, a hierarquia racial por ele construída e utilizada como critério de interpretação da história univer­ sal vê no ápice os brancos e os europeus; por outro lado, ele não pode não registrar o fato de que a expansão planetária dos brancos europeus é ao mesmo tempo a difusão planetária de uma ideologia que, pelo menos em teoria, referência ao valor da igualdade e está aos antípodas do

desigualdade das raças humanas. Analogamente,

faz seu Ensaio sobre a

depois de ter convocado a

Europa a tomar-se senhora da terra, Nietzsche é levado a uma constatação amarga: "naqueles países em que domina a influência europeia", nas colônias, cria raízes a "moral do rebanho" que já triunfou na Europa (JGB, 202).

5. Condenação da revolução cristã orientalizante e crise final do eurocentrismo Enxertado no tronco do judaísmo pós-exílico, o cristianismo sai decidida­ mente mal da comparação com todas as outras religiões. Ouçamos a acusação pronunciada por Nietzsche. Convém em primeiro lugar examinar a base social

à qual se dirigem Jesus e Paulo.

Eles se depararam com "a vida da gente peque­

na numa província romana", e a "uma vida modesta tomada mesquinha pela virtude" atribuíram "o mais alto sentido e valor"; desse modo infundiram na-

queles miseráveis "a coragem para desprezar qualquer outro gênero de vida"

(FW, 353), para olhar com desdém as classes superiores. "No cristianismo vêm em primeiro plano os instintos dos dominados e dos oprimidos: são as classes baixas que procuram nele a sua salvação" (AC, 2 1 ). A consciência de si assim conseguida implica uma irredutível hostilidade em relação às élites dominantes. Na nova religião, "a força que arrasta é o ressentiment, a sublevação popular, a revolta dos mal sucedidos" (XIII, 94); "cristã é a inimizade mortal contra os senhores da terra, contra os 'nobres "' (AC, 2 1 ); "a Igreja moveu sua guerra de morte contra tudo o que é nobre na terra" (AC, 60). Estamos na presença da religião mais desgraçadamente democrática e subversiva que jamais apareceu na história: ela elimina a distinção entre "o exotérico e o esotérico", bem presen­ te em todas as culturas superiores, e também "entre os indianos e os gregos, persas e muçulmanos, em suma, em toda parte onde se acreditava numa hierar­ quia e não na igualdade e nos direitos iguais" (JGB, 30). As religiões orientais são nitidamente preferíveis, do ponto de vista de Nietzsche. No entanto, a sua base social não é plebeia. Com o código de Manu, "as classes aristocráticas, os filósofos e os guerreiros mantêm a massa nas suas mãos", e nisso consiste "a sua radical diferença de toda espécie de Bíblia" (AC, 56) e, em particular, do Novo Testamento, este texto "miserável", que emana um insuportável "mau cheiro" plebeu (GD, Os que "melhoram " a humanidade, 3). No que diz respeito à religião de Buda, há de se notar que ele "encontrou aquela espécie de pessoas, no caso dispersas em todas as classes e estratos sociais do seu povo, que por inércia são boas e brandas (e sobretudo inofensi­ vas)" (FW, 353). Para sermos mais precisos, as "classes cultas" (XIII, 12), "as classes superiores e até instruídas são as que têm no movimento [budista] o seu fogão" (AC, 2 1 ). Não para aqui a oposição com respeito ao cristianismo. Em virtude da sua base social distinta e melhor, bem longe de exprimir e incitar o ressentimento, o budismo condena e combate o ressentiment no interesse tanto da sociedade como do indivíduo que se alimenta dele. Enquanto "estimula a ação" (XIII, 94), ou seja, a subversão e as revoltas ruinosas que caracterizam a história do Ocidente, o ressentiment é funesto também "para o doente", para aquele que é afetado por ele: Tudo isto já fora compreendido por aquele fisiólogo profundo que foi Buda. A sua "religião", que poderia ser mais bem classificada como uma higiene, a fim de não misturá-la com coisas tão miseráveis como o cristianismo, media a sua eficácia em relação à vitória sobre o ressentiment: livrar dele a alma primeiro passo para a cura. "Não se põe fim à inimizade com a inimizade, mas com a amizade": este é o início do ensinamento de Buda e não é a moral quem fala assim, mas a fisiologia (EH, Porque sou tão sábio, 6). -

970

Enquanto "higiene" e terapia contra a "depressão", que num certo momen­ to se produz, o budismo "não diz mais 'luta contra o pecado', e sim [ . . ] 'luta contra a dor "'; em vez do louco altruísmo do cristianismo, "o egoísmo se torna dever". Daí a sua recusa a fazer violência à natureza e essa sua capacidade de dar "completamente razão à realidade", ele "é a única religião verdadeiramente positivista que a história nos mostra [ ], deixou para trás o autoengano dos conceitos morais'', está de algum modo "além do bem e do mal", em nítida oposição à tradição judeu-cristã (AC, 20). Que fique claro, exatamente porque são estimuladas pelo horror à modernidade e pelo processo de democratização, a fuga da Europa e a consequente crise do eurocentrismo não têm em si um significado progressivo. O desgosto pela égalité estimula a transfiguração do mundo hindu que, fugindo de toda forma de igualitarismo, afirma e consagra a divisão da sociedade em quatro castas, ou antes em "quatro raças" distintas (GD, Os que "melhoram " a humanidade, 3). O que faz emergir a saudade pela Ásia é também a suposta emancipação da mulher, que está devastando o Ocidente. Um homem digno deste nome .

. . .

não pode pensar sobre a mulher senão de modo oriental - tem de conceber a mulher como posse, como propriedade a manter sob sete chaves, como algo que está destinado a seivir e que só então se realiza; ele deve, nesse ponto, apoiar-se na imensa razão asiática, na asiática superioridade do instinto, tal como uma vez fizeram os gregos, esses melhores herdeiros e discípulos da Ásia, os quais, como é sabido, desde Homero até à idade de Péricles, à medi­ da que cresciam, em cultura e força, pouco a pouco se tornaram também mais rigorosos com a mulher, em suma, mais orientais (JGB, 238).

Paradoxalmente, é uma atitude que leva a pensar naquela assumida em seu tempo por uma personalidade odiada pelo Nietzsche maduro com todas as suas forças . Refiro-me a Lutero. Por um lado, no protagonista da Reforma, a condena­ ção ao islã e aos turcos é ao mesmo tempo a celebração da Europa cristã; por outro lado, o horror pela crescente arrogância e licenciosidade que ele vê nas mulheres europeias o leva a olhar com favor para o mundo turco-islâmico, onde tal escândalo está totalmente ausente.2049 Não obstante as enormes diferenças entre os dois autores aqui comparados, o elemento comum está no efeito de crise do eurocentrismo que se verifica a partir da condenação da modernidade, ou seja, de processos e de revoltas sociais cujo epicentro está exatamente na Europa. Enfim e em síntese, em Nietzsche a fuga da Europa é a tomada de distân­ cia do mundo das "bestas domesticadas", que sentem a necessidade do "disfarce 2049 Luther, 1883, vol. XXX, pp. 1 87-8 e 190.

moral" (FW, 352). Eis então a fuga desse continente doente, onde domina "o medo diante da morte", esta típica "doença europeia" (X, 662), e a busca do "homem tropical" ou do "homem predador" não ainda minado pela doença moral. É uma busca de uma sociedade e de uma civilização em cujo âmbito, para dizer com Kipling, "não há os Dez Mandamentos" (supra, cap. 14 § 3 e 23 § 3). O fascínio por esse mundo diferente é percebido também pelos protagonistas e cantores da expansão colonial,-mas é só Nietzsche que formula de modo explí­ cito a tese segundo a qual "os asiáticos são cem vezes mais grandiosos do que os europeus" (XI, 573), do que os "hiperconscientes europeus" (FW, 354). É um julgamento assaz inquietante nas suas motivações. É verdade que agora se consuma a crise da autocelebração do Ocidente como lugar do triunfo da civilização mais alta e daquela que Hegel define como a "religião absoluta''. Tanto mais porque Nietzsche critica a subversão igualitária, mas também os aspectos atrasados do cristianismo, da revolução cristã, bem como de cada ou­ tra revolução. Além da sexofobia, que é uma forma de violência desviada para o interior e que se exprime como "crueldade contra si mesmo" (AC, 2 1 ), con­ vém ter presente no seu conjunto a carga missionária, fanática e violenta, que caracteriza o cristianismo. Nas classes subalternas, a nova religião, tendo se afirmado sobre o fim do mundo antigo, instila "a secreta e subterrânea confian­ ça em si, que não para de crescer e enfim está pronta para 'conquistar o mundo' (ou seja, Roma e as classes superiores de todo o Império)" (FW, 353). Eis então "o ódio contra os que pensam de maneira diferente, a vontade de perseguir" (AC, 2 1). Apesar do "convite de amar o próximo'', a "história do cristianismo está apinhada de violência e pingando sangue" e nisto se opõe nitidamente e negativamente à "moral budista dos povos que comem arroz" (VIII, 460- 1). Nesse contexto, a alimentação à base de arroz é sinônimo não mais de "amole­ cimento" e decadência (cf. supra, cap. 19, § 1), mas de estranheza com respeito a uma história insensata de violência: o resultado do confronto entre Europa e Ásia inverteu-se em favor desta última. Buda "não exige luta alguma contra aqueles que pensam de modo diferente; aquilo de que mais a sua doutrina se defende é do sentimento da vingança, da aversão, do ressentiment, ('a inimizade não acaba com a inimizade' : este é o tocante refrão de todo o budismo)" (AC, 20). E ainda: "Um clima muito ameno, uma grande mansidão e liberalidade nos costumes, nenhum militarismo são os pressupostos do budismo" (AC, 2 1). E, de novo, a preocupação pela incessante revolta servil e pela ameaça que o chauvinismo intraeuropeu faz pesar sobre a raça dos senhores enquanto tal vira a favor da Ásia o resultado da comparação com a Europa. Por outro lado, sabemos que os dois milênios de cristianismo e de violên­ cia judeu-cristã nada mais são do que um "fragmento de antiguidade oriental".

Se, por um lado, isto confirma o pathos, em Nietzsche, do Ocidente autêntico, por outro lado, a inserção de tal "fragmento" em acontecimentos de tempos muito longos ou imensos (com radical apequenamento do presente e do passa­ do, breve instante de um acontecimento que, nos seus tempos muito longos ou imensos, ainda está todo por escrever) acaba ridicularizando toda forma de eurocentrismo. Tanto mais se levarmos em conta que à dilatação do tempo his­ tórico corresponde uma dilatação não menos imensa do espaço em que os acon­ tecimentos históricos estão colocados . A chamada "história universal" é apenas a história de um "animal inteligente", colocado "num canto remoto do universo cintilante e difundido através de infinitos sistemas solares". Certamente, é uma observação feita a partir da polêmica contra os "direitos do homem" e o antropocentrismo que está no fundamento da sua reivindicação; assim como a critica da "religião da potência historiográfica" é formulada a partir da exigên­ cia de colocar de novo em discussão os resultados da Revolução Francesa e a modernidade enquanto tal (supra, cap. 2 § 4 e 6 § 3). No entanto, a excedência teórica de Nietzsche é confirmada pelo fato de que agora é possível fazer valer a sua metodologia contra o projeto político caro a ele e, sobretudo, contra a ideologia hoj e dominante. Ela procede à ofuscante transfiguração do Ocidente liberal como uma espécie de plenitude temporum, diante da qual todos teriam de se curvar, como a meta finalmente alcançada de uma nova aventura e como o intérprete exclusivo da Civilização e o anjo exterminador chamado a rechaçar com todos os meios qualquer ameaça, real ou presumida, contra ela.

33 INDIVIDUALISMO E HOLISMO, INCLUSÃO E EXCLUSÃO: A TRADIÇÃO LIBERAL, NIETZSCHE E A HISTÓRIA DO ÜCIDENTE

1. Individualismo e anti-individualismo da tradição liberal a Nietzsche

Avirada no advento da "pós -modernidade filosófica";2050 sem a carga julgar pela leitura hoje dominante, Nietzsche representaria o ponto de

dessagradora da sua filosofia, aquele fim das "grandes narrativas" que define a "condição pós-moderna"2º51 não seria pensável. Teria sido ele o primeiro a ata­ car, de modo radical, os mitos da Razão, da História, do Progresso, que carac­ terizariam o desenvolvimento do moderno e que atravessariam em profundidade a elaboração teórica não só de Hegel, mas do próprio Marx, também onde este último acredita em proceder a uma crítica radical da ideologia. Desse ponto de vista, a liquidação nietzscheana de tais mitos se configuraria como uma espécie de metacrítica da crítica marxiana da ideologia, inspirada por projetos coletivos e metaindividuais de libertação e emancipação, ainda toda atravessada por uma "moderna" filosofia da história pronta a sacrificar o indivíduo no altar de um universal teologizante e holístico. Nietzsche, portanto, é como que grande teórico do indivíduo libertado dos grilhões tanto do tradicionalismo pré-moderno como das "grandes narrativas" modernas . Não são certamente poucas as páginas que parecem confirmar essa interpretação. A favor da "moral do indivíduo maduro" se pronuncia Humano, demasiado humano: Todos nós, na verdade, sofremos ainda do demasiado pouco respeito do que há em nós de pessoal; este é mal formado - devemos confessá-lo a nós próprios: nossa mente foi mesmo desviada pela força e oferecida em sacri­ ficio ao Estado, à ciência, aos necessitados, como se ela fosse a parte má, que devesse ser sacrificada (MA, 95).

2050 2º51

Vattimo, 1 985, p. 1 72. Lyotard, 1985, p. 71 (para a referência a Nietzsche) e passim.

Os povos primitivos e selvagens é que são "determinados do modo mais rigoroso pela lei, pela tradição: o indivíduo está ligado a ela de modo quase automático e se move com a uniformidade de um pêndulo" (MA, 1 1 1). O senti­ do da individualidade é uma aquisição recente e preciosa: no curso da história, por muito tempo ele foi percebido e rotulado como uma maldição. No passado, o sacrificio do indivíduo pode também ter tido uma função social real; "a tradi­ ção" tão venerada "nasceu com ·a finalidade da conservação de uma comunida­ de, de um povo" (MA, 96). Mas agora a situação mudou: "na consideração mais pessoal possível reside também a maior utilidade para a coletividade: de modo que a conduta mais estritamente pessoal corresponde ao atual conceito de moralidade (entendida como utilidade geral)" (MA, 95). É preciso, portanto, acabar com uma moral que exprime o peso opressor da tradição, do costume, da coletividade : "Com a moral, o indivíduo é educado para ser função do rebanho e atribuir-se valor apenas como função [ . . .]. A moralidade é o instinto do reba­ nho no indivíduo" (FW, 1 1 6). E contra os "instintos do rebanho" pode bem ser recomendado o "egoísmo", que neste caso é sinônimo de defesa da individuali­ dade própria (FW, 328). No entanto, se por um lado censura o socialismo por ser um momento de "reação contra o devir individual'', por outro lado, Nietzsche o condena porque, com a sua "agitação individualista" ele visa "tornar possíveis muitos indivídu­ os" (XII, 503). Podemos observar uma ambivalência análoga no julgamento relativo ao cristianismo. Por um lado, é a religião do rebanho por excelência; por outro lado, tem a grave responsabilidade de ter ensinado o "mais funesto atomismo" e individualismo, embora declinando-o no plano religioso (supra, cap. 2 1 § 7). São desastrosas as consequências que daí derivam para a socieda­ de e a civilização: em seguida à afirmação da imortalidade individual e da igual­ dade das almas diante de Deus, "o indivíduo se tomou tão relevante que não é mais possível sacrificá-lo"; mas "isto quer dizer pôr em questão a vida da espé­ cie (Gattung) e da maneira mais perigosa". Agora os lados se invertem . É Nietzsche quem defende as exigências da sociedade e da coletividade contra a irresponsabilidade do socialismo e da religião que age por trás dele, um e outra centrados no indivíduo: "Embora o cristianismo tenha posto em primeiro plano a doutrina do desinteresse e do amor, o seu efeito histórico verdadeiro permane­ ce para sempre o fortalecimento do egoísmo até o extremo possível". É preciso não deixar-se desviar pelas aparências: "o louvor geral do 'altruísmo"' é apenas o instrumento ideológico do qual se serve "o egoísmo dos fracos"; desse modo, independentemente do seu valor ou desvalor, "o indivíduo se conserva do me­ lhor modo"; o indivíduo, qualquer indivíduo, se tornou mais importante do que as exigências de conservação e de desenvolvimento da sociedade (XIII, 2 1 8-9).

Desse modo, a sociedade, a civilização vai de encontro

à ruína:

"Os ele­

mentos falidos (que em toda parte são superiores em número) querem modificar a posição da espécie

(Art), ou seja, pretendem que se sacrifique a qualidade da espécie (Art) ao número" (XI, 5 1 3). A denúncia da "degeneração" (Entartung), que atravessa em profundidade a filosofia de Nietzsche, é a denúncia do perigo mortal que o egoísmo monstruoso dos mal sucedidos e a cumplicidade desatina­ da dos compassivos fazem a "espécie" correr: o pathos da espécie é um elemen­ to essencial do pensamento do presumido profeta do pós-moderno. Longe de ser pronunciada em nome do indivíduo, a condenação da revolução acusa os seus ruinosos efeitos individualistas : "A revolução destruiu o instinto para a grande organização, a possibilidade de uma sociedade"

(XIII, 409).

Enfim, da acusa­

ção do individualismo não se salvam sequer os moralistas: "Os moralistas estú­ pidos [ . . . ] pensaram no indivíduo e não na continuidade, mediante a criação, daquilo que é nobre"; mas o essencial é exatamente a criação e a reprodução de uma "casta superior" ou de uma "humanidade de

é/ite" (XI,

224).

Devemos agora reprovar em Nietzsche uma incoerência pavorosa? Con­ vém, entretanto, tomar nota de que é ele mesmo quem rejeita a interpretação em perspectiva individualista da filosofia:

A minha filosofia visa à hierarquia (Rangordnung), não a uma moral indi­ vidualista. O sentido do rebanho deve dominar no âmbito da grei, mas não extravasar além dele. Aqueles que guiam o rebanho têm necessidade de uma avaliação profundamente diferente das próprias ações. Assim como a "moral coletivista", também a moral "individualista" está errada em fazer valer parâmetros igualitários, reivindicando a "mesma liberda­ de" e a mesma imparcialidade para todos

(XII, 280).

Os socialistas , como por

outro lado os cristãos, não têm o sentido da realidade: a realidade do "indiví­ duo" não é de modo algum uma característica que se atribua a todo ser humano enquanto tal. A civilização e o domínio pressupõem "uma necessidade de escra­ vidão" e "onde há escravidão, os indivíduos são em pequeno número"

(FW,

149). É um ponto sobre o qual Nietzsche não se cansa de insistir: ''Não se deve 49 1). "A igualdade da pessoa" é o pressuposto do "socialismo" (XIII, 70), de uma dou­ de modo algum pressupor que muitos homens sejam 'pessoas "' (XII,

trina louca que não ousa olhar a realidade na cara:

A maioria não é nenhuma pessoa. Por toda parte predominam as caracte­ rísticas médias, das quais depende que um tipo sobreviva; ser pessoa seria um desperdício, um luxo; não teria sentido pretender ser uma "pessoa". Trata-se de portadores, instrumentos de transmissão (XIl, 492).

Como o escravo aristotélico, assim o "instrumento de transmissão" não en­ tra na categoria de "pessoa" ou de indivíduo, porque na realidade não entra na categoria de homem. Pode-se ler Nietzsche em perspectiva individualista só sob a condição de lê-lo pela metade. Abramos um texto dajuventude: "A nossa finalida­ de não pode ser a cultura da massa, mas a cultura dos indivíduos [ . . .]". Não é dificil interromper arbitrariamente a citação nesse ponto. Mas talvez convenha continuar a ler: "[ . .. ] de homens escolhidos, equipados para obras grandes e dura­ douras", ou antes de "grandes heróis de uma época, que andam solitários" e com respeito aos quais a maioria "nasceu para servir, para obedecer", para exercer o papel de "argila" (BA, 3 ; 1, 698). O sentido de uma civilização e de um sistema social que se respeite é "tornar possíveis alguns poucos homens" (BA, l ; 1, 665). Nietzsche se manteve firme a essa visão durante toda a sua evolução. No entanto, ainda não está resolvido o problema que nos colocamos. É o individualismo ou o anti-individualismo que caracteriza o filósofo? Antes de responder a esta pergunta, convém formular outra: há diferença, nesse ponto, entre o filósofo do radicalismo aristocrático e os expoentes do protoliberalismo? Tomemos Mandeville. Celebrado como aquele para quem "o exercício arbitrá­ rio do poder por parte do governo seria reduzido ao mínimo", 2052 ele é muitas vezes lido como um dos primeiros grandes teóricos do "individualismo" e até de um "individualismo desenfreado". 2053 Com efeito, é indubitável a sua intolerân­ cia com respeito aos vínculos do poder estatal e da moral tradicional. No entan­ to, mesmo professando uma moral abertamente leiga, Mandeville propõe que a frequência dominical da igreja e a doutrinação religiosa se tomem "uma obriga­ ção para os pobres e os iletrados", e, em todo caso, no domingo, "se deveria impedir [ . . . ] o acesso a qualquer tipo de diversão fora da igreja". 2054 E tudo isso, evidentemente, para que seja inoculado nos pobres, "desde a sua primeira infân­ cia", o sentido de obediência à autoridade e do respeito ao costume e à tradição. Por outro lado, o que é a condenação da instrução escolar senão a tentativa de prevenir entre as classes populares toda manifestação de insubordinação? O que é a celebração dos "pobres tolos camponeses" (os quais, porém, brilham pela "inocência e honestidade"), 2055 senão a celebração do espírito gregário por excelência? Portanto, como em Nietzsche, também em Mandeville nos depara­ mos com o problema: individualismo ou anti-individualismo?

2052 2º53

Hayek, 1 988, p. 280.

Colletti, 1 969, p. 287. Mandeville, 1 974, pp. 1 1 1 -2. 2055 Mandeville, 1 974, p. 71.

2o54

Diante do mesmo dilema nos coloca a leitura de não poucos outros expo­ entes sobretudo do protoliberalismo: a defesa, contra o absolutismo monárquico, da inviolabilidade da esfera individual pode ir lado a lado com a teorização da escravidão nas colônias (é o caso de Locke) ou, mais em geral, com a redução da "massa" a instrumentos de trabalho, totalmente sem personalidade e indivi­ dualidade, ou, na melhor das hipóteses, eternas crianças, também estas incapa­ zes de adquirir uma personalidade e individualidade maduras . A tese segundo a qual a "um pequeno número, verdadeiramente pequeno, de cabeças livres e pensantes" se opõe inevitavelmente a massa dos "instrumentos bípedes" chama­ dos a suportar passivamente a sua condição, essa tese que lemos em Sieyes, podemos encontrá-la facilmente também em Nietzsche (supra, cap. 1 2 § 4). Em ambos os casos, ao livre desenvolvimento da individualidade nos poucos corresponde nos demais um espírito gregário, que de modo algum é preciso enfraquecer ou pôr em discussão.

2. O indivíduo como "noção coletiva " Desenvolvendo-se na onda da reação antidemocrática da segunda metade do Século XIX, o radicalismo aristocrático restringe ainda mais o âmbito em que a individualidade é chamada a desenvolver-se e torna mais insuperável do que nunca o abismo que o separa da massa dos servos. Além de "instrumentos de transmissão", Nietzsche fala de "materiais de rejeição e de descarte" (supra, cap . 20 § 4), aquele "resíduo de malogrados, de doentes, de degenerados", que "há entre os homens, como em toda outra espécie animal" (JGB, 62). Conhece­ mos o "báratro" que existe "entre homem e homem, entre categoria e categoria" e a apartheid social que se impõe (supra, cap. 1 1 § 3). Na realidade, para uma análise mais atenta, até a linguagem de que geralmente nos servimos para cons­ truir a hierarquia é afetada, não obstante sua radicalidade, por um resíduo de universalismo, na medida em que parece pressupor, nos dois extremos da escala hierárquica, uma natureza comum que é totalmente imaginária: Não existe uma saúde em si, e todas as tentativas de definir tal coisa fracas­ saram miseravelmente [ ... ]. Existem inúmeras saúdes do corpo; e quanto mais deixarmos que o indivíduo particular e incomparável erga a sua cabeça, quanto mais esquecermos o dogma da "igualdade entre os homens", tanto mais os nossos médicos terão de abandonar o conceito de uma saúde normal, juntamente com a dieta normal e de curso normal da doença (FW, 120).

Nietzsche não submete à critica as categorias que podiam lançar uma ponte sobre o abismo escavado por ele: "O semelliante não é um grau do igual, mas algo completamente diferente do igual" (IX, 505). O nominalismo chega às suas consequências extremas. No que diz respeito ao "próximo", há de se ter presente que "a palavra é de origem cristã e não corresponde à verdade". Em todo caso, "a representação do 'próximo' [ .. ] é em nós muito fraca; e nos sentimos livres e irresponsáveis perante ele quase como diante da planta ou da pedra" (MA, 1O1). Dir-se-ia que desapareceram as categorias intermédias entre a identidade e a estraneidade radical, e essa estraneidade, por sua vez, não tem dificuldade de se potenciar em antítese: "Todos nós, quando a diferença entre nós e um outro ser é muito grande, já não sentimos mais nada de injusto e matamos um mosquito, por exemplo, sem nenhum remorso". Xerxes manda fazer em pedaços o filho de um crítico da sua projetada expedição: a vítima "ocupa um posto muito baixo para poder provocar por mais tempo remorsos num soberano do mundo" (MA, 81). Não tem sentido falar de uma comunidade moral que abrange os homens no seu conjunto: "Uma moral com prescrições universais não faz justiça a cada indi­ víduo" (IX, 465), e sobretudo comete o erro de confundir "os indivíduos, aqueles verdadeiros em si e para si" com "os seus opostos, os homens do rebanho" (FW, 23). Por outro lado, também a análise histórica chega a uma conclusão bastante significativa: "Ajustiça (equidade) tem origem entre homens com poder aproxi­ madamente igual [ ... ]. Por isso, a justiça é compensação, troca, com base no pressuposto de uma posição de força quase igual" (MA, 92). Portanto, .

Na qualidade de bom se pertence aos "bons", a uma comunidade que tem o sentimento da pertença comum, porque todos os indivíduos estão tinidos entre si pelo sentido da retribuição. Na qualidade de "mau" se pertence aos "maus", um amontoado de homens oprimidos e impotentes, que não têm o sentimento da pertença comum. Os bons são uma casta, os maus uma mas­ sa, como a poeira. Bom e mau equivalem por um certo tempo a nobre e baixo, a senhor e escravo [ . . . ]. Na comunidade dos bons o bem é herdado; é impossível que de uma terra tão boa cresça um mau (MA, 45).

Em conclusão, "toda bondade se desenvolve apenas entre iguais" (XI, 541). Vejamos como se comportam as "naturezas orgulhosas": Diante do sofredor elas são frequentemente duras, pois ele não é digno de seu esforço e do seu orgulho; mas se mostram mais corteses para com os seus iguais, com quem seria honroso lutar e disputar, se um dia houver para isso ocasião. No sentimento de bem-estar inspirado por essa perspec­ tiva, os homens da casta cavalheiresca se habituaram a tratar um ao outro com esmerada cortesia (FW, 13).

E Nietzsche, tal como é brutal ao escavar e tornar intransponível o abismo que separa a "casta superior" da massa anônima e impessoal dos instrumentos de trabalho, revela-se igualmente sedutor e "cortês" quando se dirige aos indivíduos que pertencem à "casta superior": "Busco para mim e para os meus iguais um canto de sol no meio do mundo hoje real, o das ideias iluminadas pelo sol que nos fornecem bem-estar em superabundância. Cada um faça isto para si e deixe de lado os discursos em geral, os discursos dirigidos à 'sociedade'!" (IX, 455). A fim de pesquisar melhor a ligação entre o individualismo e anti-individu­ alismo em Nietzsche, continuamos a analisar a tradição que age por trás dele. Para justificar a sua "moção de conciliação" com as colônias americanas rebel­ des em nome da liberdade, Burke aduz um argumento bastante significativo: não se pode negar a liberdade àqueles que fazem parte de uma "nação em cujas veias circula o sangue da liberdade", aos membros da "raça eleita dos filhos da Inglaterra'', todos adoradores da "liberdade"; é uma questão de "genealogia'', contra a qual se mostram impotentes os "artificios humanos". 2056 Da comunida­ de eleita dos livres fazem parte integrante os proprietários de escravos: ou an­ tes, são exatamente eles que têm apreço particular pela liberdade e a percebem, em oposição aos seus escravos, como algo "nobre" e "liberal".2º57 Longe de estar em contradição com a afirmação ou o reconhecimento do instituto da es­ cravidão, o valor da liberdade encontra aqui a sua mais plena encarnação exa­ tamente nos proprietários de escravos. Voltando atrás na reconstrução da história desse modo de se comportar, convém fazer referência sobretudo à antiguidade clássica, objeto da saudade de Nietzsche: opondo-a aos asiáticos que "vivem continuamente subjugados e na servidão", Aristóteles celebra "a estirpe dos helenos", não só pela sua liberdade, mas também pela sua capacidade de "dominartodos".2058 A celebração da liber­ dade se entrelaça com a celebração do domínio que, também, inclui a perda da liberdade por parte daqueles que são obrigados a sofrê-lo. E é nesse mesmo sentido que Cícero2059 celebra os liberi populi, entre os quais um lugar eminen­ te ocupa Roma, que também pratica a escravização em massa dos povos derro­ tados e considerados indignos da liberdade. De resto, tentemos analisar a dicotomia liberdade/escravidão, no centro da tradição liberal e também do pensamento de Nietzsche, a partir do significado etimológico dos dois termos deste par conceituai. Doulos e servus fazem refe2056 Burke, 1826, vol. III, pp. 66 e 124 (= Burke, 1963, 2º57 Burke, 1826, vol. III, p. 54 (= Burke, 1963, p. 91). 2058 Política, VIT, 7. 2059 República, 1, 48.

pp. 100 e 142-3).

rência em primeiro lugar a uma condição de estraneidade, de exclusão. No que diz respeito ao termo "livre", "o sentido original não é, como estaríamos tenta­ dos a pensar, ' livre de qualquer coisa', mas de pertença" a um grupo étnico, a uma raça.

É tal pertença,

"designada com uma metáfora de crescimento vege­

tal", que confere "um privilégio que o estrangeiro e o escravo nunca conhecem". Livres é uma "noção coletiva'', é um "grupo de crescimento'', uma "estirpe'', "o conjunto daqueles que nascera.me se desenvolveram juntos". Não por acaso, o étimo de

liber

é também o dos

mesma comunidade familiar.

liberi,

os filhos que cresceram no âmbito da

E a liberdade é um sinal de distinção que compete

aos "bem nascidos" e só a eles .2060 Por paradoxal que possa parecer à primeira vista, também indivíduo é uma "noção coletiva". A celebração da liberdade do indivíduo pode bem conju­ gar-se, e historicamente se conj uga, com a enunciação de rígidas cláusulas de exclusão, ou seja, com a autoproclamação por parte de um grupo étnico e social de ser o intérprete privilegiado ou exclusivo do valor da liberdade e da autono­ mia individual.

O pathos do indivíduo não está em contradição com o pathos da

comunidade peculiar e privilegiada, à qual remete o seu estatus de homem livre e de indivíduo no sentido forte do termo.

É uma dialética bem presente no âmbito do protoliberalismo.

Nietzsche

toma consciência disso: e aqui está a confirmação de sua audácia e agudeza filosófica. Mas ele toma consciência dessa dialética não para refutá-la, mas para reforçá-la e radicalizá-la depois: e aqui está a prova do caráter rigoroso e coerentemente reacionário do seu pensamento. Agora é claro: ao individualismo da minoria privilegiada, que no

otium deve mover-se com liberdade e sem pre­

ocupação, corresponde de modo funcional o espírito gregário da massa dos escravos destinados ao trabalho duro e à vergonha do trabalho, mas também à disciplina e à subordinação.

3. "Individualismo proprietário ", "individualismo aristocrático " e nominalismo antropológico A fim de definir essa posição, às vezes se falou, com referência à tradição e à sociedade liberal ou protoliberal, de "individualismo proprietário" ou "pos­ sessivo"

(possessive individualism).2061 É uma categoria sem dúvida mais per­ tout court, pois esta última não consegue

suasiva do que a do individualismo

2060 Benveniste, 1 976, pp. 248- 15 1 . 2061 Macpherson, 1 982.

explicar o sacrifício coletivo a que são chamadas classes sociais inteiras, a maioria da população, no altar de uma civilização tão brilhante e desinibidamente "individualista". No entanto, para uma análise mais atenta, também a categoria de "indivi­ dualismo possessivo" se revela inadequada. Fazendo abstração das colônias, ela se concentra exclusivamente na metrópole capitalista e na relação ou no conflito proprietários/não-proprietários. Como explicar, porém, as cláusulas de exclusão que, independentemente do patrimônio, atingem na sua totalidade as "raças" que John Stuart Mill define como de "minoridade"? Nesse caso, não são as classes sociais, mas povos inteiros que devem ser considerados incapazes de desenvolver uma individualidade madura. À primeira vista, a categoria de individualismo aristocrático, que Rickert faz valer em relação a Nietzsche, parece mais adequada; é mais ampla, não faz referência exclusiva às relações de propriedade. Combinando os dois pares conceituais (socialismo/individualismo e democracia/aristocracia), Rickert dis­ tingue quatro possíveis "tendências": a "individualista-democrática ou o 'libe­ ralismo"', a "socialista-democrática", a "individualista-aristocrática, cujo portavoz mais conhecido é Friedrich Nietzsche" e, enfim, a "social-aristocráti­ ca". Para esta última é apresentado o nome_ de Alexander Tille, já conhecido nosso: colocando no centro da sua atenção a "nação" e elevando os alemães a "povo aristocrático" por excelência, ele combinaria o aristocratismo com o so­ cialismo ou coletivismo e, mesmo declarando-se admirador de Nietzsche, recai­ ria no "ideal do rebanho" constantemente denunciado por ele.2062 É enganoso e banalmente apologético identificar liberalismo e individua­ lismo democrático. A categoria de individualismo aristocrático e a sua contraposição ao social-aristocratismo são mais persuasivas? Na realidade, vi­ mos Nietzsche condenar o "individualismo" ou o "egoísmo" cristão e socialista, a que não seriam estranhos nem sequer certos moralistas. Por outro lado, não é verdade que a "tendência" cara ao presumido teórico do individualismo aristo­ crático conheça apenas indivíduos e nunca comunidades ou coletividades. Na realidade, se em Tille a aristocracia se identifica em primeiro lugar com o povo alemão, em Nietzsche se identifica, como sabemos, com a "casta superior" ou com a "humanidade de élite". Não é a presença ou a ausência de referência a uma comunidade que distingue, em primeiro lugar, os dois autores, mas a dife­ rente demarcação da comunidade escolhida. Talvez se deva acrescentar que, no teórico do radicalismo aristocrático, essa comunidade escolhida é delimitada mais rigidamente que nunca. Ao sub li2º62

Rickert, 1 920,

pp.

80 e 84-5 .

nhar a nítida distância entre "superior" e "inferior" e celebrar "o pathos da distância [que] deve manter eternamente separadas também as tarefas" (GM, Ill , 14), Genealogia da moral quiçá tenha presente o argumento decisivo com o qual Aristóteles justifica a escravidão: também dentro de uma mesma espécie os seres são tão "distantes" (ãéâóôç+â) que, claramente, "alguns são destinados a mandar, outros a obedecer";2063 eles se tomam "tão diferentes uns dos outros como o espírito e o corpo, o homem e o animal". 2064 Ou seja, o escravo não entra propriamente na categoria de homem enquanto tal, uma categoria que, considerando bem, se toma vazia e sem sentido. É exatamente aquilo que defini como "nominalismo antropológico": muito além do fim do mundo antigo, ele continua a ecoar, em forma sempre mais dife­ rente, no pensamento moderno e na própria tradição liberal, como demonstra o recurso, para definir o trabalho, às categorias utilizadas pela antiguidade clássica em relação à escravidão. A peculiaridade de Nietzsche reside no fato que nele a referência à antiguidade clássica, e ao instituto da escravidão, é conscientemente "inatual" e de violenta contraposição ao progressivo emergir, apesar de tudo, do conceito universal de homem. Se o limite de fundo do pensamento político da antiguidade clássica é identificado por Hegel na construção deficiente do conceito universal de homem (sob o qual o escravo não é nem pode ser subsumido),2065 para Nietzsche é exatamente o ofuscamento e o desaparecimento da visão nominalista que constitui o pecado de origem da cultura moderna.

4. Nominalismo antropológico e holismo da tradição liberal a Nietzsche Se por individualismo se entende o reconhecimento de cada indivíduo, inde­ pendentemente da renda, do sexo ou da raça, como sujeito provido, no plano moral, de igual dignidade humana e titular, no plano político, de direitos inalienáveis, não há autor mais hostil ao individualismo do que Nietzsche. O presumido profeta do pós-moderno começa, como filósofo, com uma invocação apaixonada da volta à antiguidade clássica e ao instituto da escravidão ou com uma celebração da sociedade de castas consagrada pelo código Manu. Pelo que diz respeito à anti­ guidade clássica, a saudade se dirige em primeiro lugar à Grécia pré-socrática, a um mundo em cujo âmbito, segundo a análise de Hegel, não se verificou ainda "o 2063 Política, 1245 a 23 .

2064 Hildebrand, 1 962, pp. 405-6. '065 Cf. Losurdo, 1 992, cap. VII, 5-6 e X, 6.

desenvolvimento autônomo da particularidade" e "o princípio da personalidade autônoma, em si infinita, do indivíduo, da liberdade subjetiva, não vê os seus direitos reconhecidos". 20(,6 A referência à Índia ocorre quase no mesmo período de tempo em que Marx previne contra a tendência a idealizar sociedades "contami­ nadas pela divisão em castas e pela escravidão", com o indivíduo submetido a intransponíveis "normas consuetudinárias", encerrado num círculo restrito que aparece como "um destino natural e inevitável" e, sobretudo no caso do pobre, obrigado a levar uma "vida sem dignidade, estagnada, vegetativa". 2�7 É uma sociedade - insiste por sua vez outro contemporâneo de Nietzsche, neste caso um pastor protestante - na qual a casta se apresenta como uma "dura corrente social" que separa os indivíduos e os impede de ter qualquer relação fora da casta em que nasceram e estão destinado a morrer.2008 É interessante ver com que paixão Nietzsche, que tem saudade de uma sociedade na qual ainda não apareceu a figura do indivíduo moderno, polemiza contra cristãos e socialistas. Quando se dá expressão ao "egoísmo dos fracos" e mal sucedidos, eles perdem de vista a "utilidade geral" ou a "grande economia do Todo" (supra, cap. 14 § 5 e 33 § 1), a necessidade de garantir "a vida da espécie" (Leben der Gattung), a "conservação da espécie" (Erhaltung der Gattung) (XIII, 21 8-9), o "interesse da espécie" (Gattungs-Interesse), o "cres­ cimento sadio da espécie" (Gedeihen der Gattung), a ordenada "criação abrangente" (Gesammt-Züchtung), chamada a banir o perigo da "ruína da es­ pécie" (Ruin der Gattung) . Teimosamente apegados como são ao "interesse individual'', cristãos e socialistas se opõem ao sacrificio dos "mal sucedidos, fracos, degenerados" (XIII, 469-70). Junto com essas ideologias erradas e ruinosas é necessário superar toda atitude de indulgência e fraqueza. A gravidade da situação impõe um rigor inflexível: Quando no interior de um organismo o menor órgão deixa, mesmo de uma maneira mínima, de prover com total segurança a própria autoconseivação, a renovação de suas forças, o seu "egoísmo", então o todo degenera. O fisiólogo exige a amputação da parte degenerada, recusa qualquer solidari­ edade com o degenerado, é o mais distante da compaixão. (EH, Aurora, 2).

A metáfora organicista é onipresente: "A própria vida não reconhece solida­ riedade entre as partes sãs e as doentes de um organismo: estas últimas precisam ser cortadas, ou o todo morre" (XIII, 6 12). Adquirindo uma configuração ainda 2066 Hegel, 1969-79, vol. VII, p. 342 (Grundlinien der Philosophie des Rechts, § 185 A). 2061 Marx-Engels, 1 975, p. 77 (= Marx-Engels, 1955, vol. IX, pp. 132-3). 2068 Warneck, 1879, pp. 1 50 e 198.

mais repugnante, as partes doentes se tomam às vezes o "vômito", os "excrementos da sociedade". Não tem sentido fazer referência a classes ou "raças oprimidas" para explicar a presença de "anarquistas" e socialistas: a "sociedade" deve readquirir a "força" de "defecá-los" (XIII. 503-4). O organismo, essa totalidade que exige a amputação das partes doentes ou a defecação dos seus excrementos, assume os nomes mais diversos. Já vimos alguns: "civilização", "espécie", "vida". Noutras ocasiões, Nietzsche prefere falar de "sociedade'', chamada a exercer so­ bre os seus membros o mais rigoroso controle eugênico (XIII, 4 1 3 e 5999), de "conservação da sociedade" (AC, 57), a garantir mediante a neutralização dos "elementos antissociais" (XIII, 430), ou de "utilidade pública" (AC, 57). Assisti­ mos a uma inversão de posições com respeito ao nominalismo antropológico an­ teriormente constatado? Não se trata disto. Exatamente porque não são subsumíveis na categoria de homem enquanto tal, os servos, os plebeus e, com maior razão, os mal sucedidos se tornam sacrificáveis em nome da conservação de um universal do qual na realidade não fazem parte, do qual são excluídos. Nominalismo antro­ pológico extremo e holismo voraz são duas faces da mesma moeda. A interpretação de Nietzsche em perspectiva individualista e pós-moderna abstrai, de modo arbitrário, da sorte reservada aos fracassados, aos mal sucedi­ dos, aos derrotados amarrados ao carro da civilização, abstrai da sorte daqueles que constituem a grande maioria da humanidade. Olhando bem, essa interpreta­ ção apresenta não poucos pontos de contato com a apologética ou a autoapologética hoje dominante do pensamento liberal. A fim de percebermos o seu caráter enga­ noso, demos a palavra a Mandeville: "Para tornar a sociedade feliz é necessário que a grande maioria permaneça tanto ignorante como pobre"; "a riqueza mais segura consiste numa massa de pobres laboriosos".2059 Às mesmas conclusões chega, na França, Destutt de Tracy: "As nações pobres são aquelas nas quais o povo vive em condições de comodidade, ao passo que as nações ricas são aquelas nas quais ele é comumente pobre". 2070 Estas declarações encontram-se em O ca­ pital, no âmbito da denúncia do caráter mistificador de um universal habilitado a impor o sacrificio da maior parte dos membros que em teoria o constitui. Outros trechos poderiam ser acrescentados aos citados por Marx. Permaneçamos na In­ glaterra do Século XVIII, no país saído da Gloriosa Revolução, e demos a palavra aArthur Young: "Todos, exceto os idiotas, sabem que as classes inferiores devem ser mantidas pobres, do contrário nunca serão industriosas"2071 e não produzirão a "riqueza das nações" de que fala Smith. 2069 ln

Marx-Engels, 1955, vol. XXIll, p. 643 . ln Marx-Engels, 1955, vol. XXIII, p. 677. 2071 Tawney, 1975, p. 5 14.

2070

Enquanto celebra a liberdade da Inglaterra, Mandeville não tem dificuldade em comparar a condição do escravo àquela própria da "parte mais mesquinha e pobre da nação" (supra, cap. 1 2 § 4). E como antes a "riqueza das nações" exigia a miséria da maioria da população, assim agora, a que poderemos chamar de "liberdade das nações" exige a substancial escravidão sempre da maioria da po­ pulação. A felicidade, ou a riqueza, ou então a liberdade da "sociedade" ou da "nação" são a infelicidade, a miséria, a escravidão da maioria dos seus membros. Por que esta proposição não é entendida como logicamente contraditória? É claro, porque os trabalhadores assalariados não são subsumidos propriamente, ou a título pleno, sob a categoria de "sociedade" e "nação", um universal que faz apelo a eles apenas para exercerem a função de vítimas sacrificais. Basta substituir "útil coletivo" ou "civilização", ou então "vida" ou "espé­ cie", por "sociedade" e "nação" para perceber quão análoga é a estrutura do discurso em Nietzsche e no protoliberalismo. Estamos diante do entrelaçamento já notado de nominalismo antropológico mais ou menos radical e holismo mais ou menos voraz, quer dizer, estamos na presença de um discurso que está aquém da critica de Marx {e, numa certa medida, de Hegel) . Apesar da sua inegável carga dessagradora, a metacritica de Nietzsche visa restabelecer o status quo ante, a situação de domínio incontestado de um universal monstruoso que engo­ le a enorme maioria da população. É um universal que, às vezes, por paradoxal que possa parecer à primeira vista, assume pose moralizante. Vimos a acusação de "egoísmo" dirigida a cris­ tãos e socialistas que relutam na amputação das partes doentes. Eles perdem de vista um ponto essencial: "A autêntica filantropia exige o sacrificio para vanta­ gem da espécie", enquanto a recusa de tal sacrificio representa a "imoralidade extrema" (extreme Unmoralitiit) (XIII, 47 1 -2). Egoísmo, imoralidade, são as acusações tradicionalmente dirigidas ao movimento operário e socialista. Os movimentos iconoclastas e imoralistas de Nietsche se tornam às vezes o seu contrário, numa pregação moralista, que não hesita em exigir a abstinência sexual dos fracassados da vida. Somos levados a pensar em Malthus: a diferen­ ça mais importante com respeito ao pastor anglicano é que Nietzsche preferiria não correr riscos. Por isso o apelo à "castração" (supra, cap. 1 9 § 3). Certamente, quando se fala de moral, é necessário fazer as distinções opor­ tunas : "A virtude é o nosso maior equívoco". O equívoco se esclarece na medida em que se reconhece esta verdade fundamental: "a seleção na espécie, a sua purificação do resíduo" é "a virtude por excelência"; "deve-se (man sol/) ampu­ tar os membros doentes - eis a primeira moral da sociedade"; "a sociedade é um corpo no âmbito do qual a nenhum membro é lícito ficar doente (an dem kein Glied krank sein darj)" (XIII, 4 1 3). Sollen, dürfen : é a linguagem em que é

tradicionalmente formulado o imperativo ético que, sempre de modo conforme à tradição, exige a volição do universal. Mas um universal que, mesmo de vez em quando configurado de modo diferente, tem a característica constante de não subsumir ou de não subsumir plenamente debaixo de si vítimas das quais exige o sacrificio: as "toupeiras cegas da cultura" de que falam os escritos da juven­ tude, os indivíduos degenerados da espécie, o resíduo, os membros doentes da sociedade, os excrementos do organismo social. Em conclusão, a liquidação do "progresso" reivindicado pelo movimento operário e socialista é pronunciada em nome de um universal substancialmente retomado do pensamento moderno e condenado como ideológico e mistificador por Marx. Em Nietzsche como no protoliberalismo, cujo desaparecimento ele lamen­ ta, há uma contradição de fundo, que não é, porém, de caráter lógico: ela reflete duas exigências opostas da sociedade burguesa do tempo: quando dirige o olhar para a élite restrita dos "bem nascidos", dos gentis-homens, dos proprietários, o discurso sublinha com força o valor autônomo do indivíduo; quando, porém, se trata de justificar a restrição e o exclusivismo da comunidade dos indivíduos, eis que intervém a argumentação de tipo holístico. Vimos isto para Mandeville ou Destutt de Tracy. Mas vale também para Locke. O que exige a "obediência absoluta" dos soldados (de origem popular) às ordens, "também as mais irra­ cionais", de um "oficial superior" (de origem nobre ou burguesa), o que garante a este último, em última análise, um poder de vida e de morte é a necessidade da "conservação do exército e, com ele, do Estado no seu todo" (preservation of the army, and in it ofthe whole commonwealth). A defesa da propriedade coin­ cide com a "sobrevivência da totalidade (preservation of the whole), da qual serão amputadas aquelas partes, e aquelas apenas, que ameaçam as partes ínte­ gras e sadias".2º72 Deparamo-nos de novo com a metáfora cara a Nietzsche.

5. O individualismo como "grande narração " e engenharia social Se não é o advento do individualismo, ao menos o seu pensamento significa o fim das "grandes narrativas"? Aos olhos de Nietzsche, o individualismo (com a sua pretensão de construir a figura do homem, do indivíduo enquanto tal, fazendo abstração das extremas diferenças e desigualdades que existem na natureza) é exatamente uma "grande narrativa". Pressupor uma dignidade igual nos indivídu­ os, ou melhor, nos seres que se agitam no cenário da natureza e que podem ser separados entre eles por um abismo, significa afirmar "um mundo diferente da2012

Locke, 1 970, pp. 188-9 e 204-5 (II, § 139 e 171). 988

quele da vida, da natureza e da história". E, tal como o projeto político revoluci­ onário, também a moral universalista, empenhada em construir a figura não me­ nos arbitrária do sujeito moral enquanto tal, é uma "grande narrativa", uma enge­ nharia social desastrosa, que ignora e coage a natureza: "Para que existe uma moral, se vida, natureza e história são 'imorais'?" (FW, 344). A tentativa de modificar e melhorar a natureza mediante a eliminação ou a regulamentação das relações de hierarquização e de violência que a constituem é portadora apenas de catástrofes: é preciso nunca perder de vista as "consequências desmedidamente sinistras do otimismo, essa criatura dos homines optimi". Ao se pretender salvar a civilização, não se deve "admitir a toda hora a interferência de mãos míopes e bonachonas". Isso significaria "tirar da exis­ tência aquela grandeza que é o seu caráter, castrar a humanidade e reduzi-la à mísera chinesaria". É por isto que "Zaratustra chama os bons ora de 'os últimos homens ', ora de 'o princípio do fim"' (EH, Porque eu sou um destino, 4). O sujeito, que está no centro do discurso revolucionário e do discurso moral, é o resultado de uma dupla operação de engenharia social, que, por um lado, reduz à unidade uma multiplicidade de processos vitais e, por outro lado, arranca esta unidade do mundo natural do qual é parte constitutiva para igualá­ la às outras unidades construídas de modo análogo. A crítica dessa dupla opera­ ção de engenharia social é, por um lado, a destruição de uma unidade puramen­ te "imaginária", e por outro lado, a reconstrução da unidade real: Somos os rebentos de uma só árvore. O que sabemos do que podemos tornar­ nos no interesse da átvore? Na consciência, porém, sentimos como se quisés­ semos e devêssemos ser tudo, chegamos a fantasiar sobre um "eu" oposto a todo o resto, ao "não-eu". Parar de sentir-se como esse fantástico ego! Apren­ der gradualmente a libertar-nos desse presumido indivíduo! Descobrir os erros do ego! Compreender o egoísmo enquanto erro ! O oposto não é absolu­ tamente o altruísmo, que seria amor pelos outros presumidos indivíduos. Não ! Além de "mim" e de "ti" ! Sentir de modo cósmico! (IX, 443).

Reimerso na natureza, na unidade cósmica da qual é parte constitutiva, o Menschending, o homem-objeto do qual falam os escritos da juventude (supra, cap . 2 § 4), não tem qualquer dignidade particular, nenhuma inviolabilidade a reivindicar, é um obj eto ao lado dos outros objetos e igual aos outros utilizáveis, nos seus jogos de destruição e construção, daquela criança divina, inocente que é a natureza no seu conjunto. A crítica da enge­ nharia social plebeia e revolucionária aplana o caminho para a engenharia social própria do "radicalismo aristocrático". É isto que aparece com gran­ de clareza na pregação de Zaratustra:

A minha vontade ardente e criadora me impele sempre de novo para o homem; do mesmo modo é o martelo impelido para a pedra. Ah, homens, na pedra está adormecida uma imagem, a imagem das minhas imagens! [ . .. ] Agora enfurece cruelmente o meu martelo contra a sua prisão. Da pedra sai uma poeira de estilhaços, que me importa? (Za, II, Das ilhas bem-aventuradas; EH, Assim falou Zaratustra, 8) . .

Nietzsche-Zaratustra não esconde a carga de violência implícita nessa operação, como é confirmado pela volta insistente da metáfora do martelo e da pedra. Leiamos um fragmento da primavera de 1 884 relativo a Assim falou Zaratustra: Aqui está o martelo que supera os homens O homem é mal sucedido? Bem, vejamos se resiste ao martelo! Este é o grande meio-dia Quem está destinado ao fim faz o sinal da cruz Ele prediz o fim de inumeráveis indivíduos e raças Eu sou o destino Superei a compaixão - alegria do artista diante dos urros do mármore (XI, 77).

E ainda "Eu caminho entre os homens como entre fragmentos do futuro: daquele futuro que eu contemplo. E o sentido de todo o meu agir é que eu imagine como um poeta e recomponha no uno aquilo que é fragmento e enigma e acaso terrível" (Za, II, Da redenção; EH, Assimfalou Zaratustra, 8). Estamos na presença de um projeto de engenharia social que investe mais contra "raças" do que contra "indivíduos" e que, certamente, não é menos radical do que aque­ le censurado aos revolucionários. Ler em Nietzsche o fim das "grandes narrativas" é uma colossal ingenui­ dade. É verdade, na opinião dele não tem sentido falar de progresso histórico: a humanidade não tem fins comuns, "não progride, não existe sequer" (XIII, 87 e 408). Mas a dissolução da categoria de humanidade (e de sujeito e de indiví­ duo), com o emergir da categoria de "homem-objeto" e de homem-pedra é, pre­ cisamente, o pressuposto da grande narrativa de Zaratustra e da engenharia social aristocrática desejada por ele. À engenharia social democrática, que pre­ tende "transformar a humanidade num organismo'', subsumindo nela todos os indivíduos e atribuindo a cada um deles igual valor e dignidade, os direitos do homem enquanto tal, Nietzsche opõe uma aspiração oposta: "O número maior possível de organismos diversos e que se transformam, os quais, junto com a maturidade e putrefação, deixam cair o seu fruto: os indivíduos, dos quais cer­ tamente a maior parte morre; mas só poucos contam" (IX, 527). '"Melhorar' a humanidade seria a última coisa que eu haveria de prometer", declara Nietzsche, 990

o qual, porém, prossegue afirmando a necessidade da transvaloração dos valo­ res a fim de "garantir o crescimento, o futuro, o altivo direito ao futuro" (EH, Prólogo, 2). Vale a pena notar que o titular desse "direito ao futuro" não é, certamente, o indivíduo enquanto tal, nem sequer uma humanidade suscetível de subsumir em si todos os indivíduos. Com a sua relutância a sacrificar os mal sucedidos, "os bons [ . . . ] crucificam aquele que escreve valores novos sobre tábuas novas, sacrificam a si mesmos o futuro, crucificam todo o futuro do homem" (EH, Porque eu sou um destino, 4). Não se compreende por que a referência à "grande economia do Todo" ou à "vida", à "lei suprema da vida", ao "futuro" dessa unidade cósmica que é o mundo deva ser uma explicação menos totalizante do que aquela que se refere ao progresso da humanidade. A leitura pós-moderna de Nietzsche não conduz a lugar nenhum. Experi­ mentemos, porém, partir, segundo a abordagem mais vezes tentada, do seu radicalismo reacionário. Convém ter presentes, ainda uma vez, as lutas que se desenvolvem a partir da Revolução Francesa. Vimos Maistre fazer ironia sobre a figura do homem enquanto tal e sugerir que ela é na realida­ de o resultado de uma construção albitrária, de uma artificiosa engenharia social; embora a partir de um juízo de valor diferente e oposto, Hegel reco­ nhece que, longe de ser um dado natural e imediato, a figura do homem enquanto tal é o resultado de quase dois milênios de história. Nem por isso, porém, escravidão e servidão da gleba eram sinônimo de natureza: tam­ bém elas remetem à história, mesmo que seja a uma história posta violen­ tamente em discussão pela Revolução Francesa.

Algumas décadas mais tarde, essas lutas políticas e ideológicas se espa­ lham com renovada intensidade, em particular nos Estados Unidos, por ocasião da Guerra de Secessão e da posterior reconstrução que, após ter abolido a es­ cravidão, tenta em vão garantir aos negros o gozo dos direitos políticos e civis. Pois bem, quem, entre os dois lados em luta, encarna as razões do desenvolvi­ mento social espontâneo e quem encarna as razões de uma engenharia social opressiva? Para os teóricos da escravidão não há dúvidas. Basta evitar as espe­ culações abstratas e dar uma olhada na "história": "A escravidão foi mais uni­ versal do que o matrimônio e mais permanente que a liberdade"; no entanto, é a liberdade generalizada que constitui "um limitado e recente experimento"; mas "nós não desejamos um mundo novo". Após acabada a Guerra da Secessão, também os teóricos da White supremacy ficaram sem dúvidas. Aos olhos deles, é insensata a tentativa da União de impor igualdade e integração racial a partir de cima, eliminando ou redimensionando drasticamente a autonomia dos esta­ dos, recorrendo a uma ditadura pedagógica chamada a acabar com os "precon-

ceitos" raciais do povo do Sul, no âmbito de uma experiência louca de engenha­ ria social que visava apagar uma tradição secular e atropelar valores e costu­ mes consolidados pela imensa maioria da população (branca), em violação em última análise da própria ordem natural. Podem-se facilmente imaginar as obje­ ções dirigidas a essa campanha ideológica. Como engenharia social deve ser rotulada a tentativa de realizar uma sociedade baseada na igualdade e na integração racial ou, ao invés, o1nstituto da escravidão e, mais tarde, a apartheid e a legislação contra a miscegenation? Onde está a natureza e onde o artifi­ cio ?2º73 A tais perguntas confere nova vitalidade a expansão colonial do Oci­ dente, que é frequentemente conduzida em nome da abolição da escravidão e muitas vezes desemboca na imposição em escala ainda maior do trabalho força­ do. Debates e lutas análogas se desenrolaram por ocasião da introdução da obrigação da frequência escolar ou da seguridade social etc. Mais uma vez, onde está a natureza e onde o artificio? Em virtude do seu radicalismo reacionário, e da atenção constantemente reservada à história e à política, Nietzsche problematizou antecipadamente as categorias de "grande narrativa" e de "engenharia social", que desempenham um papel tão importante no discurso filosófico e político-ideológico dos nossos dias. Certamente, nele há um resíduo de distorção ideológica, com base na qual a liquidação da engenharia social plebeia e revolucionária seria uma espécie de volta à natureza, entendida na sua autêntica dimensão trágica e dionisíaca. O imoralista "concebe a realidade como ela é; é bastante forte para fazê-lo - não é estanho, separado dela, é idêntico a ela, contém em si tudo o que a realidade tem de terrível e problemático". Ele foge da fuga e do autoengano: "Os aspectos tremendos da realidade (nas paixões, nos desejos, na vontade de potência) são incomensuravelmente mais necessários do que aquela forma de pequena felici­ dade, a chamada 'bondade'". O imoralista sabe reconhecer a realidade e sabe reconhecer-se nela: "felizmente o mundo não está construído sobre instintos tais que exatamente nele o rebanho bonacheirão possa encontrar a sua estreita feli­ cidade"; tem bem presente o fato de que "condições do dizer sim é negar e destruir" (EH, Porque eu sou um destino, 4-5). Sim, "para que o criador seja, é necessário dor e muita transformação" (Za, II, Das ilhas bem-aventuradas). Portanto, "Um pressuposto decisivo para uma tarefa dionisíaca é a dureza do martelo, o prazer mesmo de destruir. O imperativo 'sede duros', a certeza pro­ funda de que todos os criadores são duros é a verdadeira insígnia de uma natu­ reza dionisíaca" (EH, Assim falou Zaratustra, 8).

2073 Losurdo, 1996, cap. II, 10.

No entanto, apesar desse resíduo de autoengano, em vão se procuraria em Nietzsche a ingenuidade dos seus intérpretes pós-modernos, comprometidos em celebrar o fim das "grandes narrativas". Do mesmo modo que autores tão dife­ rentes dele como Maistre e Hegel, também Nietzsche está bem consciente que a categoria de homem ou de indivíduo é o resultado de colossais desdobramentos revolucionários e de uma grande narrativa, que se desenvolveu por milênios.

6. Constrnção dos conceitos gerais e engenharia social plebéia O que restringe a natureza, negando ou procurando eliminar as desigual­ dades, as hierarquias, a vitalidade e a violência que a constituem, não é só o conceito de indivíduo igual e de igualdade. A própria construção dos conceitos gerais é "completamente antropomorfa" (WL, l ; 1, p. 883), isto é, funcional ao domínio que o homem pretende exercer sobre a natureza. A intuição que capta imediatamente o individual é substituída e superposta por "um novo mundo de leis, de privilégios, de subordinações, de delimitações", um mundo "humano", que agora constitui "o elemento regulador e imperativo" (WL, l ; 1, 8 8 1 -2). Vemos assim em ação uma "atitude sagaz, calculadora, que procura burlar a natureza" (BA, 4; 1, 7 1 6). Com a sua produção de conceitos, o intelecto é ape­ nas "o meio com o qual os indivíduos mais fracos e menos robustos se conser­ vam, à medida que a eles é barrada uma luta pela existência a ser travada com os chifres e com as ásperas mordidas dos animais ferozes" (WL, l ; 1, 876). Isto vale no que se refere às relações entre mundo humano e mundo animal, mas também às relações no âmbito do mundo humano enquanto tal. É o servo, é o plebeu que produz as "alucinações conceituais" relativas a um presumido ho­ mem ou indivíduo enquanto tal; é o servo, o plebeu que estimula de modo direto ou indireto a ciência com a sua antiaristocrática e antinatural teorização de conceitos e leis iguais para todos. Então é ilusória e mistificadora a transcendência que a ciência atribui a si com respeito ao conflito e à luta pelo poder. A lógica e a lógica aplicada (como a matemática) fazem parte dos artificias do poder que ordena, sujeita, simplifica e abrevia, cujo nome é vida, ou seja, são algo de prático e de útil, quer dizer, algo que conserva a vida, mas exatamente por isto, nem de longe algo de "verdadeiro" (XI, 2 38).

A "vontade de verdade" ostentada pelos "sábios" é na realidade "vontade de potência": tudo pode tomar-se "raso e liso" de modo que possa ser objeto de domínio (Za, II, Do autodomínio).

Compreende-se então que, aos olhos dos intérpretes pós-modernos, Nietzsche tenha se tornado aquele que assumiu "a relação de potência" como "alvo essencial" do "discurso filosófico". A partir da tese segundo a qual "a 'verdade' está ligada circularmente a sistemas de poder que a produzem e sus­ tentam", mais do que outros ele está empenhado em analisar "quais efeitos de poder circulam entre os enunciados científicos"; em conclusão, se Marx é o filósofo das "relações de produção", Nietzsche é "o filósofo do poder".2º74 Foucault chega a essa conclusão. Convém, em primeiro lugar, notar o cará­ ter esquemático da oposição feita por ele. Para Marx, na realidade, a relação de produção é também uma relação de poder: a fábrica capitalista, onde é possível captar o segredo da formação da mais-valia e da acumulação capitalista, é tam­ bém o lugar onde se pode tocar com a mão o "despotismo" sofrido pelos operári­ os. A crítica mais dura que o Manifesto do partido comunista faz ao sistema capitalista é a de transformar a massa dos operários em "soldados [ . . . ] submetidos à supervisão de toda uma hierarquia de suboficiais e de oficiais" com um controle minucioso e com muitos olhos (exercido pelo "supervisor", e sobretudo pelo bur­ guês dono da fábrica), que se manifesta "todo dia e a toda hora". 2075 O ponto essencial, porém, não é este. Bem mais grave é a passagem que se verifica na análise de Foucault: de "filósofo do poder" Nietzsche se transforma sub-repticiamente num crítico do poder. A primeira definição é certa e acaba acentuando o caráter tatus politicus de Nietzsche. A segunda, profundamente errada. Na realidade, a relação de fábrica reprovada e odiada por Marx parece ser o modelo do teórico do radicalismo aristocrático, o qual desejaria de bom grado que os operários se transformassem em verdadeiros "soldados". Mais em geral, ele não só agita o ideal do otium et bel/um, mas muitas vezes sublinha o valor pedagógico da vida militar (supra, cap . 22 § 5). Assim como a relação de escravidão, a vontade de potência é algo inevitá­ vel. Ela age no escravo, que protesta em nome da "razão" e da 'justiça", não menos do que no senhor que faz valer o seu bom direito senhorial: "Onde encon­ tras ser vivo, aí encontras vontade de potência; e também na vontade de quem serve encontras a vontade de ser senhor". Não tem sentido apelar para a justiça como para uma instância superior: "O que é acreditado pelo povo como sendo o bem e o mal se revela a mim como uma antiga vontade de potência" (Za, II, Do autodomínio ). No caso do plebeu e do servo, a vontade de potência se manifesta de modo dissimulado, mediante a construção de conceitos gerais, no plano mo­ ral, político e científico, com os quais eles procuram opor obstáculo às superi2º74 Foucault, 1 977, pp. 7, 27 e 1 35. 2º75 Marx Engels, 1955, vol. IV, p. 469. -

ores vitalidade e força dos melhores e dos bem sucedidos . Considerando bem, o presumido crítico do poder é o filósofo empenhado em desmistificar - enquanto ele próprio está afetado pela vontade de poder e de domínio - a tentativa dos servos de solapar ou apenas de colocar em discussão o poder da casta senhorial. Por trás de Nietsche está agindo Schopenhauer, segundo o qual a ciência, respondendo às finalidades práticas de organização do mundo fenomênico ou de "conservação do indivíduo" e "propagação da espécie'', é um simples "instrumen­ to" auxiliar, iç+áíç, da vontade de viver, que constitui "o elemento primeiro e origi­ nal". 2m6 A gaia ciência reconhece a dívida cotlt@ída por seu autor, quando insere a tese da "natureza instrumental do intelecto" entre as "doutrinas imortais" de Schopenhauer (FW, 99). Na passagem de um filósofo ao outro pennanece a dimen­ são de poder e de domínio intrínseca à ciência; mas, no Nietzsche maduro, o poder, o domínio, a vida não são mais algo a negar e superar na noluntas, mas algo que o homem bem sucedido deve saber aceitar com franqueza e alegria. No entanto, ape­ sar desta viravolta, permanece o elemento essencial de continuidade entre os dois filósofos. Para Schopenhauer, sublinhar o caráter intrinsecamente instrumental da razão e da ciência significa desmistificar o protesto social e a revolução, animadas por aquela mesma vontade de domínio que elas pretendem denunciar nas classes dominantes. Na opinião de Nietzsche, junto com a razão e a ciência, também a moral é animada por vontade de potência e de domínio. Esta última, totalmente intranscendível tanto no plano cognoscitivo como no plano ético, está agora protegi­ da de toda contestação possível. A critica de Nietzsche não é uma crítica, mas uma metacrítica, comprometida em refutar como autocontraditória qualquer critica à vontade de poder e de domínio. O resultado não é uma negação, mas uma afirmação incondicionada e sem qualquer empecilho: os "senhores da terra devem agora subs­ tituir Deus e obter a confiança profunda e absoluta dos dominados" (XI, 620).

7. A história ambígua da critica do pensamento calculador Se na análise da ciência Nietzsche inverte Schopenhauer, agora, com Foucault, se assiste a uma nova viravolta. Mas esta revirada da virada, ou esta transvaloração da transvaloração, não é uma volta ao ponto de partida. É verdade, no autor francês poder e vontade de potência adquirem um significado univocamente negativo. No entanto, o alvo da crítica é bem diferente. Schopenhauer e Nietzsche estavam empe­ nhados em surpreender a presença oculta e disfarçada da vontade de potência na ciência, na razão, nas luzes, às quais faziam apelo a revolução e o protesto social, no 2076

Schopenhauer, 1 976-82 a, pp. 403 e 223 .

discurso plebeu e subversivo. A critica de Foucault investe, porém, contra o discur­ so, a "razão", a "verdade" do poder enquanto tal. A "filosofia do poder" aplana agora o caminho para uma espécie de anarquismo político-metafisico. Foucault procede de modo análogo no que diz respeito ao motivo da dissolu­ ção do sujeito. Vimos que, na segunda metade do Século XIX, tal tema se coloca numa linha de continuidade com a critica conservadora e reacionária do conceito de homem enquanto tal, o titular dos direitos do homem proclamados pela Revo­ lução Francesa. E de novo assistimos ao jogo das inversões e das transvalorações. Sim, o pathos do sujeito ou do homem acompanhou ou promoveu a luta contra o instituto da escravidão e outras relações político-sociais acusadas de proceder à coisificação do homem e ao menosprezo da sua dignidade. Mas o pathos do sujei­ to é também o pathos do homofaber, que pretende ditar leis ao real; é o pathos da ação intolerante dos obstáculos e das resistências e propensa a encher-se também de violência. Então, o tema da dissolução do sujeito ou da critica à ideia enfática de homem é retomado, mas com um juízo de valor diverso e oposto em relação ao original. Esta é a posição de Foucault e de não poucos outros pós-modernos: "É preciso livrar-se do sujeito constituinte, livrar-se do próprio sujeito".2077 Ao reler com desenvoltura Nietzsche como crítico do poder e da lógica de poder e de domínio implícita na "verdade" científica, o filósofo francês e os intér­ pretes pós-modernos em geral acreditam demarcar-se nitidamente em relação às ideologias que presidiram às catástrofes do Século XX. Baeumler, porém, que celebra em Nietzsche "o cume do nominalismo",2078 aprecia o rigor com que ele desconstroi os conceitos gerais sobre os quais se baseiam o iluminismo e as ideias de 1789, por um lado, e a ciência, por outro. Quer as pessoas se ajoelhem "diante do sagrado" ou "diante da razão" - comenta Baeumler -, a atitude "racional­ iluminista" não é menos cheia de imposições e de violência do que a atitude "sacerdotal". Em ambos os casos um "absoluto" exige as suas vítimas.2079 Esse tema ideológico está bem presente também num ideólogo de primeira grandeza do III Reich como é Bõhm. No seu modo de ver, são catastróficos os resultados de uma filosofia que pretende conferir significado e valor apenas a partir da "consciência ordenadora".2080 A partir da certeza do cogito, Descartes operou "a redução da realidade concreta à realidade racionalmente dominável, ou antes, a identificação do ser dominável e ser real"; e assim, "mediante a referência à razão que se ergue como potência (selbstmachtige Vernunft) abrem·

2011 2º78 2019 2080

Foucault, 1 977, p. 1 1 . Baeumler, 1 937 a, p. 247. Baeumler, 1 93 1 a, pp. 69-70. Bõhm, 1938, pp . 85-87.

se as possibilidades de um domínio imediato sobre o mundo";2081 ficam escan­ caradas as portas para o "titanismo racional" e a confiança num planejamento infinito, que põe o futuro sem condições nas mãos do homem".2082 Uma linha de continuidade conduz de Descartes ao positivismo de Comte, o qual pretende transformar os homens em "senhores e proprietários da natureza (maitres et possesseurs de la nature)" e inaugurar aquela época "positivista" que por Nietzsche foi desmascarada como época do "último homem".2083 Ao pensamen­ to calculador, sinônimo em última análise de "niilismo'',2084 ao pensamento lógico­ sistemático", B õhm contrapõe o "pensamento que manifesta (erschlieftendes Denken), um pensamento que não é atravessado pela lógica do domínio e é, ao contrário, "libertador" ifreilegend): é o pensamento próprio dos alemães e que parece, porém, "incompreensível e misterioso ao sentido da ordem do Oeste". 2085 O fato é que a crítica do "sujeito constituinte" (Foucault) ou da "consciên­ cia ordenadora" (Bõhm) podem encher-se com os conteúdos mais diversos. De modo algum unívocas e amplamente formais são as categorias de "pensamento que desabrocha" e pensamento calculador. O antídoto com respeito a este últi­ mo é frequentemente identificado, por parte dos ideólogos do nazismo, no peri­ go, no sacrificio e na guerra. É um tema tomado de Nietzsche, que vê encarnado o pensamento calculador no espírito "mercantil" e pacifista judeu e inglês (su­ pra, cap. 1 8 § 7 e 22 § 3) e que, como remédio para tudo isso e para a odiada "civilização", recomenda viver perigosamente (IX, 390). Para quem pensa que basta apelar para as categorias do pensamento cal­ culador, de "sujeito constituinte" e de "consciência ordenadora" para explicar as tragédias do Século XX (e dos nossos dias), ou que basta apelar para a superação dessas categorias para deixar para trás essas tragédias, talvez se possa sugerir a leitura de um célebre trecho de A ideologia alemã: Uma vez um homem de valor imaginou que os homens se afogavam na água apenas porque estavam obcecados pelo pensamento da gravidade. Se tiras­ sem de sua mente essa ideia, demonstrando por exemplo que era uma ideia supersticiosa, uma ideia religiosa, estariam livres do perigo de afogar-se. Por toda a vida ele combateu a ilusão da gravidade, de cujas consequências dano­ sas toda estatística lhe oferecia novas e abundantes provas. Esse bom homem era o tipo do novo filósofo revolucionário alemão. 2º86 2081

Bõhm, 1 938, p. 106. Bõluu, 1 938, pp. 55 seg. 2083 Bõhm, 1938, pp. 106-8. 2º84 Bõhm, 1938, pp. 80 e 93 . 2º85 Bõhm, 1 938, pp. 121 e 126. 2º86 Marx-Engels, 1 955, vol. III , pp. 13-4. 2º82

8. Antigos, modernos e pós-modernos Ao denunciar o "holocausto (Opferfest) ininterrupto da classe operária"2m7 ou o "misterioso rito da religião de Moloc'', que exige o "infanticídio" e exprime depois, nos tempos modernos, uma "particular preferência pelos filhos dos po­ bres", Marx tem em mente a "economia política" da burguesia liberal,2088 mas poderia tranquilamente ter tido "ém mente também a "grande economia do Todo", que é cara a Nietzsche e que é a formulação enfaticamente metafisica daquela economia política. Na sua visão diferente e oposta do homem e da história, Marx e Nietzsche se referem às lutas culturais e políticas que atravessaram o tempo moderno, pois este não é absolutamente uma realidade homogênea. Desse ponto de vista, a delimita­ ção e contraposição de moderno e pós-moderno respondem a um esquema insus­ tentável no plano historiográfico, mas com um valor político e ideológico preciso. Para entendê-la, talvez pudesse ser útil voltar a Constant: a partir do seu celebérrimo discurso sobre a liberdade dos antigos e dos modernos, ele convida a pôr de lado de uma vez para sempre, como irremediavelmente "antiga'', a tradição rousseauiana-jacobina. Tamp ouco nesse caso faltam os elementos de instrumentalismo: ao excluir dos direitos políticos os que nada possuem, imersos no trabalho vulgar, o teórico liberal se mostra bem mais "antigo" do que a tradi­ ção rousseauiana-jacobina. Robespierre, acusado por ele de ter esquecido, na sua celebração da polis, a escravidão que constituía o seu fundamento, não só abole a escravidão moderna nas colônias, mas acusa os teóricos do monopólio proprietá­ rio dos direitos políticos (portanto, os precursores de Constant) de querer renovar o hilotismo da antiga Esparta. Os exageros do teórico liberal são, portanto, evi­ dentes e, no entanto, o seu discurso desenvolve uma extraordinária eficácia polí­ tica. O paradoxo é que o rousseauismo e o jacobinismo, liquidados por Constant como "antigos", são agora inseridos numa linha de continuidade com Hegel e Marx e, portanto, liquidados como "modernos". Vimos que se pode e se deve aprender muito de Nietzsche. Para fazer isto, porém, não é necessário afastar ou suavizar a radicalidade do seu projeto reacio­ nário. Se até os cantores acríticos da tradição liberal pareciam ignorar isso, a escravidão desempenha um papel essencial também em Locke, que a considera um instituto óbvio e pacífico nas colônias . Isto, porém, não exige que levemos a sério as análises desenvolvidas por ele a propósito da necessidade de limitar o poder no interior do espaço sagrado da civilização. Certamente, ao contrário da 2087 Marx-Engels, 1 955, vol. XXIII, p. 5 1 1 . 2088 Marx-Engels, 1 955, vol. XVI , p . 1 1 .

costumeira apologética, não devemos perder de vista o fato que deste espaço sa­ grado e da limitação do poder e do governo da lei ligados a ele está excluída a massa considerável dos profanos ou bárbaros. Locke desejaria ver sancionado na constituição de uma colônia inglesa na América o princípio pelo qual "todo ho­ mem livre da Carolina deve ter absoluto poder e autoridade sobre os seus escra­ vos negros, quaisquer que sejam a opinião e a religião deles".2cs9 Ele não duvida do fato de que há homens "por lei natural sujeitos ao domínio absoluto e ao poder incondicionado (absolute dominion and arbitrary power) dos seus senhores .2000 Locke mostra brutalidade igual em relação ao trabalho assalariado na metrópole capitalista. A longo prazo, ainda em pleno Século XIX, os desocupados e os mise­ ráveis foram encerrados, muitas vezes por simples providências policiais, em "ca­ sas de trabalho", definidas com razão como "os campos de concentração da 'bur­ guesia iluminada ' " .2001 No final do ,Século XVII, na Inglaterra liberal nascida da Revolução Gloriosa, Locke, na sua qualidade de membro da Commission on Trade, adianta uma proposta para mais um aperto: "Quem falsificar um salvo­ conduto [saindo sem licença] seja punido com um talho nas orelhas, na primeira vez, na segunda seja deportado para as plantações como por um crime", e assim reduzido na prática à condição de escravo. Mas há uma solução ainda mais sim­ ples, pelo menos para aqueles que tiverem o azar de serem surpreendidos pedindo esmola fora da sua paróquia e perto de um porto marítimo: que sejam embarcados à força na marinha militar; "se depois descerem à terra sem licença, ou saírem dos limites, ou ficarem em terra além do permitido, serão castigados como desertores", isto é, com a pena capital. 2002 Tudo isto é verdade. No entanto, o grande teórico da limitação do poder nos deixou uma lição que não é permitido ignorar, embora livrá-la das suas pavorosas cláusulas de exclusão seja uma operação absoluta­ mente não linear e indolor no plano do processo histórico concreto e absolutamen­ te não fácil até no plano meramente teórico: as cláusulas de exclusão podem apre­ sentar-se de forma cada vez mais diferente. Não há motivo para assumir, em relação a Nietzsche, uma posição dife­ rente. Nele, na onda da reação aristocrática de final do Século XIX, o espaço sagrado da civilização tomou-se ainda mais restrito, enquanto se toma ilimita­ da a massa dos profanos ou bárbaros. O outro lado da moeda é que este espaço é pensado como livre da coação não só de um poder opressivo, mas também de uma moral estreita e gregária, bem como livre da mutilação intelectual implícita na divisão do trabalho. Nesse sentido, Nietzsche pensou a liberdade do indiví2089

Locke, 1 963, p. 196 (art. CX). Locke, 1 970, p. 158 (II, § 85). 2º9 1 Colletti, 1969, p. 280. 2º92 ln Boume, 1 969, vol. II, pp. 377-90.

2º9º

duo (dos poucos, pouquíssimos a quem compete esta qualificação) em termos mais radicais e mais fascinantes do que Locke. Contudo, mais do que em qual­ quer outro caso, perder de vista nesse caso o todo significa impedir para si a compreensão também dos aspectos singulares. É Nietzsche o teórico da supera­ ção da divisão do trabalho? Pode-se também responder afirmativamente a esta pergunta, mas com a condição de acrescentar imediatamente em seguida que tal superação, afirmada como está na relação a um espaço sagrado restrito, repou­ sa na divisão do trabalho na sua forma extrema e mais brutal: o sistema de casta (isto é, a naturalização da divisão do trabalho) e a escravidão (isto é, uma divi­ são do trabalho levada ao ponto em que a grande massa dos homens é reduzida a simples instrumentos de trabalho sem individualidade e dignidade) . Conside­ rações análogas podem ser feitas a propósito, por exemplo, da emancipação da carne e do pensamento crítico: nem uma nem o outro são teorizados em termos gerais; de ambos está irremediavelmente excluída a massa imensa das vítimas sacrificais da civilização. A liberdade do indivíduo é pensada por Nietzsche em termos tão radicais que se dilui no utópico; no entanto, a outra face dessa fasci­ nante utopia é uma repugnante distopia que, depois de ter reduzido a imensa maioria dos homens a instrumentos de trabalho ou, pior, a "materiais e refugo e de descarte'', não hesita em considerar vantajosa a sua poda maciça. Pode-se e deve-se aprender tanto de Locke como de Nietzsche, mas para fazer isto é preciso colocar-se decididamente fora do seu mudo político e ideal. Podemos aprender muito com os dois autores acerca do desenvolvimento de uma individualidade livre; mas a condição preliminar de tal processo de apren­ dizagem é a derrubada da barreira que um e outro instituem entre espaço sagra­ do e espaço profano, entre civilização e barbárie. Em ambos os casos a catego­ ria de indivíduo não é universalizável. Mas é só Nietzsche que toma consciência do fato de que a liberdade ou a plenitude do indivíduo por ele celebrada pressu­ põe a escravidão e a redução a instrumento de uma massa de indivíduos ou antes de seres intrinsecamente incapazes de individualidade. Se, no plano polí­ tico, ele é decididamente mais "reacionário" do que o liberal inglês (o "radica­ lismo aristocrático" é a resposta polêmica às aberturas e às concessões do mun­ do liberal diante do desenvolver-se da ofensiva do movimento democrático e popular), no plano mais propriamente teórico Nietzsche se revela nitidamente superior; ele está bem consciente de tudo quanto de servil e de escravagista continua a existir nas relações de trabalho da sociedade capitalista do seu tempo e na relação entre metrópole ocidental e colônias. Quer dizer, é bem consciente das pavorosas cláusulas de exclusão que caracterizam o pensamento e a socie­ dade liberais.

APÊNDICE COMO S E CONSTROI A INOCÊNCIA DE NIETZSCHE EDITORES, TRADUTORES E INTÉRPRETES "O único sinal de reconhecimento que se pode testemunhar de um pensamento como o de Nietzsche é exatamente usá-lo, deformá-lo, fazê-lo berrar, gritar. Se depois os analistas dizem se somos fiéis ou não, não tem importância alguma ". 2093

A tese dele [de Giorgio Colli} é que seria necessário escutar N{ietzsche] como se escuta música - mas eu não admito, nem se­ quer para a música, um modo incompreensível e estético de escutar alguma coisa. Eu sou pela transposição em termos racionais e com­ preensíveis, ou melhor, pela descrição "histórica " (ou seja, no tem­ po) de qualquerfato: mesmo se as individualidades como N{ietzsche} são evidentemente irredutíveis (enteléquia), e se não me disponho a negar a legitimidade de quem considera as suas expressões fora do tempo (isto é para mim uma interrogação não resolvida). Se Giorgio fala assim, é exatamente porque para ele a racionalidade não tem importância e tudo se refere em última análise à unidade estética do indivíduo. 2094

[ .. } os mais graves equívocos e perigos de engano (e de autoengano) da ''doutrina " nietzscheana. 2095

s declarações citadas acima nos dão uma ideia do clima espiritual em que

Asurgiu e se afirmou a interpretação de Nietzsche hoje dominante. O caso

extremo é representado por Giorgio Colli, segundo o qual se deve ler o filósofo simplesmente entregando-se ao fascínio musical da sua esplêndida prosa. Nesse momento, Montinari procura resistir. Mas as expressões duras e pungentes, às quais recorre, não nos devem enganar: estamos na véspera de uma capitulação. Prevaleceu a leitura em perspectiva "musical" cara a Colli, ou seja, uma leitura 2093 Foucault, 1977, p. 135. 2094 De um apontamento (3-5 outubro 1963) de Mazzino Montinari in Campioni, 1992, pp. 82-3. 2095 Vattimo, 1 983, p. 1 83 .

"teórica" que considera irrelevante a reconstrução histórico-filológica (é o caso de Foucault) ou que abre as portas para as operações de alteração de Nietzsche dos seus "autoenganos" (é o caso de Vattimo). Esse clima espiritual influiu em primeiro lugar nas traduções italianas. O que constitui problema não são as imprecisões, os enganos e os erros: nenhuma tradução é isenta de enganos (e isto vale obviamente também para aquela pro­ posta que fiz sempre renovada durante a edição italiana deste livro). O proble­ ma é o "método" que preside as imprecisões, os enganos e os erros da versão italiana da edição Colli-Montinari e que se refere constantemente à preocupa­ ção de remover, como um elemento estranho e perturbador, o mundo histórico e político. Essa preocupação é tão forte que influi, pelo menos num caso, sobre o trabalho de edição.

1 . A judeofobia do jovem Nietzsche E é daqui que convém partir, também porque estamos diante de um texto que marca o início do percurso filosófico (e político) de Nietzsche. Em 1° de fevereiro de 1 870, ele faz uma conferência em Basileia com o título Sócrates e a tragédia. Conclui assim: Como conclusão, uma única pergunta. O drama musical está deveras mor­ to, morto para sempre? Realmente o Germano (der Germane) só poderá pôr ao lado daquela desaparecida obra de arte do passado apenas a "grande ópera", mais ou menos como ao lado de Hércules costumava aparecer o macaco? Esta é a mais séria pergunta da nossa arte, e quem como Germano (Germane) não compreende a seriedade desta pergunta caiu vítima do socratismo dos nossos dias, que sem dúvida não sabe produzir mártires nem fala a língua do ."mais sábio entre os gregos", que certamente não se glorifica [como o Sócrates histórico] de não saber nada, mas que na verda­ de não sabe nada. Esse socratismo é a imprensa judaica; não digo mais nem uma palavra (ST; 1, 549 e XIV, 101)

Detive-me longamente sobre as reações que este texto provoca na casa de Wagner e sobre a resposta de Nietzsche a tais reações (supra, cap. 3 § 1). É um acontecimento que convém agora repassar rapidamente, de modo que o leitor tenha à disposição os elementos essenciais para avaliar as escolhas do editor. Convidado por Cosima Wagner a não provocar de modo prematuro e precipita­ do a comunidade judaica, Nietzsche substitui 'judaica" (jüdische) por "atual" (heutige) e com um risco apaga, provavelmente mais tarde, a primeira parte do

parágrafo (por mim marcada com sublinhado). A segunda parte está na página seguinte do manuscrito, que foi arrancada (não se sabe bem se pelo filósofo ou pela irmã Elisabeth) . Uma coisa é clara: todo o parágrafo, assim como está citado (com referência explícita à "imprensa judaica"), corresponde à redação preparatória do texto, foi pronunciado durante a conferência em Basileia, foi enviado a Richard e Cosima Wagner e reflete, sem sombra de dúvida, a intenção original e autêntica do jovem filósofo. Tudo isso é dito claramente por Colli e Montinari (mesmo se a essas linhas de esclarecimento seja reservada uma colocação que as subtrai ao olhar do leitor). Vejamos, porém, como eles procedem na edição por eles organizada. A versão alemã contém só a primeira parte do parágrafo; para ler a conclusão e os detalhes do acontecido, o leitor deve aventurar-se na pesquisa e na leitura peno­ sa do volume dedicado às variantes e ao aparato crítico. Isto já é bastante discu­ tível. Em seguida à solicitação de Cosima, Nietzsche intervém no texto escrito e pronunciado não mais porque tivesse mudado de ideia, mas apenas para fazer uma autocensura momentânea sugerida por sua interlocutora. Não há motivo para o editor de hoje se ater também a essa sugestão. Decididamente pior estão as coisas no que respeita à versão italiana. O parágrafo é citado na íntegra, só que a "imprensajudaica" (stampa ebraica) do original tomou-se a "imprensa atual" (stampa odierna), enquanto na "Cronolo­ gia" e nas "Notas" que acompanham o texto não se faz nenhum aceno à versão original . Na "Cronologia" (Opere, vol. III, II, p. 394-6) são citados textos das cartas de Cosima e Richard Wagner nos quais os dois fazem referência a "sus­ to" e perturbação sentidos ao ler o texto da conferência; são igualmente citados trechos da carta de Nietzsche a Rohde nos quais o filósofo declara querer no futuro superar as cautelas do momento para exprimir-se "de modo sério e fran­ co ao máximo possível". Mas o todo se toma incompreensível por causa do desaparecimento tanto da referência à "imprensa judaica" como das recomen­ dações de Cosima à prudência sobre esse ponto. O musicista escreve: "O senhor poderá receber a absolvição somente se naquela parte ninguém entender nada [ . . . ] Desejo com todo o coração que o senhor não tenha de quebrar o pescoço". E Cosima, por sua vez: "Estávamos tão perturbados que à noite não lemos mais nada". Pode-se muito bem imaginar as perguntas do leitor: a qual "parte" se faz referência? E por que ela deveria ser tão ameaçadora? Wagner prossegue: "O senhor poderia livrar-me de uma boa parte, até de toda uma metade da minha missão". De que missão se trata? É a nova pergunta que o leitor se faz, o qual, porém, continua a ficar na escuridão do essencial: a aliança intelectual que, a partir da leitura de Sócrates e a tragédia, o musicista propõe ao filólogo na luta comum contra o judaísmo, uma luta a travar com a sagacidade tática que o

poder e a perfidia do inimigo exigem. Concluindo, a autocensura recomendada por Cosima e inexplicavelmente aceita como própria pela versão alemã da edi­ ção crítica se transforma em verdadeira censura na versão italiana (e nos peque­ nos volumes da Piccola Biblioteca Adelphi, que propõem de novo tal versão para o grande público). A censura se mostra cuidadosa e atenta. A "Cronologia" relativa a O nas­ cimento da tragédia (Opere, vol. 111, 1, p. 468) cita trechos da carta de Nietzsche a Wagner, nos quais Nietzsche atribui como mérito de Wagner o fato de ter dado expressão, junto com Schopenhauer, à seriedade germânica da vida", a uma "visão do mundo mais séria e mais espiritual", ameaçada por um 'judaísmo invasor" (B, II, 1 , p. 9). A citação começa no momento oportuno: cita a home­ nagem à "seriedade germânica da vida", mas o leitor ainda uma vez acaba nada sabendo sobre a oposição entre germanismo e judaísmo, que caracteriza em profundidade o Nietzsche pré-"iluminista", e sobre a denúncia do judaísmo que precede imediatamente. Mas agora vamos à tradução. Limitar-me-ei aos exemplos que são facil­ mente compreensíveis mesmo para o leitor não italiano. O Estado grego polemiza contra "uma aristocracia do dinheiro egoísta e apátrida" (CV, 3; 1, 774). É transparente a alusão às finanças judaicas, alvo constante da polêmica judeófoba e antissemita. Na tradução italiana, porém, de apátrida (apolide statlos) a aristocracia se transforma em "apolítica" (Opere, vol. III, II, p. 234) ! Retoman­ do um motivo caro a Wagner, o jovem Nietzsche censura Auerbach e os autores de origem judaica por recorrerem a um alemão que, "por razões nacionais", é caracterizado de "natural estraneidade" e se toma, por isto, "repugnante" (VII, 598) . Na tradução italiana, a "estraneidade" (estraneità Fremdheit) se toma "inexperiência" (Opere, III, III, II, p. 1 96); e assim a judeofobia do jovem Nietzsche consegue de novo perder seus vestígios. =

=

2. A suspensão da política e da história A Alemanha celebrada pelos teutômanos, entre os quais está o jovem Nietzsche, é sinônimo de autêntica "civiltà" [cultura, civilização] em oposição à banal ''civilizzazione" dos outros povos, sobretudo dos neolatinos. Não há vestígio da dicotomia Cultur/Civilisation na visão italiana da edição Colli­ Montinari. Nietzsche, porém, chama a atenção com força para o "antagonismo abissal" que existe entre "cultura" e "civilização" (supra, cap. 1 1 § 7). Dados os pressupostos metodológicos caros sobretudo a Giorgio Colli, é escassa a atenção dada à história. Embora nascida de uma reforma intrinseca-

mente plebeia, a seita dos puritanos consegue superar a sua origem e configu­ rar-se, graças aos estímulos de autossuperação provenientes da religião profes­ sada por eles, como uma raça de senhores : "Ascetismo e rigor puritano (Puritanismus) são meios de educação e enobrecimento quase indispensáveis, quando uma raça pretende triunfar sobre sua origem plebeia" (JGB, 61), con­ clui Nietzsche. Não é o caso da tradução italiana, que traduz Puritanismus por "castità" [castidade] ! Fora o· perigo de transformar o filósofo imoralista num defensor da pureza e da abstinência sexual, resta o fato que desapareceu o acon­ tecimento histórico concreto ao qual ele faz referência. De modo análogo, o "espírito visionário (schwãrmerisch) do Século XVIII" se torna, na tradução italiana, um "espírito extravagante" (FW, 362) ["espírito entusiasta", em portu­ guês, tradução brasileira] . E de novo tende a ofuscar-se a referência aos sonhos de palingenesia social que caracterizam a preparação ideológica da Revolução Francesa. Genealogia da moral (1, 5) censura os "socialistas europeus" pela sua "tendência à 'Comuna', à forma mais primitiva de sociedade": a versão italiana traz "comum'', em minúsculo: será que os leitores entenderam que aqui se tem em mente a Comuna de Paris? A Lutero, este plebeu - observa A gaia ciência "faltava toda a herança da casta (Kaste) dominante, todo instinto de poder" (FW, 358). A casta se torna a "classe" na tradução italiana (Opere, V, II, p. 272). Do mesmo modo em outros contextos ainda mais significativos. É "próprio de toda época forte" afirma O crepúsculo dos ídolos manter "o abismo entre homem e homem, entre categoria e categoria" (Stand [ceto em italiano]) (GD, Incursões de um inatual, 31). Na tradução italiana, em lugar de ceto (estamento) está de novo classe (Opere, VI, III, p. 136) [na tradução portuguesa, de Portugal, também está "classe'l Segue­ se o oximoron do abismo entre classe e classe. No entanto, pode-se falar de classe social enquanto houver uma relativa mobilidade social; mas é exatamente esta mobilidade que Nietzsche quer banir. É um traço que caracteriza o filósofo em todo o arco da sua evolução, inclusive o período "iluminista". -

-

-

3. Cria, fisiologia e degeneração Um processo análogo se verifica também para o tema da cria (Züchtung). Sabe-se que Vattimo recomenda a sua interpretação em perspectiva alegórica, com uma abstração arbitrária de um contexto histórico caracterizado pela pre­ sença difusa da eugenia e com uma abstração não menos arbitrária do interesse, ou antes do entusiasmo, de Nietzsche por esta nova "ciência". É interessante ver de que modo Vattimo imerge num banho purificador também as páginas mais

inquietantes do filósofo. Depois de ter enunciado a máxima "Morres no mo­ mento certo", Zaratustra prossegue assim: Sem dúvida, quem nunca vive a tempo, corno iria morrer a tempo? [Seria preciso que não tivesse nascido!

É isto que aconselho aos supérfluos. Mas também os supérfluos levam sua morte muito a sério, e também a mais vazia das nozes qu�r ser quebrada]. Todos dão importância ao mor­ rer (Wichtig nehmen Al/e das Sterben); mas a morte ainda não é uma festa . -

Os homens ainda não aprenderam corno se consagram as festas mais boni­ tas (Za,

1, Da morte voluntária). 2096

Entre colchetes está o trecho traduzido por Vattimo e no seu livro assinalado no modo clássico com os três pontos. Desse modo não se compreende que aos olhos de Nietzsche a importância da morte dos "supérfluos" é algo puramente subjetivo e imaginário. Eles pesam de modo intolerável sobre a sociedade e a vida; de um ou de outro modo seria preciso solicitar que pusessem fim a uma existência sem valor. Sobre isto, no capítulo que não por acaso foi definido como o "capítulo do suicídio", Zaratustra insiste com força (supra, cap.

1 9 § 4), mas não há vestí­

gio disso no comentário de Vattimo. Concluindo, ele transforma milagrosamente em pura reflexão moral um discurso eugênico não destituído de brutalidade: o suicídio induzido dos mal sucedidos como Festa da Civilização !

O processo de volatilização e sublimação conclui com a proposta de tra­

duzir

Üb ermensch por além-homem em vez de "super-homem": Nietzsche esta­

ria interessado apenas no "transcendimento" do "homem da tradição".2097 Na realidade, o discurso imediatamente sucessivo de Zaratustra, ao condenar "o egoísmo dos doentes", que se apegam a uma vida sem valor e desse modo agra­ vam a "degeneração"

(Entartung), prossegue assim: "Para o alto ruma o nosso (Art) para a super-espécie" ( Üb er-art) (Za, 1, Da

caminho, subindo da espécie

virtude dadivosa,

1). Um aspecto essencial do discurso de Zaratustra é a oposi­

ção do "super-homem" e da "super-espécie" à "degeneração" que se alastra.

E

de novo somos remetidos a um tema que, juntamente e inextricavelmente inter­ ligado com o da transmissão hereditária do crime e da eugenia, domina a cultura europeia e ocidental da segunda metade do Século

XIX, ocupando um papel

Central também no círculo dos autores e dos amigos caros a Nietzsche: isto é confirmado pelos nomes de Galton, Lombroso e Gobineau, que aparecem em suas cartas (supra, cap.

1 9 § 1). É inútil querer separar em Zaratustra o grande

e fascinante moralista do brutal teórico do radicalismo aristocrático. 2096 Vattirno, 1 983, p. 244. 2097 Vattimo, 1 983, p. 183, nota 1 1 .

O além-homem se toma o ponto de partida de um processo de transfigura­ ção e sublimação vertiginoso. Vattimo remete ao § 868 daA vontade de potência, que aqui convém citar na passagem central: "Uma raça dominadora só pode cres­ cer de inícios terríveis e violentos . Problema: onde estão os bárbaros do Século XX? Evidentemente se mostraram e se consolidaram apenas depois de enormes crises socialistas". É uma das páginas mais brutalmente significativas de Nietzsche. Postos diante do desafio das chamadas, noutro lugar, de "guerras socialistas" (supra, cap. 1 1 § 7), diante da "alternativa ou morrer ou impor-se", se formará uma nova casta ou raça dos senhores a partir daqueles que, tendo sacudido das costas as inibições democráticas e humanitárias, saberão recorrer aos meios bár­ baros que a situação impõe, saberão demonstrar uma "vontade de coisas terrí­ veis" (com alusão também ao aniquilamento dos mal sucedidos, que constituem a base da revolta servil). Só assim a nova "raça dominadora" poderá dispor da massa dos homens como do "mais inteligente animal escravizado". "Imcios terrí­ veis e violentos", "vontade de coisas terríveis": estas são expressões, também repetidas, que dão o tom a este texto {XIII, 1 7-8). Vattimo se refere porém a isso só para ler aí a evocação de "uma espécie de 'novos bárbaros', mas cuja barbárie consiste essencialmente em 'virem de fora', em serem subtraídos da lógica do sistema"; essa espécie "antecipa já os caracteres da liberdade alcançada pelo além­ homem". 2008 Como por encanto desapareceram os "inícios terríveis e violentos", as "coisas terríveis", as "enormes crises socialistas" e, naturalmente, a reafirmação da necessidade da escravidão. O peso da hermenêutica da inocência acaba às vezes provocando uma verdadeira reviravolta de significado . Ecce homo convida a prestar atenção a "todas as coisas que na vida merecem ser tratadas com seriedade, as questões de alimentação, moradia, dieta espiritual, tratamento dos do entes (Krankenbehandlung), limpeza, clima". Infelizmente, "no conceito do homem bom se tomou o partido de tudo o que é fraco, doentio, mal sucedido, sofredor de si mesmo, de tudo o que deve morrer (zu Grunde gehen sol[) -, se for inver­ tida a lei da seleção" {EH, Porque eu sou um destino, 8) . Na tradução italiana, a Krankenbehandlung, que tem um claro significado eugênico, se toma a cura dos doentes, apesar de Nietzsche evidenciar com itálico a necessidade de não manter artificialmente em vida o que no mundo é contrário à "lei da seleção" e, portanto, "deve morrer" (Opere VI, III, p. 3 84-5).

2098

Vattimo, 1 983 ,

p.

374.

4. Além do catecismo "nietzscheano " S e algumas escolhas editoriais e não poucas posições políticas que apa­ recem na tradução e na "Cronologia" e nas "Notas" da versão italiana são discutíveis, às vezes assume tons edificantes o comentário contido nas Ope­ re e nos volumes e livros pequenos de circulação mais fácil publicados pela editora Adelphi . Enquanto O crepúsculo dos ídolos (Aqueles que "melho­ ram" a humanidade, 4) indica o código Manu e o mundo hindu das castas como a expressão de uma "humanidade ariana", o comentário de Colli e Montinari especifica que o par conceituai ariano/antiariano tem aqui um "caráter objetivo, descritivo", isento de "critérios de valor". Ao definir o cristianismo como "a religião antiariana par excellence", Nietzsche se teria limitado a sublinhar a origem judaica de Jesus, em polêmica contra os antissemitas cristãos ou cristianizantes, empenhados em demonstrar a as­ cendência pelo menos semi-romana e semiariana do fundador da sua reli­ gião (Opere, VI, III, p. 502). Na realidade, no parágrafo em questão é nítida a oposição entre "valores dos chandala" e "valores arianos": se os primeiros encontram a sua consagração no cristianismo, os segundos se referem a uma "humanidade ariana, absolutamente pura, absolutamente original", que rejeita com horror "o homem híbrido", "o fruto do adultério, do incesto e do delito" (supra, cap. 1 2 § 8). Ficando em Colli e Montinari, um mestre da prosa teria recorrido a uma linguagem tão enfática para exprimir um con­ ceito tão inocuamente "descritivo"! Já é bastante problemático ler em pers­ pectiva de avaliação um filósofo que, com o seu perpectivismo, não se cansa de sublinhar que toda teoria inclui o momento da escolha, da opção, o pro­ nunciamento explícito ou implícito de um juízo de valor; mas é absoluta­ mente incompreensível que se possa submeter a essa perspectiva de leitura um parágrafo que, já na linguagem à qual recorre, transuda juízos de valor em cada linha ou em cada palavra. A hermenêutica da inocência continua a perceber a história como uma intrusa a ser colocada imediatamente porta afora. Enquanto o mito ariano se alastra, Nietzsche não apenas estaria imune, mas também ignorante. Na última fase da sua evolução, ele celebra enfaticamente o mundo hindu das castas, mas teria ignorado que o termo "varna", que é o termo para "casta", indica também a cor, com referência à diferença insuperável instituída entre os conquistadores louros das raças superiores e os povos subjugados de cor das castas inferiores. Um filólogo aguerrido e estudioso apaixonado pela civilização hindu estaria no escuro daquilo que, ao contrário, era perfeitamente claro tanto para Treitschke como para os círculos dos missionários cristãos desprezados e odiados por

Nietzsche. 2099 Na realidade, tendo já aparecido em O nascimento da tragédia, a mitologia ariana desempenha um papel crescente durante a sucessiva evolu­ ção de Nietzsche. Como frequentemente acontece em casos desse tipo, o zelo apologético, por um lado, erra totalmente o alvo: os antissemitas conseqüentes não têm qual­ quer dificuldade em reconhecer a origem judaica de Jesus, e aproveitam a oca­ sião para condenar o cristianismo junto com o judaísmo; é o caso, por exemplo, de Dühring (supra, cap. 1 8 § 6). Por outro lado, o zelo apologético acaba con­ seguindo um resultado oposto ao perseguido. Na sua leitura do aforismo que se acabou de citar, Colli e Montinari parecem partir do pressuposto de que, em Nietzsche, ariano se opõe a judeu: nesse caso, o reconhecimento ineludível do juízo de valor respectivamente positivo e negativo dos dois termos levaria o filósofo tão corajosamente defendido em direção das correntes antissemitas mais furiosas. Mas o polo oposto dos arianos ou da "raça" dos senhores não são os judeus e sim os "habitantes originais de cabelos escuros" (GM, 1, 5), fornecidos pela massa dos servos ou sudra. O mesmo zelo apologético inspira a desenvoltura com que é apresentado e manipulado o texto de Sócrates e a tragédia e com o qual são eliminados os vestígios da judeofobia do jovem Nietzsche. Pelo que diz respeito à Piccola Biblioteca Adelphi, não se trata dos únicos silêncios e remoções. Em vão se procurariam nos volumes e nos livros pequenos de circulação mais fácil, entre os tantos fragmentos publicados por eles, os fragmentos mais inquietantes ou decididamente repugnantes, aqueles que teorizam operações de aniquilamento em grande escala. Nesse caso, a preocupação pedagógica e catequética leva decididamente vantagem sobre o rigor filológico e histórico. É verdade que tam­ bém intérpretes ilustres recorrem a técnicas análogas, mas isto não é um motivo para desculpar um método inaceitável no plano científico e ético. Como esclareci mais vezes, não se trata absolutamente de considerar Nietzsche à maneira de um cachorro morto. Ao contrário, a sua poderosa carga desmistificadora pode ser captada só a partir do radicalismo reacionário do seu projeto político. Por outro lado, as suas páginas mais repugnantes remetem às páginas mais repugnantes da história do Ocidente escritas ainda antes do ad­ vento do III Reich. Assim como na história do Ocidente no seu conjunto, no pensamento desse grande filósofo grandeza e horror são as duas faces da mes­ ma moeda: remetem à rigorosa e impiedosa delimitação do restrito espaço sa­ grado no âmbito do qual só é reconhecido o direito ao livre desenvolvimento da individualidade. 2099 Treitschke, 1879,

p.

468; Wameck, 1879,

p. 196.

APÊNDICE II ÜS ÓCULOS E O GUARDACHUVA DE NIETZSCHE RESPOSTA AOS MEUS CRÍTICOS

"Muitos acreditaram que a nova edição crítica, publicada por Colli e Montinari, provocasse um novo e decisivo enriquecimento e aprofundamento da compreensão de Nietzsche. Ora, é certamente ver­ dade que pela primeira vez possuímos os cadernos de apontamentos de Nietzsche em forma criticamente segura e cronologicamente orde­ nada e que não dependemos mais da redação e da seleção em que a irmã de Nietzsche e os editores sucessivos tinham compilado os seus fragmentos póstumos; todavia é ingênuo crer que hoje, tendo o ver­ dadeiro Nietzsche à disposição, estejamos definitivamente livres das preocupações que atormentaram os intérpretes anteriores. Para isto serve o seguinte exemplo. Num recente opúsculo de Derrida, Les épérons de Nietzsche, todo um capítulo é dedicado a uma brevíssima

afirmação, a qual cita textualmente: "Perdi o meu guardachuva". Derrida escreve um ensaio muito elegante sobre esta frase. Talvez Nietzsche tenha perdido mesmo o seu guardachuva. Mas quem está em condições de saber se nesse fato se esconde algo importante, signi­ ficativo? Seja como for, o exemplo esclarece como ofrenesi de publi­

car tudo de um autor seja até um modo característico de esconder coisas essenciais entre outras que não são essenciais".21 00

mbora bastante precioso, o trabalho editorial de Colli e Montinari não é

Eaquela espécie de hermenêuticaplenitudo temporum, religiosamente anun­

ciada por intérpretes impacientes para desembaraçar-se das perguntas inquie­ tantes que a leitura de Nietzsche contém. A chamada de atenção de Gadamer é de 1 986, e já fazia tempo que aquelas perguntas tinham sido banidas em nome do politicamente correto e do bon ton. No entanto, era a própria edição Colli­ Montinari que confirmava a presença, num filósofo aliás extraordinariamente rico e estimulante, de motivos que hoje não podem não suscitar ecos sinistros: celebração da eugenia e da "super-espécie"; teorização, por um lado, da escra­ vidão, por outro, da "criação" da "espécie superior dos espíritos dominadores e 2100

Gadamer 1991, pp. 28-9, cf.

Derrida 1991, pp. 1 1 3-13 1 . 10 1 1

cesáreos"; invocação do "aniquilamento das raças decadentes", e do "aniquila­ mento de milhões de mal sucedidos"; afirmação da necessidade de "um martelo· com o qual despedaçar as raças em vias de degeneração e moribundas, com o qual tirá-las do meio para abrir o caminho para uma nova ordem vital".

1. O desapontamento de Gadamer Mas como explicar que o "guardachuva" extraviado de Nietzsche suscite mais atenção do que os motivos anteriormente citados? E aqui aparece a segun­ da parte do aviso de Gadamer, sempre por mim evidenciada com itálico. Deve­ mos agora olhar com desconfiança para o fato de que todos os fragmentos do filósofo sejam publicados com o mesmo título e com o mesmo destaque, de modo que os trechos mais inquietantes acabem ficando submersos por uma massa de detalhes relativos aos episódios mais diminutos da vida de Nietzsche? Talvez aqui Gadamer leve muito longe o exercício da hermenêutica da suspeita. Por outro lado, não é exato que a edição Colli-Montinari publique tudo do mesmo modo sem fazer nenhuma distinção. Na Groj3oktav-Ausgabe (vol. XIII, p. 43) podemos ler este trecho: Quem como homem do conhecimento reconheceu que em nós, junto com o crescimento de todo gênero, vigora ao mesmo tempo a lei da morte, e que inexoravelmente se impõem o aniquilamento e a decomposição que têm como finalidade toda criação e geração: este deve aprender a sentir uma espécie de alegria diante de tal espetáculo, de modo a poder suportá-lo; de outro modo não é mais apto ao conhecimento. Quer dizer, ele deve ser capaz de uma refinada crueldade e habituar-se a ela com coração resoluto. Se a sua força está ainda mais alto na hierarquia das forças, ele mesmo é um criador e não apenas um espectador: não basta então que ele seja capaz da crueldade ape­ nas vendo tanto sofrimento, tanto extinguir-se, tanto aniquilamento; tal ho­ mem deve ser capaz de ele mesmo com prazer causar dor, deve ser cruel com a mão e com a ação e não só com os olhos do espírito.

Citado numa edição sempre prestigiosa, inserido por Baeumler na sua an­ tologia nietzscheana dedicada à ilustração ou à celebração da "inocência do devir",2 1 01 o fragmento é depois reimpresso por Noite, que se serve dele para reforçar a sua leitura: reagindo com um projeto de "contra-aniquilamento" ao "aniquilamento" da burguesia invocado por Marx, Nietzsche teria "fornecido 2101

Baeumler, 193 1 b, vol. 1, p. 252.

ao radical antimarxismo político do fascismo, com décadas de antecipação, o modelo espiritual, do qual o próprio Hitler não conseguiu estar totalmente à altura".21 02 É uma tese provocadora que talvez tivesse merecido uma discussão bastante mais ampla do que aquela que conheceu. Mas o que acontece com o fragmento em questão no âmbito da edição Colli-Montinari? Quanto à versão preparatória do § 229 de Além do bem e do mal,2103 ele é citado entre as "Notí­ cias e Notas" da edição Adelphi de Além do bem e do mal e nos volumes dos aparatos críticos da Kritische Gesamtausgabe e da Kritische Studienausgabe, enquanto desaparece totalmente na versão digital da Kritische Studienausgabe que, até este momento, não reproduz o volume dos aparatos críticos. Por esta mesma razão desaparece da versão digital a conclusão original da conferência Sócrates e a tragédia, ou seja, a sua polêmica contra a "imprensa judaica".

2. "Enfurecimento " e "melhoramento " Quem reconhece de um modo ou de outro a seriedade desses problemas são também vozes insuspeitas. Depois de ter feito uma comparação bastante crítica com a leitura desenvolvida na monografia dedicada a Nietzsche por mim, Sossio Giametta observa: "De qu.alquer modo, o livro tem um grande mérito, o de pôr um fim, com os instrumentos históricos, filológicos e críticos mais válidos, à hermenêutica da inocência, que arranca Nietzsche do seu contexto histórico e das suas próprias raízes"; trata-se de uma "tendência" hermenêutica que "se apode­ rou dos melhores talentos, entre os quais os dois editores [Colli e Montinari] , induzindo-os a alguns erros sobre os quais Losurdo se enfurece". 2 1 04

O que dizer desta tomada de posição? Entretanto, não se pode deixar de apreciar a honestidade intelectual de quem, mesmo tendo dado uma contribui­ ção de primeiríssimo plano para a versão italiana da nova edição crítica, não se limita a reconhecer a presença (compreensível e até inevitável) de erros de tra­ dução e de outro tipo. Mais importante é o reconhecimento que esses erros correspondem de algum modo a uma lógica, a uma "tendência" interpretativa. Quanto a meu suposto "enfurecimento", convém notar que, enquanto eu me limito a evidenciar o peso que, na edição Colli e Montinari, apesar dos seus 21 02 Noite 1963, pp. 534-35. 21 03 Campioni, 2002. 2 1 º4 Giametta, 2003.

méritos inegáveis, exerce sempre a hermenêutica da inocência, Giametta deixa escapar que tal hermenêutica "se apossou" dos dois editores. Noutra ocasião, Giametta formula um juízo ainda mais drástico sobre Montinari, embora nesse caso detendo-se mais no trabalho dele de intérprete do que de editor Também em política ele faz valer a exigência de ter em conta Nietzsche, a sua critica e a sua dimensão. Não as suas verdades ofuscantes e lacerantes. Nem os seus erros e horrores (errori e orrori), como "a moral canibalesca que deveria ser imposta ditatorialmente", como diz Rohde, e que explode exatamente, e de modo inequívoco, em Além do bem e do mal [. ]. Todas as coisas que Montinari prega de Nietzsche têm o ar de serem importantes. São, porém, é lamentável dizê-lo, anódinas, quando não falsas.2 1º5 ..

Nem "todas" as observações de Montinari são "anódinas" ou "falsas'', mas é verdade que a tendência a afastar "errori e orrori" se faz sentir também no seu trabalho de editor, pelo menos nas notas e nos comentários que acompa­ nham a versão italiana. Com as minhas observações pretendo contribuir para o "melhoramento" da nova edição critica. Para indicar aqui apenas os problemas de solução mais simples: o leitor da edição italiana tem o direito de ser informa­ do de que a conferência de 1° de fevereiro de 18 70 termina fazendo acusações à imprensa judaica? E é aceitável que o leitor, ao ficar inteirado da agitação que a conferência causou em Cosima e Richard Wagner, nada saiba do motivo (a denúncia pública do judaísmo como sinônimo de socratismo) de tal agitação? Pode ser considerado filologicamente correto relatar, da carta que Nietzsche enviou a Wagner em 22 de maio de 1869, a celebração da "seriedade germ�nica da vida", silenciando, porém, a oposição dessa visão do mundo ao ')udaísmo invasivo"? Para acenar rapidamente ao problema da tradução, não seria opor­ tuno pôr fim à alegre confusão entre "civiltà" e "civilizzazione", dois termos aos quais Nietzsche atribui um significado bem diferente e até oposto? É um bom sinal o reconhecimento de que alguns "esclarecimentos" meus sobre a tra­ dução "podem ser aceitos".2106 Está claro que não estão em discussão a "boa fé" e a "probidade intelectual" de Colli e Montinari,2107 mas não se vê por que essas características devam ser menosprezadas em Lukács, como faz "La Republica" num artigo anônimo (toque de elegância!), que usa o adjetivo "lukácsiano" como sinônimo substancial de "policial"2108 e levanta de modo 2 1 º5 Giametta, 1998, pp. 260-6 1 . 2 1 06 Campioni, 2002. 2 1 07 Giametta, 2002. 2 1 08 "la Repubblica"

grosseiro a suspeita acerca dos próprios adversários, mas que deve ser rejeitada com desdém por si e por seu lado, é a definição mesma de dogmatismo!

3. Emerson e Nietzsche Entre as reações de diálogo com a discussão da hermenêutica da inocência é preciso incluir em posição eminente também a de um intérprete que, embora criticado por mim, é um expoente de primeiro plano de tal hermenêutica. Gianni Vattimo reconhece que Nietzsche, embora admirasse Emerson, "não comparti­ lhava, certamente, o compromisso pela abolição da escravatura": a celebração da escravidão como fundamento ineliminável da civilização não é, portanto, uma simples metáfora! Vattimo chama também a atenção para "certas contradi­ ções do individualismo com que ainda hoje temos de ajustar contas"21()1) : pode ser considerada realmente individualista uma visão do mundo que, como acon­ tece no teórico do radicalismo aristocrático e na tradição liberal por trás dele, enquanto celebra os indivíduos eleitos, rotula a enorme maioria da humanidade como um conjunto de instrumentos de trabalho e de máquinas bípedes? Quanto à emancipação de que fala a tradição liberal clássica e, em termos decididamen­ te mais radicais e mais fascinantes, Nietzsche.não se refere jamais ao indivíduo na sua universalidade. É por isso que o filósofo alemão, revelando uma consci­ ência crítica nitidamente superior à de seus predecessores liberais, cuida muito para não fazer profissão de fé de individualismo; ao contrário, ele sublinha que, assim como a "moral coletivista", também a "individualista" erra ao fazer valer parâmetros igualitários, reivindicando a "mesma liberdade" e a mesma impar­ cialidade para todos. O vício de fundo do cristianismo e do socialismo é pressu­ por e inventar almas ou indivíduos onde estamos na presença apenas de instru­ mentos de trabalho. Enfim, Vattimo, sempre a propósito de Nietzsche, se esfor­ ça justamente por valorizar os "traços menos 'nazistas' do seu pensamento": está claro que não estamos diante de um autor apolítico; é hora de dar adeus à hermenêutica da inocência! No entanto, não faltam as hesitações e as oscilações. Comparando Nietzsche com Emerson,Vattimo acredita que pode recuperar pelo menos parcialmente a leitura em perspectiva apolítica: apesar de tudo - sugere ele - ninguém quererá fazer valer nas comparações do escritor americano as suspeitas e as acusações feitas em relação com o filósofo alemão. Na realidade, a hermenêutica da ino­ cência se revela inconsistente também em referência a Emerson. Certamente, 2109

Vattimo, 2003 .

este não viveu o trauma da Comuna de Paris e de um interminável ciclo revolu­ cionário que, depois de ter devastado a França, parece encontrar o seu terreno preferido na Alemanha do final do Século XIX, caracterizada pelo avanço ame­ açador da socialdemocracia, ou seja, de um partido celebrado ou rotulado como a ponta de diamante da revolução por toda a cultura do tempo. Contudo, moti­ vos turvos não faltam sequer no escritor estadunidense, como aparece particu­ larmente pela celebração dos grandes homens (só eles dão sentido a um mundo infestado de "pigmeus" e, portanto, têm pleno direito de imolar "milhões de homens", "sem poupar sangue e de modo impiedoso"), pela insistência no papel da raça ("sabemos que peso a raça tem na história") e no caráter fatal da expan­ são das "raças instintivas e heroicas'', pela exaltação das guerras, que "limpam o campo das raças corrompidas e dos focos da doença". 2 11 º A fortuna da história de Emerson também é significativa. Mais tarde Chamberlain21 1 1 se refere a certos aspectos do seu pensamento e, com um entusi­ asmo todo particular, se refere Henry Ford, o grande fustigador do complô judeu­ bolchevique que ameaça o mundo, ou seja, o autor que, exatamente em virtude de tais temas, goza de grande prestígio no III Reich. 21 1 2 É sabido que Emerson está em excelentes relações com Carlyle, que é celebrado pelo publicismo nazista, junto com Chamberlain, como inspirador do novo regime: os "dois britânicos" têm um mérito comum, o de ter feito valer "a ideia de Führer e o pensamento da raça" (Führertum und Rassengedanke); graças a essa visão aristocrática do mun­ do eles estreitaram mais os laços entre alemães e ingleses, dois povos destinados a ter a primazia. 211 3 É um reconhecimento que poderia ser estendido também ao escritor estadunidense, o qual, por sua vez, sublinha e celebra a origem racial comum e a missão imperial comum de alemães, ingleses e estadunidenses. Portan­ to, não tem grande sorte a tentativa de pôr pelo menos Emerson a seco no terreno da cultura pura. O fato é que, apesar da aspereza da sua polêmica com Lukács, Vattimo parece compartilhar um pressuposto de fundo: ambos argumentam como se o processo de formação dos temas mais turvos da ideologia do final do Século XIX, sucessivamente herdados, radicalizados e transfonnados pelo nazismo, fos­ se um acontecimento totalmente interno da Alemanha! No que diz respeito a Emerson, há um capítulo da história da seu percurso que talvez seja de surpreendente atualidade. Logo depois da declaração da guer­ ra contra a Espanha foi elevado, por obra dos chauvinistas mais exaltados, ao 2 1 10 Emerson, 1983, pp. 732-45, 950, 954 e 1084. 21 1 1 Chamberlian, 1 937, p . 328.

2112

113

Baldwin 200 1 , pp. 45-47. Vollrath, 1 935, Prefácio.

panteão dos "intelectuais imperiais da sua raça'', daquela soberba "raça con­ quistadora" protagonista da irresistível expansão dos Estados Unidos. 2 1 1 4 Ele é porém relido de modo implacável pelos críticos da guerra suja contra o Vietnã. "Foi Emerson que libertou a nossa política e os nossos políticos de qualquer sentido de restrição". 21 1 5

4. O ministério público e a ré: uma estranha convergência No entanto, apesar do permanente dissenso com Vattimo, resta o fato que sua intervenção é sintomática: a hermenêutica da inocência relativa a Nietzsche não é mais um tabu intocável. Talvez comece a vacilar a tendência que, para livrar-se das "preocupações" às quais Gadamer faz referência, coloca-as na conta de dois bodes expiatórios. O primeiro é, como se sabe, constituído por Elisabeth, que teria adaptado a filosofia de Nietzsche às exigências do nazismo. É uma tese sobre a qual até hoje poucos ousam formular dúvidas. O que impor­ ta se a biografia por ela dedicada ao filósofo se coloca entre os dois séculos e se A vontade de potência foi publicada em 190 1 e, em segunda edição, em 1 906, na Europa da belle époque, quando ninguém estava em condições de prever não só a ascensão de Hitler, como sequer o estouro da primeira guerra mundial? A fim de não serem perturbados na sua boa consciência, os hermeneutas da ino­ cência não hesitam em atribuir extraordinárias capacidades adivinhatórias à desprezada Elisabeth. Surge uma espécie de Nostradamus de saia que, ademais, longe de limitar-se a prever um futuro remoto, trabalha ativamente e com suces­ so para a sua infausta realização. O bom é que, apesar da aspereza do requisitório, o inflexível ministério público acaba revelando insuspeitos pontos de contato com a infeliz acusada. Na sua tentativa de recuperar, em base mais fraca, a hermenêutica da inocência, Vattimo aproxima Nietzsche de Emerson, mas na sua biografia, Elisabeth já su­ blinha que o filósofo "amava de modo particular" o escritor estadunidense. 211 6 Colli e Montinari insistem na estraneidade de Nietzsche em relação ao antissemitismo e à judeofobia? É exatamente o ponto de vista de Elisabeth. Se os dois editores, ao reproduzir Sócrates e a tragédia, passam por cima dos aparatos críticos ou cancelam totahnente a conclusão da conferência ("este socratismo é a imprensa judaica"), de modo análogo procede a desprezível irmã do filósofo. Esta, Cf. Albert J. Beveridge in Bairati 1 975, p. 242. Cf. Lopez 1999, p. 198. 2 1 16 Fõrster-Nietzsche 1895-1904, vol. II, p. 176. 2114 2115

na sua biografia, fala amplamente da conferência em questão, mas se cala sobre a sua conclusão; relata as reações ao mesmo tempo admiradas e preocupadas de Cosima e Richard Wagner, mas sem especificar que é a explícita identificação de socratismo com judaísmo que as provoca. Por outro lado, são exatamente Colli e Montinari que sugerem, nos aparatos críticos da edição alemã, que quem arran­ cou a página final, com a conclusão já vista de Sócrates e a tragédia, talvez tenha sido o autor da conferência. Como se poderia explicar a operação de Elisabeth senão com o desejo de proteger o filósofo da acusação de antissemitismo? Elisabeth é a destinatária das cartas nas quais o jovem Nietzsche dá vazão à sua judeofobia: ele se alegra por ter "finalmente" encontrado um restaurante onde é possível saborear a comida sem ter de sofrer a vista dos "feios focinhos judeus", mas também, sempre com referência aos judeus, de "nojentos macacos sem espírito e outros comerciantes"; mas exprime o seu desapontamento pelo fato de no teatro, por ocasião de uma representação da Afrikanerin de Meyerbeer (o musicista de origem judaica escarnecido por Wagner), topar com ''judeus e compadres de judeus em todo lugar para onde olhava". Dirigindo-se à irmã, chega a escrever: "Como podes pretender que eu encomende um livro de um escandaloso antiquário judeu?" Elisabeth se cuida muito bem para não alardear essa carta, antes estende sobre ela um véu piedoso de silêncio; mas não é de modo semelhante que procede a edição Colli-Montinari? Há outro detalhe inte­ ressante. Depois da crítica demolidora sofrida por O nascimento da tragédia, Nietzsche rotula Wilamowitz como "rapazola afetado de arrogância judaica", enquanto faz ironia sobre a frieza do mestre ou ex-mestre Ritschl, responsabili­ zando-a pela sua cultura de marca alexandrina ou ''judaico-romana". Tons aná­ logos caracterizam também a reação do círculo de amigos do filólogo-filósofo de Basileia. De modo mais frio, na sua biografia, Elisabeth se limita a criticar a estreiteza de horizontes dos filólogos profissionais. Em última análise, se a vio­ lenta judeofobia do jovem Nietzsche ficou por tanto tempo na sombra, foi devi­ do, em primeiro lugar, à cortina que a amável irmã estende sobre ela. Longe de adaptar (com décadas de antecipação ou de previsão) o pensa­ mento do irmão às exigências ideológicas do nazismo, Elizabeth tende a suavi­ zar ou a tirar as declarações mais repugnantes. Mas é Brandes, o discípulo bastante estimado do Mestre, o autor de uma interpretação de Nietzsche que faz dele o campeão das formas mais radicais e mais repugnantes de eugenia (herdadas depois pelo nazismo): "A higiene que mantém vivos milhões de seres fracos e inúteis, os quais deveriam antes morrer, não constitui para ele um ver­ dadeiro progresso"; na realidade, "a grandeza de um movimento se deve medir pelos sacrificios que ele exige". Concluindo, idêntica é a preocupação que ins­ pira, por um lado, os atuais apologetas, por outro, a irmã de Nietzsche: trata-se

de erguer a ele um monumento; é claro que um monumento pós-moderno não pode não diferir de um monumento da era guilhermina. O único ponto de apoio ao qual a tese do complô de Elisabeth procura deses­ peradamente agarrar-se é constituído pela homenagem que, em 1934, quando ela ainda estava viva, e no ano seguinte, já morta, Hitler presta. Mas esse ponto de apoio é muito escorregadio! O Führer pretende claramente prestar homenagem não à viúva Fõrster, mas, exatamente, à irmã do filósofo, a quem se refere. E não está totalmente errado, pelo menos segundo Heidegger que, em 1936, observa: "Mussolini e Hitler, os dois homens que introduziram um contramovimento em relação ao niilismo, estiveram ambos na escola de Nietzsche, ainda que de modo essencialmen­ te diferente" [ver exergo, parte quinta]. É verdade, Elisabeth mostra aumentarem as inclinações e salamaleques do Führer: finalmente, o irmão se tomou um monumento nacional! No entanto, não faltam as reservas e até uma certa ironia: depois da visita de Hitler a Weimar, Elisabeth observa que ele dava "a impressão de um homem significativo mais no plano religioso que no político". 21 17 Heidegger se mostra mui­ to mais confuso no seu entusiasmo, pois estava tão fascinado pelo Führer que fez calar as dúvidas e as objeções tímidas de Jaspers com este argumento: "Observa as suas mãos maravilhosas!''2118 Por que, então, responsabilizar a pobre senhora em vez de um grande intérprete pela quebra do encanto da leitura apolítica de Nietzsche? Sem se deixar impressionar por essa objeção, os henneneutas da inocência precaveem­ se do embaraço mergulhando tranquilamente também Heidegger num banho purifi­ cador que o limpa de toda escória política.

5. O conflito das faculdades: filósofos e historiadores Para se dar conta da insustentabilidade também do segundo mito (o que identifica o bode expiatório não mais em Elisabeth, mas em Lukács ), basta uma simples experiência intelectual. Imaginemos um estudante que queira estudar Nietzsche. Começa frequentando um departamento de filosofia; se for na Itália, aí predominam incontestavelmente Kaufinann, Deleuze, Foucault, Bataille, Vattimo, Cacciari, todos com modalidades diversas empenhados em denunciar o complô de Elisabeth e o delírio ideológico de Lukács . Mas se por ventura se decidir a frequentar um curso de história, o estudante topará com uma linha interpretativa totalmente diversa: historiadores eminentes como Ritter, Hobsbawm, Elias, Mayer, Nolte concordam todos, mesmo que a partir de orien2 1 17 2118

Fest 1973, pp. 458-9. Jaspers 1984, p. 1 0 1 .

tações entre elas bastante diferentes, em colocar Nietzsche no âmbito da reação antidemocrática do final do Século XIX, da qual parte o movimento que desem­ bocou depois no fascismo. Nas aulas de filosofia é obrigatória a hermenêutica da inocência, mas eis como a propósito da filosofia de Nietzsche se exprime Mayer: "Pode-se dizer tudo da nova Weltanschauung, menos que é inocente". Se o historiador estadunidense aqui citado devesse ser considerado esquerdista demais (o livro ao qual se faz Feferência é dedicado a Marcuse), podemos nos voltar para Noite: como vimos, aos olhos do campeão do revisionismo históri­ co, Hitler é uma espécie de discípulo tímido e desajeitado de Nietzsche! Mais do que se haver com Lukács, os hermeneutas da inocência fariam bem em ajustar o tiro. Com relação ao filósofo marxista húngaro também Lichtheim exige um desprezo soberano, pois ele afirma: "Não é exagerado afirmar que, se não fosse por Nietzsche, as SS - as tropas de assalto de Hitler, nervo do movimento inteiro - não teriam tido a inspiração que lhes permitiu desenvolver um programa de genocídio na Europa oriental". Trata-se de uma tese errada. Por um lado, quando teoriza o "aniquilamento das raças decadentes", Nietzsche não pensa certamente nos eslavos que, no final do Século XIX, são ainda considerados parte integrante do mundo "civil" (Chamberlain também é dessa opinião). Por outro lado, é um embelezamento da tradição colonial e do Ocidente liberal instituir uma relação ime­ diata e exclusiva entre esse invocado "aniquilamento" e o III Reich, como se o desaparecimento da face da terra dos peles-vermelhas ou dos aborígenes da Austrá­ lia e da África austral não estivessem em ação já no final do Século XIX! Todavia, põe-se um problema: por que mais do que se haver com Lukács, os hermeneutas da inocência não se medem com os historiadores supracitados e com os estudiosos mais recentes e mais qualificados do III Reich (por exemplo Kershaw), os quais acentuam o forte peso que a leitura de Nietzsche exerce na formação ideológica de Hitler? No seu tempo, foi objeto de amplo debate e de desapontamento difundido a diferença entre as duas culturas, mas nesse caso se fazia referência à escassa comunicação entre cultura científica e cultura humanística. Agora, porém, no âmbito da própria cultura humanística parece haver incomunicabilidade entre pesquisa filosófica e pesquisa histórica, sendo que a última aparece, aos olhos dos filósofos-sacerdotes do culto de Nietzsche, como a profanação de um rito sagrado.

6. Os afastamentos da "nova direita " e da esquerda pós-moderna Surge assim toda a inconsistência da acusação tradicionalmente dirigida a Lukács de ter retomado, ainda que com um juízo de valor oposto, o retrato de

Nietzsche traçado por Baeumler. 211 9 É uma acusação que ignora com desenvol­ tura, por um lado, o Heidegger dos anos 1 930 e, por outro lado, toda uma série de historiadores contemporâneos. Nos nossos dias, na realidade, como a esquerda pós-moderna, também a nova direita tende a afastar as declarações mais repugnantes de Nietzsche: no seu esforço de adquirir nova respeitabilidade, ela se encontra num forte embaraço diante da invocação do "aniquilamento das raças decadentes" e de "milhões de mal sucedidos". É o que surge com particular clareza da recente tradução italiana do livro dedicado ao filósofo em 1 93 1 por Alfred Baeumler, que dois anos depois adere ao partido nazista. E eis que agora a Zucht e a Züchtung de que fala Nietzsche se toma o "adestramento". O termo aqui utilizado tem algo de militante e de belicoso e, portanto, se distingue da banal e filisteia "educação", o termo ao qual recorrem de bom grado os tradutores e intérpretes pós-modernos. No entanto, como a "educação", também o "adestramento" não consegue explicar o programa eugênico do "novo partido da vida" caro a Nietzsche, que pretende encorajar a fecundidade dos casais bem sucedidos, enquanto auspicia a proibição do matri­ mônio para os mal sucedidos e até a sua "castração" ou o seu "aniquilamento". É por isto que, com referência explícita a Galton, o "novo partido da vida" não se limita a recomendar a "educação" ou o "adestramento" da raça dos senhores e da raça dos servos, mas exige a sua "criação". Mas, como para a esquerda pós­ modema, também para a nova direita, que busca redefinir o seu programa anti­ igualitário mais em termos culturais que naturalistas e biológicos, a eugenia nietzscheana é algo incômodo, de que é preciso livrar-se. Analogamente, Üb ermensch é vertido, na recente tradução italiana de Baeumler, não com o tradicional "super-homem", mas com "sobre-homem". 2 1 2º Também nesse caso salta à vista a analogia com a tradução cara a Vattimo de "além-homem". No discurso de Zaratustra, o "super-homem" remete à "super­ espécie"; e de novo aparece a sombra da eugenia. Mas há uma sombra mais inquietante ainda à espreita, a sombra projetada por uma categoria central, e particularmente funesta, do discurso ideológico nazista. Faço alusão à catego­ ria de Untermensch, que dificilmente pode ser separada daquela de Übermensch: são os dois termos constitutivos de uma única dicotomia conceituai. De fato, quem chama a atenção para o perigo mortal que o Untermensch (a massa dos ''selvagens e bárbaros'', ''essencialmente incapazes de civilização e inimigos incorrigíveis dela") representa para a civilização é um publicista que leu ou ouviu Nietzsche e que na esteira dele, imitando também a sua linguagem e agi2 1 19 2120

Baeumler 193 1 . Em português, "sobre-homem". Baeumler 2003.

tando os mesmos autores de referência, polemiza contra o "feitiço" ou o "ídolo" da "democracia'', evoca uma "nova aristocracia" ou uma "nova nobreza" e exprime a sua admiração por Teógnis e pela batalha por ele travada contra os matrimônios mistos entre nobreza e plebe. O "além-homem" caro à esquerda pós-moderna ou o "sobre-homem" caro à nova direita é invocado para operar o milagre da remoção, além da eugenia, também e sobretudo do Untermensch! Há, porém, uma encenação nessa vicissitude linguístico-ideológica: O autor do qual se fala não é alemão, mas um estadunidense que estudou na Alemanha e que em 1 922, foi o primeiro a cunhar o termo Under Man, sobre cuja ameaça chama a atenção o subtítulo do livro publicado por ele. É um livro imediatamente traduzido na Alemanha: assim o Under Man se toma o Untermensch, uma cate­ goria apaixonadamente celebrada por Rosenberg, o qual reconhece a sua dívida em relação a Lothrop Stoddard, o autor estadunidense em questão, ao qual, aliás, dois presidentes estadunidenses, Harding e Hoover, exprimem o seu aplauso. Como se vê, a alternativa à hermenêutica da inocência não é a linha reta de continuidade entre Nietzsche e Hitler! Antes ainda do bolchevique oriental e asiático, o Untermensch visado pelo ideólogo estadunidense se refere aos negros e aos peles­ vennelhas que são objeto, nos anos seguintes ao fim da Guerra de Secessão, de uma violência terrorista ou de práticas genocidas. Considerações análogas podem ser feitas para o outro termo da dicotomia conceituai aqui analisada. No início do Século XX, vemos um poeta inglês, John Davidson, por um lado, referir-se ani­ madamente à teoria do super-homem, e, por outro lado, criticá-la por causa do seu caráter cosmopolítico. Assim escapava de Nietzsche uma verdade fundamental: "O inglês é o super-homem, e a história da Inglaterra é a história da sua evolu­ ção". De opinião diferente, porém, naquele mesmo período de tempo, é um outro cantor do imperialismo, um autor italiano, Angelo Mosso, fascinado de modo todo particular pela epopeia do Far West: "oyankee representa o super-homem".2121 Portanto, para compreender os motivos mais repugnantes da filosofia de Nietzsche (a outra face do radical e fascinante projeto de emancipação que ele pensa 2121

ln Losurdo 1997 c, p. 82. A tradução deste apêndice se atém ao fato italiano. Às vezes se fazem referências às traduções do texto de Nietzsche em língua portuguesa, de Portugal e do Brasil. São vários os tradutores e as editoras dos textos de Nietzsche em português e não há nenhum plano de trabalho comum entre eles. A nossa situação, portanto, é diferente do caso de Losurdo. Nossos tradutores tinham, em geral, a tradução italiana, francesa ou inglesa ao traduzir o texto do alemão. Por isto, os problemas citados pelo autor para o texto italiano se repetem nas nossas traduções. Quando julguei necessário, fiz notas para evidenciar isto. As notas do tradutor têm a chamada em letras do alfabeto. (N. T)

para a élite restritíssima da casta aástocrática e dos super-homens), não só é preciso partir do final do Século XIX, e não de 1 93 3 , mas se deve acrescentar que, antes de ser herdada e radicalizada pelo nazismo, a turva ideologia que se difundiu entre os dois séculos investe, muito além da Alemanha, contra o Ocidente no seu conjunto. Voltamos assim às "preocupações" e às perguntas inquietantes para as quais Gadamer acenava: não conviria retomá-las e rediscuti-las numa perspecti­ va nova em vez de obstinar-se a removê-las? Ou os óculos e o guardachuva de Nietzsche continuarão a levar vantagem?

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Friedrich Nietzsche

Remete-se diretamente no texto às obras e à correspondência de Nietzsche. No que diz respeito às obras, salvo indicações em contrário, faz-se referência à seguinte edição (a mais difundida e agora disponível também em versão digi­ tal): SCimtliche Werke, Kritische Studienausgabe, organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari, DTV-de Gruyter, München, 1 980. A sigla é seguida por eventuais indicações da divisãó interna do texto e, quando se acha necessário, a indicação do volume e da página relativos à edição citada é precedida por ponto e vírgula. Na ausência de ulteriores indicações, o volume e a página se referem aos Nachgelassene Fragmente ou às variantes depois abandonadas (vol. XIV). No que diz respeito à correspondência, remete-se à seguinte edi­ ção: Briefwechsel. Kritische Gesamtausgabe, organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari, de Gruyter, Berlin-New York, 1 975 seg.: a indicação do volume, do torno e da página é sempre precedida pela letra B). Damos agora o elenco das outras siglas utilizadas:

KGA = Werke. Kritische Gesamtausgabe, organizado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari, de Gruyter, Berlin-New York, 1 964 seg., ainda não com­ pletada. FS = Frühe Schriften, Beck, München, 1 994 (reprodução anastática de Werke und Briefe, Historisch-kritische Gesamtausgabe organizado por Hans Joachirn Mette e Karl Schlechta, Beck, München, 1 933- 1 940, edição interrompida de­ pois da publicação dos primeiros cinco volumes). A = Autobiographisches aus den Jahren 1856 bis 1869, in F.N., Werke in drei Btinden, organizado por Karl Schlechta, Hanser, München 1 976, vol. III. FG Fatum und Geschichte. Gedanken (Destino e história. Pensamentos), 1 862, in Werke. Kritische Gesamtausgabe, organizado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari (doravante KGA), vol. 1, 2, de Gruyter, Berlin-New York =

2000.

DTM = Dissertatio de Theognide Megarensi ( 1 864), in FS, vol. III, Schriften der Studenten- und Milittirzeit, 1 935.

KZD = Die Kirchlichen Zusttinde der Deutschen in Nordamerika (As condi­ ções religiosas dos alemães na América do Norte), 1 865, in KGA, vol. 1, 4. HK.P Homer und die klassische Philologie (Homero e a .filologia clássica), Natal de 1 869, in KGA, vol. II, 1 . =

GMD = Das griechische Musikdrama (O drama musical grego), conferência proferida em Basileia em 1 8 de janeiro de 1 8 7O. ST = Sokrates und die Tragodie (Sócrates ela tragédia), Conferência proferida em Basileia em 1 ° de fevereiro de 1 870. SGT = Sokrates und die griechische Tragodie (é outra versão do texto apenas citado) (Sócrates e a tragédia grega), 1 87 1 . DW = Die dionysische Weltanschauung (A visão dionisíaca do mundo), escri­ ta em junho-julho de 1 870. GT= Die Geburt der Tragodie (O nascimento da tragédia), 1 872; a reedição de 1 8 8 6 é precedida de um Versuch einer Se/bstkritik, Tentativa de uma autocrítica. BA= Ueber die Zukunft unserer Bildungsanstalten (Sobre o futuro das nossas escolas), 1 872. PHG Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A filosofia na época trágica dos gregos), 1 873, publicação póstuma. WL = Üb er Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinne (Sobre a verdade e a mentira em sentido extramoral), 1 873, publicação póstuma. =

CV = Fünf Vorreden zu fünf ungeschriebenen Büchern (Cinco prefácios par cinco livros não escritos), 1 873 . CV, 1 = Ueber das Pathos der Wahrheit (Sobre palhas da verdade). CV, 2 = Gedanken über die Zukunft unserer Bildunsganstalten (Pensamentos sobre o futuro de nossas escolas).

CV, 3 = Der griechische Staat (O Estado grego). CV, 4 = Das Verhaltniss der Schopenhauerschen Phi/osophie zu einer deutschen Cu/tur (A relação dafilosofia schopenhaueriana com uma cultura alemã) . CV, 5 = Homer s Wettkampf (Competição homérica). MD = Mahnrufan die Deutschen (Aviso aos alemães), 1 873 . DS = David Strauss der Bekenner und der Schriftsteller, Unzeitgemtij3e Betrachtungen, 1 (David Strauss, o homem defé e o escritor, Considerações inatuais, 1), 1 873. HL = Vom Nutzen und Nachthei/ der Historie für das Leben, Unzeitgemaj3e Betrachtungen, Il (Sobre a utilidade e o dano da história para a vida, Con­ siderações inatuais, li), 1 874. SE = Schopenhau er ais Erzieher, Unzeitgemaj3e Betrachtungen, (Schopenhauer como educador, Considerações inatuais, III), 1 874.

III

WB = Richard Wagner in Bayreuth, Unzeitgemãfie Betrachtungen, IV (Richard Wagner em Bayreuth, Considerações inatuais,

IV),

1 876.

MA = Menschliches, Allzumenschliches. Ein Buchforfreie Geister (Humano, de­ masiado humano. Um livro para espíritos livres), 1 878; o Prefácio é de 1 886. VM = Vermischte Meinungen und Sprüche (Opiniões e sentenças diversas), 1 879.

WS = Der Wanderer und sein Schatten (O andarilho e a sua sombra), 18 80 (no começo do ano); em 1 886 VM e WS passam a constituir a segunda parte de MA, a qual é precedida de um Prefácio. M = Morgenrõthe. Gedanken über die moralischen Vorurtheile (Aurora. Pen­ samentos sobre os preconceitos morais), 1 8 8 1 (o Prefácio é de 1 8 87). FW = Die .frohliche Wissenschaft (A gaia ciência), 1 882 (a segunda edição, com o acréscimo do quinto livro e do Prefácio, é de 1 8 87). Za = Also sprach Zarathustra (Assim falou Zaratustra), 1 883- 1 885. JGB = Jenseits von Gut und Base (Além do bem e do mal. Prelúdio de uma filosofia dofaturo), 1 886 (publicado no final de julho). GM = Zur Genealogie der Moral (Genealogia da moral), 1 887. WA= Der Fali Wagner (O caso Wagner), 1 888. EH = Ecce homo. Wie man wird, was man ist (Ecce homo. Como se vem a ser o que se é), 1 888.

GD = Gotzendãmmerung (Crepúsculo dos ídolos), 1 889. AC = Der Antichrist (O Anticristo), composto em 1 888, publicado em 1 8 95 . NW = Nietzsche contra Wagner. Aktenstücke eines Psychologen (Nietzsche contra Wagner. Documentos processuais de um psicólogo) ( 1 888).

WzM ( 1 90 1 ; 1 906: acrescentada segunda edição) = Der Wille zur Macht (A vontade de poder).

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Índice analítico•

e França, 44, 226; ver também Galofobia Teutomania herdeira do helenismo trá� gico, 227, 375; ver também Mito (do A Sonderweg alemão) e mitos genea­ Abolicionismo, 102, 382, 535, 6 13, 919. lógicos, ; ver também Ariano ver também Escravidão, Otium Alembert, Jean-Baptiste Le Rond d', 920 Abraão, 1 12, 197, 490, 926 Alexandre II Romanov, czar da Rússia, Absolutismo monárquico, 104, 304, 405, 333, 374, 494 406, 684, 753, 979 Alexandre, rei da Macedônia (Alexandre Adams, John Quincey, 770 o Grande ou Alexandre Magno), �domo, Theodor Wiesengrund, 505, 733 25, 131, 613 A.fi'ica, 3 1 8, 380, 384, 435, 534, 535, 536, Alexandrinismo, 32, 1 12, 129, 130, 131, 470, 537, 543, 585, 604, 614, 682, 707, 801, 489; ver também Helenismo 959, 1 020; ver também Colonialismo Allard, Paul, 1025 Emancipação (dos negros), Escravidã� A/tntí.snio, 281, 282, 283, 290, 339, 417, 513, Agostinho, Aurélio, Santo, 370, 382, 898, 629, 642, 705, 9 1 1 , 931, 957, 97 1 , 976, 946 989; ver também Economia política, Agoult, Marie d', 765 Moral (da compaixão) Alberich, 126 América, 260, 3 1 1, 3 12, 3 17, 319, 35 1 , 386, "A lém do bem e do maf' , 334, 338, 346, 387, 420, 465, 466, 497, 546, 654, 679, 691, 351, 359, 374, 406, 418, 452, 548, 550, 708, 730, 777, 799, 878, 999; ver também 558, 564, 565, 567, 571, 583, 65 1, 652, Abolicionismo, Guerra (da Secessão), 653, 671, 676, 689, 709, 724, 758, 843, Escravidão, Estados Unidos 853, 863, 875, 883, 904, 907, 950, 951, Ammon, Alfred Otto, 730 963, 971, 1013, 1014 Anarquia (anarquismo), 254, 314, 3 15, 357, Alemanha, 32, 36, 37, 40, 41, 42, 44, 45, 46, 49, 367, 445, 636, 766, 772, 863, 866; ver 50, 51, 65, 72, 73, 74, 77, 79, 83, 88, 91, 94, também Comunismo, Revolução So102, 103, 108, 109, 1 16, 1 17, 125, 126, 127, ' cialismo 128, 129, 133, 139, 140, 141, 142, 143,144, e "autodisciplina linguística" 864' 868· 145, 146, 150, 151, 152, 153, 161, 163, 165, ' ver também Intelectuais 169, 170, 172, 178, 195, 204,226, 228, 229, Andler, Charles, 830 230, 232, 238, 239, 243, 256, 270, 290, 329, Andréas-Salomé, Lou, 326, 844, 861 , 863, 333, 366, 372, 374, 380, 399, 400, 404, 454, 912, 913 462, 463, 465, 466, 489, 490, 492, 494, 496, Anticristianismo, 516, 721, 750, 793, 809; ver 524,525, 527,535,538, 539, 541,543,544, também Cristianismo, "Anticristo (o)" 545, 552, 557, 562, 563, 565, 591, 619, 622, "Anticristo (O)", 263, 453, 471 , 473, 5 18, 632,641, 668,681, 683, 690, 694, 721, 722, 546, 547, 566, 568, 584, 713, 714, 721, 730, 733, 736, 756, 761, 762, 765, 773, 775, 739, 8 1 1 , 814, 823, 824, 830, 83 1. 854 787, 790, 794,804,805, 827, 830, 83 1, 842, "Antigermanismo" de Nietzsche ' 7S5 762' 843, 856, 921, 925, 929, 937, 954, 963, 967, 765, 829, 830, 831, 833 1004, 1016, 1022, 1023 Antigo regime, 32, 33, 34, 45, 47, 90, 104, 159, 19 9, 212, 243, 250 , 266, 273, 274, ;;;:;:--;:----�:------::::-------____ . E l aborado por Emanue1 a Susca 304, 308, 336, 362, 404, 407, 416, 426, '

'

43 1 , 432, 454, 462, 467, 495, 496, 499, 505, 5 12, 5 14, 527, 554, 572, 650, 662, 663, 683, 686, 689, 690, 692, 697, 699, 703, 704, 71 1 , 735, 762,.832, 844, 846, 850, 852, 856, 880, 9 18, 921, 922, 929, 93 1 , 934, 966 ; ver também Revolução (francesa), Seividão (da gleba) Antigo Testamento, 1 1 1, 1 12, 1 30, 167, 463, 547, 557, 561, 112, n5, 776, 1n, 793, 806, 815, 816, 833, 873, 962; ver também Bí­ blia, Judaísmo, Novo Testamento Antígona, 24 Antigos/ modemos, 26, 28, 1 5 1 e pós-mo­ dernos, em relação com o tema da li­ berdade ver também Trabalho, Otium Antijudaismo, 26, 28, 1 10, 120, 151, 185, 1 86 , 1 87, 49 1 , 873 ; ver também Antissemitismo, Emancipação (dos judeus), Judiofobia Antissemitismo, 533, 576, 579, 580, 582, 584, 721, 829, 1017, 1018 "anticapitalista", 330, 578, 581, 582, 774 anticristão, 157, 202, 450, 576, 72 1, 809 feudal, 578, 582 ver também Antijudaísmo, Emancipa­ ção (dos judeus), Judiofobia Antropocentrismo, 98, 100, 206, 285, 286, 293, 477, 478, 479, 481, 973 ; ver tam­ bém Nominalismo Apolineo, 30, 64, 70, 71, 72, 76, 241 ; ver também Dionisíaco Apolo, 23, 69, 70, 71, 72, 81, 241 Apologética indireta, 443 Appiah, Kwame Anthony, 1025 Apuleio, Lúcio, 266 Aquiles, 85 Arendt, Hannah, 182, 6 19, 7 1 1, 798 Argenson, Réné-Louis de Voyer, marquês de, 454 Ariano, 774, 777, 939, 965, 966, 968, 1008, lOOCJ e semita, 109, 169, 3 17, 773

ver também Antissemitismo, Chandala, Mito (genealógico ariano-germânico; genealógico ariano-grego-germânico), Mitologia (ariana), Nazismo, Racialização Aristófanes, 96 Aristóteles, 24, 381, 396, 405, 406, 415, 425, 426, 427, 512, 981 Armínio, rei dos queruscos, 145, 146, 148, 149, 462, 829 Arndt, Ernst Moritz, 37, 3 8, 40, 45, 145, 146, 228 Arnim, LudwigAchim von, 140, 143 Arte, 390, 391, 398, 841, 887, 922, 923, 933, 942, 946, 952, 955; ver também Dioni­ síaco, Música, Traduzibilidade das lin­ guagens helênica, 23 metafisica da, 74 e política, 73, 82 e razão, 590; ver também Razão e religião, 74, 97 sociologia da, 74 Aschheim, Steven E., 1025 Á sia, 10, 71, 239, 240, 241, 246, 3 17, 322, 374, 480, 484, 490, 667, 929, 971, 972; ver também China, Ocidente (e Orien­ te), Oriente ''Assim/alou Zaratustra", 82, 309, 335, 421, 483, 484, 550, 570, 573, 574, 575, 724, 728, 735, 763, 792, 820, 848, 862, 869, 870, 901, 908, 948, 950, 95 1, 990, 992 Atenas, 303, 776 e Jerusalém, 69 ver também Polis Auerbach, Berthold, 170, 171, 1004 Aulard, Alphonse, 1 026 ''Aurora", 23 1, 245, 257, 272, 282, 3 12, 3 17, 329, 330, 346, 360, 373, 475, 674, 8 10, 849, 855, 860, 883, 915, 985 Áustria, 40, 2 1 1, 374, 565, 566, 694, 756 Autofobia, 928

B

Baader, Benedikt Franz Xavier von, 495, 499, 5 10, 5 12, 5 13, 517, 51 8 Babeuf, François-Noel, 48 Bach, Johann Sebastian, 37, 73, 125, 23 1, 489 Baczko, Bronislaw, 1026 Baer, Karl Ernst von, 24 1 Baeumler, Alfred, 721 , 749, 788, 793, 996, 1012, 1021 Bagehot, Walter, 29, 218, 365, 420, 641 , 696 Bairati, Piero, 1026 Bakunin, Mikhail Aleksandrovitch, 501 Baldensperger, Femand, 1026 Balfour, Michael, 1027 Bamberger, Ludwig, 1027 Barié, Ottravio, 1027 Barres, Maurice, 675 Barrot, Odilon, 54 1 Barthes, Roland, 1027 Basileia, 36, 41, 78, 1 12, 1 14, 1 16, 1 19, 128, 130, 1 34, 146, 200, 220, 260, 261 , 38 1 , 572, 620, 703, 840, 843, 844, 845, 860, 86 1, 937, 1 002, 1003, 1018 conferência de, 39, 80, 82, 1 18, 13 1, 149, 181, 255, 292, 302, 720, 869 Universidade de, 2 1 , 25 Bastiat, Frédéric, 438 Bastid, Paul, 1027 Bataille, Georges, 1O19 Baudelaire, Charles, 759 Baumgarten, Hermann, 1027 Baxa, Jacob, 1027 Bayertz, Kurt, 1072 Bayreuth, 1 3 1 , 1 84, 185, 222, 223, 861 Beaumont, Gustave de, 69 1 , 1067 Bebei, August, 494, 520, 580, 581 Becker, August, 272 Beecher-Stowe, Harriet, 382, 682, 930, 93 1 Beethoven, Ludwigvan, 21, 37, 38, 73, 256, 737, 762, 886 Benjamin, Walter, 747

Bennigsen, Rudolfvon, 533 Bensen, Heinrich Wilhelm, 1027 Bentham, Jeremy, 627, 758 Benveniste, Emile, 1027 Bergmann, Ernst von, 5 3 1 Berlin, Isaiah, 498 Bernard, Claude, 640 Bernoulli, CarlAlbrecht, 1027 Bernstein, Eduard, 581 Bertram, Ernst, 744, 788 Bíblia cristã, 873; ver também Antigo Tes­ tamento, Novo Testamento Bismarck-Schõnhausen, Otto von, 38, 40, 41, 44, 80, 91, 1 36, 180, 1 93, 225, 226, 230, 247, 261, 300, 320, 325, 329, 3 3 1, 332, 335, 337, 355, 356, 363, 364, 365, 366, 374, 375, 380, 400, 420, 494, 496, 523, 530, 53 1 , 532, 534, 535, 536, 537, 539, 540, 541 , 542, 543, 544, 545, 5 5 1 , 552, 553, 554, 555, 556, 585, 623, 684, 703, 745, 764, 840, 963 Bizet, Georges, 877, 887 Blackbum, Robin, 1028 Blanc, Louis, 842 Blanqui, Auguste, 48 1 , 658, 842 Bleichrõder, Gerson von, 585 Bloch, Ernst, 291 , 617, 733 Bodelsen, Carl A., 1028 Boehlich, Walter, 1028 Bõhm, Franz, 996, 997 Boissy d' Anglas, François-Antoine, con­ de de, 46 1 Bolt, Christine, 1028 Bonapartismo, 304, 364, 367, 462; ver tam­ bém Cesarismo, Psicologia (das multi­ dões) Borgia, César, 441 , 624, 776 Bormann, Martin, 817 Bosc, Yannick, 1028 Bossuet, Jacques-Bénigne, 499 Boulainvilliers, Henri, conde de, 409, 41 O, 41 1, 413, 683, 774, 794, 796, 797, 798

Boulanger, Georges-Emest-Jean-Marie, 543, 545, 562, 779 Bourget, Paul, 425, 756 Boume, Henry Richard Fox, 1028 Bowen, David Warren, 1028 Bowman, Shearer Davis, 1028 Bracher, Karl Dietrich, 1029 Brahma (brâmanes), 7 1 , 880; ver também Índia, Hinduismo, Oriente Brandes, Georg, 290, 354, 546, 548, 584, 723, 732, 733, 815, 1018 Brasil, 380, 6 1 3 Brasillach, Robert, 786 Bravo, Gian Mario, 1029 Brentano, Clemens, 143, 1 82, 1 83 Brie, Friedrich, 1029 Brinton, Crane, 1029 Broszat, Martin, 1029 Briickrnann, Br., 845 Brunilda, 126, 127 Bruno, Giordano, 445, 910 Büchner, Ludwig, 353, 446 Bucholtz, Jacob, 1029 Buckle, Henry Thomas, 758, 760, 845, 846, 847, 952 Buda, 970, 972 Budismo, 73, 1 00, 167, 234, 264, 452, 480, 493, 5 17, 588, 599, 729, 898, 960, 970, 971 , 972; ver também Oriente Bugeaud, Thomas-Robert, 77 1 Buhr, Manfred, 1029 Bülow, Hans von, 175, 176 Burckhardt, Jacob, 28, 33, 36, 46, 52, 130, 195, 203, 220, 255, 260, 26 1, 276, 290, 291, 301, 304, 309, 3 1 1, 3 12, 468, 487, 69 1, 703, 708, 835, 838, 843, 844, 845 Burke, Edmund, 87, 88, 89, 90, 92, 94, 1 99, 210, 2 1 1 , 212, 239, 243, 288, 323, 324, 347, 348, 368, 396, 4 1 5, 4 1 9, 463, 467, 497, 5 1 5, 5 16, 627, 628, 63 1, 633, 636, 640, 663, 686, 692, 694, 695, 770, 798, 817, 8 19, 981

Burleigh, Michael, 1029 Burocracia, 1 93, 453, 684; ver também In­ dividualismo, Estado Burschenschaft, 38, 183, 257; ver também Instrução, Escola, Teutomania e

Calhoun, John C., 381, 683, 684, 685 Cálicles, 443, 444 Campioni, Guiliano, 1030 Cancik, Hubert, 1030 Canfora, Luciano, 1030 Cannadine, David, 1030 Caprivi di Caprara, Georg Leo, conde de, 579 Carducci, Giosue, 235 Carey, Henry Charles, 3 87 Carlos I, rei da Inglaterra, 465 Carlos Magno, imperador do Sacro Roma­ no Império, l 46, 462, 789, 790 Carlos Martelo, 823 Carlyle, Thomas, 102, 1 03, 365, 3 9 1 , 4 1 8, 442, 623, 624, 625, 644, 692, 698, 705, 707, 758, 760, 1016 Cannen, 749, 956, 957 Carthill, A, 628 Caros, Carl Gustav, 388 Casamento, 4 12, 5 5 1 , 595, 6 1 2, 627; ver Matrimônio "Caso Wagner (O)'', 369, 494, 526, 527, 528, 534, 860, 900, 909; ver também "Consi­ derações inatuais" Cassagn�c, Adolphe-Granier de, 390 Cassirer, Ernst, 1030 Castlereagh, Robert Sewart, 239, 842 Castradori, Francesca, 1030 Catolicismo, 145, 156, 1 62, 225, 226, 2 3 1 , 325, 489, 713, 886, 953, 954, 955 social, 559 ver também Igreja (católica), Protes­ tantismo, Reforma Cavaignac, Louis-Eugene, 842 Cavour, Camillo Benso, conde de, 524

Cecil, Lamar, 103 1 Celso, 477, 479, 853, 854 Césaire, Aimé, 103 1 César, Caio Júlio, 224, 365, 366, 368, 570, 613, 710 Cesarismo, 363, 364, 537; ver também Bonapartismo Ceticismo,22 1, 280, 293, 328, 664, 665, 667, 669, 854, 863, 907, 909, 919, 920; ver também Ilunúnismo Chabod, Frederico, 103 1 Chamberlain, Houston Stewart, 6 15, 6 16, 739, 741, 748, 75 1 , 752, 753, 754, 755, 773, 782, 783, 784, 792, 829, 1016, 1020 Chamfort, Nicolau de, 239, 292 Chandala, 4 1 1 , 412, 450, 467, 584, 607, 619, 636, 72 1, 774, 777, 780, 792, 793, 795, 796, 805, 808, 809, 8 1 1 , 812, 813, 815, 839, 921, 934, 1008; ver também Ariano, Mitologia (ariana), Racialização Chateaubriand, François René, 381, 465, 470, 480 Chauvinismo, 134, 147, 151, 226, 228, 229, 235, 242, 243, 265, 270, 321, 372, 375, 543, 552, 703, 722, 753, 779, 829, 862, 948, 972 imperialista, 7 9 6 ; ver também "Antigermanismo" de Nietzsche, Exér­ cito, Europa Chesneaux, Jean, 103 1 China, 3 13, 314, 315, 316, 393, 480, 780, 879, 929, 960; ver também Colonialismo, Europa (chinesização da), Trabalho Cícero, Marco Túlio, 981 Cidadelcampo, 41, 65, 105, 120, 133, 212, 219, 226, 230, 234 Ciência, 30, 32, 76, 93, 95, 97, 98, 154, 159, 164, 177, 183,205, 214, 230, 23 1, 237, 240, 241, 24 6, 25 1, 260, 265, 272, 2 76, 277, 284, 285, 286, 287, 292 ' 299, 300, 301, 309, 327, 337, 343, 369, 398,410, 431,448, 480, 499, 587, 589, 593, 594, 613, 615, 622, 630, 637, 639, 640, 644, 645, 646, 653, 662,

667, 668,671, 674, 705, 707, 713, 728, 777, 827, 837, 838, 841, 845, 850, 852, 854, 855, 874,875, 882, 885, 887, 893, 894, 902, 908, 938, 944, 945, 952, 962, 975, 993, 995, 996, 1005 "estética", 22 e moral, 284 ver também Moral, Positivismo, Raz.ão, SocialdaIVinismo Civilidade, 44, 45, 67, 230, 309, 751 Civi/isation, 44, 45, 47, 375, 1004; ver tam­ b ém Civilização, Cultur, Cultura (e ci­ vilização) Civilização / barbárie, 964, 1000; ver tam­ bém Colonialismo, Ocidente e civilização, 964; ver também Civilização, Cultura Civilização, 922, 937, 938, 939, 947, 952, 953, 957, 959, 960, 961, 963, 965, 966, 969, 972, 976, 977, 978, 983, 986, 987, 989, 997, 998, 999, 1000, 1004, 1008, 1015, 102 1 ; ver também Cultura (e civi­ lização), Cultor, Civilidade Civiltà, 44, 45, 453, 1004, 1014; ver também Civilidade, Civilização, Cultura Claussen, Detlev, 103 1 Cloots, Anacharsis, 495, 5 1 9 Cobden, Richard, 693 Cobet, Christoph, 103 1 Cochin, Angustio, 5 16 Colajanni, Napoleone, 103 1 Colletti, Lucio, 103 1 Colli, Giorgio, 1001, 1003, 1004, 1008, 1009, 10 1 1, 1013, 1014, 10 17, 1018, 1055 Colonialismo, 576, 757, 777, 959, 960, 963 ; ver também Emancipação (dos negros), Europa, Guerras (coloniais), Ocidente, Racialização Commager, Heruy S., 1055 Comte, Auguste, 286, 289, 453, 623, 636, 638, 640, 759, 760, 997 Comuna de Paris, 21, 28, 29, 3 1 , 32? 44, 48, 49, 67, 75, 76, 83, 93, 152, 154, 155, 227, 25 1 , 271, 288, 296, 298, 329, 332, 404,

1077

4 10, 420, 461, 462, 480, 496, 523, 524, 535, 559, 580, 649, 691, 755, 772, 922, 1005, 1016 Comunismo, 36, 49, 50, 5 1 , 67, 157, 1 92, 194, 225, 290, 3 3 1 , 332, 405, 5 1 1, 5 14, 523, 538, 552, 730, 739, 8 17, 822 ; ver também Socialismo Condillac, Étienne Bonnot de, 590· Condorcet, Marie-Jean-Antoine-Nicolas Caritat, marquês de, 458 Confucionismo, 3 13 Congo, 380, 604, 606 Conrad, Joseph, 604 Conrad-Martius, Hedwig, 1032 "Considerações inatuais", 77, 78, 160, 169, 1 83, 221 , 249, 270, 353, 594, 705, 759, 861 , 868, 869; ver também "David Strauss, o homem de fé e o escritor", "Richard Wagner em Bayreuth", " Schopenhauer como educador" , "Vantagem e desvantagem da história para a via (Sobre a)" Constant, Benjamin, 301, 302, 395, 396, 400, 404, 405, 407, 468, 5 15, 63 1 , 632, 633, 636, 650, 771, 940, 998 Constantino 1, imperador romano (Constantino o Grande), 473, 547, 570, 822, 852 Copérnico, Nicolau (Nikolaj Kopemik), 507 Comeille, Pierre, 943 Cosmodiceia, 83, 84, 85, 86, 209, 484, 763, 764; ver também Inocência do devir, Teodiceia "Crepúsculo dos ídolos", 289, 3 3 1 , 4 12, 536, 541, 542, 587, 6 1 1, 621, 633, 790, 800, 866, 872, 926, 956, 1005, 1008 Criacionismo, 463, 968; ver também Darni­ nismo Cristianismo, 26, 30, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 69, 71, 72, 84, 85, 97, 103, 125, 1 26, 128, 129, 130, 145, 146, 147, 148, 149, 156, 157, 158, 160, 162, 1 65, 166, 1 67, 175, 199, 201, 202, 203, 204,

2 12, 230, 23 1, 232, 233, 234, 236, 237, 242, 247, 250, 25 1 , 252, 261, 262, 263, 264, 265, 266, 269, 279, 280, 285, 289, 3 13, 3 14, 3 15, 3 17, 320, 328, 332, 337, 340, 343, 370, 381, 382, 383, 387, 406, 4 1 1 , 4 18, 439, 445, 448, 449, 450, 452, 458, 463, 466, 467, 469, 470, 471, 472, 473, 474, 475, 477, 480, 485, 486, 487, 488, 489, 490, 491 , 492, 493, 506, 509, 5 1 0, 5 1 1, 5 12, 513, 5 15, 5 16, 5 17, 5 18, 520, 527, 528, 535, 538, 540, 543, 546, 547, 554, 556, 557, 558, 559, 560, 561. 569, 570, 574, 575, 583, 584, 585, 588, 596, 597, 598, 600, 602, 606, 613, 624, 625, 633, 634, 638, 642, 653, 654, 665, 671, 679, 705, 709, 7 10, 71 1 , 712, 713, 721 , 728, 748, 8 14, 823, 853, 898, 907, 926, 927, 93 1, 932, 933, 937, 945, 952, 953, 954, 955, 956, 957, 960, 961, 964, 965, 966, 968, 969, 970, 971, 972, 976, 1008, 1009, 1015 desjudaiz.ado, 261, 750 e epicurismo, 49 etapa do ciclo da subversão, 50, 463, 465, 489, 634, 806, 813, 815, 932 judaizado, 128, 968 prático, 328, 332, 336, 540, 554, 585 primitivo, 53, 54, 382, 467, 474, 883 seculariz.ado, 201 social, 606 ver também Anticristianismo, Chanda­ la, Moral (da compaixão; dos escra­ vos), Niilismo, Revolução (como revol­ ta seivil), Estado (social) Crítica da concepção unilinear do tempo, 474; ver também Eterno retomo do pensamento calculador, 995 Criticismo, 93, 94, 95, 97, 221, 285, 665, 838, 892 ver também Perspectivismo, Razão (li­ mites da)

1078

Croce, Benedetto, 733 Cromwell, Oliver, 466 Cronholm, Anna Christie, 1032 Cultur, 44, 1004; ver também Civilização, Civilidade, Cultura Cultura, 23, 25, 26, 28, 29, 32, 33, 34, 35, 37, 42, 43, 45, 48, 52, 55, 60, 62, 72, 76, 79, 80, 81, 85, 87, 88, 91, 93, 95, 99, 100, 104, 105, 1 07, 1 10, 1 1 1 , 1 12, 1 14, 1 16, 1 18, 120, 1 22, 123, 126, 1 29, 1 30, 132, 1 33, 136, 141, 143, 144, 146, 147, 149, 153, 159, 163, 165, 175, 1 78, 179, 1 80, 181, 183, 1 87, 1 9 1 , 192, 1 93, 1 96, 1 98, 200, 201 , 205, 206, 208, 2 1 1, 218, 219, 221 , 222, 227, 228, 230, 233, 242, 246, 256, 259, 260, 261 , 269, 300, 302, 303, 306, 308, 309, 3 13, 3 14, 3 16, 320, 324, 3 30, 340, 357, 368, 375, 386, 390, 391, 392, 395, 396, 398, 402, 404, 406, 4 19, 420, 421 , 424, 428, 447, 448, 452, 453, 455, 459, 46 1, 462, 465, 477, 480, 482, 487, 488, 489 alemã, 42, 69, 80, 93, 150, 151, 152, 164, 1 66, 1 77, 178, 185, 1 96, 225, 235, 236, 238, 257, 265, 270, 492, 529, 6 1 8, 649, 680, 694, 726, 733, 764 e civilização, 241 , 41 9; ver também Alemanha (e França) helenística, 3 1 ver também Judaísmo ver também Niilismo e pseudocultura, 38, 55, 9 1 , 1 3 1 ; ver também Intelectuais, Imprensa Curtius, Ernst, 43 D

D' Annunzio, Gabriele, 695 Daniels, Roger, 1032 Danvin, Charles Robert, 163, 265, 284, 285, 589, 674, 701, 729 Darwinismo, 207, 635, 701 , 704, 705; ver também Eugenia, Socialdarwinismo

"David Strauss, o homem defé e o escritor", 176, 181 David, 169, 175, 176 Davidson, John, 792, 1022 Davis, David Brion, 1032 De Feiice, Renzo, 1032 Deleuze, Gilles, 833, 1019 Democracia, 37, 57, 82, 91, 193, 205, 209, 251 , 252, 254, 290, 291, 296, 297, 298, 302, 3 1 1, 337, 340, 365, 368, 406, 730, 917, 942, 943, 983, 1022 e massificação, 260 ver também Cultura, "Inatualidade" de Nietzsche e "nacionalização das massas", 942, 943 ; ver também Nazismo, Chauvi­ nismo ver também Boanapartismo, Cesarismo, Étiai Demófilo, 445, 448 Derrida, Jacques, 1O1 1 Descartes, René, 100, 652, 669, 670, 671, 672, 781, 883, 996, 997 Desmoulins, Camille, 472 Destutt de Tracy, Antoine-Louis-Claude, 986, 988 Deussen, Paul, 1 1 1, 1 16, 158, 872 Devrient, Eduard, 170, 171, 172, 173, 187 Dialética, 33, 90, 96, 1 32, 133, 146, 1 97, 1 98, 2 16, 255, 320, 437, 467, 469, 484, 498, 505, 561, 562, 568, 606, 640, 667, 68 1 , 739, 841, 876, 895, 897, 913, 929, 955, 969, 982 hegeliana, 197, 5 1 5, 524 judaica, 132, 1 97, 573 socrática, 198 das revoluções, 92 1 Diderot, Denis, 416, 423, 458 Digeon, Claude, 1033 Dike, 24 Dilke, Charles Wentworth, 96 1 Dilthey, Wdhelm, 1 94, 195 Dinamarca, 40, 694

Diocleciano, Gaio Valério, 474 Diógenes de Sinope, 403, 436 Dione Crisóstomo, 56 Dionisíaco, 26, 27, 42, 64, 65, 67, 68, 70, 71, 72, 76, 86, 1 18, 127, 132, 23 1, 240, 241, 590, 592, 593, 594, 601 , 188, 900; ver também Apolíneo, Alemanha (herdei­ ra do helenismo trágico), Principium individuationis Dioniso, 23, 30, 42, 72, 81, 241, 594, 764 Direito, 380, 385, 393, 394, 415, 416, 418, 432, 436, 440, 452, 457, 458, 486, 537, 539, 540, 541, 559, 560, 561, 562, 575, 591 , 60 1 , 603, 607, 615, 645, 65 1 , 652, 653, 656, 658, 665 à instrução, 332, 457, 538 de voto, 300, 334 ver também Homem (direitos do) Disraeli, Benjamin, conde de Beaconsfield, 186, 400, 557, 559, 561, 6 16, 6 17, 6 18, 772, 773 Doença/saúde, 590; ver também Eugenia Donoso Cortés, Juan, 495, 498, 51 O, 5 1 1 , 512, 5 14, 51 5, 516, 517, 518, 925 Dostoievski, Fedor Mikhailovitch, 496, 497, 516, 517, 552, 563, 680 Douglas, Hugo, conde de, 533 Drescher, Seymour, 1028 Drieu La Rochelle, Pierre, 717, 786 Duboc, Julius, 625, 725, 732 Dubois-Reymond, Emil, 151 Dühring, Karl Eugen, 51, 139, 177, 180, 197, 387, 408, 493, 494, 495, 520, 521 , 558, 562, 570, 573, 574, 575, 576, 577, 578, 579, 580, 582, 583, 590, 644, 647, 852, 1009 Duncan, David, 1034 Duncker, Marx, 1045 Duns Scoto, João, 753 Duplan, Jules, 250 Duttenhofer, A. 1034

E

"EcceHomo", 26, 76, 77, 125, 128, 169, 359, 534, 594, 600, 624, 701, 762, 770, 860, 913, 1007 Eckermann, Johann Peter, 238, 384 Economiapolitica, 61, 43 8, 626, 627, 628, 630, 637, 640, 643, 644, 645, 646, 884, 887, 925, 998 ; ver também Trabalho, Doença/saúde, Moral (da compaixão), Mais-valia, Socialdanvinismo Édipo, 93, 677 Egito, 24, 372, 469, 574, 777 Eldridge, Colin C., 1034 Elias, Norbert, 736, 1019 Elitismo, 206, 259, 737, 792, 849, 855, 943 cultural, 101, 1 04, 109, 363, 737, 784, 850, 852 pan-europeu, 785 ver também Democracia, "Inatuali­ dade" de Nietzsche Emancipação das mulheres, 5 3 8 ; ver também Abolicionismo, Mulher, Feminismo dos judeus, 1 36, 186; ver também Antijudaísmo, Antissemitismo, Juda­ ísmo, Judiofobia, Racializ.ação dos negros, 798; ver também Abolicio­ nismo, África, Colonialismo, Escravi­ dão, Estados Unidos Emerson, Ralph Waldo, 88, 102, 219, 617, 624, 707, 710, 1015, 1016, 1017 Engels, Friedrich, 32, 53, 91, 103, 104, 105, 154, 160, 216, 277, 283, 290, 364, 368, 393, 441, 442, 448, 453, 458, 474, 523, 525, 527, 530, 541 , 562, 563, 580, 581, 582, 601, 762, 817, 847, 856, 892, 9 1 9, 920, 925, 926, 927, 938, 941 Engenharia social, 93, 198, 209, 45 1, 452, 463, 968, 988, 989, 990, 991, 992, 993; ver também Eugenia, Socialdanvinismo Epicteto, 403, 436, 475 Epicuro, 26, 854

Epistemologia e política, 649, 665, 666, 875, 907; ver também Nominalismo, Traduzibilidade das linguagens Epstein, Klaus, 1034 Erasmo de Roterdã, 230, 918 Esco/a, 38, 40, 76, 79, 80, 81, 1 13, 152, 156, 180, 1 9 1 , 1 92, 197, 1 98, 199, 2 14, 229, 238, 241, 260, 279, 320, 360, 383, 398, 424, 469, 473, 495, 5 1 5, 523, 632, 647, 712, 717, 742, 745, 844, 875, 894; ver também Intelectuais, Instrução da suspeita, 280, 281, 328, 360, 613, 883; ver também Ideologia histórica, 2 1 1, 2 12; ver também História histórica do direito, 43 1, 432, 442, 506; ver também Crítica (da ideologia) Escravidão, 24, 32, 33, 52, 54, 55, 60, 70, 71, 73, 74, 75, 84, 87, 88, 108, 161, 209, 255, 270, 296, 301, 3 16, 3 19, 347, 352, 356, 357, 368, 373, 379, 380, 381, 382, 383, 384, 385, 386, 387, 389, 390, 391, 392, 393, 3 94, 395, 396, 400, 401, 402, 403, 404, 405, 406, 407, 408, 409, 410, 4 13, 416, 4 18, 420, 427, 429, 432, 433, 434, 435, 436, 438, 439, 440, 441, 471, 472, 480, 504, 505, 508, 5 10, 524, 527, 535, 538, 574, 583, 589, 596, 6 1 1 , 613, 6 14, 6 17, 6 19, 623, 625, 628, 647, 650, 659, 660, 673, 674, 681, 682, 683, 684, 685, 697, 747, 757, 769, 776, 777, 796, 799, 856, 9 1 9, 930, 935, 937, 940, 941, 943, 959, 960, 961, 964, 965, 977, 979, 981, 984, 985, 987, 991 , 992, 994, 996, 998, 999, 1000, 1007, 101 1, 1015 aboliçãoda, 935, 940, 959, 965, 992, 1015 dos antigos e dos modernos, 403 "clássica", 389 "nova", 354, 379, 389, 413, 559, 862 pressuposto da civilização, 93 9 racial, 409 ver também Abolicionismo, Trabalho, Otium, Mais-valia Espanha, 823, 957, 96 1, 965, 1016

Esparta, 998 Espártaco, 473 Espírito 723, 726, 732, 733, 738, 750, 752, 754, 757, 759, 796, 800, 808, 809, 823, 830, 83 1, 841, 845, 846, 847, 848, 849, 852, 856, 862, 863 livre, 2 19, 324, 338, 339, 351, 352, 353, 357, 359, 431, 456, 457, 508, 575, 576, 602, 727, 837, 847, 848, 849, 855, 948, 949, 950, 95 1 ; ver também Intelectuais alemão, 37, 39, 42, 44, 46, 47, 77, 79, 80, 81, 109, 1 18, 127, 128, 147, 151, 153, 172, 178, 184, 191, 193, 194, 198, 225, 238, 523, 526, 557, 787; ver também Alemanha Espiritualismo, 62, 63, 85, 266, 954, 955; ver também Materialismo Ésquilo, 2 1 , 30, 42, 58, 76, 149, 861 Estado, 48, 54, 58, 64, 71, 72, 92, 944, 975, 988; ver também Democracia, Indivi­ dualismo e arte, 75; ver também Arte, Metafisica (do gênio), Otium dórico, 70, 71, 107, 108 grego, 84, 34, 135, 137, 138, 150, 244, 247, 248, 278, 295, 403, 1 004; ver ta"'­ bém Pólis popular, 143, 271, 291 ver também Democracia, Sufrágio social, 329, 330, 333, 334, 538, 542, 562, 784; ver também Altruísmo, Eugenia, Moral (da compaixão) Estados Unidos, 28, 47, 312, 3 17, 318, 321, 379, 380, 381, 382, 384, 385, 386, 387, 390, 400, 40 1, 402, 403, 408, 4 1 1 , 435, 436, 480. 524, 535, 538, 562, 6 1 1, 613, 6 14, 6 15, 6 17, 619, 679, 681, 682, 683, 684, 691, 696, 705, 706, 708, 730, 757, 769, 780, 785, 801 , 8 18, 827, 828, 842, 929, 930, 937, 959, 968, 991, 1017; ver também Abolicionismo, América, Guer­ ra (de Secessão), Escravidão Estatismo, 304, 462; ver também Individua­ lismo, Partidocracia, Estado

Estética, 22, 23, 25, 73, 74, 75, 76, 122, 124, 180, 223, 236, 344, 346, 692, 746, 838, 83 � 86� 86 1 , 899, 90 1 , 906, 9 1 0 e política, ver também Arte, Doença / saúde Etemoretorno, 475, 416, 411, 418, 480, 481, 482, 483, 484, 592, 594, 894, 924, 939, 949; ver também Cótica (da concep­ ção unilinear do tempo) Ética, 57, 59, 89, 93, 158, 161, 284, 340, 363, 500, 587, 773, 784, 810, 812, 870, 910; ver também Questão social, Estado Etnocentrismo, 234, 293, 491, 879, 880, 881, 944, 963; ver também Antropocentrismo, Ocidente, Racialização Eugenia, 298, 528, 581, 589, 595, 605, 612, 618, 701, 700., 705, 707, 739, 742, 750, 779, 827, 838, 1005, 1006, 101 1 , 1018, 1021, 1022; ver também Engenharia social, Doença I saúde, Socialdarwinismo Euópides, 2 1 , 25, 3 1 , 32, 36, 42, 74, 75, 76, 90, 121, 767, 908 Europa, 25, 28, 3 1 , 32, 33, 36, 37, 46, 48, 70, 72, 77, 97, 102, 1 16, 150, 181, 193, 2 14, 224, 226, 227, 228, 230, 231, 232, 234, 238, 239, 240, 241 , 242, 243, 246, 260, 26 1, 266, 293, 296, 306, 3 1 2, 3 13 , 3 14, 3 15, 3 16, 3 17, 3 1 8, 3 19, 320, 3 2 1 , 322, 325, 3 29, 330, 351, 370, 371, 372, 373, 374, 375, 385, 389, 392, 406, 408, 409, 410, 418, 46 1 , 462, 465, 480, 482, 487, 489, 490, 491, 492, 495, 496, 523, 524, 525, 528, 534, 544, 545, 546, 547, 548, 557, 563, 564, 565, 566, 568, 584, 592, 60 1 , 605, 613, 614, 6 15, 620, 636, 649, 652, 655, 666, 667, 673, 686, 695, 697, 703, 704, 705, 706, 7 19, 730, 734, 735, 737, 740, 744, 753, 756, 758, 760, 76 1, 766, 767, 771, 772, 774, 780, 782, 783, 784, 785, 786, 787, 789, 790, 79 1 , 800, 804, 807, 8 1 9, 823, 829, 832, 840, 848, 852, 856, 861 , 873, 877, 878, 888, 906, 933 , 939, 955, 960, 96 1, 962, 963, 964,

965, 967, 968, 969, 97 1, 10 17, 1020 e Ásia, 972; ver também Elitismo (pan­ europeu), Ocidente, Racialização e judaísmo, 241 chinesização da, ; ver também China, Oriente unidade da, 241 ; ver também Raciali­ zação, Chauvinismo Eva, 58 Evangelho(s), 64, 65, 1 66, 263, 344, 349, 4 1 1 , 4 18, 467, 473 , 5 1 1, 560, 576, 6 18, 692, 7 10, 750, 75 1 , 805, 810, 866, 870, 921, 927, 953 de João, 25, 126, 129 de Lucas, 926 de Mateus, 926 Evola, Julius, 794, 795, 796 Exército, 36, 31, 40, 41, 44, 41, 97, 129, 141, 146; 1 54, 182, 192, 268, 3 15, 320, 355, 379, 400, 532, 541 , 544, 574, 577, 690, 693, 697, 698, 703, 706, 7 12, 729, 772, 784, 818, 837, 86 1, 918, 921 , 988; ver também Chauvinismo Eyck, Erich, 1035 F

Fatos/ interpretações, 170, 300, 4 17, 496, 5 3 1 , 892, 894, 906; ver também Perspectivismo Faulhaber, Michael, 1035 Fausto, 144, 215, 256, 367, 422, 949 Felicidade, 28, 30, 33, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 58, 62, 63, 67, 68, 70, 74, 85, 86, 98, 100, 101, 1 10, 1 11, 1 12, 129, 159, 160, 179, 182, 192, 1 95, 208, 210, 21 5, 278, 283 , 286, 297, 306, 335, 340, 352, 364, 369, 397, 417, 422, 423, 425, 426, 427, 428, 429, 450, 451, 461, 463, 470, 473, 476, 480, 59 1, 607, 620, 62 1, 642, 643, 644, 656, 658, 659, 66 1, 662, 676, 733, 757, 776, 847, 855, 857, 858, 859, 888, 896, 959, 987, 992; ver também Eterno

1082

retomo, Ideologia (da felicidade do pobre), Messianismo, Otimismo, Pes­ simismo Feminismo, 370, 93 1; vertambém Abolicio­ nismo, Mulher, Matrimônio, Procria­ ção, Ressentimento Fenske, Hans, 1035 Féré, Charles-Samson, 428, 640 Ferguson, Adam, 4 1 9 Ferrari Zumbini, Massimo, 1035 Ferraris, Maurizio, 1035 Ferry, Jules, 380 Ferry, Luc, 1035 Fest, Joachim C., 1035 Feuerbach, LudwigAndreas, 156, 157, 267, 387, 454, 487, 502, 658, 725 Fichte, Johann Gottlieb, 37, 38, 39, 43, 141, 145, 256, 498, 499, 500, 5 14, 5 15, 5 18, 850, 895, 896,940 Figes, Orlando, 1036 Filalete, 219, 221, 445, 448 Filêmon, 382 Filipe II Augusto, rei da França, 501 Fi/isteismo, 177, 181, 1 82, 183, 184, 196, 238, 328, 366, 367, 429, 645, 7 1 1 , 751, 766, 904, 946, 949 ejudaísmo, 181, 182 "Filojudaismo" de Nietzsche, 485; vertam­ bém Antijudaísmo, Antissemitismo, Eugenia, Judiofobia, Racialização Filologia, 2 1 , 25, 27, 41, 73, 83, 1 12, 158, 187, 200, 268, 288, 381, 620, 707, 7 12, 840, 843, 861 , 865, 871, 872, 873, 874, 875 , 876, 878, 879, 885, 905 e filosofia, 872 Fink, ArthurE., 1035 Fink, Eugen, 1035 Fischer, Kuno, 339 Fitzhugh, George, 381, 390, 409, 680, 681, 884

Flaubert, Gustave, 250, 632, 772 Fleischmann, Eugene, 1036 Fletcher, Andrew, 389

Fogel, Robert William, 1036 Fontenelle, Bernard Le Bovier de, 239, 292 Fõrster, Bernhard, 579 Fõrster-Nietzsche, Elisabeth, 742, 1019 Foucault, Michel, 741, 892, 910, 9 1 1, 994, 995, 996, 997, 1002, 1019 França, 28, 29, 31, 32, 33, 36, 37, 39, 40, 4 1, 44, 45, 46, 47, 49, 52, 73, 81, 90, 91, 97, 103, 1 05, 124, 128, 1 29, 136, 140, 141, 143, 145, 146, 149, 1 50, 163, 168, 1 69, 182, 1 94, 1 95, 224, 225, 228, 230, 233, 235, 238, 239, 242, 243, 245, 247, 256, 268, 269, 274, 292, 297, 298, 300, 304, 3 1 1 , 3 17, 325, 333, 375, 383, 387, 389, 395, 399, 400, 404, 420, 454, 458, 462, 463, 465, 466, 467, 472, 489, 499, 5 17, 523, 528, 529, 534, 535, 543, 544, 545, 552, 559, 562, 564, 591, 619, 632, 637, 649, 650, 652, 658, 663, 674, 681 , 692, 693, 694, 695, 703, 727, 736, 75 1, 755, 756, 759, 760, 761, 765, 772, 774, 779, 786, 793, 803, 817, 83 1, 842, 880, 966, 967, 986, 1016 e Alemanha, 226, 245 ejudaísmo, 1 1 1, 128 ver também Comuna de Paris, Revolu­ ção (francesa) Francisco de Assis, santo, 466 Frank, Hans, 801 Frankel, Jonathan, 1036 Franklin, Benjamin, 960 Frantz, Konstantin, 145, 202, 229, 75 1 Frauenstãdt, Julius, 446 Frederico Guilherme IV, rei da Prussia, 515 Frederico II Hohenstaufen, imperador, 544, 680, 760, 763 Frederico II Hohenzollem, rei da Prússia (Frederico o Grande), 920 Frederico III, imperador da Alemanha, 529, 53 1, 532, 542, 551, 552, 553, 554, 763 Fredrickson, George M., 1036 Freidenker, 246, 353, 457; ver também In­ telectuais, Trabalho (intelectual), So-

ciologia (das classes intelectuais), Es­ pírito (livre) Freud, Sigmund, 922 Frigessi, Delia, 1037 Fritsch, Theodor (Thomas Frey), 558, 567, 570, 575, 721 , 779, 807 Fronde, Anthony James, 3 9 1 Fuchs, Carl, 1 3 1 , Fuchs, Dieter, 1036 G

Gadamer, Hans Georg, 101 1 , 1012, 10 17, 1023 Gager, John e., 1036 "Gaia ciência {A)", 26, 133, 212, 265, 274, 285, 291 , 326, 328, 329, 330, 333, 337, 355, 361, 372, 476, 494, 507, 590, 592, 593, 602, 605, 644,658, 735, 763, 819, 843, 855, 862, 897, 906, 912, 924, 995, 1005 Gall, Lothar, 1053 Galofobia, 39, 234, 257; ver também Ale­ manha (e França), Teutomania Galton, Francis, 528, 588, 589, 596, 604, 612, 6 17, 6 18, 640, 674, 702, 713, 729, 773, 791 , 826, 827, 838, 1006, 1021 Gambetta, Léon, 296 Gandhi, Mohandas Karamchand, 579 Gans, Eduard, 169, 1 96, 229 Gast, Peter (Heinrich Kõselitz), 494, 548, 793, 844, 950, 951 Gay, Peter, 1037 Geffcken, Heinrich, 554 Geibel, Emanuel, 146, 270 "Genealogia da morar', 363, 3 86, 388, 409, 568, 569, 583, 642, 643, 708, 710, 776, 804, 8 1 1, 812, 859, 870, 984, 1005 Genovese, Eugene D., 1037 Gentz, Friedrich von, 49, 88, 94, 96, 1 93, 206, 239, 253, 256, 497, 517, 640, 925 George, Stefan, 744 Gerlach, Otto von, 382 Germanismo/judaísmo, 1 1 8, 127; ver também Ariano, Judaísmo, Alemanha,

Mito (genealógico ariano-germânico; genealógico ariano-greco-germânico), Mitologia (ariana, Socratismo Gernet, Jacques, 1037 Gersdorff, Carl von, 29, 38, 40, 44, 50, 5 1 , 54, 65, 67, 76, 78, 79, 1 12, 1 13, 120, 164, 174, 1 75, 1 76, 180, 1 86, 195, 198, 220, 387, 843 Gervinus, Georg Gottfried, 842 Geyer, Ludwig, 169, 57 1 Giametta, Sossio, 1013, 1014 Gioberti, Vincenzo, 145, 495 Giordani, Igino, 1038 Girardet, Raoul, 1038 Glanz, James, 1038 "G/orious revolution", 497 Gobineau, Joseph-Arthur de, 57, 100, 290, 304, 389, 409, 4 1 1 , 412, 413, 617, 61 8, 7 10, 745, 75 1, 752, 753, 756, 773, 782, 784, 792, 795, 796, 797, 798, 829, 832, 925, 969, 1006 Godechot, Jacques, 1 03 8 Goebbels, Joseph, 752, 785, 820 Goethe, Johann Wolfgang, 23, 27, 144, 151, 163, 207, 237, 238, 241 , 256, 257, 327, 384, 763, 764, 775, 890, 891 Goncourt, ver Huot de Goncourt, 759 Gõrres, Joseph, 39, 105, 143 Goudsblom, Johan, 1038 Graetz, Heinrich, 556, 557 Gramsci, Antônio, 425, 505, 92 1, 922 Grécia, 22, 24, 25, 28, 3 1, 32, 33, 35, 43, 47, 54, 70, 72, 73, 74, 75, 127, 129, 130, 133, 1 39, 142, 143, 144, 149, 150, 1 5 1 , 153, 16 1, 165, 200, 202, 219, 223,224, 226, 227, 239, 240, 241, 242, 298, 302, 3 19, 381, 403, 404,406,407,464,468,591, 596,623,692, 695, 767, 769, 787, 789, 790, 847, 861, 871, 886, 939, 940, 965, 984 e mito genealógico greco-germânico, 152, 787, 788 e Roma, 240

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ver também Apolíneo, Dionisíaco, Helenismo, Otium, Polis, Escravidão Grégoire, Baptiste-Henri, 383, 472 Gregório VII, papa, 504 Griesinger, Theodor, 1039 Grimm, Hennan, 143, 1039 Grimm, Jacob Ludwig Karl, 143, 1039 Grimm, Wilhelm Karl, 143, 1039 Groethuysen, Bernard, 1039 Grote, George, 843 Grotius, Hugo (Huig van Groot), 394 <Juerra(S), 22, 28, 36, 37, 38, 39,40, 41, 44,46, 71, 73, 81, 83, 84, 85, 86, 91, 108, 1 14, 123, 127, 134, 135, 136, 137, 139, 142, 143, 145, 146, 149, 150, 152, 154, 180, 192,211, 213, 226, 234, 238, 247, 256, 268, 269, 270, 287, 296, 298, 3 15, 320, 321, 325, 355, 362, 371, 372, 373, 374, 376, 386, 394, 399, 402, 483, 536, 540, 543, 544, 546, 594, 603, (,()4, 606, 607, 6 12, 659, 683, 691, 692, 693, 694, 697, 699, 703, 704, 707, 710, 713, 720, 733, 736, 744, 746, 750, 751, 752, 761, 764, 771, 772, 776, 783, 784, 785, 786, 788, 789, 791, 793, 794, 825, 829, 830, 866, 871, 907, 910 antinapoleônicas, 36, 37, 39, 234, 235, 5 1 9, 527; ver também Galofobia, Teutomania e arte, 694, 695, 697, 744, 800 civil européia, 772 coloniais, 32 1 , 330, 6 1 3, 961 ; ver tam­ bém Colonialismo dos camponeses, 465, 467, 5 1 1, 527, 762, 856 franco-prussiana, 43, 47, 75, 78, 195, 227, 235, 248, 620 de independência americana, 227, 387, 455, 466, 540 do ópio, 3 13, 691, 692 humanitária, 96 1, 964 primeira g. mundial, 362, 524, 553, 615, 6 18, 668, 690, 722, 743, 744, 752, 780, 830, 832 de religião, 90, 293, 371

de Secessão, 28, 3 1 8, 380, 381, 3 84, 385, 387, 392, 393, 399, 400, 401 , 408, 409, 4 17, 435, 440, 466, 480, 6 1 1 , 6 14, 680, 682, 691, 703, 785, 919, 930, 940, 991, 1022 socialistas, 322, 6 12, 1007; ver também Revolução total, 603, 790, 791, 793, 794 ver também Exército, Chauvinismo Guesde, Jules, 333 Guilherme 1, imperador da Alemanha, 247, 329, 3 3 1 , 332, 333, 356, 367, 374, 400, 530, 53 1, 536, 537, 539, 540, 542, 552, 554 Guilherme II, imperador da Alemanha, 270, 381, 523, 529, 53 1 , 533, 5 34, 535, 536, 537, 39, 542, 543, 545, 546, 547, 55 1, 552, 553, 554, 555, 564, 565, 57 1, 576, 585, 606, 607, 757, 763, 83 1, 832 Guillemin, Henri, 1039 Guizot, François-Pierre-Guillaume, 399, 400, 420, 842 Gumplowicz, Ludwig, 49, 481, 677, 707, 725, 773, 799 Gutman, Robert W., 1039 Gutzkow, KarlFerdinand, 1 85, 424, 1039 H

Haase, Marie-Luise, 1039 Habermas Jürgen, 838, 1039 Hades, 58, 85 Hagen, 139 Haller, Karl Ludwigvon, 88, 444 Hamilton, Alexander, 770 Hamlet, 367 Hammer, Karl, 1040 Hamsun, Knut, 786 Hãndel, Georg Friedrich, 886 Hardenberg, Friedrich Leoponld von, ver Novalis Harding, Warren Gramaliel, 828, 1022 Harmonicismo, 427; ver também Holismo, Universalidade (mistificação da)

Harrington, J. Drew, 1040 Hartmann, Eduard von, 625, 707 Hartz, Louis, 1040

Havens, George Remington, 1040 Hayek, Friedrich August von, 641, 642 Haym, Rudolf, 94, 95, 97, 105, 155, 183, 194, 1 95, 299, 300, 301, 404, 493, 5 17, . 621 , 622, 623, 1040 Hayman, Ronald, 1041 Hedonismo, 5 1 ; ver também Sensualismo Hegel, Georg WillielmFriedrich, 24, 71, 76, 84, 85, 95, 96, 162, 1 68, 169, 171, 181, 1 94, 1 95, 1 96, 197, 1 98, 201 , 204, 2 17, 265, 266, 339, 340, 404, 406, 443, 454, 456, 472, 492, 495, 500, 501, 518, 592, 6 1 9, 620, 622, 632, 639, 649, 667, 735, 74 1 , 763, 764, 768, 841, 856, 876, 952, 954, 967, 972, 975, 984, 987, 991 , 993, 998 Heidegger, Martin, 717, 742, 785, 787, 788, 789, 792, 1019, 1021 Heine, Heinrich, 50, 52, 60, 61, 62, 63, 64, 69, 70, 76, 85, 86, 1 1 2, 123, 1 24, 157, 17 1, 183, 185, 196, 1 97, 229, 238, 250, 256, 265, 266, 301, 303, 309, 454, 472, 473, 647, 686, 722, 952, 953, 954, 955, 956, 957 Heise, Willielm, 1041 Helena, 150, 153 Helenismo, 130, 161, 227, 237, 240, 247, 3 17, 31 9, 470, 486, 729, 764, 767, 775, 891 e alexandrinismo, 129, 470 autêntico e socratismo, 775, 789, 82 1 trágico e modernidade, 240, 270, 325, 375, 489, 591, 767, 787 ver também Alemanha (herdeira do helenismo trágico), Grécia, Tragédia Helvétius, Claude-Adrien, 236, 423, 758 Heráclito de Éfeso, 27, 86, 149, 477, 591, 69 1, 744, 788, 823, 848 Hércules, 1 15, 955, 1002 Herder, Johann Gottfried, 645, 680, 843, 874

Herf, Jeffrey, 1041 Herre, Franz, 1042 Herzen, Aleksandr Ivanovitch, 96, 3 13, 383, 50 1, 504, 517, 524, 680, 681 Hesíodo, 278 Hess, Moses, 52, 569 Hildebrand, Karl, 1042 Hillebrand, Karl, 722, 759 Hillel o Velho, 167 Hillgruber, Andreas, 1042 Himmelfarb, Gertrude, 1042 Himmler, Heinrich, 785, 801, 825 Hindu ismo, 54, 100, 480, 960; ver também Índia Hirschman, Albert O., 1042 História, 21, 22, 26, 29, 3 1 , 37, 45, 5 1, 55, 58, 59, 63, 71,76, 83, 84, 85, 99, 103, 104, 106, 125, 130, 1 3 1 , 144, 154, 156, 158, 162, 169, 172, 182, 199, 200, 201, 202, 203, 204, 205, 206, 209, 210, 2 1 1 , 2 12, 213, 225, 230, 270, 389, 444, 469, 705, 708, 710, 714, 719, 726, 730, 734, 735, 738, 739, 742, 746, 748, 76 1, 763, 764, 77 1 , 781, 784, 785, 792, 794, 795, 807, 808, 809, 814, 816, 817, 818, 82 1, 822, 826, 827, 828, 829, 833, 838, 839, 840, 841, 842, 843, 844, 845, 846, 847, 852, 853, 861, 866, 871, 872, 874, 875, 876, 879, 881, 883, 884, 886, 888, 892, 893, 903, 904, 906, 909, 9 1 1, 975; ver taff1bém Eterno retorno, Inocência do devir, Progresso crítica, 57, 213 filosofia da, 61, 76, 1 95, 201 , 2 03, 204, 205, 206, 207, 208, 209, 287, 288, 295, 464, 474, 492, 538, 539, 540, 843, 846, 85 1, 928, 967, 975 monumental, 2 1 2, 2 1 3 ; ver também "Utilidade e dano da história para a vida (sobre a)" da moral, 2 87 ; ver também Moral e radicalização da consciência lústórica,

universal, 84, 200, 205, 479, 588, 734, 794, 809, 826, 843, 844, 85 1 , 95 1 , 967, 969, 973 Hitler, Adolf, 7 1 9, 734, 739, 740, 741 , 742, 744,745,746,747, 748, 749, 752,753, 754, 783, 785, 786, 789, 793, 798, 800, 801 , 806, 807,8 16, 820, 823, 824, 825, 828, 83 1, 832, 1013, 1017, 1019, 1020, 1022 Hobhouse, Leonard Trelawny, 1 042 Hobsbawm, Eric John, 736, 74 1 , 1019 Hobson, John A.,708, 1043 Hoffman, Géza voo, 1043 Hofstadter, Richard, 1043 Holbach, Paul-Henri Dietrich de, 159 Hõlderlin, Friedrich, 941 Holismo, 208, 975, 984, 986, 987; ver tam­ bém Individualismo Homem, 22, 25, 30, 33, 42, 49, 53, 54, 58, 62, 63, 64, 65, 67, 68, 72, 75, 86, 87, 9 1 , 94, 95, 96, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 1 06, 107, 1 10, 120, 121, 142, 1 56, 157, 1 58, 1 59, 1 6 1 , 1 70, 1 87, 1 89, 1 96, 1 98, 200, 201 , 203, 207, 208, 209, 2 1 1 , 2 12, 2 14, 2 15, 2 16, 220, 221 , 232, 233, 234, 237, 241, 243, 244, 248, 249, 250, 254, 255, 259, 260, 262, 263, 264, 265, 266, 272, 275, 277, 278, 279, 280, 281, 282, 284, 285, 286, 287, 289, 290, 297, 298, 302, 305, 3 1 1, 3 14, 3 16, 335, 340, 341 , 342, 343, 344, 352, 355, 358, 359, 360, 361, 364, 365, 369, 370, 375, 377, 388, 3 89, 3 9 1 , 394, 396, 398, 4 12, 4 17, 4 18, 420, 42 1, 422, 423, 424, 425, 426, 43 1 , 433, 435, 441 , 444, 447, 45 1 , 458, 463, 464, 466, 473, 475, 477, 479, 480, 48 1 , 483, 484, 485, 486, 487, 493 , 501, 507, 5 12, 5 14, 5 15, 526, 538, 556, 564, 575, 580, 584, 585, 593, 594, 595, 598, 600, 602, 603, 604, 607, 609, 6 1 1 , 6 16, 623, 624, 629, 632, 636, 637, 641 , 642, 644, 647, 652, 653, 654, 655, 656, 658, 659, 662, 666, 667, 670, 671 , 673, 674, 675, 676, 677, 68 1 , 687, 688, 696, 698,

702, 709, 710, 7 1 1 , 7 13, 723, 729, 730, 735, 736, 745, 750, 75 1 , 758, 760, 770, 785, 787, 805, 807, 809, 8 14, 824, 826, 835, 838, 839, 845, 846, 848, 85 1 , 857, 863, 865, 869, 872, 877, 880, 881 , 882, 883, 884, 889, 890, 891, 895, 898, 901 , 902, 903, 905, 907, 909, 912 dignidade do, 31, 33, 35, 98, 107, 198, 273, 670, 674, 675, 935, 959; ver tam­ bém "Utilidade e dano da história para a vida (Sobre a)" direitos do, 33, 48, 68, 88, 98, 99, 100, 101, 206, 285, 286, 293 , 479, 495, 609, 650, 652, 669, 670, 673, 674, 675, 677, 973, 990, 996 ; ver também Democra­ cia, Sufrágio de Goethe, 214, 216, 217, 238, 668, 904 natureza do, 49, 52, 54, 334, 369, 645; ver também Moral, Pecado de Rousseau, 2 14, 21 6, 2 17, 249, 256, 261, 262, 840, 904 de Schopenhauer, 2 1 4, 2 16, 2 17, 220, 236, 347, 840, 904 de Voltaire, 261, 262 Homero, 56, 142, 148, 241 , 426, 971 Hoover, Herbert Clark, 828, 1022 Horácio Flaco, Quinto, 1 5 1 , 488 Horkeimer, Max, 505 Huard, Raymond, 1043 Huber, Victor-Aimé, 402 Hugo, Gustav, 1043 Hugo, Victor, 32, 442, 472, 504, 630, 632, 681, 759, 766, 839, 845, 887 Humanismo, 1 63, 230, 502 ; ver também Norte/Sul, Renascimento Humanitarismo, 6 18, 7 10, 729, 736, 93 1 ; ver também Economia política, Moral (da compaixão) "Humano, demasiado humano", 14 7, 223, 224, 225, 229, 243, 245, 247, 249, 25 1, 255, 261 , 262, 265, 269, 270, 277, 281, 282, 284, 302, 303 , 304, 305, 309, 3 12, 326, 327, 328, 329, 347, 349, 354, 364,

1087

373, 375, 385, 394, 457, 485, 486, 550, 589, 628, 630, 638, 66 1, 722, 848, 849, 852, 854, 857, 858, 860, 885, 923, 932, 975 Humboldt, Karl Wilhelm von, 24, 3 1O, 404 Hume, David, 300, 389, 590, 830 Hungria, 565 Hus, Jan, 23 1 Hutcheson, Francis, 389 1

ldade A!fédia, 54, 162, 20 1, 202, 204, 230, 23 1, 234, 238, 240, 241, 246, 251, 260, 26 1 , 262, 264, 296, 3 10, 336, 466, 529, 555, 556, 588, 805, 843, 854, 878, 888, 939 Ideologia, 22, 33, 37, 39, 44, 52, 74, 135, 140, 141, 142, 143, 146, 160, 204, 219, 227, 228, 229, 232, 234, 243, 244, 247, 257, 258, 295, 3 13, 3 18, 324, 348, 352, 361, 362, 367, 406, 409, 417, 424, 427, 430, 43 1, 432, 435, 436, 437, 438, 439, 443, 446, 452, 456, 457, 458, 474, 476, 484, 503, 504, 517, 525, 529, 544, 547, 555, 568, 579, 585, 618, 619, 621, 622, 623, 625, 639, 660, 669, 691, 694, 705, 707, 728, 740, 750, 766, 775, 782, 795, 798, 803, 818, 828, 83 1 , 837, 871,883 crítica da, 285, 43 1, 433, 439, 441, 442, 443, 444, 445, 448, 456, 457, 459, 504, 505 da felicidade do pobre, 423 da guerra, 615, 966 ver também Intelectuais, Psicologia, Ressentimento, Sociologia (das clas­ ses intelectuais) Iggers, Georg, 1043 Igreja, 52, 53, 55, 129, 154, 155, 156, 253, 262, 281, 330, 336, 358, 391, 450, 467, 471, 473, 497, 518, 612, 643, 684, 713, 714, 723, 763, 806, 813, 953, 956, 970 católica, 1 26, 135, 1 62, 176, 225, 280, 382, 534, 955; ver também Catolicismo

lgualdade, 59, 66, 72, 88, 101, 162, 186, 253, 273, 278, 286, 289, 292, 3 14, 336, 349, 352, 4 17, 419, 420, 439, 444, 455, 466, 471, 473,479, 509, 535, 537, 538, 560, 562, 633, 643, 652, 653, 663, 664, 671 , 673, 675, 686, 687, 702, 730, 887; ver taff1bém Democracia Iluminismo, 29, 36, 48, 57, 72, 81, 88, 89, 90, 96, 121, 128, 141, 143, 148, 150, 163, 183, 210, 222,23 1,237, 239, 240, 242, 248, 250, 252, 255,256, 257, 261,268, 287, 351,428, 446,463,467,494,497, 506, 514,681, 803, 810, 852, 853, 855, 880, 909 antirrevolucionário, 252, 254, 255, 256, 292 francês, 46, 236, 248, 955 moral, 277, 280, 28 1, 292, 324, 337, 348 popular, 1 9 1 , 1 93, 194, 1 98, 2 1 7, 256 ver também Ideologia (crítica da), Moral, Nietzsche ("iluminista"), Socratismo lmprensa, 41, 1 13, 1 14, 1 15, 1 16, 1 17, 1 1 8, 123, 1 28, 129, 132, 134, 137, 182, 185, 226, 247, 261, 291, 333, 354, 387, 401, 452, 453, 463, 533, 556, 557, 563 , 572, 578, 582, 616, 621 , 640, 650, 679, 720, 738, 762, 867, 1002, 1003, 1013, 1014, 1O17; ver também Judaísmo Inácio de Loyola, santo, 825 "lnatua/idade" de Nietzsche, 626, 673, 679, 685, 705, 709, 714, 868 Índia, 24, 25, 70, 133, 1 48, 163, 374, 799, 807, 985; ver também Ariano, Brâmane, Chandala, Hinduismo Individualismo, 379, 462, 463, 470, 722, 753, 754, 975 e anti-individualismo, 97 5, 98 1 ver também Nominalismo, Estado, Homem Inglaterra, 163, 243, 297, 300, 3 10, 336, 372, 380, 382, 384, 385, 387, 389, 390, 395, 399, 415, 420, 433, 465, 466, 496, 497, 523, 528, 530, 533, 542, 543, 552, 554,

559, 581, 601 , 615, 654, 666, 667, 690, 692, 693, 694, 696, 706, 752, 753, 755, 756, 758, 759, 770, 785, 792, 847, 880, 965, 981, 986, 987, 999, 1022; ver tam­ bém Colonialismo Inocência do devir, 295, 342, 343, 345, 346, 347, 476, 484, 640, 644, 645, 777, 838, 859, 906, 1012 ver também Cosmocliceia, Crítica (da concepção unilinear do tempo) Inocêncio III, papa, 504 ver também Apolíneo, Dialética, Dionisíaco, Razão, Socratismo Instrução, 105, 106, 108, 160, 191, 192, 193, 194, 1 98, 2 17, 225, 261, 298, 302, 332, 379, 3 97, 403, 446, 447, 452, 457, 458, 523, 538, 582, 607, 687, 695, 768, 769, 800, 801, 847 ver também Intelectuais Intelectuais, 45, 55, 71, 91, 92, 141, 160, 180, 1 83, 217, 218, 2 1 9, 221, 222, 223, 245, 251, 284, 295, 3 1 1, 325, 361, 363, 383 , 400, 404, 515, 529, 567, 568, 581, 620, 630, 63 1 , 632, 634, 635, 636, 639, 640, 680, 722, 727, 73 1, 739, 741 , 749, 785, 788, 789, 8 10, 81 8, 862, 864, 867, 882

ver também Elitismo (cultural), Espíri­ to (libertário), Imprensa, Universidade Internacional, 83, 134, 135, 136, 176, 529, 530, 534 cinzenta, 176 estética, 174, 175, 176 judaica, 174, 176 negra, 135 operária, 135, 283 vermelha, 1 35, 136, 176 Islã, 1 1 1, 233, 536, 556, 763, 823 Itália, 49, 52, 144, 230, 243, 362, 453, 495, 524, 695, 794, 824, 1019; ver também Norte / Sul, Renascimento, Roma

J

Jacobi, Friedrich Heinrich, 495, 498, 499, 500, 515 Jacobinismo, 90, 92, 254, 304, 471, 529, 650, 654, 795, 998; ver também Comuna de Paris, Revolução (francesa), Socialismo Jacobsen, Hans-Adolf, 1044 Jacoby, Johann, 845 Jaeger, Wemer, 1044 Jalm, FriedrichLudwig, 142 Janz, CurtPaul, 1044 Jardin, André, 1044 Jaspers, Karl, 792, 896, 1019 Javé, 166, 468, 488, 804 Jefferson, Thomas, 628 Jenisch, Daniel, 498 Jerusalém, 69, 181, 776, 955 e Atenas, 69 ver também Judaísmo, Judiofobia Jesus Cristo, 232, 472, 487, 613 Joho, Wolfgang, 1044 Jordan, Winthrop D., 1044 Jorge V, rei da Grã-Bretanha e imperador das Í ndias, 756 Jornais, ver Imprensa, 1 1 6, 1 1 7, 182, 301, 333, 452, 453, 454, 455, 456, 499, 529, 563, 571, 574, 621, 636, 738, 865, 867 Judafsmo, 69, 109, 1 10, 1 1 1, 1 12, 1 13, 1 14, 1 15, 1 17, 1 18, 1 19, 1 20, 121, 122, 1 24, 125, 1 26, 128, 129, 1 30, 13 1, 132, 1 33, 138, 162, 165, 166, 168, 170, 173, 175, 176, 177, 178, 181, 1 82, 183, 184, 185, 186, 195, 196, 197, 198, 224, 233, 242, 245, 246, 247, 256, 262, 3 16, 3 17, 3 19, 444, 445, 467, 468, 469, 470, 479, 484, 485, 486, 487, 489, 490, 491, 492, 512, 5 16, 547, 548, 555, 556, 557, 559, 562, 563, 565, 567, 568, 569, 570, 572, 573, 574, 575, 577, 578, 616, 634, 720, 721, 748, 749, 765, 773 , 775, 796, 804, 805, 806, 807, 808, 809, 8 12, 814, 815, 8 16, 817, 873

e filisteísmo, 1 82 e França, 128 e identidade alemã, 168 e latinidade, 129 e música, 1 12, 1 13, 1 16, 128, 186, 259 pós-exilico, 969 pré-exílico, 468, 775 e socratismo, 1 18 três figuras do, 565, 578, 582 e unidade da Europa, 242 ver também Antijudaísmo, Antissemi­ tismo, Alemanha (e mitos genealó­ gicos), Judiofobia, Mitologia (ariana) Judas, 166 Judiojõbia, 1 10, 1 17, 120, 127, 174, 175, 185, 186, 187, 3 16, 559; ver tambémAntijOOaís­ mo, Antissemitismo, Judaísmo Juliano Flávio Cláudio, imperador romano (Juliano Apóstata), 547, 763, 822

Klopstock, Friedrich Gottlieb, 492 Knapp, GeorgFriedrich, 1045 Kolchin, Peter, 1045 Kõselitz, Heinrich, ver Gast, Peter, 494 Koselleck, Reinhart, 1045 Kotzebue, August Friedrich Ferdinand von, 34 Kraditor, Aileen S., 1045 Kraus, ()tto, 1046 Krochmalnik, Daniel, 1065 Kroll, Jürgen, 1072 Krug, Wilhelm Traugott, 498, 499 Kühl, Stefan, 1046 Kultur, ver Cultor, 57, 184, 800 Kulturkampf, 126, 1 36, 225; ver também Catolicismo, Chauvinismo Kunnas, Tarmo, 1046 Kupisch, Karl, 1046 L

K

Kant, Immanuel, 37, 45, 53, 55, 73, 93, 94, 95, 98, 163, 214, 215, 2 18, 221, 223, 235, 236, 256, 259, 265, 285, 291, 300, 341, 398, 406, 454, 464, 498, 499, 514, 525, 590, 652, 665, 686, 759, 762, 764, 838, 874, 883, 886, 897, 906, 962 Kapp, Friedrich, 454 Kamow, Stanley, 1044 Kaufmann, Walter A, 1019 Kautsky, Karl, 424, 481, 925, 926, 927 Kazin, Alfred, 1045 Kershaw, Ian, 1020 Ketteler, Wilhelm Emmanuel von, barão, 559, 683 Kidd, Benjamin, 730 Kierkegaard, Sõren Aabye, 1 1 1, 160, 453, 455, 617, 622 Kieman, Victor G, 1045 Kipling, Joseph Rudyard, 71 1, 712, 972 Kleist, Heinrich von, 43, 145, 215, 221, 384, 385, 507, 519

La Bruyere, Jean de, 239, 407 La Rochefoucauld, François, 23 9, 279 Lafargue, Paul, 939, 940 Lagarde, Paul de, 102, 146, 174, 175, 176, 196, 202, 206, 246, 270, 739, 768 Lamartine, Alphonse de, 420 Lamennais, Hugues-Félicité-Robert de, 277, 391, 393, 472, 473, 673 Lampl, Hans Erich, 1046 Langbehn, Julius, 391, 6 16, 693, 695, 696, 739, 745, 753, 756, 768, 769, 772, 773, 800

Lange, FriedrichAlbert, 424, 425, 708 Lanjuinais, Jean-Denis, 461 Lantemari, Vittorio, 1046 Laplace, Pierre-Simon de, 164, 265 Lapouge, Georges Vacherde, 480, 609, 674, 676, 702, 704, 712, 7 13, 730, 755, 756, 794 Larizza, Mirella, 1046 Lassalle, Ferdinand, 32, 67, 1 39, 197, 403, 447, 558, 575, 581, 856 Laube, Heinrich, 61, 170, 171

1 090

Lavigerie, Charles, 382, 534, 535, 555 Lazare, Bernard, 72 1, 803, 809 Le Bon, Gustave, 365, 637, 638, 676, 706, 707, 709, 714, 8 18, 93 1 Leão X, papa, 953 Leão XIII, papa, 49, 454, 5 1 1, 534, 555 Lecky, WilliamEdward Hartpole, 709,_ 847 Ledru Rollin, Alexandre-Auguste, 842 Leibniz, Gottfried Wilhelm, 880 Leiden, Jan van, 334 Lémonon, Michel, 1047 Lenin, Nikolai (Vladinúr Ilich Uljanov), 524, 666, 667, 669, 708, 780, 892, 1047 Leo, Heinrich, 424, 65 1 , 703 Leonardo da Vinci, 878 Lerda, Gennaro V., 1047 Lesseps, Ferdinand-Marie de, 393 Lessing, Gotthold Ephraim, 166, 174, 1 98, 238, 874, 928 Lessing, Theodor, 1 66 Lewald, Fanny, 845 Liberalismo, 36, 103, 1 83, 1 86, 295, 296, 300, 335, 336, 73 1 , 9 1 1, 983 ; ver tam­ bém Nacional-liberalismo autêntico e espúrio, 296, 336 ver também Comuna de Paris, Revolução e epistemologia, 649, 65 1 , 87 1; ver tam­ bém Nonúnalismo, Perspectivismo e estatismo, ; ver também Polis, Esta­ do e holismo, 984; ver também Harmoni­ cismo, Holismo e individualismo, 983; ver também In­ dividualismo e otimismo, 138, 643; ver também Oti­ núsmo, Pessimismo ver também Trabalho, Otium, Escravi­ dão

Liberdade dos antigos e dos modernos, 998; ver também Trabalho, Otium, Escravidão, Servidão

Liceu, 80, 8 1 , 1 92, 2 11; ver também instru­ ção Lichtenberg, Georg Christoph, 670 Lichtheim, George, 740, 741, 803, 1020 Liebknecht, Wtlhelm, 845 Lifton, Robert Jay, 1048 Lincoln, Abraham, 40 1, 682 Lineu, Carlos (Carl von Linné), 755 Linguet, Simon-Nicolas-Henri, 3 89, 408, 409, 416, 627 Livingstone, David, 3 17, 3 1 8 Livrepensador, 351, 353, 357, 43 1, 456, 457, 508, 727, 748, 878; ver também Intelec­ tuais Locke, John, 394, 395, 3 96, 432, 753, 770, 771, 979, 988, 998, 999, 1000 Lombroso, Cesare, 589, 708, 714, 755, 757, 773, 849, 1006 Lopez, Michael, 1048 Losurdo, Domenico, 1013 Louvre, 29, 35; ver também Comuna de Paris Lovejoy, Arthur O., 1049 Lõwith, Karl, 925, 926 Lucas, evangelista, 926, 927 Ludendorff, Erick, 793, 1049 Ludendorff, Mathilde, 1 049 Luís Filipe de Orleans, rei dos franceses, 311 Luís XIv, rei da França (Rei Sol), 146, 329, 487, 681 Lukács, Gyõrgy, 6 13, 6 1 4, 617, 6 1 9, 73 1 , 732, 733, 734, 740, 741, 742, 747, 752, 798, 838, 892, 1014, 1 016, 1019, 1020 Lutero, Martinho, 37, 38, 42, 125, 145, 146, 158, 1 62, 1 95, 230, 231, 232, 233, 234, 240, 264, 270, 280, 281, 285, 462, 466, 467, 473, 489, 5 1 1 , 5 1 2, 514, 527, 623, 633, 757, 764, 774, 804, 823, 844, 856, 886, 918, 943, 953, 954, 955, 971 , 1005 Luthardt, Christoph Ernst, 1 050 Luther, Martin, ver Lutero, Martinho, 1050 Lutz, Ralph, 1050

1091

Lyotard, Jean-François, 1050 M MacArthur, Arthur, 615 Macaulay, Thomas Babington, 842 Machpherson, Crawford T., 1 050 Maistre, Joseph-Marie de, 495, 499, . 5 18 63 1, 636, 677, 966, 991, 993 Mais-valia, 922, 994; ver também Traba­ lho, Otium, Escravidão Mallet du Pan, Jacques, 254, 255, 256, 29 1, 323, 770,771 Malthus, Thomas Robert, 59, 101, 438, 521 , 595, 627, 628, 640, 644, 645, 646, 987 Mandeville, Bernard de, 396, 4 15, 978, 986, 987, 988 Manzoni, Alexandre, 52 Mao Tsetung, 921 Maomé, 253 Marat, Jean-Paul, 420 Mario, Gaio, 706 Marr, Wilhelm, 491, 558, 815, 816 Martim, Fritz, 105 1 Manvitz, FriedrichAugust Ludwig von der, 403 Marx, Karl, 29, 50, 52, 57, 58, 59, 68, 104, 105, 134, 135, 145, 157, 159, 213, 224, 255, 275, 290, 297, 364, 390, 407, 408, 409, 430, 43 1, 432, 433, 434, 435, 437, 438, 439, 440, 442, 444, 445, 45 1 , 454, 456, 458, 459, 462, 474, 487, 504, 505, 506, 508, 5 18, 523 , 524, 58 1, 60 1 , 641, 646, 647, 681 , 684, 741 , 840, 841 , 9 19, 920, 922, 923, 924, 925, 926, 939, 940, 94 1 , 960, 961, 975, 985, 986, 987, 988, 994, 998, 1012 Mason, Haydn, 1 05 1 Massara, Massimo, 105 1 Materialismo, ; ver também Sensualismo, Espiritualismo Mateus, evangelista, 166, 927 Matrimônio, 99 1 , 1 02 1 '

misto, 1022 ver também Mulher, Eugenia, Feminis­ mo, Engenharia social, Procriação, Socialdarwinismo Matteucci, Nicola, 105 1 Maurras, Charles, 756 Mauzi, Robert, 105 1 Mayer, Arno J., 737, 740, 1019, 1020 Mayeur, Jean Marie, 1051 Mazzini, Giuseppe, 145 Mefistófeles, 949 Mehrarbeit, 407, 408; ver também Traba­ lho, Mais-valia Mehring, Franz, 290, 291, 333, 335, 353, 425, 524, 529, 530, 537, 553, 62 1, 625, 646, 726, 732 Meister, Richard, Melodrama, 22, 74, 75; ver também Ópera Melon, Jean-François, 3 89 Mendelssohn-Bartholdy, Felix, 123, 170, 171, 557, 722 Menzel, Wolfgang, 842 Mercier, Louis-Sébastien, 495 Mérimée, Prosper, 225 Merriam, Charles, E., 1052 Messianismo, 480, 925; ver também Cristia­ nismo, Eterno retomo, Revolução Metafisica, 998 da arte, 22, 59 1, 885 do gênio, 75, 101, 106, 107, 206, 746 ver também Elitismo Metájõra, 938, 961, 982, 985, 988, 990, 1015; ver também Escravidão Metternich, Winneburg, Klemens Wenzeslaus Nepomuk Lothar von, 239, 842 México, 1 06 Meyer, Eduard, 879 Meyerbeer, Jacó (Jakob Liebman Meyer Beer), 1 10, 123, 124, 13 1, 169, 170, 171, 185, 557, 765, 1018 Meysenburg, Malwida von, 128, 267 Michelet, Jules, 472, 760, 839, 887, 930, 93 1, 934

Mill, John Stuart, 103, 289, 298, 3 10, 3 12, 3 13, 3 14, 3 15, 3 16, 666, 667, 668, 687, 694, 884, 983 Miller, Randall M, 1052 Mime, 127, 139 Mirabeau, Victor du Riquetti de, 63 1 Miscegenation, 3 18, 992; ver também Eugerua, Matrimôruo (misto):Procria­ ção, Raça, Socialdanvirusmo Mises, Ludwíg von, 642 Mito, 9 17, 923, 965, 966, 1008, 1019 de Édipo, 93, 677 genealógico anglossaxão-judaico, 56 1 genealógico ariano-germânico, 966 ariano-greco-germâfilco, 146 genealógico cristão-germâruco, 804, %5 genealógico germânico, 193 genealógico grego-germânico, 152, 162, 224, 787, 788, 790, 804 genealógico grego-romano-germâruco, 149 genealógico judeu-cristão-grego-oci­ dental, 964, 965, 966 do pecado original, 52, 33,5 54, 58, 59, 61, 63, 109, 132, 147, 157, 166, 262, 272, 342, 472, 804, 968 de Prometeu, 58, 59, 60, 93, 109 do Sonderweg alemão, 615 Mitologia, 968 ariana, 1009 germâfilca, 164 grega, 164 indoeuropeia, 164 rubelúngica, 161 Modernidade, 25, 36, 46, 47, 54, 60, 68, 925, 937, 942, 945, %4, 966, 968, 969, 971, 973 e massificação, 93 1, 966 e pós-modernidade, 975 ver também Intelectuais, Imprensa Modernismo reacionário, 349 Mohl, Robert von, 1052 Moisés, 163, 558, 602

Moissonnier, Mauii.ce, 1053 Moleschott, Jacob, 446 Moltke, Helmuthvon, conde, 693, 751 Mommsen, Theodo� l33, 245, 842, 843 Monarquia, 537, 539, 540 absoluta, 487, 539 de Julho, 33, 420, 650 "social", 523, 536, 537, 538, 558, 576; ver também Estado (social) Monoteísmo, 147, 162, 485, 486, 487, 556, 964; ver também Paganismo Montaigne, Michel Eyquem de, 239, 267, 293, 879, 880, 918 Montesquieu, Charles-Louis de Secondat de, 389, 407, 429, 487, 670, 830, 880, 881 Montinari, Mazzino, 748, 1001, 1003, 1008, 1009, 1011, 1013, 1014, 1017, 1018, 1054 Montlosier, ver Reynaud de Montlosier, François-Dominique, conde de, 4 10, 847 Mora/, 37, 67, 89, 128, 135, 141, 145, 165, 167, 203, 230, 234, 236, 250, 264, 269, 271, 272, 273, 705, 7 1 1 , 712, 713 e ciência, 284 da compaixão, 729 dos escravos, 729 dos senhores, 365, 725, 729, 901 e revolução, 287 judeu-cristã, 263 e fanatismo, 249, 272, 284 ver Chandala, Cristiarusmo, Ressenti­ mento, Revolução, Teodiceia Moravia, Sérgio, 1053 Morgan, Edmund, S., 1053 Morison, Samuel E., 1053 Morlang, Thomas, 1053 Morte de Deus, 507 "livre", 597, 600 Mõser, Justus, 1053 Mosley, Oswald, 742 Mosse, George Lachmann, 616, 782 Mounier, Jean-Joseph, 254, 4 16, 686

1093

Muller,Adam Heinrich, 92, 1 93, 650 A1ulher, II9, 150, 229, 233, 368, 369, 370, 382, 425, 551, 719, 766, 783, 815, 832, 892, 929, 931, 932, 933, 971 ; ver tam­ bém Feminismo, Matrimônio, Procria­ ção Mundt, Theodor, 842 Müntzer, Thomas, 281, 497, 514 Murri, Romolo, 559 A1úsica, 2 I , 25, 3 5, 37, 39, 42, 67, 73, 75, 1 10, 1 12, 123, 124, 125, 145, 147, 149, 162, 1 80, 229, 23 1 , 234, 240, 494, 525, 526, 590, 592, 662, 737, 744, 850, 886, 887, 899, 942, 943, 1001 ejudaíSino, 1 12, 1 13, 1 16, 128, 186, 259 ver também Arte, Judiofobia, Ópera, Pessimismo, Tragédia Musil, Robert, 756 Mussolini, Benito, 727, 742, 746, 794, 1019

N

Nacionalização das massas, 942, 943 ; ver também Psicologia (da multidão) Nacional-liberalismo, 295 adesão de Nietzsche ao, 40 ver também Europa, Chauvinismo Napoleão 1 Bonaparte, imperador dos fran­ ceses, 39, 46, 142, 1 45, 146, 224, 228, 229, 235, 367, 462 Napoleão III Bonaparte, Luís, imperador dos franceses, 39, 41, 44, 142, 145, 146, 224, 235, 364, 367, 462, 842 "Nascimento da tragédia (O)" , 2 1 , 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 3 1 , 32, 33, 34, 35, 36, 37, 39, 40, 41, 42, 43, 45, 5 1 , 55, 56, 61, 64, 65, 67, 70, 73, 74, 76, 77, 78, 79, 80, 81, 82, 84, 86, 87, 93, 97, 109, 1 10, 1 1 1 , 1 12, 1 14, 1 17, 1 18, 1 19, 120, 121, 122, 1 23, 124, 125, 1 26, 127, 128, 1 30, 132, 1 33, 143, 145, 146, 148, 149, 150, 152, 1 56, 157, 159, 160, 161, 167, 173, 175, 176, 177, 180, 1 82, 184, 185, 1 86, 188, 1 92, 195, 1 98, 2 1 1, 2 12, 221 , 223,

227, 230, 23 1, 237, 238, 240, 241 , 244, 247, 249, 252, 255, 259, 261, 270, 271, 272, 280, 286, 296, 299, 306, 308, 325, 327, 335, 345, 346, 347, 351, 363, 375, 379, 387, 4 1 1 , 464, 470, 476, 477, 489, 494, 5 17, 526, 587, 590, 591, 594, 603, 620, 62 1, 639, 65 1 , 658, 659, 66 1 , 673, 735, 743, 759, 761 , 765, 767, 772, 775, 778, 779, 787, 804, 837, 843, 848, 850, 85 1 , 856, 857, 859, 860, 864, 867, 869, 873, 877, 882, 885, 886, 898, 900, 903, 904, 908, 922, 923, 968, 1004, 1009, 1018 Natureza e artificio, 992; ver também Socialclaiwi­ nismo humana, 33, 53, 201, 249, 276, 950, 953; ver também Moral, Pecado Nauwerck, Karl, 502 Nazismo, 506, 6 16, 617, 618, 706, 721, 733, 734, 739, 743, 744, 747, 749, 750, 752, 753, 754, 768, 780, 781, 921, 997, 1016, 1017, 1018, 1023 preparação ideológica do, 739, 781 papel do nietzscheanismo no, 7,27, 786, 8 14; ver também Ariano, Alemanha, Mito, Racialização Necker, Jacques, 397 Negri, Antimo, 1054 "Neoclassicismo" de Nietzsche, 43 , 404 Neocriticismo, 96, 97; ver também Criticismo

Nero, Lúcio Domício, 825 Nevins, Allan, 1054 Newton, Isaac, 894 Nicolau II, czar da Rússia, 564 Nicolovius, George L., 5 1 9 Niebuhr, Barthold, Georg, 843, 874 Nietzsche, antissemita, 244, 1004 antialemão, 535, 766, 769, 804 "filósofo do poder", 994 judiófobo, 109, 1 10, 1 17, 120, 127, 174, 185, 186, 187, 3 16, 559

1 094

"iluminista"' 223, 245, 247, 249, 250, 251, 256, 259, 261, 272, 286, 290, 298, 300, 304, 360, 484, 920 "inatual", 952 psicólogo, 425, 888, 889 e Sieyes, 686, 688 Niilismo, 209, 263, 264, 333, 483, 493, 494, 495, 496, 497, 498, 499, 500, 501 , 502, 504, 506, 507, 508, 509, 510, 5 1 1 , 5 12, 5 13 , 5 14, 515, 5 16, 5 17, 5 18, 520, 521, 647, 765, 957, 997, 1019 "ativo", 509, 597, 60 1, 605 "em ato", 600 incompleto, 598, 599 como metacritica, 503 russo, 5 12 Nissen, Benedikt Momme, 1057 Noé, 570 Nolte, Emst, 739, 740, 741, 1012, 1019, 1020 No/untas, 2 14, 2 15, 264, 463, 470, 493 ; ver também Cosmodiceia, Nominalismo Nominalismo, 651, 652, 653, 654, 655, 656, 664, 984, 986, 987, 996; ver também Epistemologia e política antropológico, 285, 424, 426, 658; ver também Homem e perspectivismo, 658, 725, 816, 828, 9 1 2 ; ver também Perspectivismo Nordau, Max, 725, 816, 8 28, 912 Norte /Sul, 28 1 , 3 17, 764; ver também Re­ forma, Renascimento Novalis (Friedrich Leopold vonHardenberg), 210, 850 Novo Testamento, 166, 367 467, 479, 556, 566, 712, 775, 776, 793, 809, 814, 854, 873 , 9 18, 970 Nussbaum, Martha Craven, l 057 o

Ocidente, 48, 52, 6 1 , 63, 70, 1 30, 133, 161, 163, 1 67, 221, 24 1, 243, 246, 264, 280, 3 1 3, 3 14, 3 15, 3 17, 3 19, 372, 373, 389,

392, 444, 449, 461 , 463, 469, 470, 474, 485, 487, 488, 489, 49 1, 508, 5 12, 5 13, 517, 523, 555, 564, 569, 570, 575, 597, 598, 599, 602, 612, 6 13, 614, 616, 6 17, 634, 653, 667, 686, 690, 703, 705, 740, 752, 772, 775, 780, 785, 795, 799, 803, 804, 805, 806, 807, 8 14, 8 17, 820, 833, 837, 850, 873, 876, 878, 887, 9 17, 920, 929, 934, 937, 939, 944, 95 1, 959, 960, 961 , 962, 964, 965, 966, 967, 968, 969, 970, 971, 972, 973, 992, 1020, 1023; ver também Europa, Mito e judaísmo, 1 33, 246 ; ver também Antissemitismo, Judaísmo, Revolução (como complô) e Oriente, 964, 967; ver também China, Colonialismo, Oriente, Racialização Ockham, Guilherme de, 753 Odisseu, 241 , 257 Offenbach, Jacques, 722 Oken, Lorenz, 388 Olender, Maurice, 1057 Omodeo, Adolfo, 1 057 élpera, 22, 37, 42, 43, 50, 1 13, 1 15, 123, 124, 526, 886. 1002; ver também Música, Tragédia Opitz, Reinhard, 1058 Organicismo, 7 1 ; ver também Dionisíaco, Holismo, Principium individuationis Oriente, 25, 70, 71, 72, 130, 24 1, 247, 487, 488, 563, 96 1 , 964, 965, 967, 969; ver também China, Ocidente Orsucci, Andrea, 1058 Otimismo, 23, 28, 30, 3 1, 33, 35, 42, 45, 47, 48, 50, 5 1, 52, 57, 69, 72, 73, 74, 75, 86, 93, l l l, 1 12, 1 13, 120, 124, 128, 132, 138, 159, 1 67, 168, 176, 181, 182, 1 95, 196, 198, 221, 247, 249, 256, 261, 272, 273, 306, 434, 463, 493, 590, 591, 594, 643, 644, 649, 704, 766, 775, 886, 912 judeu, 1 1 1, 167, 952, 967 e modernidade, 78

e pessimismo, 5 90 ver também Filisteísmo, Socratismo Otium, 154, 3 19, 329, 362, 395, 3 96, 398, 399, 400, 402, 403, 405, 406, 407, 408, 429, 434, 536, 592, 604, 679, 690, 695, 769, 800, 864, 937, 939, 940, 941 , 952, 960, 961, 982 etbellum, 370, 577, 679, 690, 691, 694, 695, 697, 703, 744, 994 ver também Trabalho, Escravidão Ottmann, Henning, 1059 Overbeck, Franz, 102, 229, 387, 570, 576, 58 1 , 589, 626, 72 1 , 724, 755, 803, 809; 844, 898 ()wen, Robert, 49, 852 p

Paganismo, 23, 69, 85, 1 57, 202, 23 1 , 238, 265, 269, 381, 508, 5 15, 5 18, 527, 556, 559, 8 14, 953; ver também Politeísmo Paneth, Joseph, 569, 815 Paraguai, 3 57 Pareto, Vilfredo, 676, 704, 709, 738 Pareyson, Luís, 1 059 Paris, 29, 40, 123, 253, 254, 4 17, 425, 455, 456, 534, 552, 565, 639, 702, 765, 766, 825, 842, 923 ; ver também Comuna de Paris Parmênides, 26, 591 Parrington, Vemon L., 1058 Parsifal, 624, 765, 766 Partido de Frederico III, 55 1 nacional-liberal, 151 socialdemocrático, 474 da visão trágica do mundo, 80, 82, 83, 1 13 da vida, 348, 35 1 , 5 1 6, 547, 587, 594, 596, 607, 612, 839, 859, 863, 870, 9 14, 915, 1021 Partidocracia, 295, 298, 299; ver também Democracia, Estado, Sufrágio Pascal, Blaise, Pascal 868, 888, 945

Pascoli, Giovanni, 417, 659 PauL Jean, 290, 499, 850 Paulo de Tarso, santo, 3 82, 383, 406, 5 1 1 , 568, 634, 730, 750, 777, 817, 821 Paz/guerra, 138, 320; ver também Exérci­ to, Guerra, Chauvinismo Pearson, Karl, 707 Pecado, 53, 62, 141, 233, 234, 280, 343, 345, 349, 4 15, 445, 468, 480, 486, 488, 490, 508, 5 14, 521, 528, 645, 683, 7 10, 8 10, 814, 873, 9 18, 933, 959, 964, 971 , 984 original, 52, 53, 54, 58, 59, 60, 6 1 , 63, 109, 1 33, 148, 158, 1 67, 262, 272, 343, 472, 804, 968 ver também Cosmodiceia, Teodiceia Pelagianismo, 53 Pelágio, 463 Péricles, 298, 303, 482, 776, 971 Perrot, Michelle, Perséfone, 57, 58 Pérsia, 73, 965 Perspectivismo, 658, 662, 663, 665, 666, 668, 669, 672, 892 e nominalismo, 664 Pessimismo, 23, 24, 26, 4 1 , 42, 5 1 , 52, 74, 76, 86, 168, 247, 264, 466, 483, 590, 59 1, 593, 600, 766, 860, 901 e otimismo, 26, 169, 594 ver também Alemanha (herdeira do helenismo trágico), Otimismo Petrarca, Francesco, 230, 490 Petrônio, Caio Árbitro, 266 Pforta, 54; 156, 464, 842, 871, 872 Pick, DanieL 1058 Pilatos, 824, 852, 854, 909, 915, 920 Píndaro, 490 Pitágoras, 24 Platão, 5, 24, 25, 26, 58, 91, 107, 1 30, 1 32, 303, 305, 306, 4 1 1 , 442, 469, 512, 596, 604, 623, 634, 665, 767, 775, 840, 854, 884, 900, 901 ; ver também Dialética, Socratismo, Tragédia

Plitt, Gustav L., 1059 Ploetz, Alfred, 702, 704, 728, 757, 773, 829, 833 Plutarco, 3 1 2 Podach, Erich F. , 1059 Põggeler, Otto, 1059 Polanyi, Karl, 1059 Poliakov, Léon, 1059 Polis, 301, 302, 303, 404, 405, 406, 468, 589, 596, 998; ver também Atenas, Demo­ cracia Politeísmo, 486, 964; ver também Religião Política, 22, 23, 3 1 , 32, 36, 37, 40, 41, 42, 43, 45, 49, 5 1, 52, 58, 59, 64, 65, 68, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 82, 83, 86, 91, 93, 94, 108, 134, 1 36, 152, 153, 154, 156, 157, 1 58, 159, 160, 161, 182, 1 86, 1 93, 194, 195, 1 97, 200, 03, 2 12, 2 13, 2 15, 220, 221, 223, 225, 228, 230, 232, 239, 250, 251, 252, 253, 254, 261, 263, 268, 272, 283, 287, 290, 291, 293, 295, 299, 300, 301, 303, 305, 306, 3 10, 320, 325, 329, 332, 333, 353, 355, 362, 364, 367, 369, 372, 374, 375 381, 386, 399, 404, 405, 406, 407, 408, 4 16, 4 18, 4 1 9, 424, 430, 439, 440, 446, 449, 451 , 452, 454, 457, 468, 475, 476, 488, 498, 499, 509, 5 10, 515, 517, 520, 524, 530, 53 1, 533, 536, 537, 543, 544, 545, 548, 549, 553, 554, 555, 564, 572, 581, 587, 590, 594, 595, 596, 603, 606, 607, 61 1, 614, 6 18, 621, 623, 630, 63 1, 641, 643, 646, 647, 650,658, 660, 663, 665, 666, 67 1, 676, 689, 693, 694, 696, 697, 706, 7 12, 7 13, 719, 73 1 , 735, 736, 737, 740, 741, 742, 743, 745, 746, 747, 761 , 770, 771, 779, 781 , 794, 797, 801 , 803, 8 1 1, 820, 827, 829, 833, 834, 840, 842, 843, 850, 852, 859, 861, 866, 867, 868, 869, 870, 872, 873, 880, 885, 886, 887, 907, 9 1 1, 917, 92 1, 924, 930, 934, 949, 952, 966, 991, 992, 998, 1004, 1008, 1 014, 1017, 1019

e arte, 73, 82 e epistemologia, 649, 651, 871 Poliziano (Angiolo Ambrogini), 953 Polônia, 544, 566, 567 Portugal, 1005 Positivismo, 286, 349, 623, 759, 894, 997; ver também Ciência, Sociologia Povo, 35, 36, 37, 39, 43, 47, 52, 55, 71, 87, 561 , 9 1 8, 920, 929, 941, 962, 968, 983, 986, 992, 994; ver também Sufrágio e arte, 746; ver também Dionisíaco chandala, 807, 8 1 5; ver também Chandala eleito, 557, 561 , 7 12, 777, 778, 804 como massa amorfa, 746; ver também Sufrágio, chauvinismo Principium individuationis, 65, 66, 68, 72, 463, 470, 602, 658, 859; ver também Dionisíaco, Nominalismo, Holismo Procriação, 1 07, 595, 596, 713, 791 ver também Mulher, Economia políti­ ca, Engenharia social, Matrimônio, Socialdanvinismo, Suicidio Progresso, 30, 32, 53, 58, 6 1 , 62, 84, 164, 166, 1 89, 202, 203, 205, 206, 209, 295, 305, 3 18, 327, 336, 371, 398, 417, 444, 473, 480, 481, 589, 592, 628, 643, 666, 674, 679, 689, 704, 727, 733, 738, 777, 826, 847, 852, 975, 967, 969, 988, 990, 991, 1 018; ver também Modernidade, Técnica Prometeu, 30, 57, 58, 59, 60, 93, 109 Protestantismo, 125, 141, 146, 162, 231, 281, 470, 489, 499, 824; ver também Norte/ Sul, Reforma Proudhon, Pierre-Joseph, 1 57, 272, 390, 503, 505, 512 Prússia, 37, 40, 41, 44, 72, 1 9 1 , 1 92, 1 93, 194, 198, 2 12, 223 , 268, 302, 320, 380, 400, 401, 454, 5 15, 539, 551, 562, 574, 679, 681, 682, 684, 690, 705, 753, 772, 843, 920; ver também Alemanha

Psicologia, 266, 267, 268, 276, 425, 526, 529, 587, 637, 639, <XJ7, 675,714, 759, 767, 840, 841 , 861 , 869, 883, 884, 887, 88, 889, 897, 898, 902, 903, 904, 905, 907, 908, 909, 928; ver também Doença/saú­ de, Socialdarwinismo, Sociologia das multidões, 8 18, 942, 943 Pugatchov, Emiliano Ivanovitch, 63 1, 636 Puritanismo, 255, 3 82, 726, 953 , 954; ver também Abolicionismo, Estados Uni­ dos Q

Questão social, 28, 51, 64, 67, 138, 1 6 1 , 1 92, 2 1 1 , 304, 306, 321, 330, 3 3 1 , 335, 345, 3 90, 399, 418, 428, 429, 534, 540, 553, 559, 576, 578, 580, 595, 643, 645, 649, 658, 659, 856, 947 e questão judaica, 1 38, 243, 267, 297, 558, 576, 578 ver também Judaísmo, Emancipação (dos judeus), Trabalho Quinet, Edgar, 472 R

Raça, 30, 126, 1 3 1 , 175, 186, 237, 244, 245, 247, 3 15, 3 17, 3 18, 319, 355, 386, 392, 403, 409, 410, 41 1,412, 447, 451,4«,,490,491, 526, 546, 548, 549, 550, 555, 557, 558, 561, 562,565, 5<XJ, 567, 581,612, 616,666, 691, 692, 702, 729, 736, 748, 749, 752, 758, 764, 771, 790, 793, 796, 800, 806, 808, 809, 812, 814, 818, 819, 829 branca, 388, 707, 752 dos servos, 409, 4 1 1 , 5 90, 1 02 1 dos senhores, 409, 544, 571 , 578, 590, 750, 773, 775, 799, 827, 972, 1007, 1021 ver também Colonialismo, Eugenia, Socialdarwinismo Racialização, 410, 769, 771, 772, 794, 796 horizontal, 769, 774, 780, 791 , 792, 794, 797, 798, 799, 816, 819, 828

transversal, 769, 774, 791, 792, 793, 794, 796, 797, 798, 799, 801 , 806, 8 16, 8 19, 826, 828 ver também Escravidão Racionalidade, 89, 252, 275, 360, 676 do real, 201 , 202, 205 ver também Progresso, História Racionalismo, 3 1, 34, 88, 90, 9 1 , 93, 100, 106, 160, 163, 1 98, 476, 501 , 5 14, 593, 594, 669, 675, 78 1 , 189, 82 1 ; ver tam­ bém Dialética, Razão, Ciência Radowitz, Joseph Maria von, 5 15 Rafael (Raffaello Sanzio), 104, 105, 953 Ranke, Leopold von, 203, 205, 206, 845 Rauschning, Hermann, 1060 Raynal, Guillaume Th., 423 Razão, 235, 241 , 853, 920, 93 1 , 962, 971 , 975 e arte, 590, 954; ver também Dionisíaco, Principium individuationis calculadora, ; ver também Iluminismo limites da, 93, 94, 236; ver também Dialética, Socratismo universalidade da, 458, 850 Rée, Paul, 260, 261, 264, 267, 290, 759, 815 Reeve, Henry, 692 Refonna, 141, 146, 1 47, 1 57, 162, 163, 195, 230, 23 1 , 232, 233, 236, 240, 270, 462, 465, 466, 467, 470, 489, 497, 499, 5 1 1, 5 18, 527, 575, 633, 762, 768, 806, 807, 809, 8 13, 823, 842, 855, 856, 886, 953, 954, 955, 97 1 ; ver também Norte/Sul, Protestantismo Reirnarus, Hermann Samuel, 1 63, 262 Religião, 55, 751, 922, 926, 932, 944, 951, 955, 956, 961, 964, 970; ver também Judaísmo, Monoteísmo, Moral, Politeísmo, Revo­ lução da compaixão, 275, 653 ; ver também Moral, Socialdarwinismo cristã, 256, 473 , 600; ver também Anticristianismo, Cristianismo

"erudita", 55, 56, 61 helênica, 23, 85; ver também Grécia, Politeísmo como ideologia, 63, 707; ver também Ideologia judaica, 1 1 1 , 130, 1 67, 232, 49l; ver tam­ bém Judaísmo, Elitismo Rembrandt, Harmenszoon van Rijn, 772 Renan, Joseph-Ernest, 37, 49, 128, 152, 160, 168, 255, 283, 298, 3 1 1, 392, 393, 420, 463, 466, 473, 488, 653, 654, 691 , 693, 708, 747, 748, 750, 759, 760, 772, 777, 838, 905 Renascimento, 50, 6 1 , 144, 230, 23 1 , 236, 240, 260, 375, 471 , 527, 575, 588, 763, 764, 776, 8 1 3 , 824, 878, 9 18, 953 ; ver também Reforma Renault, François, 1060 Renaut, Alain, 1035 Ressentiment, ver Ressentimento Ressentimento, 193, 273, 278, 308, 400, 419, 42 1, 523, 642, 921, 970; ver também In­ telectuais, Partido (da vida) Restauração, 105, 351, 462, 465, 466, 461, 633, 639; ver também Antigo regime Reuth, RalfG, 1060 Revolução americana, 649 como complô, 810, 813, 816 como degeneração, 636; ver também Doença/saúde de Fevereiro, 255, 381, 383, 438, 455, 641, 673 francesa, 33, 36, 42, 48, 49, 50, 52, 68, 76, 87, 88, 89, 96, 98, 100, 103, 104, 105, 1 95, 206, 2 10, 2 1 1 , 2 17, 239, 248, 253, 254, 255, 256, 261 , 266, 268, 273, 274, 281, 283, 288, 289, 295, 3 14, 323, 367, 374, 375, 383, 384, 396, 398, 410, 416, 424, 432, 442, 444, 454, 461, 462, 463, 465, 466, 468, 470, 47 1, 472, 478, 479, 480, 487, 495, 496, 497, 499, 502, 504,

505, 508, 5 1 1 , 513, 5 15, 5 16, 519, 521, 525, 527, 528, 529, 530, 538, 560, 589, 63 1 , 632, 633, 637, 650, 652, 653, 654, 657, 663 669, 670, 672 686, 688, 690, 692, 7 10, 714, 735, 759, 762, 763, 768, 781, 793, 798, 808, 809, 8 13, 822, 841, 842, 844, 845, 846, 847, 850, 852, 856, 871 , 875, 880, 886, 906, 922, 93 1 , 934, 973, 991, 996, 1005 de Julho, 53, 123, 124, 3 1 1, 456; ver também Comuna de Paris, "Glorious revolution" de 1830, 5 1 1 de 1848, 24, 28, 38, 48, 49, 100, 158, 193, 301, 365, 387, 401 , 404, 424, 438, 454, 495, 498, 511, 620, 622, 623, 638 ocidental única, 465 puritana inglesa, 466, 497, 633, 918, 922 como revolta servil, 28, 29, 34, 42, 192, 227, 355, 356, 357, 379, 388, 404, 406, 41 1, 427, 444, 466, 470, 568, 569, 653, 773, 807, 809, 816, 817, 822,831, 850, 856,926, 972, 1007; ver também Escravidão Taiping, 313 total, 497, 498, 510, 512, 5 16, 517 Rhodes, Cecil John, 694, 961 Ricardo, David, 438 "Richard Wagner em Bayreuth", 176, 1003; ver também "Considerações inatuais" Richter, Eugen, 983 Rickert, Heinrich, 983 Ricoeur, Paul, 1060 Riedel, Manfred, 1 060 Rieffer, G, 1060 Riehl, AIois, 722 Risorgimento, 144, 145 Ritschl, Friedrich Wilhelm, 73, /4, 1 17, 1 19, 130, 840, 844, 1018 Ritter, Gerhard, 737, 1019 Rivarol, Antoine de, 52, 104, 254, 292, 771 Robespierre, Maximilien-Marie-Isidore de, 48,52, 272, 288, 473, 502, 504, 511, 51 5, 519, 918, 943, 998

Rodinson, Máxime, 1061 Rohde, Etwin, 35, 56, 74, 80, 83, 84, 93, 98, 102, 1 14, 1 16, 1 19, 120, 133, 158, 174, 180, 182, 1 84, 186, 387, 724, 732, 860, 86 1, 871, 879, 948, 1003, 1014 Rõhl, John C. G, 1061 Roma, 70, 126, 130, 145, 146, 151, 158, 165, 233, 246, 266, 281 , 327, 462, 469;470, 478, 488, 527, 528, 570, 584, 692, 789, 813, 822, 825, 830, 853, 856, 920, 955, 965, 966, 972; ver também Aiemanha (e França) e Judéia, 469, 966; ver também Anticristianismo, Chandala, Judaísmo Romantismo, 143, 237, 347, 599, 616, 663, 850, 888 Romundt, Heinrich, 74, 175, 177 Roosevelt, Theodore, 72 1, 757, 832 Rose, Paul Lawrence, 106 1 Rosenberg, Alfred, 741, 749, 766, 785, 789, 790, 794, 807, 820, 826, 827, 1022 Rosenkranz, JohannKarl Friedrich, 58, 96, 216, 500, 503 Rosmini Serbati, Antonio, 49, 495, 515 Ross, Wemer, 1062 Rossini, Gioacchino, 123, 557 Rousseau, Jean-Jacques, 52 54,76, 100, 236, 248, 249, 250, 253, 254, 255, 256, 257, 272, 273, 276, 280, 285, 288, 289, 404, 4 16, 423, 424, 426, 462, 473, 5 1 1, 512, 525, 588, 63 1, 632, 633, 634, 637, 656, 657, 674, 759, 760, 762, 853, 880, 881 , 886, 9 1 8, 929, 930, 93 1, 934, 940, 943, 952, 956 Ruge, J\mold, 1 58, 229, 454, 502, 845 Ruge, Wolfgang, 1062 Ruskin, John, 692, 695, 698 Rússia, 9 1 , 225, 263 , 3 17, 322, 333, 366, 374, 375, 380, 433 , 494, 495, 496, 5 16, 524, 543, 544, 552, 562, 563, 564, 565, 582, 6 1 8, 63 1 , 667, 679, 680, 682, 683, 685, 690, 753, 825; ver também Niilismo (russo)

s

Sade, Donatien-Alphonse-François de, 416, 503, 508, 519, 710, 734 Sainte-Beuve, Charles-Augustin, 759, 760 Saint-Just, Louis-Antoine-Lion, 48, 504 Saint-Simon, Claude-Henri de Rouvroy de, 49, 399, 473, 647, 943 Sand, George (Amandine-Lucie-Aurore Dupin, baronesa de Dudevant), 289, 759, 760, 765, 772, 839 Sânscrito, 1 3 3 ; ver Ariano Sanson, Charles-Henri, 1060 Santaniello, Weaver, 1062 Satã, 203 Saulo, 232, 479; ver também Paulo de Tarso Sautet, Marc, 1063 Savigny, Friedrich Karl von, 2 10, 213 Savonarola, Girolamo (Jerônimo), 473, 943 Saxônia, 4 1 Schelling, Friedrich Wilhelm Joseph, 23, 24, 45, 53, $, � 4™, .fl5, 405, 4.5:l, 498, 514, 5 15, 580, 614, 759, 850, 925, %7 Schieder, Theodor, 1063 Schiller, Johann Christoph Friedrich, 84, 87, 235, 236, 256, 737, 760 Schlegel, Friedrich von, 146, 193, 238, 371 , 500, 504, 5 15, 5 17, 967 Schleiermacher, Friedrich Ernst Daniel, 45, 237 Schmuhl, Hans-Walter, 1063 Schnabel, Franz, 1063 Schoeck, Helmut, 1063 "Schopenhauer como educador'', 66, 622; ver também "Considerações inatuais" Schopenhauer, Arthur, 24, 25, 26, 32, 37, 42, 45, 47, 50, 51, 53, 57, 65, 68, 73, 78, 84, 86, 93, 97, 98, 100, 102, 1 10, l l l, 1 12, 1 14, 1 17, 1 18, 128, 129, 133, 137, 146, 152, 164, 166, 168, 174, 1 80, 1 8 1 , 1 95, 196, 206, 208, 214, 2 15, 216,217, 219, 220, 221,222, 233, 237, 243, 250,261, 264, 265,287,289,

290, 296, 300, 301,304, 309, 327, 342, 343, 345, 346, 384, 400, 406, 407, 425, 427, 428, 429, 433, 434, 435, 436, 441, 445, 446, 448, 455, 463, 464, 470, 471, 475, 480, 493, 494, 501, 513, 517, 521, 566, 572, 590, 593, 614, 620, 622, 625, 626, 627, 631, 635, 641, 643, 649, 651, 655,656,657, 672, 673, 714, 758, 759,766, 817, 837, 840, 847, 857,859,866, 873, 874, 878, 883, 885, 886, 889, 900, 935, 967, 969, 995, 1004 Schul1laill1, \Volfgang, 1062 Schuré, Edouard, 4 94 Scott, \Valter, 2 1 O Seckendorff, baronesa (Plãnckner de nascimento), 53 1 Seckendorff, Gõtz von, conde, 53 1, 532 Secombe, \Vally, 1064 See, Klaus von, 1 064 Seier, Hellmut, 1064 Seleção, 298, 4 1 9, 452, 5 13, 596, 599, 600, 602, 6 18, 674, 702, 705, 713, 729, 736, 810, 825, 987, 1007, 10 1 1 e contra-seleção, 701 ver também Danvinismo, Engenharia social, Socialdanvinismo Sêneca, (Lucius Annaeus Seneca), 873 Sengupta, Somini, 1064 Sensualismo, 60, 62, 63, 69, 954, 955 ; ver também Materialismo, Paganismo, Pe­ cado, Espiritualismo Ser / devir, 590, 59 1 ; ver também Eterno retomo Serenidade helênica, 23 ; ver também Oti­ mismo, Pessimismo Servidão, 54, 368, 394, 400, 436, 446, 458, 487, 684, 791, 896, 981 da gleba, 379, 424, 432, 43 3, 446, 496, 514, 539, 557, 683, 685, 856, 991 ver também Trabalho, Otiwn, Escravidão Servitus, 394; ver também Trabalho, Otiwn, Escravidão Sévigné, Marie de Rabutin-Chantal de, 417 Shakespeare, \Villiam, 366, 9 18, 954

Siegfried, 126, 127 Sieyes, Emmanuel-Joseph, 274, 275, 396, 497, 609, 628, 686, 688, 689, 690, 770, 771, 797, 798, 979 Sila, Lúcio Cornélio, 462 Silberner, Edmund, 1 064 Sileno, 24, 30, 837 Simmel, Georg, 722, 723 Simon, \Valter Michael, 1064 Skilton, J.A., 676 Slotkin, Richard, 1064 Smith, Adam, 105, 192, 917, 986 Sacia/darwinismo, 49, 290, 521 , 538, 6 15, 617, 640, 701, 702, 705, 724, 730, 737, 757, 799, 825; ver também Danvinismo, Eugenia, Engenharia social, Züchtung Socialdemocracia, 440, 453, 520, 524, 525, 527, 529, 537, 538, 540, 541, 542, 545, 553, 555, 561, 577, 579, 584, 62 1 , 658, 708, 709, 725, 726, 727, 773, 779, 832, 845, 846, 847; ver também Socialismo Socialismo, 35, 36, 42, 48, 49, 50, 5 1, 60, 62, 67, 73, 78, 92, 105, l60, 197, 202, 209, 250, 252, 262, 272, 289, 290, 291 , 301, 302, 303, 304, 305, 307, 308, 3 14, 329, 33 1, 332, 336, 337, 351, 355, 356, 364, 367, 383, 390, 417, 420, 455, 462, 474, 475, 476, 482, 494, 495, 502, 506, 5 10, 5 1 1, 525, 528, 538, 552, 558, 559, 560, 56 1, 566, 575, 579, 580, 582, 583, 641, 642, 65 1, 654, 659, 692, 695, 701 , 704, 712, 723, 726, 731, 739, 756, 806, 851 , 854, 907, 921, 939, 976, 977, 983, 1015 "feudal", 578, 581 kantiano, 291 ver também Anarquismo, Comunismo Sociologia, 74, 617, 630, 633, 637, 638, 660, 667, 742, 759, 860, 884; ver também Positivismo, Psicologia, Socialdawinismo da arte, 74; ver também Arte ver também Intelectuais, Imprensa Sócrates, 21, 25, 27, 29, 30, 31, 32, 33, 35, 36, 42, 75, 76, 89, 90, 91, 92, 96, 98, l l4, 1 15,

1 16, 1 17, 1 18, 1 19, 121, 127, 128, 130, 132, 148, 165, 177, 181, 198, 201, 221,240, 280, 469, 489, 5 12, 568, 587, 594, 638, 640, 652, 720, 724, 767, 775, 821, 866, 881, 884, 886, 90 1 , 903, 904, 908, 912, 913, 1002, 1003, 1009, 1013, 1017 Socrati.s?no, 26, 42, 89, 96, 98, 1 14, 1 15, 1 16, 1 17, 1 18, 1 1 9, 121, 122, 124, 127, 128, 132, 177, 181, 193 , 1 94, 261, 489, 572, 594, 720, 1002, 1014, 1017 ejudaíslllo, 109, 198, 470, 1018 ver também Dialética Sófocles, 21, 24 Solllbart, Werner, 1065 Sorel, Georges, 1065 Spaventa, Bertrando, 495, 500 Speer, Albert, 745 Spence, Jonathan, 1 065 Spencer, Herbert, 399, 64 1, 659, 676, 70 1, 705, 709, 711, 759 Spengler, Oswald, 83 1 Spinoza, Baruch, 72, 1 1 1, 238, 634, 870, 898, 910 Stael, Anne-Louise-Gerlllaine Necker, Illadallle de, 770 Stahl, Friedrich Julius, 94, 201 Steding, Christoph, 1065 Stegll13ier, Wemer, 1065 Stein, Heinrich Friedrich Karl von, 53 Stein, Lorenz von, 137 Stein, Ludwig, 725 Stendhal (Henri Beyle), 353, 456 Sternhell, Zeev, 1065 Stimer, Max (Johann Kaspar Schrnidt), 48, 49, 88, 104, 1 05, 500, 502, 503, 504, 508, 509, 5 18, 519 Stõcker, Adolf, 5 1 1, 523, 530, 532, 533, 536, 537, 538, 539, 540, 541, 549, 553, 555, 556, 557, 558, 559, 560, 561, 562, 566, 579, 582, 584, 585 Stoddard, Lothrop, 827, 828, 1022 Stolberg-Wemigerode, Otto von, conde, 1066

Stoll, Adolf, 1066 Stout, Hany S., 1052 Strauss, DavidFriedrich, 32, 53, 95, 97, 1 1 1, 126, 1 30, 135, 136, 1 5 1, 152, 153, 154, 155, 1 56, 157, 158, 1 60, 161, 162, 163, 164, 165, 166, 167, 168, 169, 171, 172, 173, 174, 175, 176, 177, 179, 182, 183, 185, 1 97, 201, 227, 260, 261, 262, 263, 264, 265, 300, 3 12, 493, 494, 495, 621, 622, 652, 653, 654, 837, 86 1, 866, 867, 878, 904, 952 Strindberg, August, 589 Struve, Walter, 737 Suetônio (Caius Suetonius Tranquillus), 853 Sufrágio, 296, 298, 333, 366, 562 universal, 193, 201, 261, 268, 288, 295, 296, 299, 300, 301, 333, 336, 362, 365, 366, 523, 530,537, 560, 579,730, 756, 769, 867 ver também Delllocracia, Elitislllo, Partidocracia Suíça, 256, 332, 620 Suicídio, 32, 34, 21 5, 598, 599, 601, 644, 853, 1006; ver também Econolllia polí­ tica, Moral (da colllpaixão) Sull11ler, Willialll Graharn, 701 , 702, 709 Super-homem, 576, 617, 618, 625, 715, 724, 725, 733, 737, 745, 746, 778, 792, 828, 847, 848, 849, 949, 95 1, 956, 1006, 1021, 1022 ver também ElitiSillo, Eugenia, Nazislllo Sybel, Heinrich von, 336, 528, 529, 842, 846 T

Tácito, Comélio, 39, 43, 147, 830, 853, 854 Taine, Hippolyte, 33, 34, 35, 92, 100, 1 99, 243, 250, 255, 273, 274, 275, 276, 284, 290, 304, 407, 454, 467, 5 1 5, 5 16, 528, 529, 632, 637, 675, 770, 844, 845, 847, 853, 880, 929, 930 Tal, UrieL 1066 Ta/mude, 4 1 8 Tasso, Torquato, 575

Taureck, Bernhard H. F., 1067 Tawney, Richard Henry, 1067 Técnica, 245, 439, 441, 6 1 1, 630; ver Pro­ gresso, Ciência Teísmo, 97 Teodiceia, 83, 84, 85, 203, 856, 857, 858, 859 da felicidade, 856, 857, 859 ver também Cosmodiceia, Moral (da compaixão) Teógnis, 385, 386, 406, 410, 682, 820, 827, 843, 1022 Teo/ogia, 145, 146, 157, 204, 209, 237, 285, 477, 496, 502, 503, 516, 758, 888, 9 10 Tertuliano (Quintus, Septimius Florens Tertullianus), 920, 933 Teti, Vito, 1067 Teutomania, 39, 1 96, 225, 229, 234, 238, 267, 270, 324, 335, 569, 721, 722, 765, 766, 787, 894, 944 ; ver também Galofobia, Mito Thierry, Jacques-Nicolas-Augustin, 410, 847 Thiers, Louis-Adolphe, 462, 481, 846 Tieck, Johann Ludwig, 1 83 Ttlle,Alexander, 722, 728, 729, 730, 738, 790, 791, 792, 983 Tocqueville, Alexis-Charles-Henri de, 28, 34, 49, 92, 278, 298, 301, 304, 305, 306, 309, 3 10, 3 1 1, 3 12, 3 13, 3 14, 3 15, 399, 400, 402, 407, 416, 4 17, 420, 426, 462, 463, 467, 470, 515, 528, 529, 633, 641, 645, 649, 650, 65 1 , 654, 662, 687, 691, 692, 703, 706, 708, 7 10, 7 1 1 , 8 17, 818, 819, 844, 845, 93 1 Todorov, Tzvetan, 747 Tolstoi, Lev Nikolaievitch, 680, 683, 684 Tomás de Aquino, santo, 5 14 Tõnnies, Ferdinand, 709, 725 Toussenel, Alphonse de, 137 Townsend, Joseph, 435 Toynbee, Arnold Joseph, 130, 616 ·

Traba/ho, 27, 33, 48, 56, 60, 69, 72, 78, 93, 98, 101, 108, 1 16, 134, 148, 157, 178, 187, 917, 922, 933, 937, 938, 939, 940, 941 , 944, 945, 946, 947, 948, 950, 956, 959, 960, 979, 981 , 982, 984, 992, 998, 999, 1000, 1002, 1014, 1015 dignidade do, 3 1, 33, 68, 98, 107, 1 98, 329, 402, 439, 440, 864, 960; ver tam­ bém Otium, Escravidão, Servidão divisão do, 104, 105, 1 15, 2 17, 3 19, 482, 769, 799, 858, 937, 938, 939, 940, 941 , 943, 999,1 000 ; ver também Questão social divisão internacional do, 3 18; ver tam­ bém China, Racialização intelectual, 937; ver também Intelec­ tuais, Psicologia, Sociologia (das classes intelectuais) Traduzibilidade das linguagens, 61 1, 884, 887, 888, 905 Tragédia, 22, 23, 24, 25, 30, 3 1 , 34, 59, 73, 75, 76, 91, 109, 1 15 de Ésquilo, 30, 58 de Eurípedes, 886 e ópera, 1 1 5 de Sófocles, 24 vertambém ''Nascimento da tragédia (O)" Transva/oração dos valores, 740, 991; ver também Moral Trasímaco, 442 Treitschke, Heinrich Gotthard von, 41, 49, 82, 91, 129, 133, 137, 155, 156, 173, 180, 185, 1 94, 1 95, 197, 242, 245, 246, 264, 268, 269, 270, 300, 301, 333, 40 1 , 453, 53 1 , 556, 557, 566, 571, 687, 709, 756, 842, 846, 1008 Trendelenburg, Friedrich Adolf, 94, 96 Treue, Wilhelm, 38, 258 Tribschen, 50, 1 14, 1 15, 1 16, 1 17, 134, 720 Trimalcião, 266 Tristão, 43, 765 Trotski, Lev Davidovitch, 505, 524, 695, 726 Tucholsky, Kurt, 5

1 103

Tucídides, 776 Turgenev, Ivan Sergueievitch, 496, 501, 510, 516, 680 Twain, Mark ( Samuel Langhome Clemens) u

Universalidade, 2 10, 442, 443, 444, 649, 650, 652, 653, 654, 671, 962, 963, l Ó l5 mistificação da, 45 1 negação da, 444 da razão, 458, 850 ver também Homem, Razão Universidade, 5, 38, 80, 1 12, 160, 218, 524, 63 1 ; ver também Intelectuais, Instru­ ção, Espírito (livre) Untersteiner, Mário, 1 068 Urbanismo, ver Cidade/campo " Utilidade e dano da históriapara a vida (Sobre a)", ver também "Considera­ ções inatuais", Eterno retorno, Inocên­ cia do devir, História Utilitarismo, 940 V

Vaihinger, Hand, 722 Vanini, Júlio César, 445 Varnhagen, Rahel, 722, 773 Varo, Públio Quintílio, 145 Varrão, Marcos Terêncio, 396 Vattel, Emer de, 239 Vattimo, Gianni, 1002, 1005, 1 006, 1007, 1015, 1016, 1017, 1019, 1021 Vauvenargues, Luc de Clapiers de, 239 Veblen, Thornstein, 6 1 5 Vegetarianismo, 50 Venturi, Franco, 1069 Verjus, Antoine, 880 Verrechia, Anacleto, 1069 Vincent, John, 1069 Vrrgem Maria, mãe de Jesus, 920 VISCher, Friedrich Theodor, 623

Vitória, esposa de Frederico III, 545, 55 1, 554 Vitória, rainha do Reino Unido e imperatriz das Índias, 543, 551, 552, 553 Vivarelli, Vivetta, 1069 Volk, 793; ver também Povo Volksthum (comunidade popular), 142; ver também Povo Vollrath, Wtlhelm, 1069 Volpi, Franco, 1069 Voltaire (François-Marie Arouet), 163, 175, 230, 238, 239, 248, 250, 25 1, 26 1 , 446, 462, 630, 632, 880, 918 "Vontade de poder (A)", 952, 995; ver tam­ bém Nazificação de Nietzsche, Nazismo Vontade de potência, 723, 934, 96 1, 992, 99?, 994, 995, 1007, 10 11; ver tambéffl "Vontade de poder (A)" w

Wagner, Cosima (Liszt de nascimento), 45, 79, 1 12, 1 14, 1 15, 1 16, 1 17, 130, 131, 133, 145, 171, 174, 175, 1 76, 179, 187, 260, 266, 267, 494, 720, 765, 869, 1003, 1004 Wagner, Richard, 21, 22, 25, 26, 37, 38, 39, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 50, 55, 57, 69, 70, 73, 76, 77, 78, 80, 102, 1 10, l l l, 1 12, 1 13, 114, 1 15, 1 16, 1 17, 118, 1 19, 120, 121, 122, 123, 124, 125, 126, 127, 128, 129, 131, 132, 133, 136, 137, 138, 139, 140, 142, 144, 145, 149, 153, 162, 164, 165, 166, 167, 168, 169, 170, 171, 172, 173, 174, 175, 177, 178, 179, 180, 181, 182, 183, 184, 185, 186, 187, 196, 197, 199, 220, 222,224, 229, 233, 234, 235, 236, 244, 246, 257, 259, 260, 267, 268, 270, 292, 327, 335, 338, 349, 388, 453, 463, 464, 494, 495, 521, 526, 557, 558, 563, 572, 579, 590, 592, 622,625, 630, 649, 720, 741, 744, 745, 746, 747, 748, 749, 750, 751, 761, 762, 765, 766, 767, 775, 783, 787, 804, 821, 837, 839, 850, 854, 860, 861, 869, 873, 886, 887, 889, 899, 915, 942, 943, 956, l002, 1003, 1004, 1014, 1018

Waldersee, Alfred voo, conde, 542, 544, 545 Walicki, Andrezy, 1071 Wallon, Henri-Alexandre, 381 Walwin, James, 1071 Warneck, Gustav, 1071 Weaver, Richard M., 1071 Weber, Karl Maria von, 39 Weber, Max, 615 Wehler, Hans-Ulrich, 1072 Weichelt, Hans, 1072 Weii Simone, 830, 833 Weingart, Peter, 1072 Weisse, Christian Hennann 1072 Weissmann, Karlheinz, 107l Weitling, Wilhelm, 49, 272, 277, 473, 580, 852 Westemhagen, Curt von, 1072 Westphal, Otto, 1072 Widemann, Paul Heinrich, 570, 575 Widmaier, Rita, 1072 Widmann, Joseph Victor, 724 Wieland, Christoph Martin, 235 Wilamowitz-Mõllendorff, Ulrich von, 21, 25, 36, 73, 80, 1 1 9, 1 20, 180, 198, 464, 1018 Wilberforce, William, 383 Willard, Claude, 1072 Williams, Basil, 1072 Wiiliams, Eric, 1072 Wilson, Charles Reagan, 1052 Winckelmann, Johann Joachin' 23 Wippermann, Wolfgang, 1029

Wolf, FriedrichAugust, 874 Wood, Forrest, G, 1073 Woodward, Comer Vann, 1073 Wotan, 126 Wulf, Josef, 1059 X

Xerxes, rei da Pérsia, 980 y

Young, Arthur, 986 z

Zanzibar, l.aratustra, 224, 259, 288, 3 1 1, 349, 358, 449, 464, 477, 509, 526, 565, 569, 570, 571, 572, 573, 574, 576, 582, 595, 597, 599, 600, 601, 602, 624, 627, 697, 698, 715, 744, 778, 828, 863 , 881, 895, 908, 941, 947, 948, 949, 950, 95 1, 952, 989, 990, 1006, 102 1 ; ver também "Assim falou Zaratustra" Zelinky, Hartrnut, 1073 Zeller, Eduard, 49 Zetkin, Clara, Zeus, 86, 955 Ziegler, ValarieH., 1073 Ziinmermann, Moshe, 1073 Zivi/isation, ver Civilisation Zola, Émile, 759 Züchtung, 985, 1005, 102 1 ; ver também Eugenia, Engenharia social

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