Textos Em Representações Sociais - Pedrinho A. Guareschi, Sandra Jovchelovitch

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Coordenadores: Pedrinho Arcides Guareschi - Pontifícia Univ. Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Sandra Jovchelovitch - London School of Econom ics and Political Science (LSE) - Londres

Conselho Editorial: Robert M. Farr - London School of Economics and Political Science (LSE) - Londres Denise Jodelet - L’École des Hautes Études en Sciences Sociales - Paris Sílvia Lane - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) Regina Helena Freitas Campos - Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Angela Arruda - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Tânia Galli Fonseca - Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Leôncio Camino - Universidade Federal da Paraíba (UFPA)

Obras da Coleção Psicologia Social: 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7.

Psicologia social contemporânea (Livro-texto) - Vários autores As raízes da psicologia social moderna - Robert M. Farr Representando a alteridade - Angela Arruda (Org.) Novos paradigmas em psicologia social - Vários autores Gênero, subjetividade e trabalho - Tânia Galli Fonseca Psicologia social comunitária - Regina Helena Freitas e outros Textos em representações sociais - Pedrinho Arcides Guareschi e Sandra Jovchelovitch 8. Representação social do espaço público no Brasil - Sandra Jovchelovitch

Dados Internacionais de C atalogação na Publicação (CIP) (Câm ara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Textos em representações sociais / Pedrinho A. Guareschi, Sandra Jovchelovitch (orgs.) ; |prefácio Serge Moscovici |. - 2. ed. Petrópolis, RJ : Vozes, 1995. Vários autores. ISBN 85.326.1297-0 1. Psicologia social 2. Representação (Filosofia) I. Guareschi, Pedrinho A. II. Jovchelovitch, Sandra. III. Moscovici, Serge.

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CDD-302 índices para catálogo sistemático: 1. Representações sociais : Sociologia 302

Pedrinho A. Guareschi Sandra Jovchelovitch (Orgs.) Gerard Duveen Hélène Joffe M artin Bauer Maria Cecília Minayo

M ary Jane Spink Robert Farr Serge Moscovici Wolfgang Wagner

TEXTOS EM REPRESENTAÇÕES SOCIAIS 5a edição

Aà EDITORA Y VOZES Petrópolis 1999

© 1994, Editora V ozes Ltda. Rua Frei Luís, 100 25689-900 Petrópolis, R J Brasil Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora.

FICHA TÉCNICA DA VOZES COORDENAÇÃO EDITORIAL Avelino Grassi EDITOR Lídio Peretti Edgar Orth COORDENAÇÃO INDUSTRIAL José Luiz Castro EDITOR D E ARTE Ornar Santos EDITORAÇÃO Paginação: Rosangela Lourenço e Sheila Roque Supervisão grálica: Valderes e Monique Rodrigues

ISBN 85.326.1297-0

Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda.

SUMÁRIO

Prefácio - (Serge Moscovici), 7 Introdução - (Pedrinho A. Guareschi e Sandra Jovchelovitch), 17 PARTE I - DIMENSÕES TEÓRICAS DA TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS, 27 1. Representações Sociais: a teoria e sua história (Robert M. Farr), 31 2. Vivendo a vida com os outros: intersubjetividade, espaço público e Representações Sociais - (Sandra Jovchelovitch), 63 3. O conceito de Representações Sociais dentro da socio­ logia clássica - (Maria Cecília de Souza Minayo), 89 PARTE II - DIMENSÕES METODOLÓGICAS DA TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS, 113 4. Desvendando as teorias implícitas: uma metodologia de análise das Representações Sociais - (Mary Jane Spink), 117 5. Descrição, explicação e método na pesquisa das Repre­ sentações Sociais - (Wolfgang Wagner), 149

PARTE III - DIMENSÕES PRÁTICAS DA TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS, 187 6. "Sem dinheiro não há salvação": ancorando o bem e o mal entre os neopentecostais - (Pedrinho A. Guareschi), 191 7. A popularização da ciência como imunização cultural: a função de resistência das Representações Sociais - (Martin Bauer), 229 8. Crianças enquanto atores sociais: as Representações Sociais em desenvolvimento - (Gerard Duveen), 261 9. "Eu não", “o meu grupo não” : Representações Sociais transculturais da AIDS - (Hélène Joííe), 297

PREFÁCIO

Tenho inúmeras razões para agradecer aos organiza­ dores deste livro o convite para contribuir com esta obra através de um prefácio. Mas eles próprios apresentaram, de maneira tão excelente, os aspectos gerais da t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c i a i s , que não me resta nada mais do que fazer alguns comentários pessoais. Alguém afirmou, certa vez, que tudo o que existe na natureza se produz a partir de uma de suas margens: a superfície da terra, a membrana de uma célula, o momento de uma catástrofe, o começo e o fim de uma vida. Poder se-ia dizer o mesmo do que se produz na sociedade. E especialmente neste território onde se articulam os fenô­ menos individuais e os fenômenos coletivos. Sendo assim, devemos estar atentos à maneira como colocamos o pro­ blema indivíduo-sociedade, pois, sem nos darmos conta, corremos o risco de o transformarmos não apenas em um problema difícil, mas principalmente em um problema que se revele impossível de ser tratado no plano científico. É preciso explicar primeiro o que entendo com isso. Desde o início, nossas teorias consideraram que, na dis­ cussão desse problema, dever-se-ia conceber a p s ic o l o g i a s o c i a l como uma disciplina mista. Uma disciplina que se situasse no cruzamento das ciências psicológicas e das ciências sociais. Acontece que, depois de meio século, nós trabalhamos como se a p s ic o l o g ia s o c i a l tivesse como missão acrescentar uma dimensão social aos fenômenos psicológicos. Pois, por convenção, nós definimos estes últimos apenas como fenômenos individuais. Mas esta orientação pressupõe um enfoque unilateral, pois o primei­ ro enfoque é, se não mais, pelo menos tão significativo

como o segundo. Eu quero falar do enfoque que vê os fenômenos psicológicos do ponto de vista da vida social e cultural. Existe uma reciprocidade, uma relação dualista entre as duas famílias de conhecimentos científicos. Deve­ mos tê-la sempre presente ao espírito, pois é ela que determina o caráter específico de nossa disciplina. Se bem que em nosso trabalho de pesquisa, como na formação dos estudantes, é necessário dar uma atenção extrema à pro­ dução e ao pensamento dos sociólogos e dos antropólogos. Ora, a lacuna essencial da maioria das outras teorias em p s ic o l o g i a s o c i a l é que elas negligenciam esta produ­ ção e este pensamento. Daí decorre sua característica um tanto ingênua, se não superficial, a esse respeito. Não seria demais insistir sobre o fato de que a t e o r i a d a s r e p r e ­ s e n t a ç õ e s s o c ia is conduz um modo de olhar a p s ic o l o g i a s o c i a l que exige a manutenção de um laço estreito entre as ciências psicológicas e as ciências sociais. Falando historicamente ela é, além disso, mais necessária às se­ gundas que às primeiras. Expliquei isso longamente no La machine à faiie des dieux. Nós, psicólogos sociais, estamos em permanente necessidade de combater a tendência de separar os fenômenos psiquicos dos fenômenos sociais, de erguer barreiras entre suas respectivas disciplinas. É uma batalha em duas frentes, da qual vão depender o grau e a fecundidade de nossa ciência. Mas por que a t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c ia is desempenha um papel tão específico? Por que constitui ela, de certo modo, o coração da p s i c o l o g i a s o c i a l ? A resposta a esta questão, que exige menos espaço e tempo, é de ordem histórica. O conceito de representação social ou coletiva nasceu na sociologia e na antropologia. Foi obra de Durkheim e de Lévi-Bruhl. Nessas duas ciências ele serviu de elemento decisivo para a elaboração de uma teoria da religião, da magia e do pensamento mítico. Poderia acrescentar que ele desempenhou um papel aná­ logo na teoria da linguagem de Saussure, na teoria das

representações infantis de Piaget, ou ainda na do desen­ volvimento cultural de Vigotsky. E, de certo modo, este conceito continua presente nesse tipo de teorias. Desde o início, pois, tomou-se claro o sentimento, expresso por Durkheim, Lévy-Bruhl e Mauss, entre outros, de que faltava uma teoria desse conceito e dos fenômenos que ele expressa. E, ainda mais, que a tarefa principal da p s ic o l o g i a s o c i a l consistia em formular essa teoria. Mas como cumprir essa tarefa? E qual o fenômeno social que nos permite executá-la da maneira mais ampla? Para dizer as coisas com brevidade, esforcei-me logo em propor tal teoria, apelando, de maneira interessante, espero, ao que nós sabemos sobre o pensamento social, sobre a comuni­ cação e a semiótica. Não é fácil mostrar a importância de tal empreendimento mas, grosso modo, parece-me poder formulá-lo da maneira que segue. O conceito de átomo, durante dois mil anos, e o de genes, durante mais ou menos um século, foram elementos explicativos e abstratos nas teorias físicas e biológicas. O conceito de representação social foi um conceito semelhante nas teorias sociológicas e antropológicas. E, todos o sabemos, a teoria dos átomos e a teoria dos genes - da hereditariedade - não são mais que o produto recente de duas ciências "híbridas", a física atômica e a biologia molecular. É assim também que a t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c ia is procura renovar e confirmar a especificidade da p s ic o l o g i a s o c i a l . Uma especificidade que é difícil de estabelecer, digo isso cor­ rendo o risco de ferir a modéstia, sem tal teoria. Outro ponto sobre o qual seria necessário insistir é que os fenômenos sociais que nos permitem identificar de maneira concreta as representações e de trabalhar sobre elas são, nós o sabemos, as conversações, dentro das quais se elaboram os saberes populares e o senso comum. Para ser bem mais preciso, pois sobre esse ponto houve mal­ entendidos, estes fenômenos nos dão um acesso privile­ giado aos processos dos quais se ocupa a teoria psicanalítica, e por razões procedentes. Mas isso não

significa que as conversações, os saberes populares ou o senso comum devam ser considerados à parte, ou que se aceite que somente eles expressem as representações sociais. Estas podem ser encontradas, sob outras formas, nas ciências, nas religiões, nas ideologias e em outras circunstâncias. É certo que teorias recentes consideram o senso comum como um protótipo dos fenômenos sociais em geral. Ora, isso possui implicações ideológicas e polí­ ticas que levariam muito tempo para serem discutidas aqui, mas que seria necessário, de qualquer modo, discuti-las algum dia. Passemos agora ao principal. Se aquilo que dissemos acima é verdadeiro, segue-se, então, que cada passo que nós damos em direção ao aprofundamento da t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c ia is não diz respeito apenas a nossa disciplina. Tem a ver também, em primeiro lugar, com a sociologia e a antropologia. De modo especial àquelas suas teorias que se relacionam com a religião, com os mitos, com a ideologia, a linguagem, onde esse conceito e os conceitos daí provenientes desempenham um papel signi­ ficativo. Chegou o tempo de saber o que fazer e de efetuar uma série de avanços rápidos nessa direção. Pode ser que esse empreendimento encontre dificuldades. Mas vale a pena dedicar-se a ele. As noções de representação social, de cognição e outras, tiveram muita dificuldade em se fazer aceitar e sofreram muita resistência. Como, pois, podemos nós esperar justificar toda uma teoria, que seria o objeto da p s ic o l o g i a s o c i a l e comum às ciências vizinhas, sem provocar resistências ainda mais profundas? Após ter de­ dicado grande parte de minha existência em construir tal teoria, é compreensível que isso muito me preocupe. E as resistências se manifestam muitas vezes na crítica a ela feita, de que ela não oferece definições claras, não estabe­ lece relações simples entre suas proposições, ou ainda que ela não enuncia hipóteses que possam ser submetidas à verificação. Ora, parece-me que todas essas dificuldades

desaparecem se levarmos em conta os quatro grandes pontos seguintes, que são muitas vezes mal compreendi­ dos, e por isso combatidos. 1. O papel que a t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c ia is confere à racionalidade da crença coletiva e sua significa­ ção, portanto, às ideologias, aos saberes populares e ao senso comum. Com efeito, nós os tomamos imediatamente como sistemas coerentes de signos. Ou então, tratamo-los como imagens, vizinhas de uma práxis e de um ritual, que têm existência de modo independente, em virtude de um princípio imanente. Aqui se encontra uma contradição com a maioria das concepções, científicas ou não, que assu­ mem essa racionalidade do conteúdo da crença e das concepções coletivas como enviesada, ou não racional, quando comparado ao conteúdo da crença e das concep­ ções do indivíduo. Isso está ligado à famosa inacionality assumption (pressuposto da irracionalidade), de que fala Laudan. Esse pressuposto conduz à busca de uma expli­ cação social, e sociológica, somente para as formas de pensamento não racional, e uma explicação individual e lógica às formas de pensamento racional. Mas isso não é tudo. Apoiando-nos nos argumentos de Durkheim e de Wittgenstein, nossa teoria os leva a seu termo. Isto quer dizer que as representações sociais são racionais, não por serem sociais, mas porque elas são coletivas. Para dizer as coisas brevemente, é somente dessa maneira que os homens se tornam racionais, e um indivíduo isolado e só não poderia sê-lo. Desse modo, toda psicologia das formas de pensamento, ou de linguagem, deve necessariamente ser social. 2. Do mesmo modo que muitos psicólogos e sociólo­ gos, eu sinto repulsa diante do dualismo do mundo indivi­ dual e do mundo social. Num desses mundos, o da experiência individual, todos os comportamentos e todas as percepções são compreendidos como resultantes de processos íntimos, às vezes de natureza fisiológica. No outro mundo, o dos grupos, o das relações entre pessoas

e grupos, tudo é explicado em função de interações, de estruturas, de trocas, de poder, etc. Para facilitar as coisas: somos tentados a incorporar o segundo no primeiro. Esse é o caso, tanto quando afirmamos, com respeito às cognições sociais, por exemplo, que os processos que têm lugar num e noutro são idênticos, como é o caso quando redu­ zimos o social às relações interpessoais ou intersubjetivas. Outros se encaminham, enquanto isso, a uma redução inversa, negando a especificidade do indivíduo e fazendo do consenso o resultado de uma interação que faça desa­ parecer as distinções entre os indivíduos. Esses dois pontos de vista são claramente errôneos pelo simples motivo de que o conflito entre o individual e o coletivo não é somente do domínio da experiência de cada um, mas é igualmente realidade fundamental da vida social. Além do mais, todas as culturas que conhecemos possuem instituições e normas formais que conduzem, de uma parte, à individualização, e de outra, à socialização. As representações que elas elaboram carregam a marca desta tensão, conferindo-lhe um sentido e procurando mantê-la nos limites do suportável. Não existe sujeito sem sistema nem sistema sem sujeito. O papel das repre­ sentações partilhadas é o de assegurar que sua coexistên­ cia é possível. Quero dizer que é justamente este estado de coisas que torna a noção de conflito tão essencial em nossa teoria, quer se trate de transformações cognitivas, quer se trate de comunicações públicas. Sem esta noção não se pode compreender nem o dinamismo da sociedade nem a mudança de qualquer uma das partes que a com­ põem. Ora, por razões que não têm nada de misterioso, as ciências sociais, e a p s ic o l o g i a s o c i a l em particular, resistem em reconhecer esse papel do conflito, da dissensão, tanto na teoria como na prática. Isso tem como conseqüência uma visão bastante estática, tanto dos indi­ víduos como da sociedade. 3. De alguma maneira mais ou menos implícita, alguns lamentaram a complexidade e a elasticidade da t e o r i a d a s

r e p r e s e n t a ç õ e s s o c i a i s . Não é o fato que eu nego, antes a idéia de que essas qualidades se constituam num fator negativo, ou que seria necessário combatê-lo. Quanto a isso, parte de minha resposta é a própria evidência. Seria de estranhar, dentro de nosso entendimento da teoria, que se pudesse isolar um princípio simples e único - dissonân­ cia, tratamento da informação, atribuição, construção, e assim por diante - que desse conta de descrever e explicar os fenômenos dos quais nos ocupamos. Com efeito, que significaria isso? Pura e simplesmente que nós poderíamos compreender, com a ajuda de teorias nitidamente mais elementares, como as da biologia, da lingüística ou da economia, fenômenos consideravelmente mais complexos, ou mais instáveis, que os tratados por essas ciências. Proceder assim é impossível, a não ser que se faça uma mutilação drástica nos fenômenos psicossociais, ou então que aceitemos uma redução, não menos drástica, do valor de nossas descrições e de nossas experiências. Para nos darmos conta de até onde pode chegar tal redução, basta comparar a teoria da atribuição proposta por Heider com a que está subjacente às pesquisas atuais.

E eis a outra parte da minha resposta. Para que uma teoria possa perdurar é necessário que ela seja suficiente­ mente elástica e complexa. Estas qualidades lhe permitem modificar-se em função da diversidade dos problemas que ela deve resolver e dos fenômenos novos que ela deve descrever ou explicar. Somente sob tal condição - e eu já escrevi isso há muito tempo - pode-se assegurar a gene­ ralidade de uma teoria, não como um desejo piedoso, mas como um vàlor prático. Agora é chegado o tempo de renunciar a tais teorias elementares e pouco específicas, com as quais nós nos tínhamos acostumado e erigido como modelo. Elas trazem como conseqüência a fragmentação do campo da p s ic o l o g i a s o c i a l , ao mesmo tempo que reduzem a esperança de vida de cada paradigma. Impedem assim, como assinalou Pepitone, que a p s ic o l o g i a s o c ia l possa ter uma necessária coerência e uma direção clara.

4. Se eu rejeito diversas dicotomias existentes, como a do indivíduo e do coletivo, que acabo de discutir, isso não se deve ao fato de não perceber sua atração intuitiva ou porque considere essa atração desprezível. Mas é por­ que essas dicotomias se tornaram lentes deformadoras que nos impedem ver fenômenos reais, tais como os conflitos, as dissonâncias, etc. em toda sua amplitude e significado. Outra dicotomia é a que se faz entre "bons" e "maus” métodos, qualificando uns como científicos e outros como não científicos. Há tempo que uma das críticas dirigidas contra a t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c i a i s , e que contri­ buiu para que ela permanecesse desconhecida, é a de que ela não era experimental e que não permitia fazer previsões experimentais. Logo depois, psicossociólogos que eu con­ sidero próximos a nós, e com os quais partilho muitas coisas, nos fazem a acusação contrária. Eles até me pedem que tome uma posição clara diante do emprego de métodos experimentais e quantitativos, no estudo das repre­ sentações sociais. Já escrevi repetidas vezes: sou fundamentalmente contra a tendência de fetichizar um método específico. Fazer do método experimental, ou dos métodos não expe­ rimentais, uma garantia de via régia para se chegar ao conhecimento, é tão pernicioso como qualquer outro fetichismo. A menos que isso seja somente poeira atirada aos olhos. As profundas análises históricas de Robert Farr são, sob este ponto de vista, as mais esclarecedoras que exis­ tem em nossos dias. A tarefa do pesquisador, como eu a vejo, é de discernir qual de nossos métodos pode ser mantido com plena responsabilidade. E, conseqüentemen­ te, qual deve ser abandonado, numa época de mudanças, tanto intelectuais como sociais, sem precedentes. Em síntese, minha posição pessoal é de que a t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c i a i s , mesmo que isso possa suscitar resistências ou discordâncias entre nós, permanecerá cria­ tiva por tão longo tempo, o quanto ela souber aproveitar as oportunidades que cada método disponível possa ofe­

recer. Se minha preferência se relaciona com os métodos de observação e de análise qualitativa, como ilustrados pelos trabalhos de Jodelet, Parker ou Palmonari, isso é problema de escolha pessoal, e não problema epistemológico. Em suma, eu sou um metodólogo politeísta, e não monoteísta. O que me confere tal possibilidade é o conteúdo intelectual da t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c i a i s . E u vejo aqui um sinal de qualidade, e não de obscurecimento ou pobreza, como alguns imaginam. Devo esta segurança a meus colegas e a meus velhos alunos latino-americanos, aos quais me liga uma longa amizade, e com os quais eu sempre me manifestei com plena confiança. Sem querer contar minha vida, devo confessar que sob muitos aspectos eu permaneci fiel a Alexandre Koyré, que foi meu mestre nessas questões, e também a duas ou três idéias clássicas. De modo que eu não hesito em afirmar, ainda hoje, que considero sempre a verdade como o ethos do conhecimen­ to e de meu trabalho. Da mesma maneira acredito que o valor intelectual de nosso conhecimento depende, numa medida mínima apenas, do método, seja ele qual for. Lendo recentemente as entrevistas de Chomsky com Ronat, en­ contrei ali expressa uma convicção que não tinha conse­ guido ainda formular de maneira tão clara e tão precisa. Eis o que ele diz: Não há "métodos" para um campo de conhecimento que tenha um verdadeiro conteúdo intelectual. O objetivo é encontrar a verdade. Como chegar até lá, ninguém o sabe. Os métodos experimentais, os matemáticos, as diversas técnicas, não são métodos de trabalho para descobrir a verdade. Jamais alguém tornará criativo um físico ou um biólogo, dizendo-lhe: eis aqui os métodos, experimente-os num novo organismo. Fazem isso os que não sabem o que dar para os estudantes fazerem. É uma confissão de fracasso. Espera-se de um cientista que ele descubra novos princí­ pios, novas teorias, novos métodos de verificação... Isso não se aprende com um método.

Não tenho nada a acrescentar a isso. A não ser convi­ dar os que encontram no método um motivo de continuar à distância da t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c i a i s , que meditem cada afirmação da citação acima. Experimento sempre uma grande apreensão ao fazer uma conferência ou ao redigir um prefácio. Responderão eles ao que se espera? Trarão alguma ajuda àqueles que me escutam ou àqueles que vão ler o prefácio? Tais são meus sentimentos ao preparar esse texto. Se me permiti expressar as resistências que sofre nossa teoria, é porque elas expressam, ao mesmo tempo, a especificidade e as dificuldades que lhe são próprias. Ora, havia grande neces­ sidade de fazer, algum dia, o balanço dessas resistências, e é isso que tentei fazer aqui, pela primeira vez. Espero que isso esclarecerá, ao menos um pouco, o debate sobre as representações sociais, tanto na América Latina como na Europa. Seja como for, uma coisa é certa: já há muito tempo havia necessidade de um livro como este à disposição dos estudiosos e dos pesquisadores. A qualificação dos autores é garantia da qualidade do livro. Ele não somente discute certas idéias importantes, mas ainda faz refletir, coloca o pão à disposição do intelecto. É por isso que eu o recomen­ do sem reservas, esperando que ele encontrará os leitores que merece. Serge Moscovici École des Hautes Études en Sciences Sociales Paris, maio de 1994.

INTRODUÇÃO

A TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS foi O fio central que deu forma ao tecido desse livro. Mais de três décadas depois de seu aparecimento ela se constitui como uma referência central para psicólogos sociais no mundo todo. Entretanto, é preciso que se diga desde já: essa referência não é apenas centrada em mais uma “boa” teoria que nos fornece elementos para praticarmos a “boa” ciência que os pressupostos tradicionais definiram como correta. Não. Com a t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c ia is temos uma história diferente, que questiona ao invés de adaptar-se, e que busca o novo, lá mesmo onde o peso hegemônico do tradicional impõe as suas contradições. Mas a busca do novo não se constitui sem que tenhamos a coragem de enfrentar nossa própria história, e a t e o r i a d a s r e p r e ­ s e n t a ç õ e s s o c ia is vai buscar, tanto dentro da Psicologia como fora dela, as possibilidades de reconstrução teórica, epistemológica e metodológica a que se propõe. É o caráter dessa busca que lhe faz ser tanto uma teoria específica da p s ic o l o g ia s o c ia l como um empreendimento interdisciplinar. No que diz respeito à p s ic o l o g ia s o c ia l , acreditamos que a t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c ia is oferece um passo à frente daqueles conceitos que historicamente constituíram a disciplina. Isso é assim, no nosso entender, porque a teoria consegue tanto romper como re-introduzir questões absolutamente centrais para a p s ic o l o g i a s o c i a l . As rupturas são várias, mas talvez a mais importante seja com o individualismo teórico que marcou a maioria das conceptualizações presentes na disciplina. O indíviduo foi, e em grande medida ainda é, a única possibilidade de referência para noções como atitude, atribuição, esquemas e assim por diante. Ora, o indivíduo existe e seria uma

bobagem tentar negar sua existência. Mais: seria um equívoco crasso. Mas considerar o indivíduo como o único centro possível na análise de processos psicossociais é um outro equívoco crasso, cujas conseqüências teóricas têm contrapartidas práticas das mais graves. Se fracassarmos em perceber que o social, enquanto totalidade, produz fenômenos psicossociais que possuem uma lógica diferen­ ciada da lógica individual, falhamos também em perceber a relação fundamental entre o todo e suas partes, entre o universal e o particular, entre a unidade e a totalidade. Daí, para o obscurecimento das tensões existentes entre esses pólos, o passo é direto. Foi exatamente porque negou a tensão entre o indivíduo e a sociedade que a p s ic o l o g ia s o c i a l em grande parte não conseguiu teorizar adequada­ mente essa relação. Em se tratando dessa relação, acreditamos que tanto as teorias hegemônicas da p s ic o l o g ia s o c i a l , como boa parte da crítica que se ergueu para enfrentá-las, apresen­ tam problemas. Os desentendimentos são vários e pode­ mos citar os que nos parecem ser os principais. O primeiro e mais comum, é o que afirma que estudos de vidas individuais são necessariamente individualistas. O segun­ do sustenta a ilusão de que estar preocupado com a história e a sociedade é uma garantia contra tendências individualizantes. E finalmente o terceiro diz que pelo fato de o indivíduo e a sociedade constituírem um ao outro, eles são a mesma coisa: ou sinônimos, ou redutíveis um ao outro. Ora, vidas individuais não são realidades abstraídas de um mundo social; pelo contrário, elas só tomam forma e se constroem em relação a uma realidade social. A história e a sociedade também não podem ser simplesmente utiliza­ das como variáveis que influenciam a vida humana. Não raro, é assim que as encontramos em muitos dos estudos desenvolvidos pela p s ic o l o g ia s o c ia l , que falham em teori­ zar o aspecto constitutivo da história e da sociedade nos fenômenos psicossociais. Outras vezes a história e a socie­ dade aparecem como explicando tudo, e esse também nos parece ser um problema sério, pois ao negar um estatuto

de especificidade ao fato psíquico, psicólogos sociais ne­ gam também a contribuição que sua própria disciplina pode trazer à compreensão da realidade humana. Por fim, há a tentação de reduzir a sociedade e o sujeito individual, um ao outro, e aqui temos mais um dos modos de negar os fenômenos que advêm exatamente do fato de que o indivíduo e a sociedade não se reduzem um ao outro. Na base de todos esses desentendimentos encontramos um mesmo elemento central: o fracasso em teorizar a dialética entre o sujeito individual e a sua sociedade. Pois é exatamente aí que a t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s nos apresenta novas possibilidades. Em primeiro lugar, porque contra uma epistemologia do sujeito "puro", ou uma epistemologia do objeto “puro", a t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c ia is centra seu olhar sobre a relação entre os dois. Ao fazer isso ela recupera um sujeito que, através de sua atividade e relação com o objeto-mundo, constrói tanto o mundo como a si próprio. Não é acidental, portanto, que uma das bases mais fortes que a t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c ia is vai buscar na Psicologia está na obra piagetiana. Mas, se a atividade do sujeito é central para a teoria, não menos central é a realidade do mundo. O fato de Moscovici permitir-se olhar para a Sociologia, lá encontrar conceitos, e ousar trazê-los para o domínio da p s ic o l o g ia s o c i a l é revelador do papel central que o mundo social ocupa nas representações sociais. Porque foi com Durkheim, talvez, que ele entendeu a força concreta da realidade social, o fato de que ela se apresenta a sujeitos sociais como um dado, como algo que tem quase a mesma força das pedras que fazem o chão do mundo. Mas Mos­ covici pensou com Durkheim e contra ele, dando-se conta de que na sociologia durkheiniana havia o perigo implícito de esquecer que a força do que é coletivo (Durkheim sugeriu o termo Representações Coletivas) encontra a sua mobilidade na dinâmica do social, que é consensual, é reificado, mas abre-se permanentemente para os esforços de sujeitos sociais, que o desafiam e se necessário o transformam. s o c ia is

Em segundo lugar, a t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s estabelece uma síntese teórica entre fenômenos que, em nível da realidade, estão profundamente ligados. A dimensão cognitiva, afetiva e social estão presentes na própria noção de representações sociais. O fenômeno das representações sociais, e a teoria que se ergue para expli­ cá-lo, diz respeito à construção de saberes sociais e, nessa medida, ele envolve a cognição. O caráter simbólico e imaginativo desses saberes traz à tona a dimensão dos afetos, porque quando sujeitos sociais empenham-se em entender e dar sentido ao mundo, eles também o fazem com emoção, com sentimento e com paixão. A construção da significação simbólica é, simultaneamente, um ato de conhecimento e um ato afetivo. Tanto a cognição como os afetos que estão presentes nas representações sociais encontram a sua base na realidade social. O modo mesmo da sua produção se encontra nas instituições, nas ruas, nos meios de comunicação de massa, nos canais informais de comunicação social, nos movimentos sociais, nos atos de resistência e em uma série infindável de lugares sociais. É quando as pessoas se encontram para falar, argumentar, discutir o cotidiano, ou quando elas estão expostas às instituições, aos meios de comunicação, aos mitos e à herança histórico-cultural de suas sociedades, que as re­ presentações sociais são formadas. Os meios de comuni­ cação de massa, particularmente, têm sido um objeto de investigação para a teoria. Em sociedades cada vez mais complexas, onde a comunicação cotidiana é em grande parte mediada pelos canais de comunicação de massa, representações e símbolos tornam-se a própria substância sobre a quais ações são definidas e o poder é - ou não exercido. s o c ia is

Estes, parece-nos, são alguns dos elementos que dão à t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c ia is seu caráter inovador. A produção contemporânea ligada a este campo oferece uma série de possibilidades para pensar a p s ic o l o g i a s o c ia l , a prática que desenvolvemos em tomo dela e a realidade social com a qual nos deparamos. Para nós, na América

Latina, isto ainda é especialmente necessário. Nossa rea­ lidade, mais do que nunca ou como sempre, apresenta desafios quase da ordem do inimaginável. Pobreza, fome, miséria, violência e exploração ainda são significantes poderosos a construir nossas sociedades. Enquanto tais, eles resistem e perpetuam uma ordem social que deve ser radicalmente questionada. Questionada quanto a suas condições históricas de produção e reprodução, quanto aos efeitos catastróficos que produz na vida de centenas de milhares de pessoas e também quanto aos seus efeitos simbólicos. Matar e morrer - qualquer um: crianças, jo­ vens, velhos - é uma atividade quase banal no Brasil, e essa banalidade e trivialização do trágico devem nos alertar para a necessidade de não se deixar levar pelo que Hannah Arendt uma vez chamou de "banalidade do mal". Para nós, tais preocupações não são jargão. Pelo contrário, elas evocam o nosso compromisso. Repensar a p s ic o l o g ia s o c i a l é repensar a nossa prática, sem perder o rigor da teoria, do método e a capacidade de inter-agir com a realidade social: este livro é, ele também, uma expressão de compromisso. *** Os textos aqui reunidos estão organizados em três partes. A primeira parte compreende dimensões teóricas da t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c i a i s . Farr nos apresenta um panorama histórico que permite entender as circuns­ tâncias que levaram ao surgimento da teoria. Sua análise situa o conceito na trajetória da disciplina, iluminando as condições históricas da sua produção. Jovchelovitch dis­ cute as bases sociais e psicológicas das representações sociais enquanto fenômeno, enraizando-as na vida coleti­ va. Sua análise procura dar conta das mediações existentes entre a vida social e a vida individual, e ela propõe as representações sociais como estruturas simbólicas que se originam tanto na capacidade criativa do psiquismo huma­ no como nas fronteiras que a vida social impõe. O texto de Minay analisa as bases filosóficas das representações so­

ciais, mostrando com clareza de que forma autores como Weber, Marx, Lukács e Bakhtin, entre outros, já pensavam o problema das construções simbólicas sobre o real. Ela nos faz ver os elementos que, na história do pensamento filosófico, abriram caminho para a t e o r i a d a s r e p r e ­ s e n t a ç õ e s s o c ia is .

A segunda parte examina os problemas da epistemo­ logia e do método no estudo das representações sociais. Wagner nos apresenta uma discussão detalhada dos pro­ blemas relacionados às explicações científicas e seus limi­ tes e possibilidades para as representações sociais. Seu trabalho analisa um problema central para a avaliação das representações sociais: os níveis diferenciados, mas pro­ fundamente relacionados, de avaliação individual e social. Como entender a relação entre esses níveis e como preser­ var a complexidade dessa relação na pesquisa em repre­ sentações sociais é, segundo ele, uma tarefa central para a teoria. Spink discute questões epistemológicas que diri­ gem grande parte do debate contemporâneo nas ciências sociais como um todo. Ela nos oferece uma análise ampla e detalhada, marcada por argumentos precisos sobre a complexidade da relação entre sujeito-realidade-intersubjetividade-objetividade. As representações sociais, ela nos explica, rompem com a dualidade ciência-verdade e senso-comum-ilusão. Ao propor o conhecimento científico como um ato possível de sujeitos históricos em interação, ela também propõe aos métodos o entendimento desses limites. Rigor assim não é mais a asséptica objetividade de uma ciência desprovida de sujeitos, mas a compreensão dos fundamentos e dos limites do método. A terceira e última parte está dedicada à pesquisa que está sendo atualmente desenvolvida em representações sociais. Como ficará claro ao leitor, nenhum dos capítulos apresenta apenas dados, ainda que todos revelem em dados a riqueza dos problemas sociais que seus autores estão enfrentando. Todos eles, sem exceção, revelam os modos de combinar a pesquisa empírica e a teorização,

trazendo assim elementos adicionais à teorização das representações sociais. Ideologia, afetos inconscientes, resistência, desenvolvimento e aquisição do conhecimento infantil se entrelaçam à t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o ­ c i a i s , através do estudo das seitas religiosas, da populari­ zação da ciência, da criança e da AIDS. Guareschi relata as formas como novas seitas religiosas se apóiam e explo­ ram com precisão as representações sociais de populações oprimidas. Através da manipulação - que é profundamente sábia dos saberes populares e por isso, exatamente, é extremamente efetiva - de imagens, mitos, valores, signi­ ficados, em suma, representações sociais, essas seitas se perpetuam e mantêm seus vínculos com populações geral­ mente oprimidas. Este é um exemplo crucial dos perigos que advêm da manipulação de estruturas simbólicas, pe­ rigos que, por sinal, são nossos velhos conhecidos na América Latina. Bauer nos oferece um interessante pano­ rama da pesquisa contemporânea sobre a popularização da ciência e suas relações com a t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c i a i s . Ele introduz a noção de resistência como elemento constitutivo das representações sociais e propõe que ela seja considerada como um fator de diversidade e heterogeneidade cultural. As relações entre construção simbólica e resistência são especialmente importantes, especialmen­ te se reconhecermos que a construção simbólica está inserida em uma estrutura social em que alguns grupos, e não outros, têm acesso privilegiado à imposição de suas construções. Resistir e produzir contra-efeitos simbólicos é, assim, uma forma de preservar possibilidades e heterogeneidade cultural, onde saberes não se definem apenas em função de hierarquias, mas por aquilo que expressam em relação à vida de uma comunidade. Esse é o caso da popularização da ciência, onde o saber popular se mescla e se funde com o saber científico, e onde, como Bauer nos mostra, o caminho é de mão dupla. Duveen nos apresenta uma apreciação da herença piagetiana e vigotskiana na t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c i a i s . Ele o faz discutindo partes de suas pesquisas sobre o desenvolvimento de

representações sociais de gênero em crianças pequenas. Seu trabalho é um elogio à autonomia e às possibilidades criativas do sujeito humano e, talvez, como ele nos mostra, seja na infância que essas possibilidades melhor se façam perceber. Ele coloca ênfase naquilo que Piaget considerou a necessidade de relações simétricas, ou situações de igualdade, para que o conhecimento possa se construir livre, autônomo, e com desejo de inventar. Lição, ainda hoje, das mais atuais. O trabalho de Joffe é sobre a AIDS. Se com Duveen podemos ter uma visão clara da dimensão emancipatória das representações sociais, na discussão que Joffe nos oferece, nos deparamos com a lógica da exclusão e da discriminação instaladas no coração das representações sociais da AIDS. Doença estranha, estran­ geira, fora do eu, fora do meu grupo, mas não para todos, como ela nos mostra. Se para alguns é fácil construir representações que projetam a AIDS no outro ameaçador, para esses outros a doença emerge como uma identidade carregada de culpa e de autodiscriminação. Aqui temos o exemplo claro de como o social atravessa - corta ao meio - a construção de representações sociais, fazendo com que elas sejam, por vezes, mecanismos poderosos de ideologias dominantes. Ainda que essas três partes estejam separadas por questões diferenciadas, o leitor cuidadoso vai perceber que todos os capítulos de alguma forma se dirigem, ao mesmo tempo, às questões da teoria, do método e da pesquisa empírica. Existe, da mesma forma, ao longo de todo o livro, uma unidade subjacente a muitas das preocupações que os autores de cada capítulo discutem. Nos trabalhos de dar forma a esse livro, essa unidade foi ficando clara, pois para nossa surpresa as divergências que esperávamos encontrar - elas existem, e consideramos fundamental que elas tenham aqui um canal para se expressar - nunca surgiram, pelo menos em relação ao essencial. Tal coincidência de preocupações expressa muito sobre os encontros que estão ocorrendo em torno da t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o ­

c i a i s . Este livro também é expressão destes vários encon­ tros. Alguns deles aconteceram além-mar, do outro lado do Atlântico, e outros em casa, entre as longas distâncias que nós brasileiros, por vezes, precisamos percorrer para nos (re)conhecermos. Sergio Moscovici disse em 1992, quando se dirigiu à I Conferência Internacional sobre Representações Sociais em Ravello, Itália, que a t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c ia is tem sido um trabalho de ciência e um trabalho de amizade. É verdade. Seja aqui ou do outro lado do mar, nós nos encontramos, trabalhamos juntos, discutimos, desenvolvemos projetos, até mesmo sonhos, e o que temos o prazer de apresentar hoje ao leitor brasileiro deve ser entendido a partir, e dentro, dessa pespectiva.

P.A.G. S.J.

C zZ. < C Q

DIMENSÕES TEÓRICAS DA TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

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1. REPRESENTAÇÕES SOCIAIS: A TEORIA E SUA HISTÓRIA

Robert M. Farr A TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS é uma forma sociológica de p s ic o l o g ia s o c i a l , originada na Europa com a publicação, feita por Moscovici (1961) de seu estudo La Psychanalyse: Son image et son public. Ela difere marcadamente das formas psicológicas de p s ic o l o g ia s o c i a l que são atualmente predominantes nos Estados Unidos da América. Quais são essas diferenças e como elas surgiram, é parte de minha história. O contraste se dá entre uma tradição de pesquisa européia e uma americana na p s ic o ­ l o g i a s o c i a l moderna. A era moderna, na p s ic o l o g ia s o c i a l , começou com o fim da II Guerra Mundial. No início dessa era, G.W. Allport distinguiu entre "...as raízes da p s ic o l o g i a s o c ia l [que] se encontram no solo inteletual de toda tradição ocidental” e “seu florescimento atual... [como um] fenômeno... caracteristicamente ameri­ cano" (Allport, 1954: 3-4). Embora a t e o r i a d a s r e p r e ­ s e n t a ç õ e s s o c ia is tenha visto a luz do dia primeiramente durante a era moderna, ela pertence, em termos de ancestralidade, ao solo intelectual de toda tradição ocidental. A metáfora de Allport sugere uma unidade orgânica entre a flor e suas raízes. Essa é uma metáfora mais adequada em relação ao estudo das representações sociais do que à sua relação com a p s ic o l o g i a s o c ia l como tal. Isso porque, no caso das representações sociais, tanto a flor como suas raízes, são européias e existe uma similaridade na forma entre a flor (uma forma sociológica de p s ic o l o g ia s o c i a l ) e a semente da qual ela nasceu (isto é, a sociologia). No caso da p s ic o l o g i a s o c i a l , a semente e o solo em que ela germinou provieram de continentes diferentes (Europa e

América do Norte) e de diferentes disciplinas acadêmicas (sociologia e psicologia). Talvez a própria metáfora seja enganadora. A escolha de um ancestral para um campo particular de pesquisa se constitui num compromisso de opção. Ela quase nunca é uma ação neutra. Allport (1954) escolheu Comte como o fundador da p s ic o l o g i a s o c i a l moderna. Comte convinha a Allport, como um ancestral potencial para a p s ic o l o g i a s o c i a l , porque ele foi o fundador do positivismo. Samelson (1974) acusou Allport de criar uma origem mítica falsa para a p s ic o l o g i a s o c i a l , com sua escolha de Comte como seu fundador. Allport defendia, no início do período moderno, que a p s ic o l o g i a s o c i a l era, então, uma ciência. Na verdade, Allport estava contrastan­ do o "longo passado” da p s ic o l o g ia s o c i a l , como parte da tradição de pensamento ocidental, principalmente euro­ péia, com a sua “curta história", do momento em que ela se tornou uma ciência experimental, principalmente na América do Norte (Farr, 1991c). Enquanto Allport, com sua escolha de um ancestral, estava enfatizando a descontinuidade entre o passado e o presente, Moscovici, com sua escolha de um ancestral, estava enfatizando a continuida­ de entre passado e presente. Existe uma clara continuidade entre o estudo das representações coletivas de Durkheim e o estudo mais moderno, de Moscovici sobre repre­ sentações sociais. Embora Deutscher (1984) expresse al­ gumas reservas com respeito à escolha, feita por Mosco­ vici, de um ancestral, suas críticas são brandas, se com­ paradas com as duras críticas feitas por Samelson sobre a escolha de um ancestral feita por Allport. Embora Allport e Moscovici se pareçam na escolha de franceses como seus ancestrais para a p s ic o l o g i a s o c i a l , as diferenças entre os dois ancestrais são muito mais fortes que suas semelhanças. Durante a era moderna a p s ic o l o g ia s o c i a l se desen­ volveu, na América do Norte, como uma subdisciplina da psicologia (Jones, 1985). A psicologia é uma disciplina que se centraliza, quase que exclusivamente, no indivíduo. Isso

afeta a forma de p s i c o l o g i a s o c i a l que pode se desenvol­ ver em tal contexto. Na América do Norte a p s i c o l o g i a s o c i a l começou como uma subdisciplina da sociologia. Quando F.H. Allport (1924) escreveu seu texto clássico p s ic o lo g ia s o c i a l , mais livros tinham sido escritos sobre o assunto por sociólogos do que por psicólogos (Jones, 1985; Collier, Minton & Reynolds, 1991). Imediatamente após a publicação do texto de Allport, contudo, o estado da arte foi revertido e mais psicólogos que sociólogos escreveram livros-texto de p s i c o l o g i a s o c i a l . Até hoje os psicólogos na América do Norte continuam prevalecendo sobre os sociólogos na publicação de tais textos, muitas vezes na razão de três ou quatro por um. Embora formas sociológicas de p s ic o l o g i a s o c i a l coe­ xistam hoje, na América do Norte, conjuntamente com formas psicológicas mais numerosas e dominantes da disciplina, há, contudo, um intercâmbio extremamente reduzido entre ambas. Não foi sempre assim. No início do período moderno havia muitos programas de graduação conjuntos de p s ic o l o g i a s o c i a l em instituições de prestí­ gio, tais como Harvard, Yale, Michigan e, um pouco mais tarde, na Universidade de Columbia (Lundstedt, 1968; Jones, 1985). Hoje não existe mais nenhum desses progra­ mas conjuntos. Creio que isso se deve, em grande parte, àquilo que posteriormente, nesse capítulo, eu denomino de individualização da p s ic o l o g ia s o c i a l . Esse mesmo pro­ cesso responde pela difícil co-existência entre a t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c ia is de Moscovici, que é uma forma sociológica de p s ic o l o g i a s o c i a l , e as formas psicológicas de p s ic o l o g i a s o c i a l que são hoje dominantes nos Estados Unidos da América. Existe ao menos um diálogo, embora hesitante, entre essas duas formas rivais de p s ic o l o g ia s o c i a l . O diálogo, necessariamente, é um diálogo transa­ tlântico. Em seu artigo sobre os fundamentos históricos da moderna, G.W. Allport (1954) estabele­ ceu, com efeito, uma ruptura clara com o passado. É por essa razão que sua metáfora da flor e das raízes é decisi-

PSICOLOGIA SOCIAL

vãmente enganadora. Ele conseguiu isso pelo fato de adotar uma filosofia positivista da ciência, isto é, a filosofia de Comte. Tal filosofia obriga o historiador da ciência a acreditar que o futuro de uma disciplina, ao se tornar uma ciência, será diferente de seu passado. O passado é meta­ física; o presente e o futuro são ciência. A p s ic o l o g i a s o c i a l moderna foi um patamar para o qual Allport criou um fundamento histórico adequado. Existe também a expectativa, uma vez que a p s ic o l o g ia s o c i a l entrou para o estágio positivo de seu desenvolvimento, de que o progresso seja cumulativo. Esse conjunto específico de pressupostos torna difícil, para quem quer que seja, fazer avançar uma disciplina, sugerindo um retorno ao passado. Tal proposta seria, literalmente, uma proposta profunda­ mente retrógrada. Pois foi isso que Moscovici fez, no início da p s ic o l o g ia s o c i a l moderna, ao chamar a atenção ao conceito esquecido de representação coletiva de Durk­ heim. Moscovici, diferentemente de Allport, não estava comprometido com uma filosofia da ciência positivista. Ambos iniciaram suas tarefas respectivas mais ou menos ao mesmo tempo, isto é, no início da década de 50. Suas orientações básicas com respeito ao tempo eram, contudo, bastante diversas. Para Allport, sua perspectiva com res­ peito ao passado era um sinal de precaução; o futuro era cheio de esperanças. Para Moscovici, o futuro era proble­ mático; o passado era, ao menos em parte, uma idade de ouro. Devido à relação mais harmoniosa entre o passado e o presente, no estudo das representações sociais, faz sentido revisar a pré-história da teoria moderna. Não faria sentido fazer isso se alguém aceitasse a tese comteana de Allport, que supõe uma nítida ruptura entre o passado e o presente.

A pré-História da

t e o r ia d a s r e p r e s e n t a ç õ e s

s o c ia is

A maioria dos teóricos anteriores à Segunda Guerra Mundial distinguiram entre dois níveis de fenômenos - em

termos gerais, o nível do individual e o nível do coletivo (isto é, a cultura ou sociedade). Wundt, por exemplo, distinguiu entre psicologia fisiológica e "Volkerpsychologie" (VPs, a seguir). A última, em termos amplos, eqüivalia a cultura. Durkheim (1898) distinguiu entre o estudo das representações individuais (o domínio da psicologia) e o estudo das representações coletivas (o domínio da socio­ logia). Le Bon (1895) distinguiu entre o indivíduo e as massas (ou a multidão). Freud tratou o indivíduo clinica­ mente e desenvolveu uma crítica psicanalítica da cultura e da sociedade. A razão principal de se distinguir entre os dois níveis era uma crença, da parte do teórico, que as leis que explicavam os fenômenos coletivos eram diferentes do tipo de leis que explicavam os fenômenos em nível de indiví­ duo. Conforme Wundt, por exemplo, investigar o indivíduo a partir do exterior era fisiologia. Investigar o indivíduo a partir do interior (através de introspecção) era psicologia. Conjuntamente elas compreendiam a psicologia fisiológi­ ca. A pele é um limite bastante convincente - principal­ mente quando se toma uma perspectiva visual (Farr, 1991a). Ela separa também, de maneira nítida, a fisiologia da p s ic o l o g i a s o c i a l . A figura se recorta, de maneira clara, num pano de fundo contrastante. Os outros são objetos salientes do nosso ambiente imediato (Heider, 1958). Os objetos do estudo da VPs de Wundt, contudo, eram fenô­ menos mentais coletivos, como linguagem, religião, cos­ tumes, mito, mágica e fenômenos correlatos. Eles são manifestações externas da mente e sem possibilidade de serem estudados através da introspecção. São os produtos da interação de muitos. Wundt argumentou que esses fenômenos coletivos não podem ser explicados em termos de indivíduo. Um indivíduo, por exemplo, não pode inven­ tar uma língua ou uma religião. Esses fenômenos coletivos foram, inicialmente, o produto de uma comunidade, ou de um povo (volk). Eles emergiram de interações entre indiví­ duos. Ao distinguir entre indivíduo e a interação entre indivíduos Wundt estava indo à essência da questão.

Durkheim (1898) argumentou, do mesmo modo, que representações coletivas não poderiam ser reduzidas a representações individuais. Ele se sentiu bastante à von­ tade em deixar as últimas para estudo dos psicólogos. Para ele, representações coletivas eram semelhantes aos obje­ tos de estudo da VPs de Wundt. A diferença entre os dois teóricos, no que se refere aos objetos de estudo na socio­ logia e p s ic o l o g i a s o c i a l respectivamente, era que Durk­ heim estava interessado, mais que Wundt, em estudar a sociedade, e Wundt, mais que Durkheim, em estudar a cultura. A diferença era mais de ênfase do que substancial. Durkheim defendeu a independência da sociologia da psicologia, mais ou menos como James, que ele cita; defendia a independência da psicologia da fisiologia. Durk­ heim afirmou, especialmente em seu estudo clássico sobre o suicídio, que aquilo que ele chamava de fatos sociais somente poderia ser explicado em termos de outros fatos sociais. Ele estava interessado em explicar variações, nos índices de suicídio, entre pessoas pertencendo a categorias sociais diferentes. índices de suicídio são fatos sociais que não podem ser explicados em termos de decisões de indivíduos de pôr fim às suas vidas. Dentre os mais importantes sociólogos, Durkheim foi o que mais aberta­ mente se mostrou hostil à psicologia. A psicologia à qual ele se opôs, contudo, foi a psicologia do indivíduo. A distinção aguda de Durkheim entre sociologia (o estudo das representações coletivas) e psicologia (o estudo das representações individuais) fez com que se tornasse prati­ camente inevitável que, quando Moscovici propôs que se estudassem as representações sociais, esse novo campo fosse classificado como uma forma sociológica, e não psicológica, de p s ic o l o g i a s o c l a l . Durkheim é o principal responsável pela co-existência dessas duas formas alter­ nativas de p s ic o l o g ia s o c i a l na era modema. A diferença principal entre Wundt e Durkheim é que, embora o primeiro separasse a p s ic o l o g ia s o c i a l da fisiológica, ele acreditava que as duas fossem relacionadas, ao passo que o segundo julgou que a sociologia era independente da psicologia.

Le Bon (1895) contrastou a racionalidade do indivíduo com a irracionalidade das massas. A diferença era entre o indivíduo enquanto só, e enquanto participante de uma multidão. A maneira como Le Bon formulou a questão teve muitas conseqüências importantes, tanto durante o perío­ do que agora estamos analisando (isto é, anterior à Segun­ da Guerra Mundial), como depois. Ele foi o principal responsável pelo que mais adiante eu chamo de individua­ lização da p s ic o l o g ia s o c i a l . Isso é importante em relação ao tema desse capítulo, pois ajuda a explicar por que as representações estudadas pelos psicólogos sociais na América do Norte, durante a era moderna, são individuais, e não sociais ou coletivas. Le Bon preparou o campo para a individualização concreta da p s ic o l o g ia s o c i a l . Isso foi uma conseqüência direta da maneira como ele concebeu o coletivo. A massa, ou a multidão, é uma massa ou multidão de indivíduos. Torna-se fácil, portanto, individualizar o social, e foi isso que F.H. Allport (1924) fez durante o período que agora estudamos (veja-se Graumann, 1986, para uma exposição mais completa desse ponto). Allport estendeu a maneira como Le Bon tratou as massas e multidões para medir a opinião pública (Allport, 1937) e estudar o comportamento institucional (Allport, 1933). A maneira como Le Bon formulou a questão estabele­ ceu a agenda para o primeiro grande programa de pesquisa em p s ic o l o g i a s o c i a l experimental. Há diferença na ma­ neira como indivíduos se comportam quando estão sós ou quando estão junto a outros (na presença tanto de outros co-autores, ou de uma audiência)? A pergunta poderia ter sido em francês; a resposta é ou em alemão ou em inglês americano. Moede, na Alemanha, abordou esse problema empiricamente. O problema se transferiu da Alemanha para a América do Norte, com a migração de Munsterburg de Freiburg para Harvard, onde ele orientou F.H. Allport em seus estudos de doutorado. Os estudos experimentais de Allport e outros sobre o assunto foram revisados por

DashieU (1935), no único capítulo do Handbook of Social Psychology, de Murchison, dedicado aos estudos experi­ mentais de seres humanos, num contexto de laboratório. Na verbalização da p s ic o l o g ia s o c l a l moderna isso seria chamado de pesquisa sobre os efeitos da facilitação social. Ele discute exatamente a questão colocada por Le Bon. Ao confrontar a racionalidade do indivíduo com a irracionalidade das massas, Le Bon ajudou a estabelecer um elo entre a p s ic o l o g ia s o c i a l e a psicopatologia. Os franceses foram os peritos pioneiros, em âmbito interna­ cional, no uso da hipnose dentro de um contexto médico. Freud, por exemplo, visitou Charcot, em Paris, em 1885, para observar o uso que ele fazia da hipnose no tratamento da histeria. Le Bon estava convencido de que o poder dos líderes em persuadir as massas era uma forma de influência hipnótica. As demonstrações de hipnose, na França, eram muitas vezes de natureza extremamente pública, mesmo quando dentro de um contexto estritamente médico. Isso era verdadeiro também no trabalho de Charcot e de Janet, em Paris, e no de Bernheim, em Nancy. Decididamente a hipnose era uma forma de influência social. Isso foi também verdade quanto às demonstrações de Mesmer, em Paris, sobre magnetismo animal, no final do século XVIII. O elo, na França, entre psicopatologia e p s ic o l o g i a s o c l a l era muito forte, e isso é evidente na obra tanto de Le Bon (Van Gennet, 1992) como de Binet. Morton Prince, um psiquiatra americano de Harvard, fundou o Journal of Abnormal Psychology, em 1906. Ele foi bastante influenciado pela tradição de pesquisa na França, que ligava a p s ic o l o g ia s o c i a l com a psicopatologia. Em 1921, ele convidou F.H. Allport para se juntar a ele como co-editor, e mudou o título para The Journal of Abnormal Psychology and Social Psy­ chology (em 1925, o título foi abreviado para The Journal of Abnormal and Social Psychology). O elo entre as duas áreas remonta ao menos até Le Bon. Psicólogos sociais da era moderna, como Solomon Asch, criticaram fortemente o elo entre o social e o anormal, mas isso já é outra história.

Le Bon exerceu grande influência no desenvolvimento do pensamento de Freud, especialmente durante a década de 20. A influência de Le Bon sobre Freud é mostrada por Moscovici (1981) em seu estudo sobre Le Bon. Trataremos disso mais detalhadamente numa secção posterior desse capítulo. Em 1920 Freud mudou o enfoque de sua teorização do estudo clínico dos indivíduos para a crítica psicanalítica da cultura e da sociedade. Do mesmo modo que os outros pensadores, cujo trabalho é aqui discutido, ele escreveu sobre esses fenômenos, tanto ao nível do indivi­ dual, como do coletivo. Freud é importante, no contexto desse capítulo, por­ que, entre outras coisas, ele se situava entre a cultura da Alemanha e a cultura da França (ele foi influenciado tanto por Wundt, como por Le Bon), e foi o autor da teoria cuja difusão, na França, foi o assunto de La Psychanalyse: Son image et son public (Moscovici, 1961). Do mesmo modo que Wundt, Freud estava interessado na cultura (civiliza­ ção, religião, etc.) e, como Le Bon, ele estava interessado nas formas de influência social (hipnose, psicoterapia, liderança, etc.). Diferentemente de ambos, contudo, ele foi capaz de inter-relacionar os dois campos. Sua visita a Charcot em 1885, em Paris, em um primeiro estágio de sua carreira clínica, já foi assinalada acima. Ele fez experimen­ tos com o uso da hipnose no tratamento da histeria, mas os abandonou rapidamente, por considerá-los terapeuticamente ineficientes. Em lugar disso, ele desenvolveu sua própria técnica (isto é, a psicanálise) baseado na associação livre, principalmente em conexão com sua análise dos sonhos. Embora os sonhos sejam pessoais a quem os sonha, eles não permanecem assim no contexto da psicoterapia. O pessoal se torna interpessoal. O conteúdo dos sonhos é influenciado pela cultura de quem os sonha. A forma (isto é, o visual) e o conteúdo dos sonhos são reflexos, sobre o indivíduo, daquelas representações coletivas que eram objetos de interesse tanto para Wundt como para Durkheim. Freud não aceitou a afirmativa de Le Bon de que a relação entre o líder e as massas era um tipo de influência

hipnótica. Le Bon via a multidão como um agregado de indivíduos. Para Freud, as massas tinham mais estrutura que isso. Os indivíduos, na massa, estavam relacionados uns com os outros através de sua identificação comum com o líder. Durante esse período Freud revisou sua teoria da mente numa direção explicitamente social, a fim de poder explicar os tipos de fenômenos de massa para os quais Le Bon e outros tinham chamado a atenção (Moscovici, 1981; Rey, 1986). Ele agora distinguia entre ego, id e superego, onde, anteriormente, ele apenas tinha distinguido entre o consciente, o pré-consciente e o inconsciente. É interes­ sante que ao passar do nível do coletivo para o nível do individual, ele tenha desenvolvido uma teoria social da mente humana. Foi precisamente isso que Mead (1934) fez (veja Farr, 1987). Mead começou seu curso de aulas anuais em p s ic o l o g ia s o c i a l , em Chicago, com o conceito de Wundt de gesto humano. Isso estava nos dois primeiros volumes da VPs de Wundt (Mead, 1904). Mead então concentrou-se no desenvolvimento de uma teoria do self humano, que criticava a natureza puramente individual (isto é, não-social) da mente subjacente à psicologia fisio­ lógica de Wundt. Tanto Freud, como Mead, foram influen­ ciados pela psicologia experimental de Wundt, e ambos a rejeitaram. Freud a rejeitou porque ela estava estreitamen­ te orientada ao estudo da consciência, e Mead porque era um modelo de mente essencialmente cartesiano. Seus próprios modelos de mente, explicitamente sociais, eram sínteses de fenômenos tanto a nível coletivo como a nível individual. Penso que disse o suficiente, no parágrafo anterior, para que ficasse demonstrada a importância da psicologia de G.H. Mead, no contexto desse capítulo. Há ainda ao menos mais dois aspectos em que o trabalho de Mead é relevante para t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c i a i s . O primeiro é sua ênfase na importância da linguagem, para se compreender a natureza humana. Ele se fundamentou, na discussão desse ponto, parte em Darwin e parte em Wundt. Mead acreditava que a chave para se compreender

a natureza da linguagem devia ser buscada no livro The Expiessions of Emotions in Man and Animais (Darwin, 1872). A linguagem é uma forma de expressão que é especificamente humana. É uma caraterística distintiva do ser humano em relação aos animais. A linguagem é tam­ bém social. Existe uma longa e importante tradição aca­ dêmica, na Alemanha, em relação à p s ic o l o g i a s o c i a l da linguagem (Marková, 1983). Isso pode ser mostrado a partir do estudo de Humboldt, Herder e Hegel, passando por Wundt, até chegar a Mead, nos Estados Unidos, e a Vigotsky, na Rússia. Nas sociedades modernas a lingua­ gem é, provavelmente, quase que a única importante fonte de representações coletivas. Embora Mead tivesse morrido umas três décadas antes da publicação da teoria de Mos­ covici, existe uma outra razão pela qual sua obra pode ser relevante à t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c i a i s . A posição de Moscovici com respeito à distinção feita por Durkheim entre representações individuais e coletivas é até certo ponto semelhante à posição de Mead em relação à distin­ ção que Wundt fez entre psicologia fisiológica e social. Onde Durkheim e Wundt colocam uma antítese entre o individual e o coletivo, Moscovici e Mead solucionam essa antítese e produzem uma síntese. Em ambos os casos, a síntese é uma forma sociológica de p s ic o l o g i a s o c i a l . McDougall publicou um texto de p s ic o l o g i a s o c i a l em dois volumes. O primeiro volume era An Introduction to Social Psychology (McDougall, 1908). Nesse volume ele identificou determinado número de instintos humanos que fazem com que a vida em sociedade seja possível. Isso ajudou a criar uma base biológica para a vida do indivíduo dentro de um contexto societário. O segundo volume não foi publicado até algum tempo depois. A Primeira Guerra Mundial, de 1914-18, interveio. O segundo volume estava interessado no contexto societário (McDougall, 1920). T i­ nha como título The Group Mind. Seu subtítulo descreve, de maneira mais ou menbs detalhada, seus conteúdos “um esboço sobre os princípios da psicologia coletiva, com alguma tentativa de aplicá-los à interpretação da vida e do

caráter nacional". O primeiro volume foi apenas uma intro­ dução à psicologia social. Ele não era, como tal, psicolo­ gia social. Os dois volumes conjuntamente desempenha­ vam essa tarefa. Uma vez mais temos nós aqui uma psicologia do indivíduo, juntamente com uma forma de psicologia coletiva. O segundo volume foi publicado no ano em que ele se aposentou de sua função em Oxford, a fim de aceitar uma nomeação em Harvard. Ele tinha apenas chegado à América do Norte quando foi atacado por F.H. Allport, por parecer que ele conferisse capacidade de agir a entidades outras que aos indivíduos no seu volume sobre A Mente do Grupo. Na verdade, McDougall foi bastante cuidadoso em evitar essa tal falácia. O ataque de Allport a McDougall é parte do que Graumann (1986) chamou de “individualização do social” . Isso me traz, finalmente, à obra do próprio F.H. Allport. Seu trabalho foi discutido em vários pontos desse capítulo. A Tabela 1 sintetiza grande parte da discussão feita até aqui: Tabela 1: Níveis de Teorização em PSICOLOGIA SOCIAL Níveis de Fenômeno Teórico WUNDT

(a) Individual

( b) Intermediário

(c) Coletivo

Psicologia

Võlkerpsycho-

Fisiológica

logie

Representações

Representações

Individuais

Coletivas

LEBO N

0 Indivíduo

A Multidão

FREUD

Estudos Clínicos

DURKHEIM

Ego, Id e

Crítica

Superego

Psicanalitica da Cultura e da Sociedade

SAUSSURE

Parole

Langue

Self

Sociedade

MEAD

Mente

McDOUGALL

Instintos

Mente do Grupo

F.H. ALLPORT

Comportamento

Comportamento

de Indivíduos

Institucional; Opinião Pública

Allport difere de todos os outros teóricos listados na Tabela 1, na crença de que não é necessário mudar-se o modelo, quando se passa do nível individual ao coletivo. Isso porque ele usa seu modelo do indivíduo para explicar fenômenos em nível do coletivo. "Não há psicologia dos grupos que não seja essencialmente e inteiramente uma psicologia dos indivíduos. A p s ic o l o g ia s o c i a l não deve ser colocada como se contrapondo à psicologia do indiví­ duo; ela é parte da psicologia do indivíduo, cujo compor­ tamento ela estuda, em relação àquele setor de seu ambiente composto por seus companheiros” (Allport, 1924:4). Notamos acima como a conceitualização de mul­ tidão de Le Bon, como um agregado de indivíduos, ajudou a preparar o caminho para tal tipo de análise. Le Bon pelo menos acreditava que o comportamento das multidões era de um tipo diferente do comportamento dos indivíduos. F.H. Allport (1937) foi também um entusiástico defen­ sor das pesquisas de opinião pública quando esse tipo de prática entrou em voga nos Estados Unidos em 1930. Isso porque a tecnologia de pesquisa de opinião era inteiramen­ te consistente com seu tipo de individualismo metodológi­ co. Já assinalamos, quando discutimos seu ataque a McDougall, que ele era um feroz opositor de todo aquele que parecesse conferir capacidade de ação a entidades outras que aos indivíduos, fosse ele cientista social ou jornalista. “O público pensa". Não - os indivíduos expres­ sam suas opiniões. "A nação decide". Não - os eleitores votam, etc. Wundt e Durkheim eram inflexíveis defensores da teoria de que o coletivo não podia ser explicado em termos do individual. Allport não partilhou seus escrúpulos no que se refere aos perigos do reducionismo. F.H. Allport teve uma influência muito maior do que todos os outros teóricos listados na Tabela 1, com respeito ao desenvolvi­ mento da p s ic o l o g i a s o c i a l na América do Norte. Há um autor, cujo nome aparece na Tabela 1, e sobre o qual eu ainda não teci nenhum comentário. É Saussure. A distinção de Saussure entre “parole” e "langue” é impor­

tante. Não é tecnicamente uma distinção entre o nível do indivíduo e o nível do coletivo. Isso porque "parole" (isto é, fala) é, ela mesma, interativa. A "langue” se coloca, com certeza, num nível coletivo, e é assim que ela é tratada pelo lingüista profissional. A tentativa mais séria de reduzir "langue” a “parole" não aconteceu durante o período que estamos aqui analisando. Ocorreu na era moderna, com a publicação, em 1957, de Verbal Behaviour, de Skinner. No mesmo ano Chomsky publicou seu livro Syntactic Grammar. É amplamente aceito, entre os lingüistas, que a revisão subseqüente, feita por Chomsky, do livro de Skinner (Chomsky, 1959) desacreditou qualquer tentativa de redu­ zir “langue" a “parole” . Como um racionalista, dentro da tradição cartesiana, Chomsky coloca a linguagem ao nível do indivíduo. Suas estruturas sintáticas são semelhantes à noção de idéias inatas de Descartes.

A Teoria e sua Difusão Moscovici não desenvolveu sua teoria num vazio cul­ tural. Ele teve a capacidade de se apoiar nos fundadores das ciências sociais na França, especialmente em Durk­ heim. Sendo que Durkheim foi um dos fundadores da sociologia moderna, a teoria de Moscovici é freqüentemen­ te classificada, com muita propriedade, como uma forma sociológica de p s ic o l o g ia s o c i a l . Moscovici afirma que a noção de representação coletiva de Durkheim descreve, ou identifica, uma categoria cole­ tiva que deve ser explicada a um nível inferior, isto é, em nível da p s ic o l o g ia s o c i a l . É aqui que surge a noção de representação social de Moscovici. Ele também julga mais adequado, num contexto moderno, estudar representações sociais do que estudar representações coletivas. O segun­ do conceito era um objeto de estudo mais apropriado num contexto de sociedades menos complexas, que eram do interesse de Durkheim. As sociedades modernas são ca­ racterizadas por seu pluralismo e pela rapidez com que as

mudanças econômicas, políticas e culturais ocorrem. Há, nos dias de hoje, poucas representações que são verdadei­ ramente coletivas. Alguns analistas poderiam afirmar que os argumentos de Moscovici possuem uma força ainda maior num con­ texto pós-moderno. Há uma espécie de paradoxo aqui. Os objetos de estudo da VPs de Wundt eram linguagem, religião, costume, mito, mágica e fenômenos semelhantes. Essas são, também (possivelmente, talvez, com exceção da linguagem), as representações coletivas nas quais Durk­ heim estava interessado. Moscovici modernizou esse pan­ teão de objetos sagrados, substituindo a magia pela ciência. A ciência é uma das forças que distinguem o mundo moderno do mundo medieval. Ela é, como afirma Moscovici, uma fonte fecunda de novas representações. Moscovici estava modernizando a ciência social, ao subs­ tituir representações coletivas por representações sociais, a fim de tornar a ciência social mais adequada ao mundo moderno. Ele não estava indo além da modernidade para a pós-modernidade. Ele pode parecer um profeta pós-moderno, mas isso é apenas porque ele está estudando as representações sociais da ciência, e não a ciência em si mesma. Sua teoria é adequada à investigação empírica das concepções leigas da ciência (Far, 1993). Ela não é apro­ priada, e nem Moscovici defende que o seja, para com­ preender o mundo do cientista pesquisador (Purkhardt, 1993). São as concepções leigas da ciência que são frag­ mentadas, não as concepções de mundo do cientista. Os pós-modernistas defendem que a última é a afirmação verdadeira. O estudo de Moscovici sobre as representações da psicanálise foi uma contribuição para a sociologia do conhecimento. Ele estava interessado em observar o que acontece quando um novo corpo de conhecimento, como a psicanálise, se espalha dentro de uma população huma­ na. Ele colheu amostragens do conhecimento, das opiniões e das atitudes das pessoas, com respeito à psicanálise e

aos psicanalistas. Os métodos empregados nessa parte de seus estudos são bastante convencionais, isto é, questio­ nários semi-estruturados, pesquisa de opinião, etc. Ele, contudo, foi além disso, e colheu amostragens sobre a informação que circulava na sociedade, com respeito ao objeto de seu estudo. Isso compreendia uma análise de conteúdo dos meios de comunicação de massa. Ele colheu amostragens dos conteúdos de alguns dos 241 jornais e revistas publicados na França entre 1Qde janeiro de 1952 e l s de março de 1953, de todas as referências á psicanálise. As representações estão presentes tanto "no mundo” , como “na mente” , e elas devem ser pesquisadas em ambos os contextos. Os psicólogos sociais fora dessa tradição francesa de pesquisa tendem sempre a pesquisar apenas a última, e não o primeiro. Isso não foi sempre assim. Em 1920, em Chicago, por exemplo, Thurstone pesquisou ambos os tipos de conteúdo, na construção de suas escalas de atitude social, em tópicos como: a igreja; guerra e paz; divórcio, etc. O fato de que assuntos tenham sido divulga­ dos através da mídia é uma ocasião propícia para que se possa estudá-los empiricamente através de escalas de atitude, pesquisas de opinião, questionários, etc. Somente vale a pena estudar uma representação social se ela estiver relativamente espalhada dentro da cultura em que o estudo é feito. Isso era certamente verdadeiro quanto à psicanáli­ se, na França de 1950. Não seria verdadeiro, contudo, para a psicanálise na Inglaterra, nesse mesmo período. A teoria, isto é, a psicanálise difere nitidamente de sua representação social. Moscovici estudou apenas a segun­ da. Lagache, que supervisionou o estudo, e fez o prefácio do livro, sentiu a necessidade de explicar aos leitores por que um livro escrito por um psicólogo social poderia aparecer numa biblioteca devotada à psicanálise. A psica­ nálise se originou numa cultura diferente daquela em que Moscovici estudou sua difusão. Esse é um exemplo, por­ tanto, da absorção de uma cultura por outra. Esse aspecto do estudo pioneiro de uma representação social reflete uma fonte da teoria não coberta na primeira secção, isto é, a

noção de convencionalização de Bartlett (Bartlett, 1932, cap. XVI). Saito (1994) argumenta que Moscovici deve mais a Bartlett do que até agora se reconheceu. Ele certamente cita o trabalho de Bartlett, e Bartlett se inspirou em muitas das mesmas fontes francesas usadas por Moscovici (por exemplo, o estudo de Halbwachs), na construção de sua teoria. Em um dos seus experimentos mais lembrados, Bartlett estudou o que sucedeu quando estudantes de Cambridge reproduziam teatralmente uma história inspira­ da na cultura indígena americana ("a guerra dos fantas­ mas”). Caraterísticas estranhas da história original eram alteradas ao se recontar a história. A história se convencionalizou nos termos da cultura na qual ela foi transmitida. Moscovici mostrou um processo semelhante em ação com respeito à psicanálise. Esse é um processo que Moscovici chamou "ancoragem” . O não-familiar torna-se familiar, tanto no trabalho de Bartlett como no de Moscovici. O referencial apresentado por Bartlett é útil quando alguém investiga a difusão dum produto cultural, dentro de um contexto cultural diverso. Saito (1994) o usou com sucesso ao estudar a construção social do Zen-Budismo na Inglaterra. Os exemplos de transmissão cultural, estudados por Bartlett, eram mais exóticos que os estudados por Moscovici. No caso da psicanálise, como estudada por Moscovici, a transmissão era de uma cultura européia para outra. Moscovici estava interessado num limite cultural que era de pouco interesse para Bartlett - o limite entre ciência e pensamento leigo. Na verdade, ele está primaria­ mente interessado nas representações leigas da ciência. O interesse, nesse caso, é mais sociológico que antropológi­ co. Ele tem mais a ver com modernidade (veja acima), do que com cultura per se. Contudo, a mecânica de assimila­ ção e contraste, inicialmente identificada por Bartlett, e posteriormente elaborada por Piaget em seus estudos sobre o desenvolvimento cognitivo dos indivíduos, é também evidente na obra de Moscovici. Na época de sua pesquisa, o psicanalista era ainda uma figura recente no palco cultural da França. Alguns informantes de M oscovici-

compararam o analista à figura mais familiar do sacerdote; outros, à figura mais familiar do médico. As comparações implicam tanto semelhanças como diferenças. Alguém pode se confessar com um analista como se fosse um sacerdote, mas o contexto é secular, em vez de religioso. Muitos analistas possuem qualificações médicas. Alguém pode se consultar com um analista, como o faria com um médico, mas, diferentemente do médico, o analista não prescreve remédios. Seria um erro, contudo, pensar que os processos de assimilação e contraste operam, na obra de Moscovici, apenas a nível individual. Na sua análise dos meios de comunicação de massa, ele contrastou a representação da psicanálise na imprensa católica com sua representação na imprensa marxista. A relação entre catolicismo e psicaná­ lise era uma relação de assimilação e simbiose; entre marxismo e psicanálise, ao menos nos inícios dos anos 50, a relação era de contraste e rejeição. Mostrar como o mesmo objeto (isto é, a psicanálise) era diferentemente representado em literaturas diferentes se constitui, talvez, num exemplo inicial de intertextualidade. A análise é certamente executada a um nível cultural, e não ao nível do indivíduo. Creio ter ficado suficientemente claro, através da mi­ nha exposição da teoria feita até aqui, que ela contribui significativamente para nossa compreensão dos fenôme­ nos coletivos. Isso se reflete na escolha, feita por Mosco­ vici, de um ancestral para esta tradição de pesquisa (isto é, Durkheim) que, por sua vez, ajuda a garantir que ela seja uma forma sociológica, e não psicológica, de p s ic o l o g i a s o c i a l . A o chamar a atenção para a importância da VPs de Wundt, e ao mostrar os elos entre a obra de Wundt e a de Durkheim (Farr, 1978; 1983a, b, c; 1985; 1991c), procurei demonstrar que esse enfoque globalizante no estudo dos fenômenos coletivos é uma tradição de pesquisa européia, e não apenas francesa. Se nós acrescentarmos a obra de McDougall, The Group Mind (veja Farr, 1986), isso o torna

ainda mais uma tradição européia. 0 ataque de F.H. Allport a McDougall (veja acima) é uma prova evidente que a forma psicológica de p s ic o l o g i a s o c i a l , que Allport tentava desenvolver na América do Norte, era incompatível com todo o enfoque europeu. Mais evidência dessa incompati­ bilidade encontramos ao analisar a situação existente den­ tro das tradições psicológicas da p s ic o l o g i a s o c i a l na América do Norte, em 1935, quando da publicação do livro de Murchison Handbook of Social Psychology. O Handbook foi o sinal identificador, na América do Norte, da influência de Wundt no desenvolvimento das ciências sociais. Sua estrutura, e até mesmo os títulos de vários de seus capítu­ los, refletem a VPs de Wundt. A p s ic o l o g i a s o c i a l é aqui um ramo da psicologia comparativa. O progresso, nos termos das séries modernas de Handbooks editados por Lindzey (1954), e por Lindzey e Aronson (1968/9; 1985), é medido explicitamente em termos de distância desse mar­ co central de 1935 (para uma exposição mais completa desse assunto veja-se Farr, 1991c). Desde o início, a t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c ia is de Moscovici se constituiu numa importante crítica sobre a natureza individualizante da maior parte da pesquisa em p s ic o l o g i a s o c i a l na América do Norte. Isso está claro na sua revisão da pesquisa sobre atitudes e opiniões (Moscovici, 1963). Ele ataca a esterilidade da maioria das enquêtes de opinião pública. Considera toda essa área de pesquisa como mera “coleta de informação". Do ponto de vista do desenvolvimento da p s ic o l o g i a s o c i a l , ela é um beco sem saída. Ela pode ser metodologicamente sofisticada e refi­ nada, mas ela é teoricamente estéril. Moscovici suspirou pelo dia em que as representações sociais pudessem substituir as opiniões e imagens, pois esses termos são demasiadamente estáticos e descritivos. Temos aqui um teórico europeu (isto é, Moscovici), em luta contra o assassino americano (isto é, F.H. Allport) de outro teórico europeu (isto é, McDougall). A p s ic o l o g i a s o c i a l , na América do Norte, se tornou individualizada, por razões que serão discutidas, com mais detalhes, na breve secção

final desse capítulo. Uma das maneiras de re-socializar a p s ic o l o g ia s o c i a l na América do Norte seria a aceitação, por parte dos psicólogos sociais americanos, da t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c ia is .

Vimos, na secção anterior desse capítulo, que Le Bon preparou o caminho para aquilo que, mais tarde, se tornaria a individualização da p s ic o l o g i a s o c l a l . A interpretação de Le Bon, feita por Allport, contudo, não é a única possível. A interpretação de Le Bon feita por Moscovici (1981) é bastante diversa. Ele avalia a importância da predição de Le Bon de que o século vinte seria a era das massas. Ele vê Le Bon como alguém que atualiza Maquiavel, para poder compreender os meios de comunicação de massa. Ele também considera Freud como o mais assíduo discípulo de Le Bon. Demonstrou como Le Bon criou uma representação social das massas que os líderes políticos, em nosso século, consideraram útil e colocaram em práti­ ca. Várias passagens de Le Bon aparecem no Mein Kampf, de Hitler (1925/6), e Mussolini tinha uma cópia da obra, com anotações. Os líderes das massas necessitam uma representação das massas que lideram. Moscovici mostrou que isso se aplica também para os ditadores de esquerda, como Lenin e Stalin. Ele também identificou a influência de Le Bon sobre Roosevelt e De Gaulle. Existe aqui uma forte evidência, a partir da história política desse século, que não existe nada mais prático do que uma boa teoria. Psicólogos sociais experimentais pre­ ferem tratar Le Bon como um popularizador da ciência, e tratar suas idéias como desprovidas de valor científico ou, como F.H. Allport, reinterpretar suas idéias de uma manei­ ra mais científica. Moscovici crê que essas atitudes são perigosas. Se nós, como psicólogos sociais, não compreen­ demos a p s ic o l o g i a s o c i a l das massas, então nós pode­ mos nos tornar vulneráveis, mais uma vez, quando um líder político traduz essa teoria política para a prática. O estudo de Moscovici sobre Le Bon originou uma trilogia de volu­ mes sobre a mente e o comportamento das multidões,

liderança política e teoria da conspiração (Graumann & Moscovici, 1986a, 1986b, 1987). A diferença essencial entre Moscovici e F.H. Allport, em suas respectivas interpreta­ ções de Le Bon, é que Moscovici escreve como um cien­ tista social e político, ao passo que Allport escreve como um cientista comportamentalista. O resultado da segunda perspectiva, como demonstra Graumann (1986a), é a individualização da p s ic o l o g ia s o c i a l . A p s ic o l o g i a s o c i a l , especificamente como disciplina, interessa-se com a relação entre indivíduo e sociedade. Deve existir ali uma tensão criativa entre esses dois ele­ mentos, no coração de qualquer forma viável dessa disci­ plina. Na p s ic o l o g i a s o c i a l de G.H. Mead, por exemplo, existe uma tensão criativa entre o Eu e o Mim ("I" e "M e”). Essa é uma parte essencial de sua teoria sobre o self humano. Na t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c ia is , existe uma justaposição entre a pesquisa sobre influência da minoria (Moscovici, 1976, 1979) e pesquisa em repre­ sentações sociais. Não está claro se essas são duas teorias separadas, ou parte-parcela de uma única e mesma teoria. Eu, pessoalmente, me inclino para a segunda visão. O indivíduo tanto é um agente de mudança na sociedade como é um produto dessa sociedade. Saussure e Barthes exemplificaram como o ser humano é tanto o senhor como o escravo da linguagem. Tendo Durkheim como um ancestral, a t e o r i a d a s SOCIAIS, de maneira mais que adequada, cobre o quanto um indivíduo é um produto da sociedade. Há agora a necessidade de um ancestral de status compa­ rável a Durkheim, para cobrir o quanto o indivíduo muda a sociedade. Weber é exatamente um ancestral de tal status. Para que exista uma tensão criativa entre dois teóricos rivais, eles devem ambos operar ao mesmo nível (como se mostrou na Tabela 1 acima). Essa é a razão por que eu considero o individualismo como uma repre­ sentação coletiva, no sentido pleno do conceito de Durk­ heim (Farr, 1991b). Ichheiser (1948), que desenvolveu isso representaçõ es

de maneira bastante completa, foi influenciado tanto por Weber, como por Durkheim, embora mais pelo primeiro do que pelo segundo. O individualismo se coloca na coluna da direita da Tabela 1. Ele é bastante diferente das várias versões de indivíduo que compõem a totalidade da coluna da esquerda. O individualismo é importante em países com forte tradição protestante e de conflito. Ele é forte, por exemplo, em países do Norte da Europa e da América do Norte. Durante o tempo da guerra fria, ele se tornou a ideologia do Ocidente, em contraste com o coletivismo do Oriente. Essa foi uma antítese infeliz, pois ela distorceu a p s ic o l o ­ g i a s o c i a l em ambos os lados da antiga cortina de ferro. Sendo que a p s ic o l o g i a s o c i a l está especificamente inte­ ressada na relação entre o indivíduo e a sociedade, ela perde sua vitalidade se um dos dois pólos dominar o outro. A polarização entre individualismo e coletivismo é menos pronunciada em países com uma forte influência do cato­ licismo, como por exemplo os países do Sul da Europa e da América do Sul. É nesses países que o estudo das representações sociais é particularmente forte. Isso pode refletir um interesse em valores coletivos. Esse é um assunto que mereceria ser investigado no contexto da sociologia do conhecimento.

A individualização da América do Norte

p s ic o l o g ia s o c ia l

na

Ao desenvolver a t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c ia is da maneira como o fez, Moscovici ajudou a preservar uma parte importante do conjunto da tradição intelectual oci­ dental, especificamente a noção de representações coleti­ vas de Durkheim. Isso se tornou uma tradição empírica de pesquisa, inicialmente na França, e agora em âmbito mundial. Representações coletivas são parte da vida atual da p s ic o l o g i a s o c i a l moderna (ao menos na forma de representações sociais), e não, como na América do Norte,

parte do longo passado da disciplina. Quando Moscovici estava desenvolvendo sua teoria, existiam programas con­ juntos de pós-graduação em p s ic o l o g i a s o c i a l em várias universidades americanas de prestígio (veja-se acima e também Lundstedt, 1968; Jones, 1985; Jackson, 1988), e todos eles, a partir de então, deixaram de existir. De maneira mais geral, a era moderna, na América do Norte, viu a separação das formas sociológica e psicológica de p s ic o l o g i a s o c i a l , com poucos, ou nenhum elo entre ambas. O desenvolvimento espetacular foi o da p s ic o l o g ia s o c i a l como uma subdisciplina da psicologia (Jones, 1985). Existiam, também, tradições de pesquisa na Europa que seguiram essa linha, como, por exemplo, a teoria de identidade social de Tajfel. Esses desenvolvimentos foram o resultado, na era moderna, das forças sociais que estavam atuantes no período entre as duas guerras mundiais, e que foram discutidas numa secção anterior desse capí­ tulo. Isso faz parte do que Graumann (1986), referindo-se especificamente à contribuição de F.H. Allport, chamou de "individualização do social". Dois fatores mais, além dos identificados por Grau­ mann, vieram à cena, nesses anos de grande desenvolvi­ mento, que se seguiram ao fim da Segunda Guerra Mundial, e que aceleraram grandemente a individualização da p s ic o l o g i a s o c i a l . O primeiro foi a generalização, para as outras ciências sociais, do pressuposto positivista que inspirava a p s ic o l o g i a s o c ia l de F.H. Allport (1924). Isso ocorreu quando as ciências sociais na América do Norte, de modo geral, passaram a ser chamadas de ciências comportamentalistas. Em grande parte, esse foi um estra­ tagema para garantir que elas fossem convenientemente fundamentadas. Os políticos que garantiam os fundos para a pesquisa científica estavam acostumados a confundir ciência social com socialismo. Essa foi também a era de MacCarthy, e o início da guerra fria. Pessoalmente, penso que os efeitos desastrosos de MacCarthy, no desenvolvi­ mento histórico das ciências sociais na América do Norte, têm de ser ainda estudados de modo mais completo.

Embora a pesquisa nas ciências do comportamento possa ter recebido mais verbas (e certamente a um nível mais generoso que na Europa), havia um preço a pagar por esse alto grau de ajuda, isto é, a individualização conseqüente do social. Como conseqüência, as ciências sociais na América do Norte se tornaram menos explicitamente so­ ciais que as da Europa. Se os psicólogos sociais, na América do Norte, quiserem re-socializar sua disciplina, e reverter assim a individualização do social, eles consegui­ rão fazer isso de maneira correta se se voltarem para os modelos de ciência social da Europa, em vez dos da América do Norte. Dentro da p s ic o l o g i a s o c i a l , e do modo como ela se expandiu historicamente na América do Norte durante o período moderno, houve ainda uma onda posterior de individualização do social, além da descrita por Graumann. Essa foi uma conseqüência da migração dos psicólogos gestaltistas da Áustria e Alemanha para a América do Norte. Embora essa migração tivesse ocorrido antes do início da guerra, seus efeitos globais somente foram detec­ tados após a guerra. Os emigrantes contribuíram de ma­ neira muito significativa para o florescimento da p s ic o ­ l o g i a s o c i a l como um fenômeno caracteristicamente norte-americano, nos anos do pós-guerra. O referencial de “visão de mundo", para o estudo das atitudes, que é característico da teoria da gestalt, chegou a predominar sobre o referencial de "consistência da resposta” dos behavioristas (veja-se Campbell, 1963, para uma exposição mais completa da distinção entre esses referenciais anta­ gônicos). O behaviorismo foi a causa principal da primeira onda de individualização da p s ic o l o g i a s o c i a l . A psicolo­ gia da gestalt foi a causa principal da segunda onda de individualização da p s ic o l o g ia s o c i a l . O behaviorismo representa a perspectiva do observador dos outros; a psicologia da gestalt representa a perspectiva do ator, nas ciências sociais. Ambas as perspectivas são individualis­ tas, e são incompatíveis entre si. Jones e Nisbett (1972) discutiram a divergência de perspectiva entre atores e

observadores. A coexistência de duas perspectivas incom­ patíveis e individualizantes impede que uma ciência social se estruture. Penso ter demonstrado, tanto em termos históricos como teóricos, por que a t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c ia is de Moscovici é polêmica no contexto da p s ic o l o g ia s o c i a l moderna da América do Norte. Parece muito mais um retorno ao passado, e isso de modo algum pode ser aceito, se alguém se orienta por uma filosofia positivista da ciência. Se o ancestral preferido da p s ic o l o g i a s o c i a l for Comte, em vez de Durkheim, aceitar uma teoria como a das Representações Sociais dificilmente será um sinal de progresso.

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2. VIVENDO A VIDA COM OS OUTROS: INTERSUBJETIVIDADE, ESPAÇO PÚBLICO E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

Sandra Jovchelovitch A t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c ia is já não é novida­ de. Mais de 30 anos depois do aparecimento do conceito na obra seminal de Serge Moscovici (1961) sobre psicaná­ lise na França, o debate, enriquecimento teórico e a pes­ quisa em torno das representações sociais tornaram-se fato no âmbito da p s ic o l o g i a s o c i a l . Tal fato, entretanto, está longe de ser o fato neutro e asséptico que faz o prazer e o gosto dos cânones estabelecidos da disciplina. Pelo con­ trário, a teoria nasceu - e cresceu - sob a égide de in­ terrogações radicais, que repõe contradições e dilemas que ainda hoje precisamos responder. Talvez a principal dessas contradições seja a relação indivíduo-sociedade e como esta relação se constrói. Se de um lado sofremos os equívocos de uma compreensão demasiado individualizante, psicologicista nos seus parâmetros de compreensão da subjetividade, por outro, muitas vezes as tentativas de introduzir conceitos sociológicos à p s ic o l o g i a s o c i a l su­ cumbiram à tentação maniqueísta do inverso. Assim, ou ficávamos no indivíduo fechado no âmbito de um Eu abstraído do mundo que o constitui, ou tratávamos a sociedade e a história como abstração. Uma sociedade sem sujeitos ou sujeitos sem uma história social são parte de problemas que todos nós conhecemos muito bem - e recuperar essa conexão é uma das tarefas cruciais que temos pela frente.

Associada a esta primeira contradição, há uma outra, que de certa forma é bastante similar. O domínio das operações simbólicas, o espaço das construções humanas sobre o real, onde a realidade enquanto campo contratual pode ser expandida, redefinida, e eventualmente transfor­ mada, exige que repensemos o caráter atribuído à relação entre mundo material e mundo simbólico. Porque se é bem verdade que nós na América Latina (e diga-se, não de passagem, não só na América Latina) estamos atravessa­ dos pela violência concreta de relações sociais desiguais, não é menos verdadeira a consideração de que também estamos atravessados pela força impressionante da Pala­ vra. A noção de que o símbolo se constrói apenas como máscara de estruturas sociais desiguais deve, no meu entendimento, ser colocada em questão. No rastro dessas contradições poderíamos ainda iden­ tificar várias outras, todas ligadas a dissociações profun­ das, que separaram o subjetivo do objetivo, o qualitativo do quantitativo, o coletivo do individual e assim por diante. Estes - me parecem - são elementos suficientes para exemplificar um dos mais caros pressupostos da Psicolo­ gia, que lhe forneceu um avatar central: a unidade do sujeito. Por ser concebido como coeso, racional, idêntico a si mesmo, qualquer tensão entre o ser humano e o mundo devia ser excluída. Daí a origem de conceitualizações como "coesão grupai", "consistência", “harmonia": se existe uma essência humana sem tensões de qualquer ordem, sem conflito e sem erro, a tarefa da p s ic o l o g i a s o c i a l centrou-se historicamente na busca dessa harmonia. As rupturas que a t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c ia is propõe recolocam nos espaços constitutivos da teoria e do método em p s ic o l o g i a s o c ia l um lugar para o mundo social e seus imperativos, sem perder de vista a capacidade criativa e transformadora de sujeitos sociais. Nesse senti­ do, eu acredito que ela é um acerto de contas com a p s ic o l o g i a s o c i a l . Minha contribuição aqui se situa dentro desse acerto de contas. Neste capítulo, eu me proponho a

apresentar alguns dos modos como a t e o r i a d a s r e p r e ­ se articula tanto com a vida coletiva de uma sociedade, como com os processos de constituição simbólica, nos quais sujeitos sociais lutam para dar sentido ao mundo, entendê-lo e nele encontrar o seu lugar, através de uma identidade social. Isso significa deixar claro como as representações sociais, enquanto fenômeno psicosso­ cial, estão necessariamente radicadas no espaço público e nos processos através dos quais o ser humano desenvolve uma identidade, cria símbolos e se abre para a diversidade de um mundo de Outros. s e n t a ç õ e s s o c ia is

A relação entre representações sociais e espaço públi­ co é complexa e deve ser discutida com cuidado. Esta é uma das dimensões da teoria que está relacionada com a lógica de produção das representações sociais enquanto fenômeno. Meu argumento central é de que a esfera pública, enquanto lugar da aIteridade, fornece às repre­ sentações sociais o terreno sobre o qual elas podem ser cultivadas e se estabelecer. Mas a alteridade é também a condição necessária para o desenvolvimento simbólico e para o desenvolvimento do Eu. Como então se processa a transição entre os trabalhos individuais de construção simbólica - que como veremos também se fundam no social - e a produção de representações sociais, que são símbolos construídos coletivamente, de forma comparti­ lhada, por uma sociedade? Para responder a essa questão, minha tentativa será a de enunciar as condições que ligam a alteridade, a cons­ trução simbólica, o espaço público e as representações sociais. Para discutir espaço público e alteridade, minha proposta é pensar com Hannah Arendt e Jürgen Habermas, e para relacionar símbolos e representações sociais, Winnicott e Piaget serão as fontes principais. As etapas da discussão que proponho são três: (1) a esfera pública como o espaço da alteridade, (2) o lugar da alteridade na cons­ trução da atividade simbólica e de que forma as repre­ sentações sociais se ligam à atividade representacional do

sujeito humano, e finalmente (3) em que medida as repre­ sentações sociais vão além, e portanto se diferenciam dos trabalhos individuais de representação simbólica1.

Espaços do eu, espaços dos outros: esfera pública e alteridade O “social" tem sido uma categoria problemática em é apenas considerado como uma variável influenciando fenômenos, ou porque aparece “tapando os furos” de tradições individualizantes, pouco se problematizou sobre a natureza mesma do social en­ quanto elemento constitutivo de fenômenos psicossociais. Desde uma perspectiva histórico-crítica, o social geral­ mente tem sido as condições concretas da vida, que envolvem desde relações sociais de produção até mecanis­ mos institucionais de várias ordens. Sem desconsiderar a importância de tais aspectos, minha intenção aqui é explo­ rar os significados que a vida social assume na sua dimen­ são pública, no espaço em que uns se encontram com outros, seja de forma direta, como nas ruas, nas praças, nos rituais coletivos, etc., seja através de mediações insti­ tucionais. p s ic o l o g i a s o c i a l . Seja porque

Existem dois momentos históricos que podem ser considerados paradigmáticos para a noção de esfera públi­ ca (Habermas, 1990). Um desses momentos corresponde à cidade-estado grega e o outro refere-se às transformações ocorridas na Europa do século XVII à primeira metade do século XIX. Ainda que as noções de público que circulam hoje tenham sido formadas no processo de ascensão e transformação da assim chamada esfera pública burguesa,

1. Eu espero que fique claro desde o início que estas três etapas da minha discussão são apenas uma ferramenta de análise e construção teórica. A emergência do sujeito ontológico, com um sentido desenvolvido de Eu, está amarrada à emergência da atividade simbólica, que por sua vez depende da realidade social.

noções definindo o que é público e o que não é - quer dizer, o que é privado - podem ser encontradas em um passado mais remoto que vai até a Grécia Antiga. De fato, como Habermas coloca “desde a Renascença o modelo da esfera pública helênica, tal como foi transmitido pela autoconcepção dos gregos, compartilhou com tudo que é considerado “clássico" uma força normativa peculiar” (Habermas, 1990:4). Eu acredito que essa força normativa peculiar a que Habermas se refere tem origem na própria peculiaridade da experiência grega. Foi talvez Hannah Arendt (1958) quem delimitou de forma definitiva os significados e con­ figurações estruturais da esfera pública para os gregos antigos, salientando a extensão em que o seu entendimen­ to original se perdeu em sociedades contemporâneas. De certa forma, sua obra é uma crítica à filosofia ocidental como um todo que preferiu falar do homem como categoria universal ao invés da pluralidade humana (Schurmann, 1989). De acordo com Arendt, viver entre as pessoas de modo humano pressupõe a capacidade de escapar do domínio da pura necessidade para um espaço que é qualitativamente diferente - o espaço da ação e do discur­ so, onde as pessoas realizam sua capacidade para falar e agir. A condição sine qua non para a ação e o discurso é a pluralidade humana, “o fato de que homens, e não o Homem, vivem na terra e habitam o Mundo (1958:7). Porque as pessoas são diferentes - e ao mesmo tempo as mesmas - a ação e o discurso tornam-se necessários: se nós fôssemos todos idênticos não haveria a necessidade de comunicação ou da ação sobre o que nunca varia; se nós não tivéssemos nada em comum a fala perderia seu próprio fundamento e a ação não justificaria a si mesma. É na experiência da pluralidade e da diversidade entre pers­ pectivas diferentes - que, porém, pode levar ao entendi­ mento e ao consenso - que o significado primeiro da esfera pública pode ser encontrado. Arendt coloca que o termo público indica dois fenômenos interligados, ainda que não idênticos: primeiro, o que é público pode ser visto e

escutado por todos e possui a máxima publicidade; segun­ do, público refere-se ao Mundo mesmo, naquela medida em que ele é comum a todas as pessoas e se diferencia do espaço privado de cada um dentro dele. Assim, a esfera pública estabelece as fronteiras que tanto ligam como separam as pessoas, que tanto as une como as impede de tropeçar umas nas outras (Arendt, 1958:50-52). Ao mesmo tempo, a vida pública fornece as condições necessárias para a permanência e a história, já que ela não pertence apenas a uma geração e não se restringe aos que vivem. Ainda que este é o espaço que todos entram ao nascer e deixam para trás ao morrer, ele mesmo transcende o ciclo de vida de uma geração. Sua imortalidade envolve sua capacidade para produzir, manter e transformar uma história que permanece nos artefatos e narrativas huma­ nas. Se as pessoas estivessem isoladas dentro de espaços privados no mundo nem a história, nem a vida política seriam possíveis. É a arena de encontros da vida pública que garante as condições para descobrir as preocupações comuns do presente, projetar o futuro e identificar aquilo que o presente e o futuro devem ao passado. Mais ainda, porque sua realidade é plural, a esfera pública tem sua base no diálogo e na conversação: ainda que o Mundo seja o solo comum a todos os seres humanos, as posições dentro dele variam e nunca podem coincidir plenamente. A única possibilidade para que ocorra uma coincidência de pers­ pectivas depende do esforço de uns em direção aos outros, de um processo de ação e discurso que contenha tanto as diferenças como as similaridades entre as pessoas - isto é, diálogo. O modelo liberal da esfera pública nas sociedades burguesas está hoje no centro dos debates relacionados aos problemas da cidadania, da democracia e participação política. Tomando Habermas (1990; 1992) como ponto de partida, cientistas sociais das mais variadas disciplinas têm questionado a denotação e conotação do modelo liberal de esfera pública. Até que ponto ela epitomiza os princípios

de liberdade, igualdade e fraternidade que desde o século XVIII são as espinhas dorsais da racionalidade ocidental? O trabalho de Habermas está centrado na emergência, desenvolvimento e transformação da esfera pública bur­ guesa e permanece ainda hoje a mais completa análise dessa nova categoria das sociedades burguesas. Nele, Habermas define a esfera pública como um espaço em que cidadãos se encontram e falam uns com os outros de forma que garanta acesso a todos. É a esfera onde o princípio da transparência e prestação de contas se desenvolve. Ao mesmo tempo, implica um diálogo entre cidadãos que incorpora uma série de características ideais, tais como: 1) o debate no espaço público deve ser aberto e acessível a todos; 2) as questões em discussão devem ser preocupa­ ções comuns - interesses puramente privados não são admissíveis; 3) desigualdades de posição são desconside­ radas; e 4) os participantes devem decidir como iguais. O resultado de tal espaço público então seria a opinião pública, considerada como um consenso adquirido através do livre debate sobre a vida em comum. O uso da razão para guiar o debate foi outra das novidades históricas do modelo liberal da esfera pública - através dele, a sociedade como um todo cria um saber sobre si mesma. A preocupa­ ção de Habermas é mostrar e discutir como as funções críticas da esfera pública foram enfraquecidas pelas trans­ formações que ela sofreu sob o capitalismo, e, ao fazer isso, ele evoca um compromisso com os seus ideais - como um espaço que deve ser recuperado, como um espaço que racionaliza o exercício do poder através do debate público. A este ponto meu leitor poderia perguntar, não sem alguma razão, onde estão as representações sociais? Sem dúvida é exatamente aqui que elas estão, mas vou me permitir continuar pelos caminhos a que me propus no início. O que aparece claro aqui, ainda que não a represen­ tação social explicitamente, é a alteridade. Esses aspectos constitutivos da esfera pública deixam claro sua correspon­ dência com as discussões propostas por Mead (1934) sobre o Outro generalizado. Como ele nos ensinou, o Outro

generalizado é que dá ao sujeito sua possível unidade enquanto Eu, e não há possibilidade de um desenvolvimen­ to do Eu sem a intemalização de Outros. A importância de uma comunidade segue daí: ela evidencia um "nós" ne­ cessário para a constituição de cada ser humano, que atesta que vidas privadas não surgem a partir de dentro, mas a partir de fora, isto é, em público. A esfera pública portanto, como o espaço que existe em função da pluralidade humana, como o espaço que se sustenta em função de diversidade humana, como o espa­ ço que introduz a noção de transparência e "prestação de contas” , como o espaço que encontra sua forma de expres­ são no diálogo e na ação comunicativa, traz para o centro da nossa análise a dialética entre o Um e o Outro, e sublinha a importância das relações entre sujeito-outros sujeitos-sociedade para dar conta dos possíveis significados tanto da vida individual como da vida pública. Porque quem sou Eu se não o Eu que Outros apresentam a mim? O espelho como objeto de autoconfrontação nos lembra os perigos do destino de Narciso e permanece um sinal de quão perigosa a justaposição de imagens controladas apenas pelos olhos de Um pode ser. A possibilidade real de confrontação, portanto, nos é dada por um outro espelho na vida cotidia­ na - a face de um Outro, os olhos de um Outro, o gesto de um Outro. O fato de que os seres humanos podem interro­ gar a si mesmos e podem usar diferentes territórios para refletir sobre suas identidades demonstra claramente que para além de qualquer tipo de isolacionismo e individua­ lismo a verdadeira possibilidade de acesso à individualida­ de reside na presença de Outros. Mas se a vida pública, enquanto alteridade, é um elemento constitutivo na gênese e desenvolvimento de vidas individuais, ela também pode iluminar alguns dos parâmetros normativos que definem a vida em comum. Porque idéias de que é necessário abstrair interesses pu­ ramente privados (ou individuais) para construir a noção de "nós", de que argumentação e debate devem valer mais

do que posição e estatus, de que porque Outros existem é necessário a cada um explicar-se, prestar contas, agir na luz clara da visibilidade pública e não atrás dos panos quentes de interesses ocultos, ainda definem em muito a qualidade da vida - que se tem ou não se tem - em sociedade. Mais ainda, é através da ação de sujeitos sociais agindo no espaço que é comum a todos, que a esfera pública aparece como o lugar em que uma comunidade pode desenvolver e sustentar saberes sobre si própria - ou seja, representações sociais.

Representações Sociais, representação e atividade simbólica A relação entre o conceito de representações sociais e atividade representacional per se é repleta de ambigüida­ des. Boa parte dessas ambigüidades tem origem no fantas­ ma do cognitivismo e sua perspectiva individualizante no estudo das representações individuais. De fato, o peso de tais teorias - onde uma representação é mero reflexo do mundo externo na mente, ou uma marca da mente que se reproduz no mundo externo - não merece ser facilmente esquecido. Existe entretanto um outro fantasma que as­ sombra o estudo das representações individuais: o fantas­ ma de Freud e toda a literatura produzida no domínio da psicanálise relacionada aos símbolos. Não há dúvida que a t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c ia is se constrói sobre uma teoria dos símbolos. Elas são consideradas, de acordo com Moscovici, formas de conhecimento social que impli­ cam duas faces, tão inter-ligadas como os dois lados de uma folha de papel: o figurativo, ou lado imageante, e o lado simbólico (Moscovici, 1981). Precisamos, portanto, elucidar esse último fantasma se a complexa relação que existe entre representações e atividade simbólica quiser ser reconhecida dentro da teoria das representações sociais. A formação e desenvolvimento de representações e símbolos, tal como foram descritos por Winnicott e Piaget,

revelam a natureza pública dos processos subjacentes à formação das representações sociais. O modelo de desen­ volvimento do Eu de Winnicott, e as pesquisas piagetianas sobre as estruturas que atravessam o desenvolvimento da criança são exemplos das complexas relações entre o infante e seu meio, bem como dos principais elementos que fazem essas relações significativas. Ambos considera­ ram a atividade simbólica como um produto do Eu plena­ mente desenvolvido e ambos consideraram que é somente quando o ser humano está preparado para integrar a si mesmo em uma rede de perspectivas globais que vai além de si mesmo para o conjunto da humanidade, é que ele torna-se um Eu. Temos aqui o Símbolo, o Eu e a Alteridade como elementos constitutivos um do outro. Segundo Winnicott, a trajetória que vai de uma abso­ luta dependência e uma independência relativa é o que caracteriza o desenvolvimento do ser humano. O fato de que o ser humano é prematuro ao nascer e se encontra em um estado de absoluta carência faz dos cuidados que ele recebe de outros a primeira realidade psicológica a ser enfrentada. A dramática do recém-nascido se expressa na sua vulnerabilidade, que vem a ser mais tarde símbolo de muitas outras vulnerabilidades. Mas essa dramática tam­ bém se expressa através do fato absolutamente acidental de ser amado ou não, que dirige os cuidados externos que ele recebe e portanto a sua sobrevivência. Paradoxalmente, essa dependência extrema não o condena a uma situação desprovida de poder; através de uma delicada dialética, em que o bebê é vulnerável de modo absoluto, e, por isso, o outro que o ama lhe presta cuidados também de forma absoluta, encontra-se a chave de seu poder, e as bases da onipotência. Ainda que por caminhos transversos, o re­ cém-nascido também controla seus Outros. Esta relação entre a criança e o Outro que lhe presta cuidados se desenvolve por um caminho tortuoso, repleto de contradi­ ções e fissuras, às vezes marcadas pelo amor, às vezes marcadas pela privação. Porque quem cuida da criança é um sujeito concreto, inserido em um mundo concreto, já

constituído e estruturado por relações sociais e repre­ sentações sociais. Em todo caso, ainda que marcado por diferenças que têm origem em diferenças sociais, esse primeiro encontro de cada ser humano com outros asse­ gura as bases para a confiança no meio e para as primeiras experiências relacionais, onde a comunicação e mais tarde a linguagem vão ocupar um lugar central. A visão winnicottiana da transição da dependência absoluta para a relativa independência corresponde em muitos aspectos à visão de Freud (1920) sobre a transição do princípio do prazer para o princípio da realidade. Mas Winnicott desen­ volveu essa noção de modo diferente, já que, em alguma medida, para ele o princípio da realidade era "um insulto". Ele escreveu: “o princípio da realidade é o fato de que o mundo existe, sem que o bebê o tenha criado, é um arqui-inimigo da espontaneidade, da criatividade e sentido do real” (Winnicott, 1961: 236). Mas se crescer, envolve uma aceitação do mundo que é o “não-Eu" e uma relação com este mundo, como o infante lida com esse “insulto” da realidade? A resposta que Winnicott oferece é o con­ ceito de espaço potencial, que para ele é um estado intermediário entre a incapacidade e a progressiva capaci­ dade da criança para reconhecer e elaborar a realidade. A ilusão experienciada pela criança é a ilusão de onipotência, que os cuidados primários permitem; onipotência que é real para a criança e ilusória desde o ponto de vista do observador. Nesse espaço a realidade e a fantasia se encontram e tomam-se similares; nele a criança tem a breve experiência de criar o que na verdade já está lá esperando para ser encontrado. Talvez seja a noção de espaço potencial que marca a mais original contribuição da obra de Winnicott (Winnicott, 1951). Ele desenvolveu o conceito a partir de suas obser­ vações da relação que a criança estabelece com sua primeira especial possessão. Este primeiro objeto - o objeto transicional - é o primeiro a ter um caráter de “não-Eu” para a criança e desempenha um papel crucial no desen­ volvimento teórico da concepção de ilusão dentro da abordagem de Winnicott. Um outro passo para a elabora­

ção do espaço potencial entre o eu individual e a alteridade é a atividade lúdica da criança pequena. O brincar é uma derivação direta dos fenômenos transicionais e envolve confiança no mundo externo e capacidade de estar "só" na presença de outros. Ao mesmo tempo, o brincar diz res­ peito a um “brincar com a realidade"; em alguma medida retém a experiência de onipotência e constrói uma reali­ dade única para a criança. Winnicott considerou que a atividade lúdica está na base de toda a experiência cultural e da criatividade, e para ele a comunicação sempre ocorre na inter-secção de espaços potenciais que transcendem as fronteiras fundamentais entre o Eu e o não-Eu. De fato, se para Winnicott a própria essência do crescimento consiste na criação de fronteiras onde o Eu e a realidade interna aprendem a ser Um em relação e uma realidade comparti­ lhada de Outros, o espaçp potencial vai além dessas fronteiras, porque nele as pessoas não estão nem no mundo da fantasia, nem no mundo da realidade dos outros, mas em um terceiro e paradoxal lugar que contém os dois mundos ao mesmo tempo. O espaço potencial é portanto o espaço dos símbolos. Símbolos pressupõem a capacidade de evocar presença apesar da ausência, já que sua característica fundamental é que eles significam uma outra coisa. Nesse sentido, eles criam o objeto representado, construindo uma nova reali­ dade para a realidade que já está lá. Eles provocam uma fusão entre o sujeito e o objeto porque eles são expressão da relação entre sujeito e objeto. Através de símbolos, coisas diferentes podem significar umas as outras e podem mergulhar umas nas outras; eles permitem uma variabili­ dade infinita, e, ainda assim, são referenciais. Assim, é da essência da atividade simbólica - da atividade do espaço potencial - o reconhecimento de uma realidade comparti­ lhada - a realidade de Outros. Mas, é um reconhecimento criativo que leva a um envolvimento com outros e com o objeto que é o mundo. É a referência do mundo que garante a natureza criativa da atividade simbólica, de tal forma que a experiência de um, ao se mesclar com a experiência de outros, cria continuamente a experiência que constitui a

realidade de todos. Por isso Winnicott diz que é da diferen­ ça, no sentido pleno da palavra, que o Eu humano se desenvolve, porque “quando se fala do homem, se fala dele enquanto resultado de suas experiências culturais. O todo forma a unidade" (Winnicott, 1967: 99). Como Davis & Wallbridge (1981) assinalam, a análise de Winnicott é bastante próxima das idéias de Piaget em relação à formação de símbolos e a atividade lúdica da criança. Ainda que o foco do trabalho de ambos fosse diferente - Piaget dirigiu seu trabalho ao desenvolvimento cognitivo e Winnicott ao desenvolvimento emocional - os dois concordariam que tanto a dimensão intelectual quanto a dimensão afetiva são inseparáveis no desenvolvimento do sentido de realidade na criança. O conjunto da obra piagetiana é extremamente impor­ tante para a p s ic o l o g i a s o c ia l e desempenha um papel crucial na t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c ia is (veja Du­ veen, neste volume). O aspecto que me parece o mais importante para os objetivos de minha discussão aqui é seu conceito de descentração. Esta é uma concepção que atravessa toda sua obra e constitui, de acordo com o próprio Piaget, uma das mais importantes facetas do de­ senvolvimento cognitivo da criança. Piaget compara o processo de descentração com uma "Revolução Copernicana em miniatura", e diz: “no início de seu desenvolvi­ mento o recém-nascido apreende tudo em relação a si mesmo - ou mais precisamente ao seu próprio corpo enquanto que ao final desse período, isto é, quando a linguagem e o pensamento iniciam, ele é para todos os efeitos apenas um elemento ou entidade entre outros, em um universo que ele próprio gradualmente construiu, mas que daqui em diante ele vai experienciar como exterior a si mesmo" (Piaget, 1964/1968: 9). A emergência do Eu em oposição ao mundo externo ocorre em relação estreita (ou mais ainda, como pré-condição) com as transformações mentais que permitem a representação das coisas e, por­ tanto, o desenvolvimento do pensamento simbólico e da linguagem.

Pesquisas em representações sociais consideram mui­ to dos processos descritos acima, ainda que em uma dimensão diferente. Jodelet (1984; 1981) discute o conceito da representação social e seu desenvolvimento em uma teoria a partir do que uma representação é. Ela argumenta que o ato da representação supera as divisões rígidas entre o externo e o interno ao mesmo tempo que envolve um elemento ativo de construção e re-construção; o sujeito é autor da construção mental e ele a pode transformar na medida em que se desenvolve. Sua análise do ato da representação também delimita cinco características que vêm a ser fundamentais na construção das representações sociais. Essas características são o aspecto referencial da representação, quer dizer, o fato de que elas sempre são a referência de alguém para alguma coisa; seu caráter ima­ ginativo e construtivo, que a faz autônoma e criativa e finalmente sua natureza social, o fato de que "os elementos que estruturam a representação advêm de uma cultura comum e estes elementos são aqueles da linguagem” (Jodelet, 1984: 365). Parece claro aqui o quanto o ato da representação é crucial para a própria construção das representações sociais e como esta relação pode ser vista no seu processo de desenvolvimento nas noções de espaço potencial e atividade simbólica em Winnicott e Piaget. Kaés (1984), ao elaborar sobre a representação desde uma perspectiva psicanalítica, desenvolveu a hipótese de que a representação é um trabalho, um trabalho de lem­ brança daquilo que está ausente e um trabalho de ligação. Sua argumentação vai além, estabelecendo um paralelo entre os processos que estão em jogo nos trabalhos da representação e os processos em jogo na atividade onírica, na vida psíquica e no inconsciente. Esses processos co­ muns para Kaés são o deslocamento e a condensação. Ambos relacionam-se à capacidade de “brincar” com sig­ nificados. De fato, como Freud nos diz, o inconsciente e seus processos "não é apenas mais descuidado, mais irracional, mais esquecido e mais incompleto do que o pensamento consciente; ele é completamente e qualitati-

vãmente diferente do pensamento consciente e por isso mesmo não pode ser imediatamente comparado a ele. O inconsciente não pensa, não calcula ou julga; ele restringe a si mesmo a dar às coisas uma nova forma" (Freud, 1900: 507). Ora, é exatamente essa capacidade de dar às coisas uma nova forma - através da atividade psíquica - que constitui uma representação. Para Freud, o material primá­ rio da psique não tem como expressar-se de forma direta e o modo de expressão possível é exatamente o da repre­ sentação, onde as pulsões encontram formas substitutivas em diferentes objetos. A atividade psíquica, assim, envolve uma mediação entre o sujeito e o objeto-mundo. Este último reaparece sob a forma de representações, re-criado pelo sujeito, que por sua vez é ele mesmo também re-criado pela sua própria relação com o mundo. Poderíamos perguntar-nos, aqui, qual é a substância dessas re-presentações, além da carga afetiva que as pulsões depositam em algo com forma diferente? A substância, ou o conteúdo do qual as representações são feitas, são símbolos. Piaget (1962) examinou o problema do símbolo incons­ ciente nos seus estudos sobre o desenvolvimento do sím­ bolo e da imagem mental na criança. As relações que ele estabelece entre o jogo simbólico e os sonhos da criança pequena demonstram a sua similaridade em termos tanto de estrutura simbólica como de conteúdo. Não é acidental descobrir que os processos subjacentes a ambos são des­ locamento e condensação porque ambos se caracterizam pelo uso da representação simbólica. Mesmo os mais básicos símbolos são o resultado de uma mistura de imagens, de contrastes, de identificações, que condensam por assim dizer a variedade de objetos, afetos e outros significativos ao redor da criança. Daí que deve haver um deslocamento de significados entre esses vários objetos (objeto aqui refere-se a coisas e pessoas), dando a um a referência do outro, evocando em um a presença do outro, misturando em um a imagem e o som do outro. Torna-se

claro então que condensação e deslocamento são parte inseparável da atividade simbólica. Revisando, então: a atividade representacional é um trabalho da psique. Tal trabalho ocorre através dos proces­ sos inconscientes que Freud descreveu como condensação e deslocamento. Se considerarmos a atividade simbólica de acordo com a noção de espaço potencial proposta por Winnicott, nós poderemos concluir que símbolos se desen­ volvem sobre e com a atividade representacional. O sujeito constrói, na sua relação com o mundo, um novo mundo de significados. De um lado, é através de sua atividade e relação com outros que as representações têm origem, permitindo uma mediação entre o sujeito e o mundo que ele ao mesmo tempo descobre e constrói. De outro lado, as representações permitem a existência de símbolos pedaços de realidade social mobilizados pela atividade criadora de sujeitos sociais para dar sentido e forma às circunstâncias nas quais eles se encontram. É desneces­ sário dizer que, tanto de uma perspectiva conceituai como de uma perspectiva genética, não há possibilidade para a construção simbólica fora de uma rede de significados já constituídos. É sobre e dentro dessa rede que se dão os trabalhos do sujeito de re-criar o que já está lá. O sujeito psíquico, portanto, não está nem abstraído da realidade social, nem meramente condenado a reproduzi-la. Sua tarefa é elaborar a permanente tensão entre um mundo que já se encontra constituído e seus próprios esforços para ser um sujeito. Os processos discutidos acima são, no meu entender, necessários para elucidar as implicações mais gerais das representações sociais enquanto fenômeno mediador entre o indivíduo e a sociedade. Eles iluminam as fundações psicológicas das representações sociais e os intercâmbios que dão forma à relação entre investimentos psíquicos e realidade social. A análise do campo conceituai das repre­ sentações sociais nos confronta, no nível do social, com duas dimensões fundamentais da atividade psicossocial: a relação com o ausente e a evocação do possível.

Representações Sociais: a intersubjetividade e a construção simbólica da realidade social Até aqui eu procurei mostrar que as representações sociais, porque simbólicas, se constroem sobre a capaci­ dade representacional de um sujeito psicológico. Essa capacidade representacional por sua vez não pode ser entendida fora de uma dimensão de alteridade. Entretanto, ainda que seja tentador, as representações sociais não podem ser diretamente equacionadas à atividade repre­ sentacional per se. Aqui, eu quero propor que os processos que engendram representações sociais estão embebidos na comunicação e nas práticas sociais: diálogo, discurso, rituais, padrões de trabalho e produção, arte, em suma, cultura. Tal afirmação pretende demarcar um campo de distinção para as representações sociais. Ao longo de minha discussão, eu procurei mostrar como a realidade social - representada por outros - desempenha um papel constitutivo na gênese das representações, da atividade simbólica e do próprio sujeito individual. Agora, meu desejo é discutir de que forma as representações sociais vão além do trabalho individual do psiquismo e emergem como um fenômeno necessariamente colado ao tecido social. Essa discussão envolve uma distinção sútil. Quando nós falamos em representações sociais, a análise deslocase para um outro nível; ela já não se centra no sujeito individual, mas nos fenômenos produzidos pelas constru­ ções particulares da realidade social. Assim, o problema não está em abandonar o indivíduo porque ele implica necessariamente uma perspectiva individualista. Ao con­ trário, o problema central é reconhecer que, ao analisar fenômenos psicossociais - e representações sociais - é necessário analisar o social enquanto totalidade. Isso quer dizer que o social envolve uma dinâmica que é diferente de um agregado de indivíduos.

Essa não é uma questão nova para a p s ic o l o g i a Dos gestaltistas até Allport2, sempre existiu um vivo debate sobre a relação entre o todo e a unidade. Aqui, mais uma vez eu acredito que podemos lucrar com a visão de Piaget e sua discussão sobre estruturalismo (Piaget, 1968/1971). Contra tendências atomísticas, ele argumenta que a noção de estrutura envolve as idéias chave de totalidade, transformação e auto-regulação. As duas pri­ meiras são essenciais para entender a distinção entre estruturas e agregados já que as leis que englobam a constituição de uma estrutura não podem ser reduzidas à soma de seus elementos separados. A o contrário, elas dão à totalidade propriedades distintas das propriedades de seus elementos. Essa posição naturalmente leva ao proble­ ma de como a totalidade se forma, ou como ela se origina. Já que não estamos falando de meros agregados, como a gênese da totalidade pode ser explicada? A resposta é clara: é a noção de transformação que dá conta tanto da estrutura como da gênese do seu caráter de totalidade. "O problema da formação da totalidade", diz Piaget, “pode ser simplificado se nós considerarmos a segunda característica das estruturas - ou seja, elas serem sistemas de transfor­ mações e não formas estáticas - seriamente" (Piaget, 1964/1968: 9-10). s o c ia l .

É à luz da perspectiva piagetiana que eu proponho a análise das representações sociais. Sua estrutura pode ser entendida somente em relação a seu processo de formação e transformação; as representações sociais não são um agregado de representações individuais da mesma forma

.

2 Veja Allport, G.W. (1985) The historical background of modern psychology. In G. Lindzey & E. Aronson (eds.) A Handbook of social psychology (vol. 1, 2a ed., p. 1-46), Cambridge, MA: Addison-Wesley. Allport defende a não existência de fenômenos psicossociais que possam ir além do sujeito indivi­ dual como centro de análise. Veja também Brock, A. (1992) Was Wundt a “Nazi"?: Volkerpsychologye, Racism and Anti-Semitism. Theory and Psycho­ logy. Vol. 2 (2), p. 205-223, para uma excelente discussão sobre o ensaio de Allport e sua extrema animosidade em relação a todas as formas de psicologia coletiva, incluindo a teoria de Durkheim sobre representações coletivas.

que o social é mais que um agregado de indivíduos. Assim, a análise das representações sociais deve concentrar-se naqueles processos de comunicação e vida que não so­ mente as engendram, mas que também lhe conferem uma estrutura peculiar. Esses processos, eu acredito, são pro­ cessos de mediação social. Comunicação é mediação entre um mundo de perspectivas diferentes, trabalho é mediação entre necessidades humanas e o material bruto da nature­ za, ritos, mitos e símbolos são mediações entre a alteridade de um mundo freqüentemente misterioso e o mundo da intersubjetividade humana: todos revelam numa ou noutra medida a procura de sentido e significado que marca a existência humana no mundo. Assim, são as mediações sociais, em suas mais varia­ das formas, que geram as representações sociais. Por isso elas são sociais - tanto na sua gênese como na sua forma de ser. Elas não teriam qualquer utilidade em um mundo de indivíduos isolados, ou melhor, elas não existiriam. As representações sociais são uma estratégia desenvolvida por atores sociais para enfrentar a diversidade e a mobili­ dade de um mundo que, embora pertença a todos, trans­ cende a cada um individualmente. Nesse sentido, elas são um espaço potencial de fabricação comum, onde cada sujeito vai além de sua própria individualidade para entrar em domínio diferente, ainda que fundamentalmente rela­ cionado: o domínio da vida em comum, o espaço público. Dessa forma, elas não apenas surgem através de media­ ções sociais, mas tomam-se, elas próprias, mediações so­ ciais. E enquanto mediação social, elas expressam por excelência o espaço do sujeito na sua relação com a alteridade, lutando para interpretar, entender e construir o mundo. A objetificação e a ancoragem são as formas específi­ cas em que as representações sociais estabelecem media­ ções, trazendo para um nível quase material a produção simbólica de uma comunidade e dando conta da concreticidade das representações sociais na vida social. De certa

forma, eles podem ser enriquecidos se comparados aos processos de condensação e deslocamento que discutimos antes. Objetificar é também condensar significados dife­ rentes - significados que freqüentemente ameaçam, signi­ ficados indizíveis, inescutáveis - em uma realidade familiar. Ao assim o fazer, sujeitos sociais ancoram o desconhecido em uma realidade conhecida e instituciona­ lizada e, paradoxalmente, deslocam aquela geografia de significados já estabelecida, que as sociedades, na maior parte das vezes, lutam para manter. As representações sociais emergem desse modo como processo que ao mes­ mo tempo desafia e reproduz, repete e supera, que é formado, mas que também forma a vida social de uma comunidade. Em tempos que nos confrontam continuamente com críticas pós-modernas que elogiam a multiplicação de significados, a diferença e a supremacia da intimidade apenas e unicamente em relação a si mesmos, onde as noções de referência e limite se apresentam freqüentemen­ te como autoritárias ou como ilusões perdidas da moder­ nidade, eu acredito ser necessário reafirmar que a produção da significação e da diferença só é possível em relação às fronteiras de um mundo de outros. O mundo do “tudo é possível" é um mundo que descarta a intersubjetividade como critério fundamental da vida humana e propõe a solidão disfarçada do “cada um diz e faz o que quer" como alternativa aos ecos do autoritarismo, que por sinal tam­ bém desconhece fronteiras. Os limites que a intersubjeti­ vidade impõe, infelizmente representados assim como ameaça, não têm nada a ver com autoritarismo. A o con­ trário, é porque essas fronteiras existem, que muitas vezes nós ousamos desafiá-las e, se necessário, transcendê-las, como é o caso no espaço potencial das representações sociais e - em larga medida - em todas as formas de vida em comum que se erguem como efeitos contraditórios aos imperativos das sociedades de massa. É com esta p s ic o ­ l o g i a s o c i a l , eu acredito, que precisamos trabalhar. A necessidade de defender a vida em comum, ameaçada hoje

pela miséria, pela violência e pela desigualdade, é também a necessidade de recuperar o pensamento, a palavra e a plena possibilidade de construir saberes sociais. Esta é uma necessidade crucial não somente porque sustenta a possibilidade da democracia e da cidadania - onde sujeitos políticos se encontram na ação e no discurso para partici­ par daquela esfera da vida que é comum a todos nós, mas também porque ela aponta para a constituição de vidas individuais que sustentem em si mesmas as conseqüências plenas do fato de que as pessoas vivem umas com as outras e não existe vida humana sem a presença de outros seres humanos.

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MARIA CECÍLIA DE SOUZA MINAYO

3. O CONCEITO DE REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DENTRO DA SOCIOLOGIA CLÁSSICA

Maria Cecília de Souza Minayo Introdução Representações Sociais é um termo filosófico que sig­ nifica a reprodução de uma percepção retida na lembrança ou do conteúdo do pensamento. Nas Ciências Sociais são definidas como categorias de pensamento que expressam a realidade, explicam-na, justificando-a ou questionando-a. Enquanto material de estudo, essas percepções são consi­ deradas consensualmente importantes, atravessando a história e as mais diferentes correntes de pensamento sobre o social. Neste texto, abordamos o viés através do qual os autores, como Durkheim e seus seguidores, Weber e a escola fenomenológica representada por Schutz, Marx e os marxistas, trabalham o mundo das idéias e seu significado no conjunto das relações sociais, e, por fim, Bourdieu e Bakthin, que trazem ambos uma bela contribui­ ção sobre o estatuto da palavra. No entanto, a atenção maior recairá sobre os três autores clássicos, Durkheim, Marx e Weber, que serão comparados e diferenciados em suas abordagens.

O conceito de Representações Sociais para os diferentes autores Do ponto de vista sociológico, Durkheim é o autor que primeiro trabalha explicitamente o conceito de Repre­ sentações Sociais. Usado no mesmo sentido que Repre­ sentações Coletivas, o termo se refere a categorias de pensamento através das quais determinada sociedade ela­ bora e expressa sua realidade. Durkheim afirma que essas categorias não são dadas a priori e não são universais na consciência, mas surgem ligadas aos fatos sociais, trans­ formando-se, elas próprias, em fatos sociais passíveis de observação e de interpretação. Isto é, a observação revela, segundo ele, que as representações sociais são um grupo de fenômenos reais, dotados de propriedades específicas e que se comportam também de forma específica. Na concepção de Durkheim, é a sociedade que pensa. Portan­ to, as representações não são necessariamente conscien­ tes do ponto de vista individual. Assim, de um lado, elas conservam sempre a marca da realidade social onde nas­ cem, mas também possuem vida independente, reproduzem-se e se misturam, tendo como causas outras repre­ sentações e não apenas a estrutura social. Embora reconheça como base das representações “o substrato social", Durkheim advoga sua autonomia relati­ va. Segundo ele, algumas, mais que outras, exercem sobre nós uma espécie de coerção para atuar em determinado sentido. Dentre estas se destacam a religião e a moral, assim como as categorias de espaço, tempo e de persona­ lidade, consideradas por ele como representações sociais históricas. Ouçamos o próprio autor: “As Representações Coletivas traduzem a maneira como o grupo se pensa nas suas relações com os objetos que o afetam. Para compreender como a sociedade se representa a si própria e ao mundo que a rodeia, precisamos considerar a natureza da sociedade e não a dos indivíduos. Os símbolos

com que ela se pensa mudam de acordo com a sua natureza (...). Se ela aceita ou condena certos modos de conduta, é porque entram em choque ou não com alguns dos seus sentimentos fundamentais, sentimentos estes que perten­ cem à sua constituição" (1978, 79). Portanto, para Durkheim não existem "representações falsas". Todas respondem de diferentes formas a condições dadas da existência humana. São símbolos através dos quais "é preciso saber atingir a realidade que eles figuram e que lhes dá sua verdadeira significação. Constituem objeto de estudo tanto quanto as estruturas e as instituições: são todas elas maneiras de agir, pensar e sentir, exteriores ao indivíduo e dotadas de um poder coercitivo em virtude do qual se lhes impõe" (1978, 88). Contêm, como as instituições e estruturas, as duas características do fato social: (a) exterioridade em relação às consciências individuais; (b) exercem ação coercitiva sobre as consciências individuais, ou são suscetíveis de exercer essa coerção. No seu afã de considerar a objetividade da sociologia, Durkheim tenta eximir a análise de qualquer fato social e, portanto, das representações sociais, do envolvimento do pesquisador e dissecar esse “fato” de qualquer comprome­ timento ideológico. Diz que o método sociológico (a) deve ser isento de qualquer filosofia; (b) deve ser objetivo, isto é, os fatos são coisas e como tal devem ser tratados; (c) os fatos sociais são exclusivamente sociológicos: a noção de especificidade da realidade social é de tal modo necessária ao sociólogo que só uma cultura especificamente socioló­ gica pode compreender os fatos sociais (1978, 159-161). As idéias de Durkheim sobre Representações Sociais são compartilhadas por uma série de estudiosos. Bohannam, em breve ensaio sobre a consciência coletiva e a cultura, nota que os termos "consciência" e “repre­ sentações coletivas", usados por Durkheim, recobrem o

mesmo campo que a idéia de cultura para os antropólogos culturais, tais como Sapir, Malinowski e Kroeber. Para Bohannam, “a consciência coletiva é o idioma cultural da ação social. (...) é a totalidade das representações coletivas de acordo com suas manifestações nas relações sociais" (1964,77-96). Também Mareei Mauss, abordando o mesmo tema, mostra que a sociedade se exprime simbolicamente em seus costumes e instituições através da linguagem, da arte, da ciência, da religião, assim como através das regras familiares, das relações econômicas e políticas. Portanto, para ele, é objeto das ciências sociais tanto a coisa, o fato, como a sua representação. O autor, no entanto, chama atenção para esses dois níveis considerando o risco de se reduzir a realidade à concepção que os homens fazem dela (1979, 8-53). Essa visão de objetividade extrema e positivista das representações sociais, por parte de Durkheim e de muitos seguidores de seu pensamento, tem sido duramente criti­ cada por várias correntes no interior das ciências sociais. Para os adeptos da Sociologia Compreensiva e da Aborda­ gem Fenomenológica, o aspecto mais criticado da teoria se refere ao poder de coerção atribuído à sociedade sobre os indivíduos, de maneira quase absoluta. Para os marxis­ tas, a visão durkheimiana elimina o pluralismo fundamental da realidade social, em particular as lutas e antagonismos de classe. A Sociologia Compreensiva, representada por Max Weber, e a Fenomenologia, traduzida por Schutz para o campo das Ciências Sociais, têm uma forma muito parti­ cular de abordar o tema das Representações. Max Weber elabora suas concepções do campo das Representações Sociais através de termos como “idéias", “espírito” , “concepções", “mentalidade", usados muitas vezes como sinônimos, e trabalha de forma particular a noção de "visão de mundo” . Para ele, a vida social - que

consiste na conduta cotidiana dos indivíduos - é carregada de significação cultural. Essa significação é dada tanto pela base material como pelas idéias, dentro de uma relação adequada, em que ambas se condicionam mutuamente. Segundo Weber, as idéias (ou representações sociais) são juízos de valor que os indivíduos dotados de vontade possuem. Portanto, as concepções sobre o real têm uma dinâmica própria e podem apresentar tanta importância quanto a base material. Com estes termos, base material e eficácia das idéias em relação de afinidade eletiva (Weber, 1974, 81), ele analisa a história do avanço do capitalismo no mundo ocidental. De um lado, afirma que o capitalismo “educa” e "cria” seus sujeitos pela seleção econômica. De outro, demonstra que as idéias de trabalho como virtude máxima e vocação do homem, prosperidade como bênção divina, lucro como fator legítimo das relações econômicas, contribuíram para fazer avançar o capitalismo, tanto quan­ to ou mais do que a "acumulação primitiva": “Com referência à doutrina do mais ingênuo materialismo histórico, de que as idéias se originam como "um reflexo" ou como "superestruturas" de situações econômicas, so­ mente podemos opinar mais detalhadamente, neste caso (da ética protestante em relação ao avanço do capitalismo), que a relação causai é a inversa da sugerida pelo ponto de vista materialista" (Weber: 1985, 35). A partir da tese da recíproca influência entre os funda­ mentos materiais, as formas de organização político-social e o conteúdo das idéias, Weber teoriza sobre certa autono­ mia do mundo das representações e a possibilidade con­ creta de se estudar a eficácia histórica das idéias. No entanto, ao afirmar essa “certa autonomia", ele não des­ carta a possibilidade empírica de que em determinados momentos o econômico seja o fator dominante e que outros fatores influam inclusive na formação das idéias. Assim, durante a Primeira Grande Guerra, Weber fez a seguinte declaração:

"Não são as idéias, mas os interesses materiais e ideais que governam diretamente a conduta do homem. Muito freqüen­ temente, porém, as "imagens mundiais" que foram criadas pelas “idéias" determinaram como manobreiros, as linhas ao longo das quais a ação foi impulsionada pela dinâmica dos interesses" (1974, 83). Seu pensamento, na verdade, tenta complexificar a teoria que considera "mecânica” da determinação da base material sobre as representações sociais. Alerta para a necessidade de se conhecer, em cada caso, quais os fatores que contribuem para configurar determinado fato ou ação social, como vem resumido na conclusão de A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo: “Aqui se tratou do fato e da direção em apenas um, se bem que importante ponto de seus motivos. Seria importante investigar mais adiante a maneira pela qual a ascese protes­ tante foi por sua vez influenciada em seu desenvolvimento e caráter pela totalidade das condições sociais, especial­ mente pelas econômicas. Isto porque, se bem que o homem moderno seja incapaz de avaliar o significado de quanto as idéias religiosas influenciaram a cultura e os caracteres nacionais, não se pode pensar em substituir uma interpre­ tação materialística unilateral por uma igualmente bitolada interpretação causai da cultura e da história" (Weber: 1985, 132). Assim Weber chama atenção, de um lado, para a importância de se pesquisar as idéias como parte da realidade social e, de outro, para a necessidade de se compreender a que instâncias do social determinado fato deve sua maior dependência. Porém, a base de seu racio­ cínio é de que, em qualquer caso, a ação humana é significativa, e assim deve ser investigada. Usando o conceito de “Visão de Mundo” , ele desen­ volve o raciocínio de que cada sociedade para se manter necessita ter “concepções de mundo” abrangentes e uni­ tárias e que, em geral, são elaboradas pelos grupos domi­ nantes. Por exemplo, cita ele que

“o enriquecimento como fim obrigatório do homem para a glória de Deus contradiz ao sentido ético de épocas históri­ cas inteiras e anteriores à atual" (1985: 72). Essas concepções abrangentes (o modo de encarar o tempo, o espaço, o trabalho, a divisão do trabalho, a riqueza, o sexo, os papéis sociais etc.) perpassam todos os grupos de determinada sociedade. Em síntese, Weber, junto com Durkheim, nos remete à importância de compreensão das idéias e de sua eficácia na configuração da sociedade apelando ao estudo empírico do desenvolvimento histórico. Por outro lado, não contradiz a possibilidade também histórica de conjunturas sócioeconômicas forçarem concepções e atitudes específicas. Por isso, a forma com a qual pensa as idéias é de relação de adequação com a estrutura sócio-econômica e política. Sem querer reduzir a sociologia compreensiva à feno­ menológica, e vice-versa, podemos considerar que essas duas correntes têm muita semelhança quando trabalham a questão das Representações Sociais. Enquanto da pri­ meira o autor clássico seria Max Weber, as idéias da fenomenologia aplicadas às Ciências Sociais são elabora­ das teoricamente, em particular, por Alfred Schutz. Sua contribuição é bastante significativa, especialmente para a operacionalização da pesquisa social qualitativa e é deste ponto de vista que o abordamos (Schutz: 1982). Schutz usa o termo “senso comum" para falar das representações sociais do cotidiano. Para este autor, da mesma forma que o conhecimento científico, o senso comum envolve conjuntos de abstrações, formalizações e generalizações. Esses conjuntos são construídos, são fatos interpretados, a partir do mundo do dia-a-dia. Portanto, a existência cotidiana, segundo Schutz, é dotada de signifi­ cados e portadora de estruturas de relevância para os grupos sociais que vivem, pensam e agem em determinado contexto social. Esses significados, que podem ser objeto de estudo dos cientistas sociais -, são selecionados através

de construções mentais, de "representações” do "senso comum” (Schutz, 1973). A própria ciência, para Schutz, é uma representação da realidade, denominada por ele “constructo” de segunda ordem. Schutz tem como preocupação teórica o mundo do dia-a-dia. Isto é, ele busca compreender os pressupostos das estruturas significativas da cotidianeidade. Para ele, a compreensão do mundo se dá a partir de um estoque de experiências pessoais e de outros, isto é, de companheiros, predecessores, contemporâneos, consorciados e sucesso­ res. O autor separa os termos experiência e conhecimento. A primeira pode ser comum a um grande número de pessoas ao mesmo tempo. O segundo é individual: consiste na elaboração interior, subjetiva e intersubjetiva da expe­ riência vivida e funciona como esquema de referência para o sujeito. Assim, o mundo do dia-a-dia é entendido como um tecido de significados, instituído pelas ações humanas e passível de ser captado e interpretado. O teorema clás­ sico de W.J. Thomas, segundo o qual “se os homens definem situações como reais, elas são reais em suas conseqüências" (1970, 196), resume o pensamento fenomenológico, explicado pelo próprio autor: “Os homens respondem não apenas aos aspectos físicos de uma situação, mas também e por vezes primariamente, ao sentido qoe esta situação tem para eles. Uma vez que eles atribuem algum sentido à situação, o seu comportamento subseqüente e algumas das conseqüências deste compor­ tamento são determinadas por este sentido anteriormente atribuído" (Thomas: 1970, 197). Na verdade, a reflexão de Thomas confere ao sentido atribuído à ação pelo sujeito o mesmo nível de coerção que Durkheim confere às representações sociais que emanam do coletivo. O número e a natureza das experiências de qualquer ator social, para Schutz, dependem de sua história de vida, ou melhor, de sua “situação biográfica". Portanto, cada ator social tem um conhecimento de sua experiência e atribui

relevância a determinados temas, aspectos ou situações, de acordo com sua própria história anterior. Daí que, para Schutz, o senso comum é de fundamental importância, porque, através dele, o ator social faz sua própria definição de situação. Isto é, não só age como atribui significados portadores de relevâncias à sua ação, de acordo com sua história de vida, seu estoque de conhecimentos dado pela experiência de interação com os que o cercam. O estoque de conhecimentos se forma através de tipificações do mundo do senso comum. Isso permite a identificação de grupos, a estruturação comum de relevâncias e possibili­ dade de compreensão de um modo de vida específico de determinado grupo social. Sem entrar no mérito das bases filosóficas da análise fenomenológica, é importante destacar a contribuição de Schutz para a abordagem do social. Os conceitos que o autor trabalha são acima de tudo operacionais e propiciam uma aproximação com os atores sociais no trabalho de campo, portadores de uma história pessoal e com signifi­ cado também grupai. Uma terceira corrente na interpretação do papel das representações sociais surge da dialética marxista. Se na totalidade de seus escritos Marx fala da relação entre as idéias e a base material, podemos considerar "A IDEOLO­ GIA ALÉM" como uma explanação clássica do tema das REPRESENTAÇÕES SOCIAIS. Neste texto o autor discute, de acordo com seu ponto de vista, o que chama a "ideologia alemã” . Mostra que os filósofos de seu tempo considera­ vam “as quimeras, as idéias, os dogmas, as ilusões" como produzidos e reproduzidos pela própria cabeça, isto é, pela consciência. Para esses filósofos, as mudanças da socieda­ de adviriam da substituição das "falsas representações" por pensamentos correspondentes à essência do homem. Insurge-se contra o que ele denomina "fantasias ino­ centes e pueris da filosofia alemã Neo-Hegeliana" e, a partir da crítica, elabora e discute sua teoria sobre as Repre­ sentações Sociais. Coloca como princípio básico do "pen.-

sarnento” e da "consciência" determinado modo de vida dos indivíduos, condicionado pelo modo de produção de sua vida material: “Indivíduos determinados que, como produtores, atuam também de forma determinada, estabelecem entre si relações sociais e políticas determinadas". Portanto, "a produção das idéias, das representações, da consciência está, de início, diretamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material entre os homens, como a linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens aparece aqui como a emanação direta de seu comportamento material"."(...) Os homens são produtores de suas representações, de suas idéias etc., mas os homens reais, ativos, tal como se acham condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele corres­ ponde" (1984, 35-44). A categoria chave, em Marx, para tratar do campo das idéias, é a CONSCIÊNCIA. Para ele, as representações, as idéias e os pensamentos são o conteúdo da consciência que, por sua vez, é determinada pela base material: "Não é a consciência que determina a vida, mas é a vida que determina a consciência. (...) A consciência é desde o início um produto social: ela é mera consciência do meio sensível mais próximo, é a conexão limitada com outras pessoas e coisas fora do indivíduo. (...) A consciência jamais pode ser outra coisa que o homem consciente e o ser dos homens é o seu processo de vida real" (1984, 43-45). No entanto, apesar de defender, em todos os seus escritos, a anterioridade da vida material sobre as idéias, ele vê esses dois elementos numa relação dialética: “as circunstâncias fazem os homens, mas os homens fazem as circunstâncias" (1984, 45). Neste sentido, ele relativiza o determinismo mecânico da base material sobre a consciên­ cia e chama atenção para as contradições existentes entre as forças de produção, o estado social e as idéias (1984, 73).

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Para Marx, a manifestação da consciência se faz atra­ vés da linguagem: "Ela nasce da carência, da necessidade de intercâmbio com os outros homens: a linguagem é a consciência real, prática, que existe para os outros homens e existe também para mim mesmo" (1984, 43). Faz um paralelo entre consciência e linguagem, entre as representações e o real invertido, e mostra como as idéias estão comprometidas com as condições de classe: “As idéias de classe dominante são, em cada época, as idéias dominantes; isto é, a classe que é a força material dominante da nossa sociedade, é ao mesmo tempo sua força espiritual dominante. Daí que “as idéias daqueles aos quais faltam os meios de produção material estão submetidas às classes dominantes. As idéias dominantes nada mais são do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, colocadas como idéias gerais, comuns e universais de todos os membros da sociedade" (1984, 47). A partir de Marx, dois outros autores marxistas, Gramsci e Lukács, têm trabalhado mais detidamente o campo das representações sociais. Gramsci aborda o tema de forma muito específica quando trata do SENSO COMUM e do BOM SENSO. Em seus escritos, o autor está mais preocupado com a questão pedagógica da construção da hegemonia do que com a pesquisa social, mas assim mesmo sua formulação é esclarecedora no campo que nos concerne, porque avança a teoria marxista sobre o mundo das idéias. O autor comenta que nos seus “Escritos" Marx se preocupou com o senso comum e com a solidez das crenças das massas, mas não para se referir ao seu valor potencial de mudança. Pelo contrário, queria chamar a atenção para a solidez dessas crenças, particularmente da religião, capazes de produzir normas de conduta e de conformismo (1981: 63 e 148). A partir dos "Escritos” de Marx sobre as crenças das massas, Gramsci defende-o de

afirmar o “determinismo econômico da base material sobre as idéias” e desenvolve o conceito de bloco histórico no qual emite sua própria teoria sobre as relações entre ambas (base material e idéias): "As forças materiais são o conteúdo e as ideologias são a forma sendo que esta distinção entre conteúdo e forma é puramente didática, já que as forças materiais não seriam historicamente concebíveis sem forma e as ideologias seriam fantasias individuais sem as forças materiais" (1981, 63). Para o autor, o senso comum enquanto matéria-prima ou como “representação social" tem um potencial trans­ formador. Mesmo como pensamento fragmentário e con­ traditório, o senso comum deve ser recuperado critica­ mente, uma vez que ele corresponde espontaneamente às condições reais de vida da população. Por isso, combate o preconceito racionalista contra o senso comum em várias partes de sua obra. Primeiramente, afirma que todos nós somos presa de algum: “Pela própria concepção de mundo, pertencemos sempre a um determinado grupo, precisamente ao de todos os ele­ mentos sociais que partilham de um mesmo modo de pensar e agir. Somos conformistas de algum conformismo, somos sempre homens-massa ou homens coletivos" (1981, 12). Dentro de uma preocupação mais voltada para o cam­ po político, a descrição que Gramsci faz da consciência desse “homem-massa” , que todos somos de algum modo, põe a nu, de um lado, os elementos de incoerência e conservadorismo que a povoam, mas, de outro lado, as possibilidades e sinais de mudanças: "Nossa própria personalidade é composta de uma maneira bizarra: nela se encontram elementos dos homens da caver­ na e princípios da ciência mais moderna e progressista; preconceitos de todas as fases históricas passadas, grossei­ ramente localistas e instituições de uma futura filosofia que será própria do gênero humano mundialmente unificado” (1981, 12).

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Portanto, ao mesmo tempo em que o autor aponta os elementos ilusórios, valoriza e busca compreender qual a importância do senso comum no trabalho pedagógico de construção da contra-hegemonia: "O subalterno é apenas simples “paciente", simples coisa, simples irresponsabilidade? Não, por certo. Em que reside exatamente o valor do que se costuma chamar senso comum ou bom senso? Não apenas no fato de que, mesmo implici­ tamente, o senso comum empregue o princípio da causali­ dade, mas no fato muito mais limitado de que, em uma série de juízos, o senso comum identifique a causa exata, simples, imediata, não se deixando desviar por fantasmagorias e obscuridades metafísicas, pseudometafísicas e pseudo-profundas" (1981, 35). Podemos resumir a contribuição de Gramsci sobre as Representações Sociais em três aspectos importantes: (a) primeiramente, chama atenção para os aspectos de con­ formismo de que elas são reveladoras e para o caráter de abrangência desse conformismo de acordo com os diferen­ tes grupos sociais. Isto é, retira a idéia de que o “senso comum” seja inerente à ignorância das massas, mostrando como cada grupo social tem seu próprio conformismo e ilusão: (b) em segundo lugar, alerta para os aspectos dinâmicos geradores de mudança que coexistem com o conservadorismo no senso comum; (c) em terceiro lugar, analisa a composição mais abrangente das diferentes con­ cepções de mundo - das representações sociais - de qualquer grupo social e de determinada época histórica: “A concepção de mundo de uma época não é a filosofia deste ou daquele filósofo, deste ou daquele grupo de inte­ lectuais, desta ou daquela grande parcela das massas po­ pulares: é uma combinação de todos estes elementos, culminando em uma determinada direção, na qual sua culminação torna-se norma de ação coletiva, isto é, torna-se história completa e concreta’’ (1981, 32). Essa última afirmação de Gramsci nos remete à com­ preensão das Representações Sociais, para efeito de análi­

se, como uma combinação específica de idéias que po­ voam o universo de determinada época e que contêm elementos de tradição e de mudança. Lukács aprofunda o tema das Representações, em Marx, através da noção de "visão de mundo” . Segundo ele, a visão de mundo não é um dado empírico, mas de um instrumento conceituai de trabalho, indispensável para se compreender as expressões imediatas do pensamento dos indivíduos. Sua importância e realidade também se mani­ festam no plano empírico. Ela é o principal aspecto con­ creto do fenômeno da “consciência coletiva” . Segundo Lukács, a “visão de mundo" é precisamente esse conjunto de aspirações, de sentimentos e de idéias que reúne os membros de um grupo (mais freqüentemente, de uma classe social) e as opõem aos outros grupos (1974, 60s). Referendando o princípio da determinação da base material sobre as idéias, Lukács nos diz que as classes sociais são ligadas por um fundamento econômico que tem importância primordial para a vida ideológica dos homens, simplesmente porque os homens são obrigados a dedicar a maior parte de suas preocupações e de suas atividades a garantir sua existência, e quando se trata das classes dominantes, à conservação de seus privilégios e à gerência e aumento de sua fortuna. Como os diferentes autores já referidos, Lukács con­ corda que nas consciências individuais se expressa a consciência coletiva (de classe). E chama atenção para o fato de que o fundamento científico do conceito de “visão de mundo” , apreendido através do indivíduo, é a integra­ ção desse pensamento individual no conjunto da vida social, notadamente, pela análise da função histórica das classes sociais (1974, 66-85).

Comparação e contrastes entre os autores clássicos Bourdieu e Bakhtin referem-se ao campo das repre­ sentações sociais através da valorização da fala como expressão das condições da existência. Para o primeiro autor, a palavra é o símbolo de comunicação por excelência porque ela representa o pensamento. A fala, por isso mesmo, revela condições estruturais, sistemas de valores, normas e símbolos e tem a magia de transmitir, através de um porta-voz, as representações de grupos determinados, em condições históricas, sócio-econômicas e culturais específicas (Bourdieu, 1973). Nisso Bourdieu concorda com Bakhtin, que considera a palavra como o fenômeno ideológico por excelência: "A palavra é o modo mais puro e sensível de relação social". E continua: “Existe uma parte muito importante da comunicação ideo­ lógica que não pode ser vinculada a uma esfera ideológica particular: trata-se da comunicação da vida cotidiana. O material privilegiado de comunicação na vida cotidiana é a palavra" (1986: 36s). Esse mesmo autor define o caráter histórico e social da fala como um campo de expressão das relações e das lutas sociais que, ao mesmo tempo, sofre os efeitos da luta e serve de instrumento e de material para a sua comuni­ cação. Cada época e cada grupo social têm seu repertório de formas de discurso na comunicação, que é inteiramente determinada pelas relações de produção e pela estrutura sócio-política (1986, 64). “A palavra é a arena” , diz ele, "onde se confrontam os valores sociais contraditórios” (1986, 14). Através da comunicação verbal - que é insepa­ rável de outras formas de comunicação - as pessoas "refletem e refratam” conflitos e contradições próprios do sistema de dominação, onde a resistência está dialeticamente relacionada com a submissão.

Segundo Bourdieu, a identidade de condições de exis­ tência tende a reproduzir sistemas de disposições seme­ lhantes, através de uma harmonização objetiva de práticas e obras: "Todos os membros do mesmo grupo ou da mesma classe são produtos de condições objetivas idênticas. Daí a possi­ bilidade de se exercer, na análise da prática social, o efeito de universalização e de particularízação, na medida em que eles se homogeneizam, distinguindo-se dos outros" (1973, 180). Teorizando sobre a prática da pesquisa de campo, afirma que as condutas ordinárias da vida se prestam a uma decifração, ainda que pareçam automáticas e impes­ soais. Elas são significantes, mesmo sem intenção de significar, e exprimem uma realidade objetiva que “exige apenas a reativação da intenção vivida daqueles que as cumprem” (1973, 181). Insiste Bourdieu sobre a objetivida­ de das representações: “Cada agente, ainda que não saiba ou que não queira, é produtor e reprodutor do sentido objetivo, porque suas ações são o produto de um modo de agir do qual ele não é o produtor imediato, nem tem o domínio completo” (1973, 182). As idéias de Bourdieu fundamentam o esquema teórico do que denomina “habitus” , isto é: "Um sistema de disposições duráveis e transferíveis que integram todas as experiências passadas e funciona a todo momento como matriz de preocupações, apreciações e ações. O "habitus" torna possível o cumprimento de tarefas infinitamente diferenciais, graças às transferências analógi­ cas de esquemas que permitem resolver os problemas, da mesma forma, graças às correções incessantes dos resulta­ dos obtidos e dialeticamente produzidos por estes resulta­ dos" (Bourdieu: 1973, 178s). O autor compara o “habitus” com o inconsciente, tentando ressaltar o caráter social das representações:

"O inconsciente da história, que a história produz, incorpora as estruturas objetivas nesta quase natureza que é o 'habitus’" (1973, 179). Interpretando o autor, dir-se-ia que o “habitus” é como uma lei “imanente” depositada em cada ator social, desde a primeira infância, a partir de seu lugar na estrutura social. São marcas das posições e situações de classe. Segundo Bourdieu, o ‘‘habitus” é a mediação universalizante que proporciona às práticas sem razões explícitas e sem inten­ ção significante, de um agente singular, seu sentido, sua razão e sua organicidade. Portanto: “As relações interpessoais numa pesquisa nunca são apenas relações de indivíduos e a verdade da interação não reside inteiramente na interação (...) É a posição presente e passa­ da na estrutura social que os indivíduos trazem consigo em forma de ‘habitus’ em todo tempo e lugar, que marca a relação” (1973, 184). Essa possibilidade existe na medida em que o compor­ tamento social e o individual obedecem a modelos culturais interiorizados, ainda que de forma conflitante. Goldmamn nos lembra que a consciência coletiva (de classe) só existe nas consciências individuais, embora não seja a soma delas (1967, 18), e Lukács concorda que nas consciências indi­ viduais se expressa a consciência coletiva, pois o pensa­ mento individual se integra no conjunto da vida social pela análise da função histórica das classes sociais (1974, 66). Em resumo, a Escola Marxista coloca como denomi­ nador comum da ideologia, das idéias, dos pensamentos, da consciência, portanto, das representações sociais, a base material. Mas introduz na sua análise outro elemento importante que é a condição da classe: enquanto a classe dominante tem suas idéias elaboradas em sistemas ideologia, moral, filosofia, metafísica e religião - as classes dominadas também possuem idéias e representações que refletem seus interesses, mas numa condição de subordi­ nação. São idéias marcadas pelas contradições entre seu lugar na produção e sua condição social. Isto é, enquanto

lhe cabe o trabalho, não lhe sobra muito a fruição dele; enquanto lhe é atribuída a tarefa da produção, lhe é proporcionado um consumo escasso e precário. Para Marx, as representações estão vinculadas à prá­ tica social. Junto com Durkheim, ele mostra a anterioridade da vida social em relação às representações. Mas, enquan­ to para Durkheim a sociedade é a “síntese das consciên­ cias", para Marx a consciência emana das relações sociais contraditórias entre as classes e pode ser captada empiricamente como produto da base material, nos “indivíduos determinados, sob condições determinadas". O próprio Durkheim faz questão de marcar essa diferença quando diz a respeito da religião: "Preciso guardar-me de ver na Teoria das Representações um simples rejuvenescimento do materialismo histórico. Não pretendemos dizer, mostrando na religião uma coisa essencialmente social, que ela se limita a traduzir, em outra linguagem, as formas materiais da sociedade e suas neces­ sidades imediatas e vitais. A consciência coletiva é outra coisa que um simples epifenômeno da sua base morfológica. Ela é uma síntese sui generis das consciências particulares. Esta síntese tem por efeito produzir todo um mundo de sentimentos, de idéias, de imagens, que uma vez nascidos obedecem às leis que lhes são próprias. Atraem-se e se repelem, segmentam-se sem que todas estas combinações sejam diretamente comandadas pelo estado da realidade subjacente" (1983, 27). Em relação a Weber, Marx se aproxima quando diz que “a nova classe dominante é obrigada para alcançar os fins a que se propõe, a apresentar seus interesses como sendo interesses comuns de todos os membros da sociedade. É obrigada a emprestar a suas idéias a forma de universalidade e apresentá-las como sendo as únicas racionais, as únicas universalmente válidas" (1984, 74). Weber, como já se viu, fala da necessidade de concep­ ções de mundo abrangentes para que determinada socie­ dade se mantenha. Embora seus pensamentos coincidam

em termos gerais, eles se separam pelo recorte de classe que Marx lhe dá, em contraposição ao termo geral e inespecífico de "sociedade" usado por Weber. Com relação aos status das Representações Sociais no conjunto das relações, Durkheim estabelece que a vida social causa as idéias; para Weber existe uma relação de adequação entre idéias e base material; e Marx coloca a base material em relação de determinação. Pensando em termos de construção do conhecimento, todos os três clássicos concordam com a importância de se compreender as representações sociais. Para Marx, se estas representações estão coladas ao real, o estudo e a análise das representações são um dado sobre o real, isto é, também informam sobre a base material na qual se move determinado grupo social. Durkheim, reafirmando a impor­ tância das representações, diz que o pensamento coletivo deve ser estudado tanto na sua forma como no seu con­ teúdo, por si e em si mesmo, na sua especificidade, pois uma representação social, por ser coletiva, já apresenta garantias de objetividade. Portanto, por mais estranhas que possam parecer, elas contêm verdades que é preciso descobrir. Para Weber, as representações e idéias têm uma dinâmica própria e podem ter tanta importância quanto a base material. Para o conjunto dos autores é no plano individual que as representações sociais se expressam. Marx fala na Ideologia Alemã de sujeitos históricos, ou de "indivíduos determinados", como portadores de uma forma determina­ da de relações sociais, políticas e econômicas. Durkheim chama atenção para o fato de que as idéias coletivas tendem a se individualizar nos sujeitos, tornando-se para eles uma fonte autônoma de ação. E Weber nos diz que o indivíduo, enquanto portador de cultura e de valores so­ cialmente dados, é a “constelação singular" que informa sobre a ação social de seu grupo, tendo-se em conta que o limite de suas informações são seus valores, da mesma forma que os limites do conhecimento científico do pes­ quisador são seus próprios valores.

Ao terminar essa reflexão é preciso notar que em muitos pontos esses autores coincidem, mas a sua diver­ gência é fundamental. Enquanto para Durkheim as repre­ sentações sociais exercem coerção sobre os indivíduos e a sociedade, para Weber os indivíduos é que são portadores de valores e de cultura que informam a ação social dos grupos. Marx admite com Durkheim que os valores e crenças exerçam um papel coercitivo sobre "as massas", mas insiste no caráter de classe das representações e no papel da luta de classe que se dá no modo de produção e determina o campo ideológico no qual se embatem domi­ nadores e dominados. Se para Durkheim a coerção das representações é de tal monta que a sociedade é a "síntese das consciências", Marx admite o papel liberador da cons­ ciência de classe como motor da mudança no interior das contradições que atravessam a sociedade capitalista.

Conclusões A partir dos vários autores colocados acima, podemos dizer que as Representações Sociais, enquanto imagens construídas sobre o real, são um material importante para a pesquisa no interior das Ciências Sociais. As Representações Sociais se manifestam em palavras, sentimentos e condutas e se institucionalizam, portanto, podem e devem ser analisadas a partir da compreensão das estruturas e dos comportamentos sociais. Sua mediação privilegiada, porém, é a linguagem, tomada como forma de conhecimento e de interação social. Mesmo sabendo que ela traduz um pensamento fragmentário e se limita a certos aspectos da experiência existencial, freqüentemente con­ traditória, possui graus diversos de claridade e de nitidez em relação à realidade. Fruto da vivência das contradições que permeiam o dia-a-dia dos grupos sociais e sua expres­ são marca o entendimento deles com seus pares, seus contrários e com as instituições. Na verdade, a realidade vivida é também representada e através dela os atores

sociais se movem, constroem sua vida e explicam-na mediante seu estoque de conhecimentos. Mas, além disso, as Representações Sociais possuem núcleos positivos de transformação e de resistência na forma de conceber a realidade. Portanto, devem ser analisadas criticamente, uma vez que correspondem às situações reais de vida. Neste sentido, a visão de mundo dos diferentes grupos expressa as contradições e conflitos presentes nas condi­ ções em que foram engendradas. Portanto, tanto o "senso comum" como o “bom senso” , para usar as expressões gramscianas, são sistemas de representações sociais em­ píricos e observáveis, capazes de revelar a natureza con­ traditória da organização em que os atores sociais estão inseridos. Algumas Representações Sociais são mais abrangen­ tes em termos da sociedade como um todo e revelam a visão de mundo de determinada época. São as concepções das classes dominantes dentro da história de uma socie­ dade. Mas essas mesmas idéias abrangentes possuem elementos de passado na sua conformação e projetam o futuro em termos de reprodução da dominação. As Representações Sociais não são necessariamente conscientes. Podem até ser elaboradas por ideólogos e filósofos de uma época, mas perpassam o conjunto da sociedade ou de determinado grupo social, como algo anterior e habitual, que se reproduz a partir das estruturas e das próprias categorias de pensamento do coletivo ou dos grupos. Por isso, embora essas categorias apareçam como elaboradas teoricamente por algum filósofo, elas são uma mistura das idéias das elites, das grandes massas e também das filosofias correntes, e expressão das contradi­ ções vividas no plano das relações sociais de produção. Por isso mesmo, nelas estão presentes elementos tanto da dominação como da resistência, tanto das cpntradições e conflitos como do conformismo. Ainda que algumas formas de pensar a sociedade sejam abrangentes como um cimento que mantém as suas

estruturas de dominação, cada grupo social faz da visão abrangente uma representação particular, de acordo com a sua posição no conjunto da sociedade. Essa repre­ sentação é portadora também dos interesses específicos desses grupos e classes sociais. Por serem ao mesmo tempo ilusórias, contraditórias e “verdadeiras", as representações podem ser consideradas matéria-prima para a análise do social e também para a ação pedagógico-política de transformação, pois retratam e refratam a realidade segundo determinado segmento da sociedade. Porém, é importante observar que as Repre­ sentações Sociais não conformam a realidade e seria outra ilusão tomá-las como verdades científicas, reduzindo a realidade à concepção que os homens fazem dela. Para terminar, vale reforçar que a mediação privilegiada para a compreensão das representações sociais é a linguagem. Segundo Bakhtin, “a palavra é o fenômeno ideológico por excelência. A palavra é o modo mais puro e sensível de relação social” (1986, 36). Particularmente quando se trata da comunicação da vida cotidiana, a palavra é fundamen­ tal. Elas (as palavras) são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama para as relações sociais em todos os domínios. Bakhtin chama a nossa atenção para o fato de que cada época e cada grupo social têm seu repertório de formas de discurso, determinadas pelas relações de produção e pela estrutura sócio-política. Portanto, a palavra é a arena onde se confrontam interesses contraditórios, veiculando e sofrendo os efeitos das lutas das classes, servindo ao mesmo tempo como instrumento e como material (Bakhtin, 1986, 37). Pela sua vinculação dialética com a realidade, a compreensão da fala exige ao mesmo tempo a compreensão das relações sociais que ela expressa. Porque as palavras não são a realidade, mas uma fresta iluminada: representam!

Bibliografia BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1986. BOHANNAN, P.J. “Conscience Collective et Culture" in Essays in Sociology and Philosophy. N.Y.: Harper and Row, 1964 (77-96). BOURDIEU, P. Squisse d'une Théoríe de la Pratique. Paris: Librairie Droz, 1972. DURKHEIM, E. “As Regras do Método Sociológico”. Pensadores. São Paulo: Abril, 1978 (71-156). GOLDMANN, L. Ciências Humanas e Filosofia. São Paulo: Difel, 1980 (6a ed.). GRAMSCI, A. Concepção Dialética da História. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981 (4a ed.). LUKÁCS, G. Existencialismo ou Marxismo? São Paulo: Senzala, 1967. MARX, K. & ENGELS, F. Ideologia Alemã. São Paulo: Hucitec, 1984. MAUSS, M. Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU/EDUSP, 1974,1e II vol. SCHUTZ, A. Collected Papers I “Commonsense and Scientific Interpretations of Humam Action”. Hague: Martinus Nijhoff 2a ed., 1982. THOMAS, W.I. “The Definition of the Situation” in Social Theory. N.Y.: McMillan Company, 1970, 3a ed. WEBER, Max. A Objetividade do Conhecimento nas Ciências e na Política Social. Lisboa: Lisboa Ltda., 1974. — . A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1985.

Cl

DIMENSÕES METODOLÓGICAS DA TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

MARY JANE SPINK

4. DESVENDANDO AS TEORIAS IMPLÍCITAS: UMA METODOLOGIA DE ANÁLISE DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

Mary Jane Spink O objetivo deste capítulo é introduzir o leitor a um método de análise das representações sociais que vem sendo utilizado por nós (Spink, 1993a; 1993b, 1993c, Spink et al. 1993), discutindo seu embasamento epistemológico e teórico assim como os aspectos técnicos do procedimen­ to de análise dos dados. Esta forma de análise insere-se na tradição hermenêutica de pesquisa e foi desenvolvida em íntima associação com os objetivos teóricos dos estudos em pauta sendo norteada por pressupostos epistemológicos construtivistas. Dito de outra forma, teoria, epistemo­ logia e metodologia formam aqui um círculo contínuo e influenciam-se mutuamente, gerando um processo perma­ nente de reflexão. Na impossibilidade de reproduzir em forma de texto a processualidade implícita nesta metáfora do círculo, e considerando que o motor que impulsionou a elaboração deste método foram as reflexões geradas na interface entre teoria e observação empírica do cotidiano, optamos por iniciar esta apresentação marcando a nossa postura quanto à natureza das representações sociais e suas implicações para a pesquisa. Segundo Jodelet (1989a), o campo de estudo das representações sociais, ilustrado de maneira simplificada na fig. 1, reúne dois debates importantes. No primeiro debate, as representações emergem como uma modalida­

de de conhecimento prático orientado para a compreensão do mundo e para a comunicação; no segundo debate, emergem como construções com caráter expressivo, ela­ borações de sujeitos sociais sobre objetos socialmente valorizados. As representações sociais, enquanto formas de conhecimento, são estruturas cognitivo-afetivas e, des­ ta monta, não podem ser reduzidas apenas ao seu conteú­ do cognitivo. Precisam ser entendidas, assim, a partir do contexto que as engendram e a partir de sua funcionalidade nas interações sociais do cotidiano. Tal posicionamento implica na elucidação de dois aspectos que lhe são cen­ trais: a teoria de conhecimento que lhe é subjacente e os determinantes de sua elaboração.

FIGURA 1: O CAMPO DE ESTUDOS DA REPRESENTAÇÃO SOCIAL

;U ín n a _ d cjM n h e cim £ n ^

construção

interpretação^

A _________ X |__represõn^ç^T^] expressão

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i

* _____

,

simbolização x

p ra tic o

Adaptado de Jodelet, 1989

As representações sociais enquanto formas de conhecimento As representações sociais, sendo formas de conheci­ mento prático, inserem-se mais especificamente entre as correntes que estudam o conhecimento do senso comum. Tal privilegiamento pressupõe uma ruptura com as verten­ tes clássicas das teorias do conhecimento anunciando importantes mudanças no posicionamento quanto ao es­ tatuto da objetividade e da busca da verdade. Trata-se, ao nosso ver, de inserir o estudo das representações sociais

entre os esforços de deconstrução da retórica da verdade (Ibanez, 1991), componente intrínseco da Revolução Cien­ tífica que inaugura a modernidade nas sociedades oci­ dentais. Esta contestação pode ser vista, numa perspectiva histórica, como um movimento em três tempos. Num primeiro momento, é hegemônica a epistemologia clássica, pautada pelos estudos sobre a ideologia e marcada pela preocupação com a possibilidade mesma do conhecimento e da apreensão da realidade. Num segundo momento, datado pelo surgimento da sociologia do conhecimento inaugurada por Scheler, nos anos vinte, e elevada ao estatuto de disciplina por Mannheim, nos anos trinta - o conhecimento passa a ser relativizado pelas vias da história e do culturalismo. A ideologia, neste contexto, não pode mais ser vista como ilusão, mistificação ou falsa consciên­ cia; precisa ser vista como instrumento de dominação. Mas, a despeito do questionamento da neutralidade do conhecimento, permanece ainda, neste momento, a clivagem entre ciência-verdade e senso comum-ilusão; introduz-se sem dúvida a questão dos interesses e do poder; mas poder e interesses são abordados a partir da perspec­ tiva do conhecimento formalizado em disciplinas científicas. O terceiro movimento introduz uma nova perspectiva ampliando o conhecimento-objeto-de-estudo para além das fronteiras da ciência e passando a abarcar, também, o conhecimento do homem comum. Trata-se, portanto, de uma ampliação do olhar de modo a ver o senso comum como conhecimento legítimo e motor das transformações sociais. Esta mudança de perspectiva quanto ao papel disciplinador das teorias do conhecimento - legitimando, de um lado, o saber do senso comum e, de outro, questionando o selo de garantia epistemológica (Fuller, 1988) - teve um papel fundamental na elaboração do conceito de repre­ sentação social na p s ic o l o g i a s o c i a l . Teve, sobretudo, o efeito de liberar o poder de criação dos conhecimentos

práticos, ou das teorias do senso comum, tão freqüente­ mente aprisionadas nos chavões de reprodução ou de re-apresentações. Não se trata apenas, neste terceiro mo­ vimento das teorias do conhecimento, de reabilitar o senso comum como forma válida de conhecimento. Trata-se, sobretudo, de situá-lo enquanto teia de significados (Geerz, 1983) capaz de criar efetivamente a realidade social. Moscovici (1988) reconhece amplamente que ao enfa­ tizar o poder de criação das representações sociais, aca­ tando sua dupla face de estruturas estruturadas e estru­ turas estruturantes, inscreve sua abordagem entre as pers­ pectivas construtivistas. Inscreve-a, a bem dizer, no movi­ mento maior aqui denominado de deconstrução da Retó­ rica da Verdade. Aponta, inclusive, para a simultaneidade, ou até mesmo anterioridade, de sua obra "Representação Social da Psicanálise" (1961) e da obra de Berger e Luckmann (1966) que cunhou a perspectiva denominada de "construção social da realidade".

O processo de elaboração de representações sociais O segundo eixo da fig. 1 remete necessariamente à atividade do sujeito na elaboração das representações sociais. Entretanto, este sujeito é um sujeito social, o que, segundo Jodelet (1984: 36), "significa dizer, fora o caso em que tratamos da gênese das representações, um indivíduo adulto, inscrito numa situação social e cultural definida, tendo uma história pessoal e social. Não é um indivíduo isolado que é tomado em consideração mas sim as respos­ tas individuais enquanto manifestações de tendências do grupo de pertença ou de afiliação na qual os indivíduos participam” . É neste sentido que afirmamos que as repre­ sentações são estruturas estruturadas ou campos social­ mente estruturados. Entretanto, as representações são também uma ex­ pressão da realidade intra-individual; uma exteriorização

do afeto. São, neste sentido, estruturas estruturantes que revelam o poder de criação e de transformação da realidade social. Ainda nos apoiando em Jodelet (1989b: 41), as representações sociais devem ser estudadas “articulando elementos afetivos, mentais, sociais, integrando a cogni­ ção, a linguagem e a comunicação às relações sociais que afetam as representações sociais e à realidade material, social e ideativa sobre a qual elas intervém” . Dito de outra forma, é consenso entre os pesquisadores da área que as representações sociais, enquanto produtos sociais, têm sempre que ser remetidas às condições sociais que as engendraram, ou seja, o contexto de produção. Vale lembrar, entretanto, que, enquanto psicólogos sociais, o contexto só nos interessa porque sem ele não poderíamos compreender as construções que dele emanam e nesse processo o transformam. É a atividade de reinterpretação contínua que emerge do processo de elaboração das repre­ sentações no espaço da interação que é, ao nosso ver, o real objeto do estudo das representações sociais na pers­ pectiva psicossocial. Mas, a própria noção de contexto vem sendo problematizada (Spink 1993a, 1993b). Na vertente que vimos desenvolvendo a leitura do contexto social tem sido mar­ cada não apenas pelos fatores situacionais usualmente associados com o metassistema social - incluindo aí as determinações estruturais e as relações sociais - como também pelos diferentes tempos históricos que permeiam a construção dos significados sociais. Dito de outra forma, nesta vertente a elaboração das representações sociais, enquanto formas de conhecimento prático que orientam as ações no cotidiano, se dá na interface de duas forças monumentais. De um lado temos os conteúdos que circu­ lam em nossa sociedade e, de outro, temos as forças decorrentes do próprio processo de interação social e as pressões para definir uma dada situação de forma a con­ firmar e manter identidades coletivas. O contexto, neste sentido, é essencialmente "intertextuar. Ou seja, é a

justaposição de dois textos: o texto sócio-histórico que remete às construções sociais que alimentam nossa sub­ jetividade; e o texto - discurso, versões funcionais consti­ tuintes de nossas relações sociais. Considerando, ainda, que estes conteúdos que circu­ lam na sociedade podem ter sua origem tanto em produ­ ções culturais mais remotas, constituintes do imaginário social, quanto em produções locais e atuais, deduzimos que o contexto pode ser definido não apenas pelo espaço social em que a ação se desenrola como também a partir de uma perspectiva temporal. Três tempos marcam esta perspectiva temporal: o tempo curto da interação que tem por foco a funcionalidade das representações; o tempo vivido que abarca o processo de socialização - o território do habitus (Bourdieu, 1983), das disposições adquiridas em função da pertença a determinados grupos sociais; e o tempo longo, domínio das memórias coletivas onde estão depositados os conteúdos culturais cumulativos de nossa sociedade, ou seja, o imaginário social. Se tornamos mais complexo o enquadre das determi­ nações possíveis da elaboração das representações é por­ que só assim sentimos poder dar conta do paradoxo aparente na conceituação de representação social como estruturas estruturadas e estruturas estruturantes. Assim, quanto mais englobarmos em nossa análise o tempo longo - e, portanto, os conteúdos do imaginário social - mais nos aproximaremos das permanências que formam os núcleos mais estáveis das representações. No sentido oposto, quanto mais nos ativermos ao aqui-e-agora da interação, mais nos defrontaremos com a diversidade e a criação.

O estudo das representações sociais enquanto processo A coexistência de permanência e diversidade no cam­ po de estudo das representações sociais permite entender

melhor o papel da contradição na elaboração das repre­ sentações. Como aponta Geerz (1983), ao trabalharmos com o senso comum não cabe catalogar os conteúdos em busca do estável e consensual porque eles são essencial­ mente heterogêneos. Não cabe, também, buscar as estru­ turas lógicas subjacentes porque elas não existem. Ao aprofundarmos a análise do senso comum, deparamo-nos não apenas com a lógica e com a coerência, mas também com a contradição. Embora paradoxal, aceitar a diversidade implícita do senso comum não significa necessariamente abrir mão do consenso, pois algo comum sempre sustenta uma deter­ minada ordem social: pressupostos de natureza ideológica, epistémes historicamente localizadas ou até mesmo resso­ nâncias do imaginário social. Afinal, as representações sociais são elaboradas a partir de um campo socialmente estruturado e são frutos de um imprinting social. Mas, como aponta Morin (1983), há zonas fracas neste imprinting que permitem com que haja movimento, mudança, aber­ tura à novidade. A diversidade e contradição remetem ao estudo das representações sociais como processo, entendido aqui não como processamento de informação mas como práxis\ ou seja, tomando como ponto de partida a funcionalidade das representações sociais na orientação da ação e da comu­ nicação. Quando a diversidade e o processo de elaboração são privilegiados, abre-se, então, a possibilidade de trabalhar com estudos de caso. O indivíduo, nesta perspectiva, seguindo a tradição Vigotskiana (Vigotsky, 1978) é sempre uma entidade social e, conseqüentemente, um símbolo vivo do grupo que ele representa. Desta forma, o indivíduo no grupo - sujeito da abordagem epidemiológica do estudo das representações (Sperber, 1989) que busca a distribui­ ção de conteúdos numa dada população, passa a ser abordado enquanto sujeito genérico - como o grupo no indivíduo - contanto que tenhamos uma compreensão

adequada do contexto social por ele habitado: seu habitus e a teia mais ampla de significados no qual o objeto de representação está localizado. Abrem-se, portanto duas perspectivas ricas para o estudo das representações sociais enquanto processo: de um lado a perspectiva mais tradicional de estudar muitos para entender a diversidade; de outro, o estudo de casos únicos para buscar na relação representação-ação os me­ canismos cognitivos e afetivos da elaboração das repre­ sentações.

Desvendando as teorias implícitas: questões metodológicas Sendo as representações sociais teorias do senso co­ mum, segue que as técnicas de análise empregadas em seu estudo procuram, de alguma forma, desvendar a asso­ ciação de idéias aí subjacentes. É neste enquadre geral que se localizam as diferentes vertentes analíticas sendo que o que as dintingue são as exigências formais quanto à linguagem utilizada - números ou palavras - e quanto ao número de sujeitos necessários para efetuar as operações estatísticas. Em suma, busca-se a associação através de programas de análise multifatorial próprios ao computador ou faz-se à mão. No primeiro caso o jogo de transformação oblitera, freqüentemente, a lógica da construção. Ganhase, entretanto, na visibilidade do consenso e das perma­ nências e diversidades graças à agregação de casos. No segundo caso, preserva-se a lógica intrínseca da constru­ ção mas perde-se a visão de conjunto. Sendo assim, numa análise superficial, pareceria que a opção se deve apenas aos objetivos da pesquisa: enten­ der a lógica da construção versus entender a distribuição dos conteúdos numa dada população. É óbvio, entretanto, que a questão não é assim tão simples e que a opção é pautada, também, por pressupostos epistemológicos. No debate corrente é freqüente referir-se a estas diferenças contrapondo dicotomicamente as metodologias quantita­

tiva e qualitativa. Partindo do truísmo de que qualidade e quantidade são qualificações desprovidas de sentido de valor, vale uma pequena digressão buscando situar histo­ ricamente a conotação valorativa desta falsa dicotomia na noção de objetividade e no seu corolário, a noção de rigor científico.

O rigor na falsa dicotomia entre métodos qualitativos e quantitativos Este embate de metodologias só pode ser entendido no cruzamento entre pressupostos sobre rigor na ciência e o debate paralelo que contrapõe as ciências naturais e sociais.

FIGURA 2: PRESSUPOSTOS SOBRE A NATUREZA DO CONHECIMENTO

subjetivismo _______________________________________________________objetivismo

|nomimihsiT>o^^^J^

]

^

------pressupostos ontológicos ----------------►



pressupostos episternológicos ------- ^

^ ------sobre a natureza humana----------------- ^

jrealismo

I p o s jt iv is m o ^

3 eterminismo

^ ------ pressupostos metodológicos ---------- ^

Adaptado de Burrell e Morgan, 1982

O rigor, no paradigma científico dominante, oblitera freqüentemente a visão de continuum que desde sempre marcou a reflexão sobre as possibilidades do conhecimento e cujos polos extremos, segundo Burrell e Morgan (1982) seriam o subjetivismo e o objetivismo (fig. 2). Estes polos são constituídos a partir de pressupostos em quatro arenas distintas:

- a arena ontológica que concerne o estatuto do real, contrapondo duas posturas opostas: o pressuposto de uma realidade externa objetiva e acessível aos sentidos e o pressuposto da realidade como produto último de nossa consciência; - a arena epistemológica que concerne as bases do conhecimento e contrapõe o positivismo, enquanto ênfase na busca de regularidades e na explicitação de explicações causais, com as perspectivas centradas na compreensão dos significados socialmente construídos; - os pressupostos sobre a natureza humana, que opõem o determinismo absoluto (o homem como produto das determinações estruturais) com o voluntarismo absoluto (o homem como criador absoluto da realidade social); - a arena metodológica, que postula as regras de condução de investigação onde emergem, como pólos opostos, a postura nomotética - a busca de leis gerais que permitam fazer previsões - e a ideográfica - o estudo descritivo das singularidades. A era moderna entroniza o objetivismo - a chamada retórica da verdade na terminologia empregada por Ibanez (1991). A busca de leis gerais passa a ser o alvo prioritário das ciências e a demonstração experimental de teses através do teste de hipóteses passa a ser o paradigma do método científico. Sendo a matemática e a física as expres­ sões máximas desta forma de proceder, a mensuração passou a ser automaticamente o caminho exclusivo do rigor. É aqui que se situa, então, a contraposição entre ciências sociais e naturais. Não chega a ser um debate pois, desde que as disciplinas do social emergiram no cenário das ciências no final do século XIX, o consenso sempre foi de que elas eram ciências menores: ciências soft, em contraposição às ciências hard. Uma primeira tentativa de mudança de estatuto passa pela criação de uma epistemologia da diferença: se não dá

para ser igual, pontuemos a diferença. Emerge então uma importante distinção, sistematizada por Dilthey (Von Wright, 1979), entre explicação e compreensão. Caberia às ciências sociais compreender os fenômenos, o que exigiria um outro tipo de metodologia recuperando a tradição hermenêutica. Uma metodologia que abrisse espaço à interpretação, possibilitando a emergência dos significa­ dos, da esfera simbólica, do desvelamento das intencionalidades. Com este aval os métodos qualitativos emergentes nas novas disciplinas recebem o seu primeiro impulso e vão buscar seus modelos nas duas tradições empíricas então existentes: a antropologia e a psicologia clínica. Da antro­ pologia e sua prima próxima, a sociologia urbana, entram para o arsenal de métodos a observação participante e seus derivados modernos mais voltados à transformação social: a pesquisa ação e a pesquisa participante. Deriva daí, também, uma nova postura face ao fenômeno observado: a imersão no fenômeno para compreensão da diferença; postura esta que abre os flancos da subjetividade e, con­ seqüentemente, possibilita o questionamento do pressu­ posto da neutralidade científica. Da voltada grupos, dologia

psicologia clínica emerge toda uma tecnologia ao uso da entrevista, assim como o trabalho com primo distante dos grupos focais atuais, e a meto­ de estudo de caso.

Mas a diferença e a inovação metodológica é ainda regida pelo debate sobre a objetividade; debate este que será por muito tempo ainda pautado pela aplicabilidade, ou não, dos conceitos de validade e fidedignidade. Ou seja, o que está em discussão é ainda o questionamento da possibilidade de apreensão do real, apreensão esta ainda subsumida pela mensuração. Mas, sutilmente, o debate sobre o rigor nas ciências sociais é desviado deste seu eixo central para uma esfera menos compromissada com a questão epistemológica: a

validade, o grau em que um fenômeno é interpretado corretamente. É neste sentido que muitos, entre eles Denzing (1978), passam a advocar o uso da triangulação metodológica como estratégia de validação. Ou seja, com­ binar técnicas múltiplas, ou múltiplos pesquisadores, de forma a fortalecer a confiança nas interpretações. Neste ínterim, acontecimentos em arenas diversas vieram contribuir para o questionamento do paradigma de objetividade, dentre eles: a constatação, na física quântica, de que a consciência do observador está implicada na observação; o fortalecimento da visão sistêmica na área da cibernética; na história das mentalidades, a constatação de que muitas das nossas verdades sobre o mundo social são historicamente datadas; o relativismo decorrente das reinterpretações geradas pelas reflexões a partir de movi­ mentos políticos de minorias (negros, mulheres, gays etc.) que passam a reescrever a história a partir de sua própria ótica; os movimentos artísticos que destacam o fantástico, o efêmero, a construção; e a moderna filosofia da lingua­ gem que, como em Wittgenstein, destacam o papel da linguagem na construção da realidade social. Em suma, toda uma série de movimentos que conver­ gem para uma epistemologia construtivista que, sem du­ vidar da objetividade do mundo, coloca-a no rol das probabilidades uma vez que os instrumentos que dispomos para acessá-la são, estes sim, socialmente construídos. Desta forma, não é a verdade intrínseca de nossos instru­ mentos que define o rigor e sim a compreensão dos limites de suas possibilidades: em suma, cada método constitui o objeto de estudo de uma maneira particular. A triangulação metodológica, neste sentido, deixa de ser uma estratégia de validação para ser um fator de enriquecimento: um reconhecimento de que a realidade é caleidoscópica e que a multiplicidade de métodos pode enriquecer a compreen­ são do fenômeno (Flick, 1992). A objetividade num mundo socialmente construído passa a ter uma conotação muito diferente. Como aponta

Morin (1983), na epistemologia da complexidade, que sucede a epistemologia do realismo ingênuo, a objetivida­ de é produto do consenso sócio-cultural e histórico da comunidade científica, regida portanto pelo signo da intersubjetividade.

Desvendando as teorias implícitas: técnicas qualitativas para o estudo da associação de idéias nas representações sociais São estes os pressupostos téoricos e metodológicos que vêm norteando as pesquisas que vimos realizando e que, conseqüentemente, embasam a técnica de associação de idéias que vem sendo por nós utilizada, com pequenas modificações, em estudos centrados no processo de elabo­ ração das representações sociais assim como em estudos visando entender as representações socialmente compar­ tilhadas. Os estudos centrados no processo de elaboração das representações tiveram por objetivo entender a construção de teorias na interface entre explicações cognitivas, inves­ timentos afetivos e demandas concretas derivadas das ações no cotidiano. Tendo em vista também a necessidade de compreensão, nesses estudos, dos conteúdos que cir­ culam nos diferentes tempos anteriormente definidos - o tempo da interação, o habitus e o imaginário social - a coleta de dados exige longas entrevistas semi-estruturadas aclopadas a levantamentos paralelos sobre o contexto social e sobre os conteúdos históricos que informam os indivíduos enquanto sujeitos sociais. A análise, centrada na totalidade do discurso, é demorada e conseqüentemen­ te estes estudos têm utilizado poucos sujeitos. Trata-se, assim, de um exemplo do que chamamos acima de "sujei­ tos genéricos” que, se devidamente contextualizados, tem o poder de representar o grupo no indivíduo.

Trata-se, neste caso, de efetuar uma análise do discur­ so onde o trabalho de interpretação segue os seguintes passos: 1. transcrição da entrevista. 2. leitura flutuante do material, intercalando a escuta do material gravado com a leitura do material transcrito de modo a afinar a escuta deixando aflorar os temas, atentan­ do para a construção, para a retórica, permitindo que os investimentos afetivos emerjam. Nesta leitura/escuta é preciso ficar atento às caracte­ rísticas do discurso que podem dar pistas valiosas quanto à natureza da construção ou à sua funcionalidade. Potter e Whetherell (1987) sugerem incluir entre estas caracterís­ ticas: - a variação, ou seja, as versões contraditórias que emergem no discurso e que são indicadores valiosos sobre a forma como o discurso se orienta para a ação; - os detalhes sutis - como silêncios, hesitações, lapsos - pistas importantes quanto ao investimento afetivo pre­ sente; - a retórica, ou a organização do discurso de modo a argumentar contra ou a favor de uma versão dos fatos. Ao mapear os temas emergentes é preciso, também, ficar atento para a relação artificial criada pelo roteiro ou, na ausência de um roteiro explícito, pelas perguntas do entrevistador. Ou seja, são seus os temas ou são eles elementos intrínsecos de uma representação que aflora no discurso? 3. Tendo apreendido os aspectos mais gerais da cons­ trução do discurso, é preciso, num terceiro momento, retornar aos objetivos da pesquisa e, especialmente, definir claramente o objeto da representação. Os discursos são complexos, mesmo quando pensamos estar entrevistando sobre um tema único, e muitas vezes estão presentes

teorias sobre múltiplos aspectos relacionados. Isto fica claro nos estudos que vimos realizando sobre a AIDS, onde representações da AIDS, de doença/saúde e de sexualida­ de estão entrelaçadas. Definir o que é figura e o que é fundo é essencial, mesmo que o fundo esteja presente nas cons­ truções em pauta. É neste afã que emergirão as dimensões principais do discurso e, neste momento, dois caminhos têm se revelado possíveis nas experiências analíticas de­ senvolvidas no Núcleo de Estudos sobre Representação de Saúde e Doença por nós coordenado na PUC de São Paulo. O primeiro caminho, factível quando se trata de uma entrevista centrada num tema mais circunscrito - por exemplo hipertensão - é de mapear o discurso a partir das dimensões internas da representação: seus elementos cog­ nitivos, a prática do cotidiano e o investimento afetivo. No estudo sobre as representações de um clínico geral sobre a hipertensão (Spink, 1993c), utilizamos como dimensões analíticas: as teorias sobre hipertensão e sobre o hipertenso (dimensão cognitiva); a prática da Medicina no que diz respeito ao tratamento da hipertensão assim como os encaminhamentos específicos no cotidiano do consultório; e os investimentos afetivos. O segundo caminho, mais apropriado no caso de representações complexas, é mapear o discurso a partir dos temas emergentes definidos a partir da leitura flutuante e guiados pelos objetivos do pesquisador. Como exemplo, num estudo sobre a violência agrária no Pará, Pimentel (pesquisa ainda em andamento) utilizou três temas - a função da terra, a posse da terra e a violência - de modo a entender a construção que representantes de diferentes grupos (posseiros, fazendeiros, sindicatos rurais, judiciário etc.) fazem do conflito agrário.

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4. definidas as dimensões, são então construídos ma­ pas que transcrevem toda a entrevista, respeitando a ordem do discurso, para estas dimensões (fig. 3). Estes mapas possibilitam ver - literalmente ver, pois fica explícita a relação - a associação de idéias entre as dimensões. Permitem também analisar a variedade de idéias e imagens presentes em uma única dimensão. 5. a etapa final consiste em transportar estas associa­ ções para um gráfico, pontuando as relações entre elemen­ tos cognitivos, as práticas e os investimentos afetivos. Do estudo sobre representações de hipertensão resul­ taram três gráficos. O primeiro (fig. 4) sintetiza as constru­ ções sobre hipertensão e hipertensos do médico que serviu como informante nesta pesquisa. Embora sendo porta-voz de um campo científico, as construções resultantes emer­ gem como reconstruções funcionais de conteúdos cientí­ ficos, filtrados e transformados a partir da vivência cotidiana de consultório. A representação está centrada na idéia de doença; mas uma doença sui generís, que não tem causas bem delineadas, nem sempre produz sintomas reconhecíveis e depende da boa vontade do paciente para que possa ser adequadamente controlada. Para este médi­ co, a hipertensão é um problema sério de saúde pública seja por sua incidência na população ou pelos padrões de mortalidade e morbidade a ela associados. Os aspectos psicossomáticos também se fazem presentes em suas duas vertentes: a personalidade e as causas associadas ao meio ambiente, especialmente o stress da vida urbana. Vale apontar, ainda, para a associação entre os fatores indivi­ duais e a predisposição familiar, evidenciada no discurso deste médico pela menção à hipertensão entre os negros.

FIGURA 4: REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE HIPERTENSÃO

o que

é hipertensão

quem é o hipertenso

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Esta figura, centrada na representação da hipertensão e do hipertenso, tem evidentemente um viés cognitivista. Mas, tendo sido complementada por uma pesquisa histó­ rica sobre as teorias médicas a respeito da hipertensão pesquisa esta realizada através do levantamento de edito­ riais das duas principais revistas médicas internacionais desde o início do século - ilustra muito bem a maneira como as teorias médicas datadas alimentam as repre­ sentações atuais numa combinação sui generís de conteú­ dos que irão embasar a forma específica com que um médico em particular lida com o cotidiano da clínica.

8.

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A fig. 5, por sua vez, é uma síntese do discurso relativo à prática da Medicina no campo da hipertensão. Há dois eixos principais no discurso deste médico: de um lado abundam medicamentos para reduzir a pressão; de outro, a Medicina não sabe dar atenção ao paciente. Assim, no afã de resolver o problema, muitos médicos centram a atenção na "conduta" - nos procedimentos clínicos pro­ priamente ditos - e esquecem o paciente. O que mais chama a atenção neste gráfico é a contraposição entre a Medicina no caso geral e as soluções particulares encon­ tradas a partir da experiência clínica, marcada no discurso pelo refrão: “eu não” . É nesta tarefa, de resolver no coti­ diano os impasses históricos do tratamento da hipertensão, que o discurso passa a ser marcado pela diferença: “eu não, eu faço de forma diversa” . Mas, igualmente, é neste afã de construir a diferença que o investimento afetivo emerge com mais força.

FIGURA 6: A PRÁTICA COTIDIANA

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' depende da empatia

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procuro seguir a rotina

procuro remédios baratos

A fig. 6, dando continuidade à anterior, está organizada nos dois eixos relativos às dimensões das práticas corren­ tes no tratamento da hipertensão: "eu” adoto a conduta certa na prescrição dos medicamentos e “eu” procuro trabalhar a dimensão psicossocial. Adotar a conduta certa implica, segundo as associações presentes no discurso, em controlar os efeitos colaterais assim como em adequar a prescrição às necessidades econômicas dos pacientes, fatores estes percebidos como sendo dificultadores da aderência ao tratamento. Mas é a dimensão psicossocial que emerge mais fortemente no discurso deste médico: a retórica dos efeitos terapêuticos da relação médico-paciente. Esta relação, de acordo com a trama de idéias presentes no discurso, se dá numa dupla perspectiva: criar um vínculo que possibilite ao médico a busca das informações necessárias e cons­ cientizar o paciente de modo a assegurar sua cooperação. Criar um vínculo implica em estabelecer uma relação de empatia para que o paciente possa desabafar, conversar de coisas íntimas e assim, supostamente, revelar a trama causai de sua hipertensão. Deixar, enfim, emergirem as causas últimas da ansiedade e do stress - que, conforme visto na fig. 4, são elementos intrínsecos da teoria com a qual este médico funciona. Embora considerado ingredien­ te fundamental no tratamento da hipertensão, o vínculo é tarefa difícil, pois se gera interesse, gera também o desafio. Já a conscientização implica em explicar muito bem o que é a doença e os riscos a ela associados. Implica, em última análise, atemorizar os pacientes, de forma dosada, para que colaborem com o tratamento. A colaboração é o elemento crucial, pois o paciente tem que submeter-se a uma dieta insossa; precisa tomar remédios cujos efeitos colaterais são muitas vezes piores que os sintomas - às vezes inexistentes - da pressão elevada; precisa, enfim, modificar seu estilo de vida. Então, diz este médico, "aí é que vem a dificuldade” , e com ela a frustração.

Esta forma de análise permite entender os ajustes feitos nos elementos cognitivos destas teorias do senso comum sob a pressão das ações do cotidiano; permite entender, ainda, o papel dos investimentos afetivos, fre­ qüentemente acessados a partir das contradições presen­ tes no discurso, como motores da transformação ou, inversamente, como mecanismos de defesa de identidades ameaçadas. Em nítido contraste, os estudos que buscam entender as representações na perspectiva dos grupos, buscando aí tanto a diversidade quanto o que há de comum e compar­ tilhado, têm utilizado formas de coleta de dados mais estruturadas, especialmente os questionários (auto-aplicados ou utilizados como roteiro de entrevista) com pergun­ tas abertas. A estrutura da representação social é, neste caso, fruto da somatória da análise de associação de idéias de várias perguntas. Esta forma de trabalhar, menos onerosa que a análise de discurso, aproxima-se das vertentes que usam o com­ putador para desvendar as estruturas subjacentes das representações de muitos sujeitos. Entretanto, permite preservar a lógica intrínseca da construção de cada sujeito, aspecto este que serve, também, como elemento de vali­ dação da abstração resultante da junção do conjunto de respostas. Esta forma de análise foi empregada em um estudo sobre a representação social de vacina (Spink et al., 1993d) realizado com o intuito de entender as implicações destas representações para a prevenção da AIDS e, mais especi­ ficamente, para a disposição de participar em testes de vacinas anti-HIV. Para esta pesquisa foram entrevistados 61 sujeitos pertencentes a três grupos distintos: - mães de crianças em idade de vacinação, escolhidas por sua familiaridade com vacinas em geral; - jovens entre 18 e 25 anos, por serem eles um dos alvos prioritários de campanhas de prevenção à AIDS

portadores de HIV, por sua familiaridade com a questão de vacinas anti-HIV Analisando as associações de idéias presentes nas respostas ao conjunto de perguntas sobre o que são vaci­ nas, o que fazem, como funcionam e sobre a disposição para tomar a vacina de AIDS e a proteção esperada através da vacina, foi possível desvendar um esboço de teoria sobre o funcionamento de vacinas. Esboço este construído a partir de fragmentos, pois a compreensão do modo de funcionamento das vacinas é de modo geral bastante precária. Esquematicamente esta teoria tem os seguintes ele­ mentos: proteger a doença.

Introdução de algo no organismo para

atacar

Vale apontar, a título de curiosidade, que 10% dos entrevistados nem se aventuraram a tentar explicar este mecanismo respondendo apenas que não sabiam como as vacinas funcionavam. Metade da amostra, 51%, mencio­ nou á função: proteger, prevenir, atacar, imunizar, “dar mais fraco". Apenas cerca de um terço da amostra (39%) tentou algum tipo de aproximação com a forma de funcio­ namento. Importante notar que nem todos os sujeitos menciona­ ram todos os elementos desta teoria esquemática. Ou seja, raramente esta "teoria” estava plenamente mapeada. Foi a somatória de respostas que possibilitou esta aproxima­ ção. Entretanto, embora presentes à consciência de forma fragmentária, as implicações desta teoria para o cotidiano - subsumido, aqui, pelas práticas de prevenção à AIDS são claras. De um lado evidencia que a informação veiculada sobre testes de vacinas, já por si só complexa face à

variedade de vacinas atualmente em teste, é dificilmente ancorada em representações já existentes, visto que estas são bastante fragmentárias. A análise do discurso, através da associação de idéias, evidencia que, na ausência de elementos mais fundamentados na ciência, as repre­ sentações de vacinas são freqüentemente ancoradas em representações mais arcaicas sobre a força dos elementos - associadas, neste caso, aos medicamentos. Destaca-se, aqui, a dicotomização entre remédios "fortes" e "fracos" e a injeção é sempre "forte" sendo que o eixo "forte” pode estar associado tanto com o “bom" (porque protege o organismo) quanto com o "perigoso" (porque se é capaz de atacar pode também voltar sua força contra o orga­ nismo). De outro lado, permite trazer à luz o poder dos proces­ sos de significação e suas implicações para o posiciona­ mento individual face à prevenção. Retornando à teoria esquemática sobre o funcionamento das vacinas - intro­ dução de algo no organismo para proteger ou atacar a doença - as associações de idéias permitem entender a natureza deste algo (as teorias implícitas sobre substâncias fortes e fracas) e o papel possível do organismo vacinado: trata-se de uma proteção cujos efeitos eximem o indivíduo da necessidade de tomar outras medidas preventivas; ou é um instrumento de ataque que, na metáfora militar, exigiria a presença de um general.

Conclusão Os debates referidos neste texto e a perspectiva teórica e metodológica delineada de modo a poder situar a pro­ posta da técnica de associação de idéias por nós utilizada têm como substrato a inversão da posição do sujeito na questão do conhecimento: de observador neutro e passivo, este passa a ter um papel central, enquanto formulador de teorias - científicas ou de senso comum - na criação de uma realidade consensual. E, como aponta Birman (1991: 15), "reconhecer no registro epistemológico a posição do

sujeito na produção do objeto teórico é afirmar, ao mesmo tempo, que este sujeito empreende um trabalho de inter­ pretação do real e que a interpretação é constitutiva da objetividade científica". Desta forma, trabalhar os dados de forma qualitativa implica em re-discutir o estatuto da interpretação na atividade científica. A interpretação é essencial, na perspectiva construti­ vista, em três sentidos complementares. Em um primeiro sentido, como aponta Birman (1991:15), o próprio “fato” o dado objetivo que é nossa matéria-prima - "já é um recorte realizado no real mediante uma operação interpretativa" uma vez que só podemos conhecer os fenômenos através das teorias e estas são construções humanas his­ toricamente datadas. A interpretação, neste sentido, define o "olhar possível" que incide sobre o dado, olhar este que tem seus limites na episteme, entendida na vertente foucaultiana como “algo como uma visão do mundo, uma fatia de história comum a todos os conhecimentos e que imporia a cada um as mesmas normas e os mesmos postulados, um estágio geral da razão, uma certa estrutura do pensa­ mento a que não saberiam escapar os homens de uma época - grande legislação escrita, definitivamente, por mão anônima" (Foucault, 1987: 217). Lembrando, entretanto, que, para Foucault, a episteme “não é uma forma de conhecimento, ou um tipo de racionalidade que, atraves­ sando as ciências mais diversas, manifestaria a unidade soberana do sujeito, de um espírito ou de uma época; é o conjunto das relações que podem ser descobertas, para uma época dada, entre as ciências, quando estas são analisadas ao nível das regularidades discursivas" (op. cit., p. 217). Mas, se a interpretação, neste primeiro sentido, remete à visibilidade possível do objeto na intertextualidade dos discursos sociais, num segundo sentido remete à empatia: à possibilidade de compreender e discutir as intenções subjacentes de um outro que é definido como diferente, por sua extemalidade, ao selí. Interpretar - de acordo com

Sperber (1989) - é atribuir aos atores individuais e coletivos crenças e intenções que fazem com que seus discursos se apresentem como racionais. Neste sentido, na perspectiva de uma teoria do conhecimento, “uma interpretação é a representação de uma representação por uma outra em virtude da similaridade de conteúdos" (Sperber, 1989:118). Emergem, nesta esfera, questões complexas referentes às bases de sustentação da ação comunicativa entre dife­ rentes, destacando-se entre elas a problemática dos valo­ res - das ordens morais locais - que freqüentemente impossibilitam uma abertura plena à alteridade: vemos o mundo e o interpretamos a partir das viseiras de nossos preconceitos. Finalmente, num terceiro sentido, a interpretação sus­ cita o debate, já nosso velho conhecido, sobre a objetivi­ dade da atividade científica centrada na hermenêutica. Antes de mais nada coloca a questão da relatividade das versões ou interpretações, uma vez que não existe uma única interpretação ou, dentre as alternativas, nenhuma garantia de que a interpretação escolhida é mais verdadeira que as demais. A escolha é regida, sem dúvida, por opções teóricas que antecedem e mesmo determinam as interpre­ tações. Já a validade pertence à esfera da intersubjetividade; não na busca do consenso acalentador mas na busca constante da contradição criativa. Como diz Morin (1983: 16/17): “E aqui aparece-nos um elo indestrutível entre intersubjetividade e objetividade, no qual a objetividade é ao mesmo tempo fundamento primeiro e conseqüência última. Neste dinamismo em anel a objetividade ultrapassa e transcende a intersubjetividade de que depende, sem nunca poder escapar-lhe. Ela não pode ser concebida nem como a priorí nem como ponto de partida absoluto. A objetividade apare­ ce como incessantemente autoproduzida e reconstruída por um dinamismo específico da comunidade científica. Dito de outra forma, a objetividade é produto de um processo em anel que só pode ser produzido se a objetividade nele intervier de uma forma produtora. Isto quer dizer que a

objetividade não exclui o espírito humano, o sujeito indivi­ dual, a cultura, a sociedade. Mobiliza-os. Mobiliza os prin­ cípios e as potencialidades construtoras do espírito humano e da cultura e exige o seu controle mútuo permanente. Necessita tanto do consenso como do antagonismo e da conflitualidade entre concepções e teorias".

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DESCRIÇÃO, EXPLICAÇÃO E MÉTODO NA PESQUISA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

Wolfgang Wagner Universidade de Linz, Áustria O conceito de representação social é multifacetado. De um lado, a representação social é concebida como um processo social que envolve comunicação e discurso, ao longo do qual significados e objetos sociais são construídos e elaborados. Por outro lado, e principlamente no que se relaciona ao conteúdo de pesquisas orientadas empiricamente, as representações sociais são operacionalizadas como atributos individuais - como estruturas individuais de conhecimento, símbolos e afetos destribuídos entre as pessoas em grupos ou sociedades. Esta dupla visão do conceito o faz versátil, e dá origem a várias interpretações e usos que nem sempre são compatíveis uns com os outros. Essa versatilidade surge de uma abertura particular da teoria, que torna possível a ela ser apropriada, quer dizer, “usada, combinada e incorporada por outros referenciais em p s ic o l o g i a s o c i a l " (Allansdottir, Jovchelovitch & Stathopoulou, 1993). Tal abertura pode contituir-se tanto em um problema sério (Jahoda, 1988) ou pode ser uma précondição para o seu desenvolvimento futuro (Moscovici, 1988; Farr, 1992, 1993). Parte deste problema é produto de uma discussão inacabada sobre os aspectos episternológicos da t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c i a i s . Neste capítulo, eu me propo­ nho a discutir algumas questões epistemológicas ligadas

às re p re s e n ta ç õ e s so cia is, c o n s id e ra n d o su a fu n ç ã o e p o ­ s iç ã o e m estruturas e x p lic a tiv a s q u e e n v o lv e m n ív e is d ife ­ r e n c ia d o s d e a v a lia ç ã o e m

p s ic o l o g ia s o c i a l .

Qualquer teoria científica procura descrever e explicar fenômenos. Ao fazer isso, a teoria submete o fenômeno capturado por conceitos a uma ordem processual e causai. Na t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c i a i s , o fenômeno em questão é da ordem dos diferentes tipos de teorias popu­ lares, senso comum, e saberes cotidianos que chamamos representações sociais. Entretanto, ao mesmo tempo que estamos suficientemente seguros sobre a descrição do fenômeno, ou seja, o que podemos considerar ou não como uma representação social (de Sá, 1993; Doise, 1990; Mos­ covici, 1988; Wagner, 1994a; Wagner & Elejabarrieta, no prelo), o mesmo já não pode ser dito sobre aquilo que a teoria das representações sociais realmente explica. Duvidar sobre o que uma representação de fato explica pode parecer estranho. Não seria simplesmente o caso, de que uma representação explica o comportamento daqueles indivíduos que detêm uma representação específica, em uma situação dada? Consideremos a investigação sobre representações sociais da loucura conduzida por Jodelet (1989). Lá, a autora mostrou que os sujeitos investigados compartilhavam uma grande quantidade de crenças sobre o que é a loucura, como ela se origina, e como as pessoas deveriam se comportar quando confrontadas com o louco. Uma dessas crenças, ainda que implicitamente, conside­ rava a loucura como contagiosa. Em conseqüência, as pessoas que alojavam pacientes em suas casas tendiam a lavar roupas e pratos, pertencentes aos seus “hóspedes", em separado das de suas próprias famílias. Neste exemplo, a representação da loucura e a crença no contágio apare­ cem como explições para os comportamentos de lavar roupas e pratos. O que há obviamente aqui é primeiro a representação, i. é, o saber cotidiano da loucura e do contágio, e depois o comportamento específico de lavar roupas e pratos. Até aqui tudo bem. Propor uma explicação

para o comportamento como sendo causado pela repre­ sentação parece ser uma questão direta. Mas será que esta relação causai explicativa - presente em modelos empíri­ cos de pesquisa - entre a representação como variável independente e o comportamento subseqüente como va­ riável dependente se justifica? O segundo problema que caracteriza o uso das repre­ sentações sociais como explicações científicas se relaciona a seu papel enquanto variáveis dependentes. Seria quase óbvio dizer que diferentes condições sociais, existentes em diferentes grupos e sociedades, trariam como conseqüên­ cia diferentes representações sociais, que são, por sua vez, o resultado de necessidades de grupos ou sociedades ao lidar com novos fenômenos e novos problemas. A questão é, então, de que forma as condições sócio-genéticas das representações sociais penetram a teoria. E é este o aspec­ to subjacente da teoria que necessitamos analisar, se quisermos falar sobre modalidades explicativas na pesqui­ sa em representações sociais.

Modelos explicativos e níveis de avaliação Um modelo explicativo Antes de analisarmos os problemas específicos asso­ ciados às representações sociais é necessário discutir qual o modelo de explicação científica mais adequado aos objetivos do presente trabalho. Em várias ciências, o m o­ delo dedutivo-nomológico de explicação é o considerado apropriado. Segundo esse modelo, uma explicação dedutiva-nomológica válida necessita um conjunto de leis abrangentes e um conjunto de condições antecedentes. Essas condições antecedentes são, elas próprias, instân­ cias dos termos relevantes das leis abrangentes e especi­ ficam as características do evento a ser explicado. As leis abrangentes e as condições antecedentes são o que nos

possibilita concluir que o evento a ser explicado é conse­ qüência de uma situação dada. Se uma lei geral, por exemplo, afirma que em uma situação posterior à tomada de decisão as pessoas provavelmente expressam arrepen­ dimento por terem escolhido uma dada alternativa, e de fato há um sujeito concreto em uma situação pós-tomadade-decisão, poderemos concluir que o evento "só se arrepende depois de ter tomado uma decisão" pode ser explicado pela lei do "arrependimento pós-tomada-de-decisão" da teoria da dissonância cognitiva (Festinger, 1957) dado o evento (ou condição) antecedente “só toma uma decisão". O modelo dedutivo-nomológico pressupõe: a) que a conclusão lógica tenha sido extraída corretamente; b) que a explicação contenha pelo menos uma lei geral; c) que esta lei tenha conteúdo empírico, de tal forma que não haja uma implicação lógica (analítica), mas sim uma implicação empírica (sintética); e d) que as proposições da explicação sejam verdadeiras. Existem, entretanto, dúvidas conside­ ráveis se as teorias e pesquisas psicológicas e sociais são capazes de atender a esses requisitos. Primeiro, porque há evidência de que a maioria das teorias psicológicas não contém leis gerais; é muito mais provável que elas variem histórica (Foon, 1986; Gergen, 1973; Gergen & Gergen, 1984) e culturalmente (p. ex., Miller, 1984; Shweder & Bourne, 1984). Segundo, porque também existem dúvidas consideráveis se a maioria das teorias e leis psicológicas podem ser consideradas sintéticas. Análises exaustivas de teorias psicológicas demonstraram que várias delas podem ser reformuladas como teoremas do senso comum, e várias outras envolvem pressupostos racionais implícitos (Elejabarrieta & Wagner, 1992; Holzkamp, 1986; Smedslund, 1978,1988). Em ambos os casos, tanto no conformar-se ao senso comum, como na implícita racionalidade cotidiana que manifestam, há a implicação de um caráter analítico e não sintético para as teorias psicológicas, o que proíbe a sua interpretação como explicações causais dedutivo-nomológicas. Isso é ainda mais verdadeiro no caso da t e o r i a

(Wagner, 1993). Portanto, o modelo dedutivo-nomológico não é uma referência útil para o presente objetivo1. d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c ia is

Nas teorias da p s ic o l o g ia s o c i a l necessitamos de um modelo de explicação mais simples, que não requer a validade generalizante de leis abrangentes (D’Andrade, 1986; Jahoda, 1989:77). Assim, utilizaremos aqui a “expli­ cação modal", tal como foi sugerida por Von Kutschera (1982). O modelo de explicação modal requer o estabeleci­ mento de uma relação sintética do tipo se-então entre uma condição ou evento explicativo, o explanans, e um evento a ser explicado, o explanandum. Uma proposição é, então, uma explicação modal se: a) existe o fenômeno g; b) se existe uma relação de implicação entre o fenômeno q e outro fenômeno p, de tal forma que q implica em p. Essa proposição explica o fenômeno p pela condição anteceden­ te g, se, e somente se, a implicação não se mantiver para o contrário de q, Não-q. Assim, se qualquer outro evento N ão-q não produz um evento p, se q é um evento que antecede p e se a implicação é uma relação sintética, podemos chamar essa proposição uma explicação modal d ep por q. Esse modelo “soft” de explicação faz muito mais justiça à maioria das modalidades explicativas da p s ic o l o ­ g i a s o c i a l do que o modelo "hard” de explicação deduti­ vo-nomológico.

Níveis de avaliação Qualquer proposição explicativa contém sempre pelo menos dois conceitos, que se referem a fenômenos, isto é, coisas, eventos, situações, estruturas organizacionais, con­

1. Se o modelo de explicação dedutivo-nomológica se adapta ou não aos requisitos da Psicologia Social e outras Ciências Sociais, é um problema sem dúvida alguma muito mais complexo. Mas aqui não é o lugar para uma discussão mais extensa. Veja, por exemplo, Cummins (1983), Harré (1990), Wagner (1994a).

dições institucionais ou crenças e comportamentos de atores sociais. Esses fenômenos podem ser tanto avaliados como medidos, em níveis diferentes de complexidade. Desde uma perspectiva teórica, esses níveis foram descri­ tos na pesquisa em p s ic o l o g i a s o c i a l por Doise (1986) sob o título "níveis de análise". Apesar de serem úteis em perspectivas mais globalizantes, a abordagem dos "níveis de análise" não se presta aos objetivos da presente discus­ são (Wagner, 1994a). Aqui, o objetivo é discutir perspecti­ vas metodológicas e não teóricas. Portanto, vamos usar o termo "níveis de avaliação” para discriminar fenômenos em termos dos procedimentos pelos quais eles são avaliados. O termo nível de avaliação é entendido aqui como um construto metodológico2. Ao definir um procedimento para medir qualquer processo em ciências sociais, o pesquisa­ dor também define em que nível o fenômeno em questão será mapeado. De certa forma, a medição implica em uma determinação ontológica do processo que se está tentando apreender. Quer dizer, a decisão sobre método, em uma investigação empírica, determina que aspecto do fenôme­ no pode aparecer como real, ou aparece como real. A decisão metodológica é, portanto, e necessariamente, tam­ bém uma decisão ontológica porque as coisas se mostram como realidade somente quando interagimos com elas. E, em ciências sociais, a medição constitui uma parte do processo de interação com o objeto do qual tentamos nos aproximar. É claro, portanto, que estamos assumindo uma posição construtivista em relação a procedimentos meto­ dológicos.

2. 0 sentido do termo “nível de avaliação" se aproxima da noção mais comum de "nível de agregação". Mas enquanto "agregação", estritamente falando, pressupõe que o pesquisador conheça o que ele ou ela está agregando - isto é, por exemplo, um conjunto de indivíduos concretos que, uma vez agregados, formam um grupo específico - o termo "avaliação" não supõe tal coisa. Se nós avaliamos um fenômeno a um determinado nível, não necessitamos conhecer as partes que o constituem.

Vamos sugerir aqui dois níveis de avaliação que de­ sempenham um papel crucial na pesquisa em repre­ sentações sociais: o nível do individual e o nível do social/cultural. a) O nível de avaliação individual envolve todos aqueles conceitos da p s ic o l o g i a s o c ia l que se referem a fenôme­ nos de domínio subjetivo, tais como compreensão, senti­ mentos e a volição do sujeito individual. Tais fenômenos são bem conhecidos em Psicologia como percepções, memórias, atitudes, intenção, pensamento, emoção, afeto e comportamento. Esses conceitos são avaliados, medidos, e teorizados a partir ou em relação ao sujeito individual. A grande maioria dos construtos usados em p s ic o l o g i a s o ­ c i a l pertencem a essa classe de fenômenos. Mas o nível individual de avaliação, ao ser definido em termos de métodos de pesquisa, compreende não apenas percepções, lembranças, atitudes, intenções, pensamento, emoções, afetos e comportamentos, mas também crenças, que são compartilhadas entre atores sociais e comuns a grupos sociais. Ainda que essas crenças possam pertencer a um nível de análise social ou ideológico, em termos teóricos (Doise, 1986), essas opiniões, representações e ideologias socialmente compartilhadas, são parte do nível de avaliaçãojndividual, na medida em que elas são avalia­ das e medidas no sujeito individual ou podem ser atribuídas a um sujeito específico. b) As variáveis e conceitos no nível de avaliação social, cultural ou do grupo, compreendem fatos que aparecem para o indivíduo como um tipo de material a-priori. Aqui falamos do social, cultural ou da ecologia sócio-mental que escapa ao controle de indivíduos isolados. Se variáveis e conceitos são avaliados a este nível, é porque eles refletem, como um todo, qualidades de sociedades, culturas, grupos, subculturas, classes sociais e subgrupos. Instituições so­ ciais, fenômenos econômicos e sistemas coletivos simbó­ licos, por exemplo, pertencem a este nível. Conceitos a este nível não expressam propriedades que possam ser atribuí­

das a um indivíduo específico, mas somente a um agregado de indivíduos com propriedades emergentes próprias. Por propriedades emergentes não se quer significar qualquer coisa como uma metafísica social, mas tão-somente se delimitar tais propriedades, que são simplesmente defini­ das pelos procedimentos que as medem ao nível supra-individual. Suas características são com pletam ente derivadas do tipo específico de avaliação metodológica e tratamento teórico que recebem. É claro que, na maioria dos casos, tais propriedades não estão ao alcance de métodos psicológicos individuais, mas dependem dos mé­ todos da p s i c o l o g i a s o c i a l , Sociologia, Economia, Antro­ pologia Social e Cultural3.

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3 Pode ser útil postular um nível de avaliação situacional como nível interme­ diário. Se, de acordo com Tajfel (1981), o fenômeno intergrupal pode ser localizado teoricamente em um pólo ou dimensão, onde o outro pólo é caracterizado por eventos interpessoais, essa última classe de eventos pertenceria ao nível de avaliação situacional. Este nível compreenderia variáveis e conceitos que descrevem fatos passageiros na esfera diretamente perceptível da interação individual. Tais fatos são subjacentes à influência pessoal direta. Estes podem ser tanto os pequenos grupos, que ainda são compreensíveis para os indivíduos envolvidos, como também aquelas condi­ ções físicas onde os indivíduos temporariamente se localizam, como, por exemplo, a situação experimental, onde os participantes em um experimento se separam no final. É importante salientar o caráter efêmero de tais situações dentro da prática cotidiana dos sujeitos, a fim de distingui-las daquelas estruturas de longo prazo, estáveis, que constituem os dados macro-sociais. Um construto a esse nível descreve um atributo da situação como um todo. Experimentos e teorias na tradição da teoria dos jogos e análises de redes de comunicação são exemplos típicos deste nível. Eles lidam com mudanças nos parâmetros da situação, que são determinados pelo resultado do jogo e pela estrutura do jogo, que é por sua vez definida pelas matrizes de ganho. Caracterizar um jogo como soma-zero ou não-soma-zero, por exemplo, constituiria tal parâmetro. Na sua monografia sobre grupos e indivíduos, Doise (1978) introduz tais parâmetros situacionais quando os jogos são definidos ou como maximização de ganhos individuais, ou como coletivos. Exemplos vindos da psicologia dos grupos seriam conceitos tais como “similaridade", “homogeneidade grupai", “coesão grupai" etc., que descrevem uma relação estrutural entre indivíduos em interação. Tais variáveis não podem ser avaliadas ao nível do indivíduo isolado, mas somente como um atributo de uma rede total de interação.

Espaços de explicação Devido ao seu caráter complexo enquanto entidades sociais, que constituem parte do conhecimento de indiví­ duos, modalidades explicativas na pesquisa em repre­ sentação social podem envolver níveis diferentes de avaliação. Se, por exemplo, descobrirmos que uma parte dos indivíduos que entrevistamos possui uma repre­ sentação social R, e essa representação surgiu porque o grupo social, do qual esses sujeitos fazem parte, elaborou coletivamente esse conhecimento (tal como nós o sabemos através de análises de documentos e de meios de comuni­ cação), o que estamos fazendo é articular um nível social de avaliação com um nível individual de avaliação. Este é o caso, porque afirmamos, no início, que a representação coletivamente elaborada pelo grupo como um todo explica o fato de que os indivíduos que escolhemos e entrevista­ mos exibem a representação específica R. Ou, colocado de forma mais direta, é o fato da elaboração coletiva que determina que os indivíduos possuam a mesma repre­ sentação, dadas certas condições propícias. Uma repre­ sentação coletivamente elaborada, avaliada através dos meios de comunicação ou análise de documentos, consti­ tui um fato social que se refere ao grupo como um todo. O fato de que indivíduos específicos possuem uma repre­ sentação R é avaliado individualmente por entrevistas e questionários. Através de questionários e entrevistas nós sabemos que João, Sandra e Roberto, por exemplo, pensam tal e tal, enquanto que através da análise de conteúdo de documentos e de meios de comunicação de massa nós não sabemos se Daniela, Inês ou Maria realmente pensam tal e tal, ainda que eles pertençam àquele grupo. Portanto, dois níveis diferentes de avaliação são articulados neste tipo de explicação, definindo um "espaço explicativo". Um espaço explicativo é definido aqui como um con­ junto de conceitos que podem ser ligados por relações implicativas que sustentam explicações lógicas válidas.

Vamos considerar o seguinte exemplo (Putnam, 1974): Imaginem um quadro com dois furos. Um dos furos é quadrado e o outro é circular, ambos com diâmetros aproximadamente iguais. Uma cunha quadrada com diâ­ metro um pouco menor cabe no furo quadrado, mas não no circular. Para explicar esse fato C podemos desenvolver duas explicações. A primeira (micro-)explicação [A) pode­ ria ser medir a localização e o vetor de impulso de todas as partículas elementares do quadro e da cunha, e então derivar dessas micro-estruturas a lei de que a nuvem de partículas que constitui a cunha caberá apenas no lugar da nuvem de partículas do quadro, onde as partículas do quadro são substituídas pelas partículas penetráveis de ar, que é o furo quadrado. Já que nuvens de partículas de objetos rígidos são geralmente impenetráveis, a nuvem de partículas da cunha não pode atravessar o furo redondo com uma nuvem de partículas que é diferentemente cons­ tituída. De modo alternativo, uma (macro-)explicação B tam­ bém seria viável. Poderíamos estabelecer as partículas geométricas do quadro e da cunha e, comparando medi­ das, concluir que a forma geométrica da cunha é tal que caberia através da geometria quadrada de um furo, mas não através da geometria redonda do outro furo no quadro. Ambas as explicações são em alguma medida equiva­ lentes, e, ao mesmo tempo, estranhamente diferentes. O macro-fato C que é a tacha cabendo no quadro no lugar do furo quadrado pode certamente ser explicada de ma­ neira padrão, afirmando B os fatos geométricos da situação. Portanto B explica C. Da mesma forma, poder-se-ia esta­ belecer, sem problemas, que os fatos geométricos B são explicados pela micro-estrutura da situação A: A explica B. Ao concatenar A com B e B com C, uma nova explicacão pode ser sugerida que explica C através de A: A explica B explica C. Sintetizando essa última explicação, teremos como resultado A explica C.

Entretanto, ainda que a concatenação A explicaB e B explica C seja tanto possível como razoável em algumas circunstâncias, o “curto-circuito" transitivo A explica C é inválido: a explicação originante A de uma explicação B do fato C em si mesma não é uma explicação de C. Explicações envolvendo níveis diferentes de complexidade são, devido a pressupostos aceitáveis, intransitivas. Isso é assim porque “as características relevantes de uma situa­ ção devem ser trazidas à luz por uma explicação e não enterradas em uma massa de informação irrelevante" (Putnam, 1974, p. 132). Nas explicações primeiras, o relevante e o irrelevante geralmente não podem ser diferenciados. Essa intransitividade das proposições explicativas está relacionada com o nosso problema de articular conceitos e teorias que têm origem em níveis diferentes de avaliação. Ainda que o funcionamento psicológico de indivíduos seja o pré-requisito material para a existência de grupos e sociedades, o funcionamento psicológico individual não “explica” os níveis mais “superiores" de fenômenos de maneira direta. Fenômenos em níveis “superiores" se rea­ lizam através de condições fronteiriças que aparecem como acidentais, desde o ponto de vista de disciplinas que aproximam níveis "inferiores". "As leis das disciplinas de níveis superiores são dedutíveis das leis das disciplinas de níveis inferiores junto com ‘hipóteses auxiliares’ que são acidentais desde o ponto de vista da disciplina de nível inferior. E a maior parte da estrutura, a nível da física, é irrelevante desde o ponto de vista de disciplinas de níveis superiores; somente certas características daquela estru­ tura (...), e estas são especificadas pela disciplina de nível superior, não a de nível inferior (..). As leis da Psicologia e Sociologia humanas (..) têm sua base na organização material de pessoas e coisas, mas elas também têm uma autonomia, recém-descrita, diante das leis da Física e Química" (Putnam, 1974, p. 134).

A autonomia relativa de espaços de explicação das diferentes ciências a níveis diferentes de agregação e avaliação implica que a explicação do ato agressivo de alguma pessoa P deve ajustar-se ao interesse do respectivo espaço de explicação. O espaço explicativo é exigido, de um lado, pelo tipo de questão, e de outro, pelo sujeito a quem a explicação se dirige. No caso do comportamento agressivo, os processos neurofisiológicos do cérebro (um fato de nível inferior) normalmente não serão uma explica­ ção válida, enquanto que a referência à personalidade, afetos, emoções, intenções e objetivos da pessoa agressiva será uma explicação perfeitamente válida. Igualmente, o fato de que P nominalmente pertence a, digamos, um grupo social de jovens de classes desfavorecidas (um fato de nível "superior"), não constitui uma explicação válida para a agressão de P, se não se explicar o porquê e especificamente como P chegou a um nível de agressivi­ dade maior que o normal. Isso pode ser alcançado, se estabelecermos que P é consciente de sua privação social e que a experiência de P de tal privação é tal, que privação pode ou deve "legitimamente" ser expressa por vandalismo. No contexto da articulação de níveis de avaliação em proposições explanatórias, é necessário considerar repectivãmente os níveis dos explanans bem como dos explanandum. O esquema a seguir descreve as relações possíveis em modalidades explicativas (Tabela 1).

Tabela 1 Relação entre explanans e explanandum em explicações Níveis de avaliação do explanandum Individual

Social

Individual

A*

c**

Social

D***

B*

Níveis de avaliação do explanans

*) Explicações com espaço explicativo homogêneo **) Explicações micro-redutivas ***) Explicações macro-redutivas

A principal diagonal nesse esquema compreende pro­ posições explicativas conceitualmente homogêneas. Na­ quelas células, explanans e explanandum estão localizados no mesmo nível. Ao contrário das células não-diagonais, eles não trazem nenhum problema com relação à articula­ ção de níveis. A célula A contém teorias psicológicas e psicossociais sobre relações entre variáveis intrapessoais. A célula B contém teorias ao nível macro, como (macro-) teorias sociológicas, econômicas, e antropológicas. A célula C caracteriza as teorias que articulam um explanans de nível "inferior” com um explanandum de nível "superior". Tais teorias podem ser chamadas microredutíveis e geralmente são consideradas problemáticas porque os dois argumentos de tal proposição explicativa pertencem a dois espaços diferentes de explicação. Mas este já é um campo de discussão sobre a viabilidade das explicações redutíveis e não é o que estamos discutindo aqui (cf. Alexander, 1981; Friedman, 1981; Munro, 1992)4.

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4 Teorias evolucionárias também pertencem a essa categoria, mas elas assumem uma posição própria (Wagner, 1994a, p. 260s). Teorias do tipo evolucionário “explicam" o processo de emergência de estruturas de nível “superior" mais complexas a partir de interações anteriores de elementos de nível “inferior" mais simples. Isso em nítido contraste com a micro-redução, onde estes passos intermediários estão excluídos da explicação.

A célula D na Tabela 1 representa uma proposição explicativa onde o fenômeno no nível “inferior" de avalia­ ção é explicado por um fato de nível “superior” . Algumas vezes tais proposições são chamadas “holísticas" (Alexander, 1981). Aqui elas serão chamadas “macro-redutivas" (Friedman, 1981).

Macro-redução e Representações Sociais Prioridade taxonômica Em termos episternológicos, explicações macro-redu­ tivas não representam simplesmente o reverso das microreduções. Uma explicação de "baixo para cima" não é simétrica a uma explicação de "cima para baixo” . Vamos considerar uma simples ilustração dessa relação. Imagine uma panela de cozinhar onde se aquece água. Nós pode­ mos medir a temperatura da água usando um termômetro. A temperatura é o parâmetro relevante para descrever a condição dos conteúdos da panela em larga escala. Se observarmos as moléculas de H2O, podemos vê-las em movimento, tornam-se cada vez mais rápidas quanto mais alta for a macro-temperatura. Existe uma correlação entre a temperatura e a velocidade das moléculas. Nós não podemos, entretanto, usar 0 conceito de temperatura para descrever 0 comportamento de qualquer molécula isolada­ mente. Elas não possuem um atributo chamado tempera­ tura, mas um impulso que é medido com métodos completamente diferentes de um termômetro. Para sua descrição os macroconceitos tornam-se obsoletos e outras conceitualizações devem ser utilizadas. Não faria sentido dizer que as moléculas se movem e têm tal e tal velocidade por causa de sua temperatura, ou porque elas possuem uma disposição para se comportar de acordo com a ma­ cro-temperatura. Articular "micro" e "macro” , nesse exem­ plo, é um problema de medição e ao mesmo tempo um problema de teoria.

Faria mais sentido falar de uma representação intra-individual da condição da temperatura, se as moléculas fossem sujeitos humanos. Membros de um grupo social dispõem de saberes implícitos e explícitos das condições de sua "panela de cozinhar" social. Esses saberes implíci­ tos e explícitos, ao racionalizar e justificar suas ações, representam uma explicação sobre os seus modos de comportamento que pode ser objetivista (habitus) (Bourdieu, 1980) ou subjetivista (conhecimento representacional) (Wagner, 1989). A relação entre a macrocondição e um microfenômeno é sintetizada pela tese da prioridade taxonômica (Harré, 1979; 1980). Tal tese afirma que condições, processos, produtos e estruturas que pertencem a um nível inferior de avaliação, ou agregação, podem apenas ser classificadas corretamente se partirmos de um nível supra-ordenado. Cada condição, ao nível supra-ordenado, corresponde a uma condição específica ao nível subordinado - análogo a uma correspondência homomórfica de baixo para cima enquanto que a afirmação contrária não é verdadeira; uma condição específica ao nível inferior é compatível com várias condições ao nível superior. De um lado, a tese da prioridade taxonômica nega explicações micro-redutivas e, por outro, exige um enfoque macro-redutivo para a descrição e explicação de fenômenos individuais. O com­ portamento e o pensamento de sujeitos individuais só faz sentido se vistos no contexto dos limites impostos por suas condições sociais; mas o padrão modal de comportamento individual não determina uma condição social específica (Putnam, 1974, mas veja também Moscovici, 1993, para uma visão modificada). A relação entre o de baixo e o de cima não é simétrica. Fatos sociais necessitam ser traduzidos em entidades mentais intra-individuais, antes que eles possam ser usa­ dos para explicar ou para serem articulados com compor­ tamentos individuais (Devereux, 1961). Não é a pertença de um sujeito a um determinado grupo que faz com que

ele se comporte socialmente da maneira como o faz, mas a sua representação mental dos fatos sociais. Considere­ mos um comportamento individual que seja explicado por um fato social. De acordo com Devereux, a proposição o fato social explica o comportamento individual seria incom­ pleta porque lhe falta a "tradução" do fato social em um fato mental que seja acessível ao indivíduo. Somente a proposição em três etapas o fato social explica o seu ser mentalmente representado e a representação mental expli­ ca o comportamento individual seria completa. Essa "tra­ dução” (macro-redutiva) é necessária como pré-requisito para a explicação social do fenômeno mental e comportamental de indivíduos. Como será demonstrado a seguir, este é um pressuposto implícito na t e o r i a d a s r e p r e ­ s e n t a ç õ e s s o c ia is .

Níveis de avaliação nas Representações Sociais Dentro do campo de pesquisa em representações so­ ciais podemos observar dois usos distintos do conceito de representação, que dependem do interesse explicativo e do procedimento de avaliação do pesquisador. Um uso se refere a) ao sistema de conhecimento de indivíduos en­ quanto representativos de grupos específicos] o outro refere-se b) aos atributos das unidades sociais per se. O primeiro está interessado nas características das repre­ sentações sociais destribuídas entre os sujeitos; o outro está interessado no processo coletivo e no produto social do discurso e da comunicação (Harré, 1984). a) Se estiver interessado nas características distribuí­ das das representações sociais o pesquisador se remete ao nível de avaliação individual. Esse é também o caso se a avaliação do procedimento da representação - como ocorre na maioria dos casos - envolve uma amostra de vários indivíduos. O ponto de interesse, em tais estudos, é o conjunto de elementos constantes em uma representação, que pode apenas ser identificado através da amostragem de vários indivíduos. Aqui, portanto, os dados serão cole­

tados de uma amostra, na maioria das vezes homogênea. A representação, tal como é avaliada por este tipo de pesquisa, constitui-se dos elementos comuns do conheci­ mento que é produzido pelas pessoas na amostra5. A representação resultante será então a representação prototípica individualmente distribuída de elementos comuns (Figura 1). Esses elementos prototípicos de uma repre­ sentação são freqüentemente chamados núcleo central (e.g. Abric, 1987; Moliner, 1992). A maioria das pesquisas que são desenvolvidas atualmente se localiza dentro dessa perspectiva de entendimento das representações sociais.

CONHECIMENTO DAS PESSOAS FORMAM O NÚCLEO CENTRAL DA REPRESENTAÇÃO A pesquisa seminal realizada por Jodelet (1989) sobre representações da loucura nos habitantes de uma comuni­ dade rural francesa é um exemplo vivo dessa perspectiva. A comunidade representa um subgrupo significativo das comunidades rurais francesas, em função da tradição das famílias locais de adotar em suas casas e prestar cuidados a doentes mentais. Esse contato próximo com o doente mental deu origem a uma representação local da doença

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5 Posto de modo formal se leria: R = {Rpl,Rp2,...Rpn}, onde R é a respectiva representação e Rpi são representações distribuídas entre indivíduos de um (sub)grupo mais ou menos homogêneo.

mental altamente elaborada, que não pode ser encontrada em muitos outros subgrupos da sociedade francesa. As oposições centrais entre cérebro e nervos, bem como as condições do ataque inicial da doença - nascimento ou acidente que estão subjacentes a todas as opiniões, atitudes e comportamentos relacionados, formam um sis­ tema de conhecimento modal e prototípico, que é compar­ tilhado pelos residentes da comunidade. Portanto, pode­ mos dizer que cada habitante da comunidade é idealmente um portador exemplar dessa representação social especí­ fica da doença mental. b) Se, em contraste, o pesquisador está interessado nas características coletivas de uma representação social, ele ou ela, avaliará a representação pertencente aos grupos através de documentos, análises de mídia, ou sondagens. Isso garante que a visão coletiva da representação social resultante contenha não somente opiniões de subgrupos mais ou menos importantes, mas também que tome em consideração as diferentes versões, pontos de vista e profundidade de elaboração de um único e mesmo objeto social em um grupo social, mais abrangente. As representações sociais em grupos revelam uma divisão do trabalho que pode ser chamada lingüística (Putnam, 1988), cognitiva (Moscovici, 1991) ou representacional. Em conseqüência, as representações de um único e mesmo objeto social estão presentes em vários estados de elaboração em diferentes subgrupos e incluem aspectos diferenciados do objeto que variam na relevância que tem para cada subgrupo. Entretanto, somente a tota­ lidade desses aspectos pode ser considerada como a re­ presentação social do respectivo objeto para um grupo social como um todo. Nesse caso, o pesquisador procura avaliar a totalidade das versões existentes de uma repre­ sentação, em uma unidade social mais ampla6. 6. Posto formalmente se leria: R = U {RG1, RG2,...RGn), onde R é a respectiva representação e RGi são as representações avaliadas nos subgrupos com pontos de vista relevantes, socialmente diferenciados, dentro da divisão do trabalho representacional.

A representação global resultante é a representação coletiva completa, com elementos que não são comuns a todos os grupos, mas que são típicos ou relevantes para um ou outro grupo social7. Esta representação social não é parte do nível de avaliação individual, mas do nível de avaliação do grupo, ou social. Ela contém elementos e uma estrutura que, em sua totalidade, não pode ser encontrada em pessoas individuais, mas somente no grupo como um todo. Nem pode-se dizer que ela se reduz a um "resultado" modal das representações individuais dos membros de um grupo, mas sim que ela representa uma macro-estrutura própria (Figura 2).

FIGURA 2: OS ELEMENTOS COMBINADOS DAS SUB-REPRESENTAÇÕES DOS SUBGRUPOS FORMAM A REPRESENTAÇÃO GLOBAL

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7 É necessário deixar claro que eu não me refiro ao termo representação "hegemônica" tal como foi discutido por Moscovici (1988). O seu termo enfatiza um alto grau de similaridade de representações em unidades socias bastante amplas.

Moscovici (1976), em seu estudo da representação da psicanálise, se centrou também nesta última perspectiva de entendimento das representações sociais. Ele mostrou como diferentes grupos da sociedade francesa desenvolve­ ram um entendimento típico dos processos psicanalíticos, que dependia de padrões ideológicos e de interesses pre­ existentes. A divisão do trabalho representacional se refle­ tia, por exemplo, nos diferentes enfoques que os meios de comunicação davam à nova teoria. A mídia liberal e não comprometida ideologicamente enfocava a psicanálise de forma bastante diferente da mídia explicitamente católica ou das revistas e jornais da extrema esquerda. Assim, cada subgrupo da sociedade francesa elaborou um conhecimen­ to típico da psicanálise, que era diferente nos seus deta­ lhes. Mas somente a união de cada "sub-representação" específica relativa aos diferentes grupos pode ser chamada a representação social da psicanálise na sociedade france­ sa; e é a totalidade das "sub-representações" desses gru­ pos, incluindo aí os próprios psicanalistas, que garante a complexa interação social, que somente in toto vai consti­ tuir a psicanálise como objeto no discurso social francês. Os sujeitos em estudo na investigação de Jodelet (1989) sobre a doença mental eram residentes natos da comunidade. Entretanto, havia outros subgrupos vivendo no lugar: os médicos, as enfermeiras, o pessoal adminis­ trativo. Em relação a esses grupos adicionais, a repre­ sentação social da doença mental dos moradores natos da comunidade é somente uma sub-representação. Se nós considerarmos a organização global dessas comunidades - como hospitais psiquiátricos abertos - essa instituição funciona somente como um produto da coordenação inte­ grada entre os diferentes subgrupos de famílias hospedei­ ras, enfermeiras, médicos, pessoal administrativo (e pacientes). Portanto, para que possamos descrever e expli­ car os trabalhos da organização mais claramente, seria necessário avaliar mais do que a simples representação do

subgrupo que hospeda os doentes mentais8. A instituição trabalha enquanto tal em função da presença comum das representações - que são certamente divergentes - de todos os subgrupos relevantes, que formam a completa representação coletiva da doença mental na comunidade, e que integram seus aspectos práticos, médicos e admi­ nistrativos do dia-a-dia. Vergès (1987, 1989) estudou representações da econo­ mia em diferentes subgrupos sociais. Ele descobriu dife­ rentes representações sobre economia em grupos de gerentes, trabalhadores manuais e, por exemplo, assisten­ tes sociais. Essa divergência, naturalmente, não constitui surpresa se tomarmos em consideração as diferentes posi­ ções funcionais desses grupos na sociedade. De acordo com sua posição social, os membros de cada subgrupo compartilhavam uma imagem bastante homogênea do processo econômico. Essas imagens se constituem em representações modais típicas dos membros de qualquer grupo específico. Porém, somente a união de todas as representações relevantes dos subgrupos particulares constitui a representação social da economia em uma sociedade no sentido coletivo, e é essa totalidade que governa a vida social e econômica da sociedade. A relação entre a representação avaliada a nível indi­ vidual a) e a representação avaliada a nível social b) é macro-redutiva. A existência do processo social explica o sistema de conhecimento individual. O sistema coletivo de entendimento, justificação e racionalização que o grupo desenvolve sobre suas práticas define a perspectiva dentro da qual os membros do grupo podem alcançar um enten­ dimento de sua situação social e de sua identidade. Isso é equivalente à etapa de "tradução" que Devereux (1961) exigia para que fatos sociais se tornem explanantia válidos para os fatos individuais; essa é a transformação do fato

8. Jodelet também menciona o papel do conhecimento médico da equipe, que é parcialmente transformado e integrado à representação social popular.

social em um fenômeno mental individual, representação ou comportamento. Essa etapa de "tradução" macro-redutiva foi discutida e utilizada pela pesquisa em representação social em três contextos. O primeiro deles foi a discussão extensiva que Moscovici (1976) realizou dos meios de comunicação de massa, especialmente de jornais e revistas contemporâ­ neos a sua investigação. O segundo contexto é dado pela pesquisa em desenvolvimento, considerando a ontogênese das representações sociais ao nível de avaliação individual (p. ex. o volume editado por Duveen e Lloyd, 1990). O acesso da criança ao conhecimento social espelha, de maneira exata, a transformação das representações sociais em um atributo individual. O terceiro contexto é fornecido por Sperber (1990), que salientou o problema da “tradu­ ção", ao exigir que prestássemos atenção aos processos epidemiológicos que estavam na base da articulação de imagens potencialmente coletivas, das metáforas e sua forma diferenciada de aceitação cognitiva por indivíduos. E finalmente Wagner (no prelo, a,b) discute a sócio-gênese e suas conseqüências na estrutura das representações sociais ditsstribuídas. Se certas imagens, ou metáforas, vão atrair ou não os membros concretos de um subgrupo específico e, portanto, vão ser integradas em uma representação distribuída den­ tro do grupo, dependerá de vários aspectos. Há que se considerar a orientação política e cultural preexistente, p. ex. de gerentes, trabalhadores ou assistentes sociais na investigação de Vergès, que impõe limites à possível aceitabilidade de certos elementos do conhecimento eco­ nômico; existe o papel funcional do grupo no sistema social, como, por exemplo, as famílias hospedeiras na investigação de Jodelet, que comanda a aceitabilidade das explicações médicas para a doença mental, fornecida por médicos e enfermeiras; existe o pano de fundo cultural e o acesso aos meios de comunicação, como é o caso na investigação de Moscovici, que limita o acesso potencial

do homem da rua aos detalhes da teoria psicanalítica. As condições concretas em que sujeitos sociais se encontram constituem o espaço para as experiências dentro das quais novos saberes podem ser objetificados e integrados a um estoque prévio de senso comum (Wagner, Lahnsteiner & Elejabarrieta, 1993). Em qualquer dos casos, entretanto, o que ocorre é um processo de transformação dos atributos de uma coletivi­ dade, em atributos compartilhados por indivíduos sociais. Esse processo de transformação explica o surgimento do conhecimento e das representações dos indivíduos sociais, porque fornece os detalhes de sua ecologia coletiva. Já que os estados mentais e comportamentais dos indivíduos representam um nível diferente de avaliação, em relação às condições de uma coletividade, essa explicação pode ser chamada macro-redutiva, fazendo a ponte entre dois níveis de avaliação diferenciados.

As Representações Sociais em explicações As representações sociais entram em modalidades de explicação tanto como (a) explanandum ou como (b) explanans: (a) Uma representação avaliada ao nível social pode integrar uma explicação como explanandum - ou seja, como variável dependente9. Nesse caso a proposição ex­ plicativa é considerada como fornecendo a causa da re­ presentação. (b) A representação avaliada ao nível individual pode integrar a proposição explicativa como explanans, causan­ do um fenômeno subseqüente.

9

.

Mesmo que os termos variável independente e dependente pertençam originalmente a condições experimentais, e apesar do fato de que repre­ sentações sociais são fenômenos que podem ser experimentados apenas em certas condições, eu considero o uso de tais termos legitimo para os objetivos a que me proponho aqui.

A figura 3 mostra o contexto conceituai dessas explicações.

Condições sociais, conflito

Objetos e fatos sociais

so -♦

Explanans

Explanandum

causa

Explanandum

Explanans Repre:

entayâo social

Discurso coletivo

M entalidade social do indivíd uo, ação e interação

di ongem

_____________ 4

(v ia e lidem io ogia)

acessível à

acessívelà

avaliação e explicação ao n ível social

avaliação e explicação ao nível individual

FIGURA 3: A RELAÇÃO ESQUEMÁTICA ENTRE NÍVEIS DE AVALIAÇÃO EM REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

Explicando Representações Sociais As condições sociais em que um grupo vive delimitam o espaço de experiência de seus membros. A estrutura social - via a sócio-gênese das representações sociais (Wagner, no prelo, b) - determina, em grande parte, o que e como os membros de um grupo pensam; i. é, a condição mental dos membros de um grupo reflete uma estrutura social. Essa relação foi batizada como "homologia estrutu­ ral" pela sociologia de Bourdieu (1980). Homologia estru­ tural quer dizer uma relação homológica entre as diferentes

estruturas do campo social, isto é, uma relação que é caracterizada por uma causalidade, função e história co­ mum aos dois campos. Isso significa que “(...) as relações dentro de um campo específico são da mesma natureza que as relações dentro de outros campos” Doise, 1976, p. 930). Bourdieu e Saint-Martin (citados em Doise, 1976) dão um exemplo das homologias estruturais em uma investi­ gação das instituições educacionais. Eles analisaram es­ truturas institucionais, a hierarquia entre os sujeitos, os departamentos organizacionais, as estruturas cognitivas e taxonomias dos professores trabalhando naquela institui­ ção. “Taxonomias educacionais - estruturas objetivas que se tornaram estruturas mentais, no curso de um processo de aprendizagem realizado em um universo organizado de acordo com essas estruturas, e sujeito a sanções expressas em uma linguagem igualmente estruturada de acordo com as mesmas oposições - se classificam de acordo com a lógica das estruturas cujo produto elas são” (Bourdieu & Saint-Martin, in Doise, 1976:932). Mesmo que indivíduos pertencentes ao mesmo grupo social possam ser bastante diferentes em termos de suas personalidades, eles se aproximam uns dos outros no que diz respeito à estrutura básica de sua experiência social comum, de seu pensa­ mento e de sua ação. Eles são similares com respeito ao habitus que incorporaram, bem como com respeito aos padrões de linguagem e racionalização que compartilham, isto é, com respeito às suas representações sociais. Ainda que provavelmente diferentes em certos aspectos, essas disposições mentais são variações de um padrão comum subjacente, possível dentro de dadas condições sócio-culturais de vida. A relação estrutural entre condições mentais coletivamente compartilhadas e condições sociais é homológica por causa de sua história comum e sua função social. Explicar uma representação social ao nível de avalia­ ção social significa, portanto, determinar a condição social que a originou e caracterizar e justificar a relação estrutural

entre ambas. Um exemplo particularmente claro de tal forma de pesquisa - ainda que não realizado sob o título da t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c ia is - é a investigação que Bloor e Bloor (1982) realizaram sobre a relação entre as crenças de cientistas industriais e a estrutura social das instituições nas quais eles trabalham. Os autores mostram como as “cosmologias" profissionais e cotidianas, isto é, as crenças sobre o que a ciência é ou deveria ser, como o trabalho técnico deve ser organizado, as pressuposições morais etc. de seus sujeitos se relacionam com as condi­ ções organizacionais de seus locais de trabalho. De acordo com a teoria antropológica da organização social de Douglas (1982), Bloor e Bloor (1982) discriminam quatro tipos de estrutura social nas organizações: há as organizações com membros altamente individualizados e independentes, há instituições com uma hierarquia forte­ mente determinada e outras com estruturas de tipo fracional, e ainda há organizações onde os membros apresentam um baixo nível de afiliação grupai, mas um alto nível de subordinação. Cada uma dessas condições sociais se rela­ ciona com a estrutura específica das crenças cotidianas que os membros da organização apresentam. Cientistas industriais em organizações individualizantes, por exem­ plo, acreditam que a natureza é estruturada de forma similar à instituição em que trabalham: fenômenos naturais não são considerados como estruturados de forma rígida, eles são irregulares, e a natureza revela seus segredos somente para indivíduos com um conhecimento específico que utilizam metodologias corretas. Homologias similares entre estruturas organizacionais e mentais foram encontra­ das para outras condições. Os autores concluem: “(...) os estilos preferidos de trabalho, o sentido da melhor orienta­ ção com respeito à natureza, as convicções sobre o que é moralmente permitido no campo das ciências, não se originam dos limites técnicos impostos ao trabalho ou de experiências anteriores na universidade mas das condições atuais de trabalho na organização” (p. 97).

Na pesquisa em representação social existem poucos exemplos de investigações desse tipo. A maioria das pesquisas que investigam as relações entre condições sociais e representações sociais partem do conflito social introduzido por mudanças nas condições de vida. Flament (1987), por exemplo, demonstrou como mudanças nas práticas cotidianas, trazidas pela introdução de novos métodos de produção agrícola do arroz em uma sociedade que tradicionalmente cultivava feno, conduziu a uma nova representação social na população rural em Madagáscar. Apesar da pouca atenção que o problema de explicar representações sociais através de condições sociais rece­ beu até agora, constitui-se em uma tarefa legítima e importante demonstrar como as representações sociais, enquanto "variáveis" dependentes, podem ser explicadas a este nível social de avaliação. Certamente não constitui uma explicação suficiente apenas afirmar que o grupo A possui tal e tal representação, e que o grupo B possui a outra que é diferente, se o pesquisador não justificar em detalhes a relação homológica entre estrutura social e mentalidade individual.

O que as Representações Sociais podem explicar Existe certamente muito mais interesse na pesquisa em representações sociais que usa as representações como uma "variável” independente para explicar fenômenos sub­ seqüentes, isto é, para usar representações como explanantia de, por exemplo, comportamento. Nesse sentido, Moscovici (1984, p. 60s) afirma que representações são, elas próprias, estímulos e que, portanto, são variáveis independentes em investigações empíricas. Um exemplo de pesquisa utilizando representações como variáveis independentes para explicar comporta­ mento/ação é a investigação realizada por Thommen, Ammann e Von Cranach (1988) sobre crenças profissionais e comportamento de psicoterapeutas. Os autores mostra­

ram como a representação social da prática profissional correta dirige a ação do terapeuta profissional vis-à-vis seus pacientes e colegas. Os autores estudaram as premis­ sas teóricas de duas escolas de psicoterapia - terapia comportamental e terapia centrada no cliente de orienta­ ção rogeriana - através da análise de documentos, entre­ vistando terapeutas sobre seu conhecimento teórico e metodológico anterior e sobre suas crenças. Em um passo seguinte, o comportamento dos terapeutas foi observado e analisado. Os autores mostram como, por exemplo, tera­ peutas não-diretivos relacionam suas atribuições clínicas e intervenções a expectativas e desejos, enquanto terapeu­ tas comportamentais relacionam-nas ao processamento cognitivo da informação, objetivos e disposições de seus clientes. No que diz respeito a seu comportamento profis­ sional, a maioria dos terapeutas comporta-se de acordo com suas representações profissionais. Echebarría e González (no prelo) estudaram se repre­ sentações sociais em contextos políticos aparecem como racionalizações secundárias de comportamentos anterio­ res, ou como determinantes primários de comportamentos reais. Em seu estudo, eles aplicaram um complexo ques­ tionário elaborado para avaliar representações, atitudes e intenções, um mês antes das eleições ocorrerem. Depois das eleições eles perguntaram uma vez mais aos mesmos sujeitos se eles haviam votado ou não. A partir dos dados, eles concluíram que representações sociais podem ser, de algum modo, justificações e racionalizações de práticas sociais anteriores - aqui entendidas como a prática de votar em uma eleição política - e, ao mesmo tempo, que as representações sociais aparecem como dirigindo intenções de comportamento. Tal pesquisa ajusta-se ao pressuposto "clássico" que crenças e intenções de sujeitos sociais podem ser usadas como explicações causais para o comportamento e para a ação, muito ao modo da pesquisa tradicional em atitudecomportamento. Análises epistemológicas e teóricas, en­

tretanto, colocam em dúvida se representações, entendi­ das como conteúdos mentais racionais, são legítimos explanantia do comportamento e ação a eles relacionados. Em bases epistemológicas, de um lado, pode-se supor que representações - sendo disposições racionais para compor­ tamento social - implicam comportamentos e ações espe­ cíficas como uma conseqüência lógica necessária (isto é, analítica) e não como uma conseqüência contingente em­ pírica (isto é, sintética). Se aceitarmos este argumento como correto, as representações e os comportamentos a elas relacionados, são entidades altamente integradas e mutuamente dependentes, que não podem ser justapostas a explicações causais (Wagner, 1993). Em bases teóricas, por outro lado, pode-se argumentar que dados verbais usados para avaliar o conteúdo de uma representação como variável independente são equivalen­ tes lógicos aos dados obtidos através do comportamento explícito "dependente". Portanto, esses dois tipos de dados devem ser vistos como ilustrações do mesmo tipo de conteúdo representacional. A preferência do pesquisador ao usar dados verbais para avaliar a variável independente, e observação para avaliar comportamento explícito, intro­ duz uma separação artificial entre comportamento e repre­ sentação. Uma vez separadas, representação e compor­ tamento são novamente ligados por uma relação causai/in­ tencional, onde a representação supostamente explica o comportamento. Mas essa relação causai/intencional pode ser demonstrada como o resultado de um deslocamento de crenças populares sobre intenções comportamentais e comportamento. Na vida cotidiana, as pessoas acreditam e dizem que agem assim e assim porque elas pensam que aquele é o comportamento apropriado e correto para uma dada situação. Portanto, elas explicam suas ações através de crenças e intenções anteriores. Tal afirmação popular reflete, entretanto, uma crença dos sujeitos e não uma afirmação teórica ligando condições mentais e comporta­ mento. É uma crença que está profundamente sedimenta­ da na psicologia popular, mas ainda assim uma crença e,

portanto, parte da visão de mundo dos sujeitos. Conse­ qüentemente, elas são parte de uma representação popular e devem ser avaliadas como parte da representação social. Compartilhando a mesma psicologia popular na vida coti­ diana, os pesquisadores, obviamente, também subscrevem tais crenças intencionais, mas não é legítimo, estritamente falando, fazer dessa crença uma explicação a nível teórico. As convicções dos sujeitos de que suas ações são causadas por suas representações justificam a visão que eles têm de si mesmos como seres racionais. Se um sujeito não acre­ ditasse agir de acordo com o conhecimento de que dispõe, ele ou ela se estariam aceitando como estúpidos e irracionais (Wagner, 1994b). Fundamentado nesses argumentos, parece-me que a pesquisa que explica o comportamento com base em representações desloca aquilo que é uma crença dos su­ jeitos para o nível de uma afirmação teórica. Tais pesquisas consideram aquilo que é o conteúdo mental dos sujeitos como passível de ser integrado em uma teoria sobie o conteúdo mental dos sujeitos. E tal prática não é legítima, do mesmo modo que seria ilegítimo considerar crenças sobre a loucura como parte de uma teoria científica da loucura. Se aceitarmos esses argumentos, o que pode, então, ser explicado por uma representação? A resposta é sim­ ples: enquanto relacionado a crenças, o comportamento manifesto é parte e conteúdo da própria representação social, é a conseqüência do comportamento no mundo social que se necessita explicar pelo complexo repre­ sentação/ação. O comportamento e a ação estão lógica e necessariamente conectados a crenças representacionais, mas suas conseqüências não estão. A ação e as conse­ qüências da ação são duas coisas diferentes. Permitam-me dar um exemplo: Di Giacomo (1980) demonstrou o modo como representações se originaram em grupos sociais ao longo de um movimento de protesto

estudantil em uma universidade belga. Militantes e parti­ cipantes "normais" do movimento formaram representa­ ções tão discrepantes, que estas conduziram a severas incompreensões e problemas de comunicação entre os grupos, levando o movimento finalmente a fracassar e não atingir objetivo algum. Nessa pesquisa, torna-se particu­ larmente claro que não é o comportamento dos indivíduos e grupos que pode ser razoavelmente explicado por uma representação social. O comportamento explícito é sim­ plesmente uma expressão possível da representação men­ tal que também pode ser expressada verbalmente em entrevistas ou de forma escrita em panfletos. O fracasso do protesto para atingir o resultado desejado - que constitui um fato social passível de ser explicado causalmente - é uma conseqüência do complexo representação e ação, da representação coletiva e da ação. O resultado do complexo representação e ação e sua conseqüência contingencial é, portanto, passível de uma verdadeira explicação causai. A pesquisa de Di Giacomo (1980) pode também ser usada para ilustrar, de maneira clara, o que acontece quando olhamos o movimento de protesto de um nível de avaliação social. Para isso, ampliemos, ficticiamente, o exemplo. Imaginemos que avaliamos a estrutura e o con­ teúdo coletivo da representação do protesto, dentro dos diferentes envolvidos. Qual é, pois, o "objeto” dessa repre­ sentação, a esse nível? É o "protesto”? Ou é o aconteci­ mento que leva ao protesto? Mais provavelmente nós diríamos: "Claro, o objeto que está sendo representado é o protesto, suas razões etc." Mas qual é esse objeto chamado "protesto"? Podemos pensar em protesto sem levar em consideração os acontecimentos que tiveram lugar na e ao redor da universidade? Conseqüentemente, não é o protesto exatamente o padrão de comportamento coletivo dos grupos envolvidos? Isto é, não são os grupos, criando exatamente esse objeto, e não outro, através de uma interação massiva organizada e consciente? Portanto, o objeto que está sendo representado não existiu antes que

a representação fosse formada e antes que ela fosse posta em execução a um nível coletivo. Na verdade, quando vista a partir de um nível coletivo, torna-se claro que a repre­ sentação e o comportamento coletivo são um só, e não dois lados da moeda. Eles não podem nem ser separados - tanto conceptualmente como empiricamente - nem ligados atra­ vés de relações causais explicativas. Deixar de lado uma ou outra das partes, seja o sistema simbólico, ou o com­ portamento coletivo, negaria imediatamente todo o fenô­ meno: se olharmos para a representação a nível coletivo, sem pressupor o comportamento ligado, o objeto da repre­ sentação, isto é, o protesto, não existiria e, conseqüente­ mente, também não existiria a representação. Se olharmos apenas para o comportamento coletivo, poderíamos inter­ pretar os acontecimentos como significando algo parecido com um movimento de protesto, mas: "por que, afinal” , estão esses estudantes agindo de tal maneira organizada, sem partilhar uma representação simbólica comum do que se deve fazer? Portanto, esse exemplo fictício nos mostra a indivisibilidade do complexo chamado "representação social” , unindo elementos simbólicos, mentais e comportamentais, que somente adquirem sentido como um todo, e simultaneamente originam seu próprio objeto.

Conclusão Este capítulo apresentou alguns aspectos metateóricos da t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c i a i s . Seu argumento foi de que métodos de avaliação têm implicações cruciais para o tipo de conclusões teóricas que se pode extrair de uma investigação e para os tipos de explicação que podem ser oferecidos. As representações podem pertencer tanto a níveis individuais como sociais de avaliação, dependendo dos métodos que o pesquisador utiliza na pesquisa empí­ rica. Esses dois níveis de avaliação das representações

sociais implicam dois enfoques diferentes com objetivos também diferenciados. As representações sociais geralmente podem ser ex­ plicadas através das condições sócio-estruturais e sóciodinâmicas de um grupo. Isso implica uma visão mais profunda dos processos sócio-genéticos que dão origem à formação de representações sociais e a sistemas de cren­ ças. Enquanto elemento que explica em uma proposição explicativa, procurou-se argumentar que as representa­ ções e os comportamentos a elas associados permitem analisar por que eventos sociais ocorrem e como objetos sociais são construídos. São, entretanto, os resultados da ação e do comportamento que são explicados causalmente pela representação e não o comportamento em si mesmo. Se este capítulo, erroneamente, deu a entender a separação entre os aspectos sociais e individuais das representações sociais, tal erro deve ser corrigido de ime­ diato. Eu não acredito que estes dois aspectos possam ou devam ser separados em um nível teórico, mas sim e somente a nível metateórico. Observar alguns dos aspectos metateóricos em investigações empíricas deve ser para nós uma medida preventiva contra a perda daquela dimensão cada vez mais complexa, que é a estrutura conceituai da t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c i a i s contemporânea.

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PARTE 3 DIMENSÕES PRÁTICAS DA TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

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PEDRINHO A. GUARESCHI

6. “SEM DINHEIRO NÃO HÁ SALVAÇÃO”: ANCORANDO O BEM E O MAL ENTRE NEOPENTECOSTAIS1

Pedrinho A. Guareschi Introdução Este trabalho tem sua origem em observações de inúmeras situações muito concretas e aparentemente inex­ plicáveis: ao assistirmos às sessões de culto, orações, pregações, exorcismos, etc. de grupos neopentecostais, ficávamos estupefactos, quando não revoltados, ao vermos como aquelas multidões de pobres e doentes, necessitados de quase tudo, ao apelo do pregador tomavam seu dinhei­ ro, buscavam no fundo de seus bolsos e bolsas os últimos centavos, e os levavam, respeitosamente, ao altar, ou os colocavam nas bolsas das coletas. Numa ocasião tive dificuldade de impedir que a pesquisadora-bolsista, que comigo fazia a observação, se contivesse e não começasse a gritar, denunciando as práticas de exploração que pre­ senciávamos. E a pergunta que nós nos fazíamos era: Como é possível tal exploração? Será que as pessoas não se dão conta de tamanha manipulação?

1. Sou grato aos bolsistas Graziela Werba, Paulo Hammes e Fabrício Peruzzo, do CNPq, e Fátima de Oliveira, da Fapergs, pela colaboração na coleta e discussão dos dados. A pesquisa contou com a ajuda do CNPq.

Esse trabalho quer ser uma tentativa de compreensão desse fenômeno. Tentaremos mostrar que é possível com­ preender tais ações, na medida em que, com humildade e persistência, se procura penetrar no mundo simbólico das representações e na ação da ideologia na manipulação dessas representações. É a mesma pergunta de Reich (1972:18-19): "por que a multidão dos famintos não rouba, e a multidão dos explorados não se revolta", mas vivem felizes, beijando os grilhões que os aprisionam? Na primeira parte do trabalho comparamos o conceito de Representações Sociais (RS a seguir) com outros con­ ceitos correlatos, principalmente com o de ideologia. Na segunda parte, apresentamos os dados e fazemos sua análise.

O conceito de RS e seus “parentes” O desejo de se criar um conceito que conseguisse superar as dificuldades de conceitos existentes já está presente num trabalho de Moscovici de 1963. Moscovici fazia, ali, uma revisão das pesquisas realizadas sobre atitudes e opiniões, manifestando seu desconforto com esses conceitos, praticamente onipresentes e dominantes no campo da p s ic o l o g i a s o c i a l da época. As críticas por ele formuladas aos conceitos eram de que eles “eram relativamente estáticos e descritivos" (1963:252). Na realidade, a crítica feita por Moscovici tinha um horizonte mais amplo: ele tentava mostrar que a visão de realidade, como pressuposta pela teoria positivista e funcionalista, era parcial e não dava conta de explicar outras dimensões da realidade, principalmente sua dimensão histórico-crítica. É o que ele próprio deixa entrever, nesse mesmo artigo, onde ele lamenta “a ... falta de uma tendên­ cia teórica maior em direção a um novo enfoque de compreensão da realidade" (1963:231). Eram as primeiras discussões para a superação da visão positivista nas ciên­

cias sociais. Moscovici deixava entrever ali seu desejo de criar uma teoria (que posteriormente chamou de Repre­ sentações Sociais) que fosse dinâmica e explicativa ao mesmo tempo. A realidade entrevista por Moscovici, e da qual o conceito de RS deveria dar conta, era uma realidade que compreendesse as dimensões físicas, sociais e culturais.\E o conceito deveria abranger a dimensão cultural e cogniti­ va; a dimensão dos meios de comunicação e das mentes das pessoas; a dimensão objetiva e subjetiva. Era esse o desafio que o conceito de RS pretendia enfrentar. Daria ele conta de ser o portador dessas novas dimensões, superando as limitações de conceitos anterio­ res como opinião pública, atitude, representação coletiva, mito, estereótipo, cognição social, teoria dos esquemas, teoria da atribuição e mesmo de ideologia? É o que desejamos discutir brevemente nos pontos a seguir2.

RS e opinião pública O conceito de RS distingue-se do conceito de opinião pública. Isso fica claro ao analisarmos a definição que F.H. Allport (1937:22) dá de opinião pública: "o termo opinião pública recebe seu significado a partir de uma situação multiindividual, em que os indivíduos se expressam, ou são chamados a se expressar, a favor ou contra (apoiando ou opondo-se) alguma condição específi­ ca, alguma pessoa ou proposta de importância geral, em tal proporção de número, intensidade e constância, que isso dê origem à probabilidade de afetar, direta ou indiretamente, a ação em direção ao objeto referido.” É interessante notar aqui o cuidado de Allport em evitar a palavra social. Blumer (1948), já em 1948, ao 2

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Uma discussão mais aprofundada de alguns desses conceitos pode ser encontrada em Farr (1990).

discutir com Allport a natureza da opinião pública, critica­ va esse enfoque positivista de análise e atribuía isso à ênfase exagerada e central que os teóricos davam aos métodos, esquecendo-se da dimensão histórica e da for­ mação das opiniões. Para Blumer, a deficiência inerente às pesquisas de opinião pública reside no fato de que os procedimentos dessas pesquisas pressupõem um tipo de sociedade que não passa de um agregado de indivíduos dispersos. Aém disso, se esquece de ver como se forma a opinião pública. As RS, ao contrário da opinião pública, têm a ver com as dimensões de construção e de mudança, ausentes do conceito de opinião pública. Enquanto Allport está interessado em saber qual é a opinião das pessoas, Blumer está interessado em saber como ela se constrói.

Representações Sociais e atitude Jaspars e Fraser (1984) fazem um estudo detalhado e crítico da história do conceito de atitude e de como ele deve ser diferenciado do conceito de RS. Mostram eles que se formos retornar, na História da p s ic o l o g i a s o c i a l , à década de 20, analisando, por exemplo, o trabalho de Thomas e Znaniecki (1918-20), iremos constatar que as atitudes, da maneira como eles as definiram e empregaram, eram "representações coletivas", tanto na teoria, como na pesquisa. Seu grande trabalho de investigação foi a com­ paração entre os valores e “atitudes sociais" dos poloneses americanos. Até mesmo as técnicas de análise de atitude implicam uma representação cognitiva comum do objeto de estudo, e essa representação é certamente social, tanto em sua natureza, como em suas origens. Isso é evidente na escala de Guttman, mas também na de Thurstone, pois o emprego de um painel de juizes é uma tácita aceitação de que as atitudes são uma forma de representação social. Por que, então, a diferenciação tão nítida entre atitude e RS que temos hoje? Onde buscá-la?

O responsável por essa metamorfose foi Gordon Allport, no seu clássico artigo sobre atitudes no livro-texto de Murchison (1935). Jaspars e Fraser mostram como Allport foi retirando, progressivamente, os componentes sociais e coletivos de mais de cinqüenta definições de atitude, até chegar á sua clássica definição de atitude como sendo “uma disposição mental e nervosa, organizada pela expe­ riência, que exerce uma influência diretiva e dinâmica sobre o comportamento do indivíduo, em relação a todos os objetos e a todas as situações com as quais ele entra em contato" (Allport, G. 1935, verbete “atitude’’). Foi desse modo, e nessa ocasião, que esse conceitochave em p s ic o l o g i a s o c i a l começou a deixar de ser “social" para se tomar "individual". Graumann (1986) fez um estudo semelhante sobre a contribuição para o desen­ volvimento da p s ic o l o g i a s o c i a l de Floyd Allport, irmão de Gordon. Em sua análise do clássico livro-texto de F. Allport (1924), Graumann argumenta que a individualiza ção do social caminha de mãos dadas com a dissocialização do indivíduo.

Representações sociais e representações coletivas O próprio Moscovici confessa que ele se inspirou, na criação do conceito de RS, no conceito de Representações Coletivas (RC) de Durkheim. Mas onde estaria a diferença? Ela parece ser um pouco sutil. Talvez seja Sperber (1985) quem melhor identifique as possíveis diferenças através de uma analogia que ele faz com a medicina. Para ele os psicólogos e antropólogos deveriam trabalhar em conjunto para estudar o que ele chamou de “epidemia das representações". Diz ele que a mente humana é suceptível de representações culturais, do mesmo modo que o orga­ nismo humano é suceptível de doenças. Mostra que repre­ sentações duradouras, amplamente distribuídas, são

aquilo a que nós primeiramente nos referimos quando falamos em cultura. E ele se pergunta: Por que algumas representações têm, em certas populações, mais sucesso que em outras, são mais contagiosas, mais pervasivas? A resposta de Sperber (1985) é que isso depende da distribui­ ção das representações. Algumas delas “se transmitem vagarosamente por gerações; são o que chamamos de tradições e são comparáveis à endemia; outras repre­ sentações, típicas das culturas modernas, se espalham rapidamente por toda a população, mas possuem um curto período de vida; são o que chamamos de modas e são comparáveis à epidemia” . O primeiro tipo de representação corresponderia ao conceito de “representações coletivas" de Durkheim; o segundo, ao conceito de RS de Moscovici. O primeiro tipo está mais ligado à cultura que, para Sperber (1990:42), é como “o precipitado da cognição e comunicação num grupo humano". Moscovici tinha consciência que o modelo de socieda­ de de Durkheim era estático e tradicional, pensado para tempos em que a mudança se processava lentamente. As sociedades modernas, porém, são dinâmicas e fluidas. Por isso o conceito de “coletivo" apropriava-se melhor àquele tipo de sociedade, de dimensões mais cristalizadas e estruturadas. Moscovici preferiu preservar o conceito de representação e substituir o conceito “coletivo", de cono­ tação mais cultural, estática e positivista, com o de "so­ cial": daí o conceito de Representações Sociais. A discussão feita por Jahoda (1982) vem corroborar essa diferenciação, ao tratar o mito como sinônimo de representação coletiva. Na realidade, o mito é um fenôme­ no cultural estratificado, cristalizado, não possui a dinamicidade e a historicidade que se quer dar ao conceito de RS. Sperber (1985) distingue ainda entre RS e estereótipo. Para ele, estereótipo seria uma representação coletiva, da qual existem muitas cópias, cópias idênticas da repre­ sentação.

RS e teoria da atribuição Alguns teóricos das RS (Farr e Moscovici, 1984; Farr, 1990) fazem questão de distinguir, com ênfase até, entre a Teoria das RS e a Teoria da Atribuição. Afirmam eles que as RS são mais básicas, operando a um nível mais profundo, que as meras atribuições. Para Moscovici, o pressuposto de que um indivíduo atribui certos comportamentos a outra pessoa baseia-se no princípio de que o ser humano é um estatístico, e seu cérebro funciona como um computador infalível. Mas a realidade mostra que toda explicação depende primaria­ mente da idéia que nós temos de realidade. É essa idéia que governa nossas percepções e inferências construídas a partir delas, junto com nossas relações sociais. E quando nós respondemos à pergunta "por quê?” , começamos de uma representação social, ou de um contexto geral para o qual fomos levados, a fim de dar essa resposta explicativa. No exemplo das causas do desemprego, Moscovici mostra como um grupo atribui esse fenômeno a fatores individuais, e outro a fatores sociais. Mas nos esquecemos de que as duas explicações, totalmente opostas, provêm de representações sociais distintas. A primeira acentua a responsabilidade individual e a energia pessoal, ao passo que a segunda acentua a responsabilidade social. Para ela, a primazia, na causalidade, está nas representações, e são elas, em cada caso, as que ditam a atribuição, tanto para o indivíduo, como para a sociedade. O que deve ser tomado em consideração, é que tanto as experiências que temos, como as causas que selecionamos, são ditadas, em cada caso, por um sistema de representações sociais. Farr também analisa com argúcia essa problemática, buscando como exemplo um trabalho de Ichheiser, onde ele discute a ideologia do sucesso e do fracasso. Diz Ichheiser (1943:152): Os equívocos que consistem em subestimar a importância dos fatores situacionais e em sobrestimar a importância dos

fatores pessoais não se deram por acaso. Esses equívocos não são erros pessoais, cometidos por pessoas ignorantes, Eles são, ao contrário, uma conseqüência consistente e inevitável do sistema social e da ideologia do século XIX, que nos levaram a acreditar que nosso destino, no espaço social, dependia exclusivamente, ou ao menos predominan­ temente, de nossas qualidades pessoais - e que nós, como indivíduos, e não as condições sociais predominantes, cons­ truímos nossas vidas. Essa representação coletiva (mas não social) de indi­ víduos como sendo responsáveis por suas ações na vida é retomada, de forma um pouco modificada, por Heider (1958), ao discutir as atribuições referentes ao sucesso e ao fracasso. Ele acentua a dimensão da "intencionalidade" como sendo uma característica especificamente humana, sempre, contudo, individual. Para Farr (1990:62) “o antídoto para o empobrecimento social de grande parte do estudo contemporâneo sobre a teoria da atribuição é discutir o trabalho de Ichheiser, e estudar RS como presentes e operando no mundo social, fora do laboratório", como muito bem escreveu Ichheiser (1949:62): Com milhões de pessoas sofrendo os choques do desempre­ go continuado, com falências comerciais sucessivas, bancos quebrando, etc. ficava extremamente evidente ao homem da rua que ele não era, como tinha sido levado a crer, o senhor de seu destino, pois esse destino dependia nitida­ mente de forças sobre as quais ele não tinha nenhum controle.

RS e cognição social De maneira geral, poder-se-ia dizer que a diferença principal entre os dois conceitos está no fato de que os estudiosos da cognição social a consideram como uma atividade individual e o principal paradigma de pesquisa ainda depende de processadores isolados da informação

(Forgas, 1981). Por essa razão Codol (1988) chega mesmo a duvidar se certos trabalhos que são ditos pertencendo à p s ic o l o g i a s o c i a l , o sejam de fato, tais como: dissonância cognitiva, formação de impressões, esquemas e vieses cognitivos, teoria dos scripts, etc.

RS e ideologia Devemos confessar que se fica um pouco perplexo e confuso quando se procura descobrir a razão por que Moscovici se tenha afastado (se é que se afastou) do uso do conceito de ideologia. Talvez isso merecesse uma explicação de sua parte. Em seu trabalho publicado em 1972, no livro de Israel e Tajfel (1972), ele chega a afirmar que a tarefa mais importante da p s ic o l o g i a s o c i a l seria o estudo da ideologia e da comunicação. No compêndio de p s ic o l o g i a s o c i a l (1985:19) ele ainda diz que "a p s ic o l o ­ g i a s o c i a l é a ciência dos fenômenos da ideologia (cognições e representações sociais) e dos fenômenos da comunicação". Alguns autores que discutiram sua obra, como Doise (1985) e Jahoda (1988), afirmam que ele teria abandonado o conceito, ou que, se não o abandonou, existe uma sobreposição entre ideologia e RS. A explicação mais plausível dessa tergiversação, senão mudança, é a apresentada por Sawaia (1993:77-78), num excelente trabalho, onde ela descreve a trajetória seguida por Moscovici, mostrando que ele procurou ser coerente com sua teoria, mas com isso empobreceu o conceito de RS, fazendo com que ele perdesse sua força desmistificadora. Segundo Sawaia, no estudo das RS da psicanálise Moscovici (1978) descreve três fases da evolução desse conhecimento: a fase científica (criação da teoria); a fase representacional (sua difusão e a criação de RS); a fase ideológica (a apropriação e uso dessa realidade por um grupo ou instituição). Ao ser apropriado, ele se reifica, se torna discurso estruturado e estruturante, impondo uma ordem estabelecida como natural. Moscovici vê, pois, a

ideologia na terceira fase, mas não deixa claro que ela esteja também na segunda, ou mesmo na primeira, como com Sawaia (1993:78). Na verdade, o conceito crítico de ideologia desmistifica a possível neutralidade do processo cognitivo, mostrando-o como mediação nas relações de dominação e exploração sócio-econômica. Nossas representações não são inde-' pendentes: têm a ver com nossa concepção de ser humano e de sociedade. Nosso entendimento é de que, apesar de todas as críticas que se possa fazer ao conceito de ideologia, como seu privilegiamento das funções políticas dos sistemas simbólicos, em detrimento de sua estrutura lógica e das mediações psicológicas, ele ainda desempenha um papel definitivo e indispensável, principalmente para se poder compreender as dimensões éticas, valorativas e críticas, na esperança da emancipação dos seres humanos de condi­ ções de vida humilhantes. É nossa percepção que a dimen­ são valorativa, ética, jamais pode ser separada das ações, e por isso, de uma maneira ou outra, ela está presente tanto no processo de construção das RS, como em sua estrutura. Perder a dimensão de não-neutralidade dos processos e representações é empobrecer e mistificar tanto a uns, como a outras. É curioso notar que muitos autores que discutem RS, talvez a maioria deles, acabam mencionando o conceito e tornando-o praticamente central em diversas de suas aná­ lises. Veja-se o caso de Farr (1990; 1991), por exemplo. O que é o "individualismo como uma representação coletiva” senão uma ideologia? Ele é certamente uma RS, mas carrega também consigo uma dimensão ética que, na verdade, é denunciada pelo autor. Não mereceria essa dimensão ideológica uma parcela no estatuto das RS? Do mesmo modo o trabalho de Hélène Joffe (nesta coleção). A autora mostra como as RS da AIDS se fundamentam em ideologias dominantes, como o individualismo, o colonia­ lismo e o heterossexismo. Se as RS se fundamentam sobre

essas ideologias, irão, necessariamente, conservar também essa dimensão mistificadora. Mais interessante é a concepção de Mary Jane Spink (1992:6-7). Ao discutir a questão, conclui que o estudo das RS abarca dois aspectos centrais: a construção de conhe­ cimentos, que inclui as condições sócio-históricas que os engendram e a sua elaboração sócio-cognitiva; e a funcio­ nalidade destes conhecimentos na instauração, ou manu­ tenção, das práticas sociais. O problema da relação da Ideologia com as RS sociais é resolvido da seguinte maneira: Cada uma destas perspectivas empíricas demanda uma concepção de ideologia: a primeira, quando as RS são focalizadas como campos socialmente estruturados, leva à conceituação de ideologia como visão de mundo; a segun­ da, privilegiando as práticas sociais, possibilita a emergên­ cia da ideologia como "representações hegemônicas a serviço das relações de poder.” As RS são, por isso, sempre ideológicas. Indo a fundo no pensamento de Moscovici, e analisan­ do seus dois processos, de ancoragem e objetivação, pode-se chegar à mesma conclusão. Para ele, ancorar é trazer para categorias e imagens conhecidas o que ainda não está classificado e rotulado. "Tudo o que permanece inclassificável e não rotulável parece não existente, estra­ nho e, assim, ameaçador...[Nesse processo] a neutralidade é proibida pela própria lógica do sistema em que cada objeto e ser deve ter um valor positivo ou negativo...” (em Farr, 1984:30). De maneira semelhante com o processo de objetivação. “A representação é basicamente um processo de classificação e nomeação, um método de estabelecer relações entre categorias e rótulos" (1981:193). Um dos elementos principais da categoria é o protótipo; nós esco­ lhemos qual o protótipo. Então: o veredicto tem precedên­ cia sobre o julgamento. Ao classificar, decidimos se há semelhança entre o que queremos classificar e o protótipo, e depois generalizamos. E tal decisão nunca é neutra.

Essas constatações nos levam a assumir uma definição de RS que inclua a dimensão ideológica. Apesar de não restringir a definição de ideologia a seu aspecto negativo, como o faz Thompson (1990:52-67), julgamos sua operacionalização muito útil, e é assim que o utilizamos em nosso trabalho Rara ele, ideologia é o emprego de modos e estratégias de criação e manutenção da dominação3, através do uso de formas simbólicas. E dominação é uma relação assimétrica e desigual de apropriação das capaci­ dades (poderes) de outros. Nosso interesse é a descoberta e a demonstração dessas relações assimétricas e desiguais. Como entendemos, então, as RS? É de Jodelet (1989:36) a definição de RS que detém um amplo consenso entre os que discutem esse conceito: RS são "uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, tendo uma visão prática e concorrendo para a construção de uma realidade comum a um conjunto social." São diversos os elementos que costumam estar ligados ao conceito de RS: ele é um conceito dinâmico e explica­ tivo, tanto da realidade social, como física e cultural. Possui uma dimensão histórica e transformadora. Junta aspectos culturais, cognitivos e valorativos, isto é, ideológicos. Está presente nos meios e nas mentes, isto é, ele se constitui numa realidade presente nos objetos e nos sujeitos. É um conceito sempre relacionai, e por isso mesmo social. O ato de representar não é um processo simples. Além da figura, ele carrega sempre um sentido simbólico (Mos­ covici, 1978:65). Jodelet (1985) identifica nesse ato de

3

. Thompson

distingue entre dominação e poder. Para ele ''poder'' é uma capacidade de uma pessoa ou grupo: todos os que ''podem" fazer algo, têm poder. Já dominação é uma relação entre pessoas ou grupos, e acontece quando uma pessoa, ou grupo, se apropria, expropria, poder (capacidade) de outros, de maneira assimétrica, desigual. Essa noção de poder difere da de Foucauld (1977,198); concorda em parte com a de Lukes (1974) e de Alford e Friedland (1985); e é igual à de Wright (1990). Para mais detalhes, veja-se Guareschi (1992:125-29).

representar cinco características fundamentais: representa sempre um objeto; é imagem e com isso pode alterar a sensação e a idéia, a percepção e o conceito; tem um caráter simbólico e significante; tem poder ativo e cons­ trutivo; finalmente, possui um caráter autônomo e gene­ rativo. Allansdottir, Jovchelovitch e Stathoupoulou (1993), em sua análise crítica do conceito de RS, discutem três postu­ lados que revelam a relevância do conceito e podem propiciar combinações interessantes em seu emprego: a) é um conceito abrangente, que compreende outros conceitos tais como atitudes, opiniões, imagens, ramos de conhecimento; b) possui poder explanatório: não substitui, mas incor­ pora os outros conceitos, indo mais a fundo na explicação causai dos fenômenos; c) o elemento social, na t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s é algo constitutivo delas, e não uma entidade separada. O social não determina a pessoa, mas é parte substantiva dela. O ser humano é tomado como essencial­ mente social. s o c ia is ,

O conceito de RS tem a ver com essas várias dimen­ sões: o que forma as representações sociais, como elas se constituem e quais os efeitos dessas representações. É, por isso, um conceito: dinâmico, gerador (generativo), relacio­ nai, amplo, político-ideológico (valorativo) e, por isso tudo, social.

A Representação Social do dinheiro Uma nota sobre os neopentecostais Assistimos, nos últimos anos, ao surgimento de inú­ meros estudos sobre Pentecostalismo na América Latina,

realizados tanto na Europa (Martin, 1990), América do Norte (Stoll, 1990), como também da América Latina (Assmann, 1986; Oro, 1990, 1991, 1992; Hugarte, 1992). A maioria desses estudos são feitos por antropólogos, princi­ palmente na América Latina, e outros por sociólogos, mas quase nenhum dentro de um enfoque psicossocial. Após termos investigado outros grupos religiosos (Guareschi 1985, 1990), interessamo-nos agora pelos neopentecostais. É importante distinguir, no Pentecostalismo latinoamericano, dois tipos distintos: a) Os que podemos chamar de “pentecostais antigos", como a Assembléia de Deus, que chegou ao Brasil em 1911; Congregação Cristã do Brasil, que começou aqui em 1910; Igreja do Evangelho Quadrangular, iniciada depois dos anos 40; Brasil para Cristo, fundada em 1956; e inúmeras outras igrejas pequenas e independentes, provindas das acima mencionadas. b) Os "pentecostais novos", ou “neopentecostais”4, que são grupos religiosos surgidos nas últimas duas ou três décadas, originando-se de todos os tipos de igrejas tradi­ cionais (não apenas das Protestantes5), como a Igreja Evangélica Pentecostal Cristã (chamada também Igreja Bom Jesus dos Milagres) e Igreja Rosa Mística originadas da Igreja Católica Romana, e a Igreja Universal do Reino

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4 Oro (1992) chama a esse tipo de Pentecostalismo de “Neopentecostalismo” , ou “Pentecostalismo Autônomo", e inclui sob esse nome todas as igrejas que começaram depois de 1950. De nossa parte, preferimos incluir entre os Neopentecostais apenas as igrejas iniciadas depois dos anos 70 devido, principalmente, ao fato de elas se terem originado não apenas das Igrejas Protestantes, mas também da Igreja Católica Romana. 5. A distinção original e tradicional era a que se fazia entre "Igrejas Protestantes Históricas", como a Luterana, Metodista, Anglicana, Presbiteriana, etc. e as "Igrejas Protestantes Novas", como os Mórmons, Adventistas do Sétimo Dia, as primeiras Assembléias de Deus. Introduz-se agora uma nova distinção entre os Pentecostais: os antigos, como as Assembléias de Deus, e os Neopentecostais, com início após 1970.

de Deus (fundada em 1977), Igreja Internacional da Graça de Deus (fundada em 1974), Igreja Casa da Bênção (funda­ da também em 1974), de origem protestante. Todas se dizem igrejas pentecostais, e fazem parte do grande nú­ mero de grupos religiosos que se espalham por toda a América Latina6. Essas cinco igrejas neopentecostais estão entre as mais importantes e compreendem ao redor de 80% das igrejas neopentecostais. Quando revistas e jornais falam de "crescimento das ‘seitas’ ” , é a elas que se referem. É delas que trata nossa pesquisa. A seguir, após uma breve nota metodológica, discuti­ remos três pontos principais: A) A questão do dinheiro nas práticas cotidianas das igrejas: Serão aqui apresentados os dados que servirão como base de análise no ponto seguinte; B) Uma teorização sobre esses dados, a partir da Será dada ênfase aos conceitos de familiarização, ancoragem e objetivação;

t e o r ia d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c ia is .

C) Como uma espécie de conclusão, discutimos a dimensão ideológica dessas representações.

Metodologia Nossos dados foram coletados em situações bastante diversas. A maior parte deles foram tomados de observa­ ções participantes (ao redor de 50) de cultos e práticas das várias igrejas. Além disso, foram gravados programas de TV (10) e rádio (5) das igrejas que os transmitem. Esses programas são extremamente repetitivos. Finalmente, fo­

6. Esse fato mostra a (alta de uma investigação mais acurada sobre o que está de fato acontecendo na América Latina, e a ambigüidade do argumento de Martin (1990) de que o Pentecostalismo Latino-Americano fundamenta-se na “ética protestante" e poderá produzir frutos semelhantes aos produzidos pelos protestantes que migraram aos Estados Unidos. Como assim, se grande parte dos pentecostais de hoje são de origem católico-romana?

ram feitas entrevistas com pastores (5) e com os fiéis (25), procurando saber, da parte deles, o que achavam das práticas econômicas das igrejas. Os pastores mostravamse extremamente arredios, dizendo que nada se exige dos fiéis, que tudo é espontâneo. A prova central disso (muitas vezes repetida durante as pregações) é de que nunca se cobrou entrada. O que verdadeiramente nos interessava, era compreender como os membros se colocavam diante da questão econômica. É de suas falas que se pode' perceber como funcionam as estratégias empregadas pelos pregadores para, a partir de uma necessidade que é fun­ damentalmente econômica, ancorar a extorsão do dinheiro a representações já existentes na mente dos fiéis para, a partir daí, tirar deles mesmos o de que eles mais necessitam. A ) A dimensão econômica nas práticas neopentecostais: dados Diversos trabalhos já foram realizados nesse campo, inclusive sobre esse tema específico das "representações do dinheiro" (Oro, 1992; Hugarte, 1992)7, mas sob enfoques especificamente antropológicos. Passamos a analisá-los à luz da t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c ia is e da ideologia. A forte ênfase dada ao econômico, nas igrejas neopen­ tecostais, salta imediatamente à vista. Não há reunião, oração, serviço ou concentração, em que a necessidade de contribuir não seja constantemente lembrada. Hugarte (1990) sintetiza as práticas cerimoniais dessas igrejas como sendo uma série de discursos ininterruptos, nos quais os pastores insistem fundamentalmente sobre as necessida­ des materiais da igreja, a virtude do desprendimento, os benefícios do jejum e das esmolas ( “dar para receber") e a importância de se escutar os programas de rádio ou tele­ visão dessas próprias igrejas. Lembra-se continuamente

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7 Muitos dos dados utilizados em nosso trabalho são tomados dessas pesquisas, principalmente da realizada pelo antopólogo Ari Pedro Oro, a quem somos especialmente reconhecidos.

que é graças às contribuições dos fiéis, que a igreja pode continuar a crescer, ampliando-se geograficamente e no número de seguidores de sua mensagem; com isso aumen­ ta o número de milagres e curas. É admirável a capacidade dos pregadores em convencer os fiéis da obrigação e necessidade de contribuir, até mesmo para eles se salva­ rem, e de o que se pede é insignificante se comparado, por exemplo, ao preço de uma cerveja, a uma passagem de ônibus, ou mesmo a um refrigerante. Alguns exemplos desses raciocínios e motivações: - "Você não pode ganhar nada de graça, nem mesmo Deus; para se conseguir uma graça, você tem de pagar". - “É dando (dinheiro) que você vai receber (a graça)". A atividade milagrosa da igreja é apresentada como se fosse um serviço, e com isso tem-se como normal e justificado o fato de que se cobre. Algumas falas que mostram isso: - "Se pagamos a um médico, se pagamos o aluguel, por que não pagar a quem cura nossos males?” - “É necessário aumentar, ou reconstruir a igreja, desse modo Deus poderá continuar a operar o 'festival de milagres”’ ; - "Precisamos continuar com nossos programas de rádio e televisão para podermos vencer o demônio"; - “Você tem de se livrar de seu dinheiro, desse modo você poderá se purificar"; - "Se você doar seu dinheiro para a igreja, você poderá, até certo ponto, purificar o mundo” ; Se você doar dinheiro para a Igreja, você não estará dando dinheiro ao pastor, mas a Deus"8. 8. Esse testemunho, de um dos fiéis, explica o tipo de representação que eles têm sobre o dinheiro oferecido nas ofertas: "Quando as pessoas doam algum dinheiro, elas não estão dando dinheiro para a igreja, mas a Deus. Esse dinheiro é, pois, consagrado a Deus, e se alguém pegar esse dinheiro, ele não estará roubando esse dinheiro de mim, ou do pastor, ou da Igreja, mas estará roubando de Deus. E Deus cortará sua mão, e não apenas sua mão, mas todo seu corpo".

Os fiéis estão convencidos de que eles não estão sendo explorados economicamente por seus pastores. Nem che­ gam a pensar nessa possibilidade. Eis a reação de uma mulher à tentativa de questionamento sobre a possibilida­ de de exploração eonômica: - "Exploração? Nunca! A pessoa dá o que ela quiser. Não há obrigação de dar. Você não paga por tudo o que compra? Do mesmo modo, por que não pagar a Deus?” Até mesmo a Bíblia é usada para legitimar essas práticas. Alguns textos muito comuns, empregados duran­ te a coleta de dinheiro, são: "Dai, e vos será dado" (Lc 6,38); “Deus ama quem dá com alegria" (2Cor 9,7); “Por que desprezais o meu sacrifício e a minha oferta que mandei oferecer na minha morada?” (1Sm 2,29); “Há mais felicida­ de em dar, do que em receber" (At 20,35)9. Essa leitura da Bíblia serve a vários propósitos: o mais evidente é angariar dinheiro dos crentes; indiretamente, insiste-se na idéia de que as pessoas devem desapegar-se

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9 Na instalação de um novo local de oração da Igreja Universal do Reino de Deus, quando um antigo barracão foi transformado em igreja, montou-se uma ampla e intensa campanha econômica, baseada no Livro de Ageu (1,6), onde se lê: “Semeastes muito e colhestes pouco, comestes, mas não vos saciastes, bebestes, mas não até à embriaguez, vestistes-vos, mas não vos aquecestes, e o assalariado coloca o salário em uma bolsa furada". Com base neste texto, os pregadores argumentaram que as pessoas devem contribuir com doações para a igreja, mas não em "bolsas furadas". A razão pela qual as pessoas estavam trabalhando duramente, e ganhando quase nada (o salário mínimo na ocasião era 50 dólares ao mês), era que eles estavam colocando o dinheiro em "bolsas furadas". Para solucionar esse problema, foram distribuídos milhares de pequenos saquinhos, de pano de lona, e se pediu a todos os fiéis que colocassem neles a coleta, o mais que pudessem, para o dia da inauguração. A campanha foi realizada na televisão e no rádio, além das pregações nas igrejas. Nosso cálculo é que ao menos três mil pessoas contribuíram para a campanha. Os pastores preenchiam uma ficha com o endereço de cada contribuinte, antes de lhe dar o saquinho, pressionando-os, assim, a trazê-lo de volta, e sugerindo que quanto mais eles doassem, maior seria sua retribuição econômica no emprego e em bens materiais.

dos bens e interesses terrestres, se desejam conseguir algum tipo de recompensa ou ajuda. Muitos “hinos” legitimam a necessidade e importância do dízimo, como este, que ensina como fazer as contas: -“Se ganho mil, ponho cem; se ganho dois mil, ponho duzentos..." As estratégias empregadas pelos pastores para arreca­ dar dinheiro são muitas e variadas. Algumas delas: a) O dízimo. É o tema que maior ênfase recebe da parte dos pregadores e é a prova mais evidente e concreta de que se pertence à igreja. Os fiéis, ecoando as instruções dos pastores, afirmam que é importante garantir o mais cedo possível o pagamento do dízimo, pois de outro modo as pessoas podem gastar o dinheiro em coisas "pecamino­ sas", como afirma um entrevistado: - “É muito importante pagar o dízimo. Essa é a primeira coisa que alguém deve fazer quando recebe o dinheiro. Está escrito, pois o dízimo pertence a Deus. Até mesmo Adão, no Paraíso, teve de separar o dízimo, pois ele podia comer de todas as árvores e frutos, exceto um. Esse era reservado para Deus." Algumas pessoas chegam mesmo a escolher as notas mais novas para levar para a igreja. Acreditam que a parte de dinheiro separada para o pagamento do dízimo não pode mais circular, a fim de não se "contaminar" pela miséria, doenças e perigos do mundo. b) Os camês: A prática do dízimo é institucionalizada através da confecção de um "camê de dizimista” , que garante a condição de integrante da igreja. Uma das cenas comuns durante as orações é pedir que os fiéis levantem esses camês, o que é feito com grande orgulho pelos que os possuem. c) Distribuição de envelopes: Uma prática corrente é a distribuição de envelopes que são recolhidos após uma

semana, para que as pessoas coloquem neles a doação que querem efetuar. Isso é realizado em ocasiões e festas especiais. Sobre os envelopes escreve-se a quantia neles ofertada, juntamente com o pedido que deseja ver realizado através dessa doação. d) Os leilões de ofertas: Essa estratégia segue a prática dos leilões comerciais, de bens ou animais. A diferença é que o prêmio é algo imaterial: a satisfação de ajudar a igreja e o prestígio entre os demais membros. O pregador começa' com um pedido de doação relativamente alto: "Quem irá ofertar dois mil cruzeiros?" (30 dólares). Se ninguém res­ ponde, ele insiste, e diz que quem fizer a oferenda, receberá uma bênção especial. Se alguém responde, ele pede que suba ao altar e lhe dá a bênção prometida (imposição das mãos, unção da mão que oferece com azeite). A seguir, ele diminui a quantia para mil cruzeiros (15 dólares). Se nin­ guém reage, ele mostra sinais de desapontamento. Insiste com a audiência, dizendo que qualquer um gasta isso com uma boa refeição, com bebidas ou mesmo com perfumes. Continua baixando. Agora para 500 cruzeiros (8 dólares), depois a metade da anterior, e assim por diante. Algumas senhoras de idade que puderam poupar algum dinheiro (1 dólar), especialmente para esta ocasião, encaminham-se para a frente. São abençoadas efusivamente. Finalmente o pregador pede que todos os presentes segurem na mão qualquer nota de dinheiro10. Ele abençoa as ofertas e pede que as levem ao altar. Há ocasiões em que as mãos dos doadores são ungidas, após depositarem a oferenda sobre o altar. e) As coletas: além das práticas acima, em todas as reuniões fazem-se coletas, após fervente motivação dos pregadores e sempre após os exorcismos, quando são

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10 Na ocasião da pesquisa, a menor nota existente no Brasil era de 1 cruzeiro (menos de um centésimo de dólar). A maioria das pessoas oferecia 10 ou 20 cruzeiros. Uns poucos 50 cruzeiros, menos gente ainda oferecia 100 cruzeiros, ao redor de 1 dólar.

feitos. A estas alturas as pessoas estão psicologicamente mais predispostas a "retribuir" por tantos milagres e por tanto esforço realizado pelo pregador-exorcista. Mas há também coletas especiais, em geral às sextas-feiras. Após muito investigar, descobriu-se que o fato de a "grande coleta" ser às sextas-feiras não é casual. Na verdade, a sexta-feira é o dia de pagamento para grande número de pessoas, que compõem o assim chamado "mercado infor­ mal de trabalho", quase 50% da economia nacional. Muitos trabalham sem carteira assinada, e são pagos na sexta-feira. A importância e a urgência da coleta é explicada em detalhes: sempre existe o aluguel do salão que não foi pago; as despesas com o som, com as cadeiras, com a divulgação no rádio e na televisão, etc. Pessoas que assistem a tais reuniões pela primeira vez chegam a chocar-se, se não até mesmo a ofender-se, com essa insistência em contribuir. Mesmo para nós, inicialmente, isso se asseme­ lhava a uma extorsão, praticada com pessoas simples, analfabetas e doentes. Mas eles não se espantam. Por quê? Voltamos a isso ao discutir o processo de “ancoragem". B) Teorizando as práticas econômicas: Ancorando o bem e o mal Cientes dos dados acima, podemos já entrever algu­ mas respostas, mesmo que superficiais, à pergunta feita no início de nosso trabalho. O que pretendemos agora é trabalhar mais pormenorizadamente esses dados, situan­ do-os dentro da Teoria das RS, e analisando os mecanismos que são empregados nesse processo. Examinaremos aqui dois pontos: a situação de não-familiaridade (a) e o processo de ancoragem (b). a) O tornar o não-familiar familiar. A grande angústia da população que freqüenta essas igrejas não é tanto se eles vão se salvar ou não, mas é ter comida, encontrar um emprego, poder pagar o aluguel,

sarar das doenças, poder educar os filhos. Esse é o seu grande temor, o seu "não-familiar” , muito mais desgastan­ te e desesperador, certamente, com aquilo que poderá acontecer ao morrerem. Eles precisam de uma solução para os problemas prementes e imediatos, do aqui e agora. Moscovici (1984:20-27), ao analisar o processo forma­ dor das representações, afirma que o móvel desencadeante desse processo, "o propósito de todas as representações é o de transformar algo não familiar, ou a própria não fami­ liaridade, em familiar" (1984:23-4). Essa seria a razão de por que as pessoas formam e constroem representações sociais. Para se compreender melhor essa situação de não-familiaridade, é importante mostrar que para Moscovici (1981, 1984, 1988) a sociedade, além de ser um sistema econômico e político, é também um sistema de pensamen­ to (o pensamento como ‘‘ambiente”). Mas existem, nessa sociedade, dois tipos diferentes de universos de pensamen­ to: os universos consensuais e os universos reificados. Nos universos reificados, que são mundos restritos, circulam as ciências, que procuram trabalhar com o mais possível de objetividade, dentro de teorizações abstratas, chegando a criar até mesmo certa hierarquia. Nos universos consen­ suais estão as práticas interativas do dia-a-dia, que produ­ zem as RS, que são teorias do senso comum, isto é, conhecimentos produzidos espontaneamente dentro de um grupo, fundados na tradição e no consenso, dentro de uma lógica, metodologia e comprovação diferentes. Ora, o “não familiar” é produzido, e se situa, na maioria das vezes, dentro do “universo reificado” das ciências, e deve ser transposto ao “universo consensual" do dia-a-dia. Essa tarefa de transposição é, em geral, realizada pelos divulgadores científicos de todos os tipos, como jornalistas, comentaristas econômicos e políticos, professores, propagandistas, que têm nos meios de comunicação de massa um recurso extraordinário.

Aplicando ao nosso caso, o “universo reificado", o mistério, é a angústia e a impotência de não se poder dominar, solucionar os problemas reais da doença, da falta de dinheiro, da falta de paz. Entram, então, em jogo os "divulgadores" e os “interpretadores” do mistério. Eles se municiam com um instrumento absolutamente legitimado: a Bíblia. Ela se toma a grande "pedra filosofal", que soluciona todos os problemas. O importante é obedecer cegamente, crer sem restrições, atirar-se confiantemente em seus braços. Essas multidões estão agora motivadas. Mas como fazer? O que fazer? Qual apóstolo Paulo, caído do cavalo e cego, elas esperam os guias que as conduzirão pela noite de sua cegueira. b) A ancoragem O barco está à deriva, pronto a deslizar, impulsionado por essa correnteza “motivadora e mobilizadora" da nãofamiliaridade. É preciso encontrar agora faróis que o orien­ tem e margens seguras que o ancorem, nos “jordões” da existência. É aqui, cremos, que a Teoria das RS é útil para ajudar a compreender como se processa o mecanismo de legiti­ mação da “extorsão" econômica. Há dois tipos de ancora­ gem que precisam ser examinados: a ancoragem do bem (no dinheiro) e a ancoragem do mal (no demônio).

Ancorando o “bem ” Já assinalamos acima o espanto, e a quase indignação, que é, para os leigos, a insistência na doação de dinheiro. Mas não é essa a percepção dos freqüentadores desses templos. Qual a razão? Acreditamos ser possível compreender, até certo pon­ to, esse fato, ao analisar o universo simbólico dessas pessoas, isto é, as representações sociais já existentes e

legitimadas, e como as práticas empregadas pelos prega­ dores nada mais fazem que ligar, "ancorar” essas novas práticas a situações mais antigas. São várias as “representações” tradicionais que encon­ tramos, principalmente na religiosidade popular de nosso povo. Entre elas podemos citar: a) A representação da "reciprocidade": Os raciocínios, ou motivações, empregados pelos pas­ tores se baseiam num discurso que concorda e que legitima o universo simbólico dos contribuintes. Como Mauss (1974) mostra, o princípio de reciprocidade e troca está baseado nas obrigações de dar, receber e retribuir. Esse princípio é um componente forte do universo simbólico das pessoas mais empobrecidas da sociedade brasileira. No fundo, a reciprocidade se liga à própria dimensão da solidariedade, da entreajuda. Se eu recebo um favor de alguém, eu tenho de restituir, de uma maneira ou outra. A pregação dos pastores apela a esse universo e liga a "doação" à obrigação de restituir, mesmo que essa doação seja antecipada. O que faz com que eles antecipem sua doação, é o testemunho de outros que já receberam (lembrados, com forte freqüência pelos pastores), e a cer­ teza de que se eles vão contribuir, Deus certamente terá de nos atender, pois, afinal, Ele também tem de ser fiel... "Dai, e vos será dado!" "Você não pode ganhar nada de graça, nem mesmo Deus; para se conseguir uma graça, você tem de pagar.” “É dando (dinheiro) que você vai receber (a graça)." A apropriação e manipulação estratégica dessa dimen­ são de reciprocidade do universo simbólico dos fiéis é, certamente, uma das razões da exploração das ingentes multidões de empobrecidos e necessitados que lotam as amplas igrejas.

b) A representação da reciprocidade "equilibrada" Os pregadores vão ainda mais além, acentuando a idéia de que deve existir uma relação eqüitativa entre a quantia doada e o tamanho, ou importância, do milagre ou da graça, esperados: "quanto mais você der, mais você vai receber", é o refrão constantemente repetido. É a isso que M. Sahlins (in Oro, 1992:33) chama de "reciprocidade equilibrada” , isto é, uma troca direta que satisfaz as exi­ gências de ambas as partes. Essa “reciprocidade equilibrada" nas relações para com Deus aplica-se a diferentes tipos de problemas que afligem os fiéis, tais como: doenças, problemas no amor e casamento, crises financeiras, etc. A própria melhoria da situação econômica caminha através desse pressuposto, conforme podemos ouvir dos pastores: "Se você quer ter sucesso econômico, coloque ali seu dinheiro" (ali se refere à coleta durante as orações); ou: “Dê o bastante para receber o suficiente". Alguns pastores chegam a sugerir que se faça um tipo de aposta com Deus, oferecendo a Ele dinheiro além das possibilidades de alguém, para ver o que vai suceder. Contam-se histórias fantásticas de pessoas que ofereceram grandes somas e receberam muito mais em troca. Oro (1992) conta, por exemplo, a história de uma mulher que recebia ao redor de um salário mínimo, e ofereceu dois terços do salário. Após alguns meses ela começou a receber tanto dinheiro que ela podia doar mais de dois salários mínimos, devido a seu sucesso e c o ­ nôm ico11.

11. Um dos fiéis contou a seguinte história: "Eu testei Deus, a fim de que ele me abençoasse. Pois Deus é o senhor de todo o ouro, de toda a prata. Ele é o senhor dos ventos, ele comanda os mares. Deus é o único que pode me proteger. E Ele nunca falha. Se, pois, eu tenho de contribuir, então vou contribuir. O quanto eu puder. Se eu tenho, eu dou. Sei que sempre vou receber tudo o que eu precisar".

Quem não se convence diante de frases como estas: “Com a mesma medida com que medirdes, vos será medi­ do. " "Se pagamos a um médico, se pagamos o aluguel, por que não pagar a quem cura nossos males?"

c) A representação social da "promessa": A prática da "promessa" é certamente a mais freqüente e generalizada entre as práticas religiosas do brasileiro. Ela consiste em prometer algo importante e relativamente difícil de ser executado, caso se consiga a realização do pedido feito. A promessa é uma dívida sagrada que se contrai com Deus ou com os santos. Essa obrigação é transposta, na fala dos pregadores, para a necessidade de se pagar pelo milagre, ou cura (muitas vezes aparente ou passageiro) acontecido a alguém. Há uma diferença, con­ tudo, entre as “promessas” feitas e pagas no contexto da religiosidade popular, tanto católica como afro-brasileira, e a dos neopentecostais: para os primeiros, paga-se uma promessa com orações, romarias, penitências, oferenda de alguns bens em espécie, como frutos da terra, despachos, etc., ao passo que, para os últimos, é necessário que se pague em espécie: só se aceita moeda corrente.

d) A representação do mercado (capitalista): Essa é mais uma surpresa dos que assistem aos cultos neopentecostais pela primeira vez: não há muita diferença entre a igreja e o supermercado. Talvez seja por isso que muitos analistas chamem a essas igrejas de "supermerca­ dos da fé". As leis que determinam o mercado vão deter­ minar também as relações com Deus. Mas o negócio tem de ser justo. Não apenas eu te dou e você me dá, mas se eu te der tanto, você tem de me restituir o mesmo tanto.

Inseridos numa sociedade capitalista, os fiéis passam a assimilar o discurso capitalista, até mesmo com relação ao sagrado. Os pregadores apresentam os assuntos religio­ sos dentro do referencial simbólico do mercado, levando as pessoas à conclusão de que o dinheiro é um meio eficaz para se conseguir bens espirituais como a paz, felicidade, conforto espiritual, alegria, etc., numa espécie de transa­ ção simbólica estabelecida com Deus, através da igreja. Por esses meios, os pastores conseguem convencer os ouvintes de que eles devem acreditar no dinheiro, algo indispensável se alguém quer alcançar favores espirituais. e) A representação da predestinação (teologia calvinista): As pesquisas realizadas não apenas entre pentecos­ tais, mas também entre romeiros que se dirigem a santuá­ rios católicos, mostra uma conclusão unânime: o fato de alguém ter recebido uma graça significa que Deus está de bem com ele: "Se Ele me ajudou, é sinal de que me quer bem. Agora eu vou restituir o duplo” . Essa prática não difere, significantemente, do dogma calvinista sobre a predestinação dos escolhidos. Para eles o sucesso econômico era sinal de predestinação. Para os neopentecostais, contudo, o caminho é também inverso: alguém pode chegar a se enriquecer e ter sucesso econô­ mico, se primeiro ele investir dinheiro na igreja, através de doações. É o testemunho que vimos acima, da mulher que apostou com Deus (nota 11). f) A representação (ameaça) da culpa e do castigo: O sentimento de culpa e a ameaça do castigo são também empregados para incentivar as contribuições. Quem não dá dinheiro, quem não contribui monetariamente, não só deixará de receber o milagre, mas ele estará conspirando contra o desenvolvimento da igreja, e com isso estará impedindo a outros de serem ajudados através das

obras prodigiosas e milagrosas operadas através dos pas­ tores e da igreja; numa palavra, estará se opondo ao próprio Deus. Para isso se emprega até a Bíblia: as pessoas que não contribuem são como "as árvores que não dão fruto” . O mecanismo de ancoragem, a nosso ver, é decisivo na legitimação da extorsão. O “dar dinheiro" é firmemente ancorado e legitimado no universo simbólico cultural-religioso dos brasileiros, que vai desde a prática sagrada da “promessa" até as regras de funcionamento do mercado capitalista. As RS são uma constante construção: elas são realida­ des dinâmicas, e não estáticas. Vão sendo reelaboradas e modificadas dia a dia. Vão sendo ampliadas, enriquecidas com novos elementos e relações. É o que se constata da análise do que passa a significar (representar), para os fiéis das igrejas neopentecostais, a “oferta" que eles doam nas igrejas. Podia haver estranheza no início. Mas aos poucos a prática foi “ancorada” e legitimada. Essa representação não nasceu do nada: ela bebeu no universo significativo da população. A angústia e o desespero foram ancorados no “porto seguro” da garantia de salvação, garantia de felicidade, de sucesso, de realização pessoal, numa pala­ vra, de predestinação eterna. Assim como você chega a um armazém, compra e paga um produto, assim você também chega agora à igreja, compra seu milagre, sua graça, sua cura, sua salvação, e volta tranqüilo para casa, feliz e convencido de que fez um bom negócio. A atividade religiosa dessas igrejas apresenta-se como uma simples continuação da vida cotidiana, apresentando as mesmas regras de funcionamento. Oferece um serviço de intermediação ("comercial”) com Deus, que se faz aqui e agora, para solucionar problemas imediatos. As anotações e os carimbos colocados nos carnês dos dizimistas e nos envelopes das contribuições oferecem, na dimensão do sagrado, a segurança oferecida pelos recibos e os compro­ vantes de compra, empregados ao se fazer uma transação comercial. É essa, em síntese, a conclusão a que chega

Hugarte (1992:91), dessa espécie de metamorfose operada na mente dos fiéis das igrejas neopentecostais. É explicada, assim, a surpresa, e quase indignação, dos neófitos diante da despudorada insistência em se pedir dinheiro, e a tranqüila aceitação dos fiéis: é uma prática normal, como qualquer outra. Até mesmo o ambiente totalmente “leigo" das igrejas, sem imagens, sem símbo­ los, com apenas uma mesa e um forte conjunto eletrônico, parece ser uma indicação a mais dessa "secularização” dessas práticas e ambientes.

Ancorando o "m al” O mal, por sua vez, também necessita ser ancorado. E o processo não difere do visto acima. De onde vêm todos esses males e doenças? De onde vem o desemprego? E os problemas familiares, como o abandono do marido, as filhas que engravidam sem casar, a falta de aluguel, a falta de escolas? A resposta é imediata: são os exus e as pombajiras. São encostos que esses maus espíritos colo­ cam sobre as pessoas. Essas entidades malignas recebem até nomes. Ao realizar os exorcismos, uma das primeiras perguntas feitas ao “doente-pecador" é: Qual o teu nome? Satã? Pombajira? Legião? Exu do cemitério? Exu macumbeiro? Exu preto? Exu das quebradas? Exu da encruzi­ lhada? Num programa radiofônico de leitura da carta onde o(a) ouvinte resposta quase infalível do "padre atravessou em seu caminho. Seu variam numa gama exótica.

uma das igrejas, após a expõe seu problema, a vidente" é: “um exu se nome é...” e os nomes

Pode-se encontrar aqui uma das mais inteligentes estratégias de penetração e propagação das igrejas neo­ pentecostais: o recurso ao universo simbólico religioso do brasileiro comum, para afirmá-lo, negando-o. Explicamos: a maioria das pessoas que compõem as multidões que

acorrem a essas igrejas são pessoas simples, que sempre professaram profunda religiosidade popular. São os des­ cendentes de negros, índios, mulatos, etc. Ora, o universo religioso, tanto do índio como do negro, mulato, etc. é povoado de entidades religiosas animistas, os deuses das florestas, dos rios, das montanhas, do mar. Na umbanda, por exemplo, cada um desses deuses têm seu nome. Ora, que fazem os pregadores? Afirmam a existência dessas entidades, pelo fato de as colocarem como responsáveis, pelos males todos, e ao mesmo tempo as negam, dizendo que são demônios, que devem ser exorcizados e renega­ dos. Nada poderia atrair mais a essas pessoas, pois todas elas, de uma maneira ou outra, acreditam nesses deuses. E por isso mesmo acham que o pregador está certo, pois ele lida com esses espíritos. Ele realiza o milagre, pois conhece os espíritos, sabe até seu nome e o mal que causam, e assim liberta as pessoas desses demônios, causadores dos males. Essa estratégia de ancoragem é extraordinariamente bem sucedida, e enquanto houver pessoas que acreditem nos exus e pombajiras, vão existir milagreiros e exorcistas. E, do mesmo modo, sempre existirão os exus e as pomba­ jiras, pois eles são propositada e interesseiramente criados e re-criados pelos próprios pregadores... Necessitam deles, para negá-los! C) A IDEOLOGIA Que dizer diante de tal situação? Discutimos acima a impossibilidade de separar a di­ mensão valorativa dos processos de formação e da própria estrutura das RS. Gostaríamos de sublinhar aqui alguns elementos que ajudam a perceber essa dimensão de não neutralidade no processo de ancoragem das RS do bem e do mal. Com suas pregações fortemente ligadas à importância de dar ofertas e esmolas, e pela legitimação dessa prática

buscada numa interpretação fundamentalista da Bíblia e nas representações tradicionais da religiosidade popular brasileira, os líderes manipulam os fiéis, acumulando gran­ des somas. Em suas alocuções, eles não estão interessados em enfatizar e denunciar os fatores sociais que criam e que mantêm as pessoas pobres e oprimidas. Todas as causas da miséria humana estão localizadas no “demônio". A solução para todos os problemas, individuais ou sociais, é "entregar-se a Jesus” . Não se discute, nem se procura saber se há outras possíveis causas da miséria humana. Os neopentecostais, desse modo, ocultam consciente e inten­ cionalmente as relações sociais existentes na sociedade, que criam e que perpetuam as pessoas na pobreza (Guareschi, 1992:56-59). A discussão dessas relações de domi­ nação e exploração está totalmente ausente de seus discursos. Sua pregação obscurece, assim, a verdade sobre sua realidade. Essa é a legítima prática ideológica, que consiste no emprego de formas simbólicas para criar e manter relações de dominação. Essa manipulação ideológica é ainda complementada com práticas que apelam ao afetivo e ao emocional. Que acontece quando uma pessoa é submetida a um processo poderoso e quase magnético, dirigido a seu psiquismo? Através de nossas observações, pareceu claro que a mani­ pulação dos sentimentos e emoções, através de ações de catarse coletiva, de exorcismos, de curas, que presencia­ mos nessas igrejas, constitui-se numa forma eficaz de dominar as pessoas. Essas práticas as tornam psicologica­ mente enfraquecidas, e elas não mais conseguem manter pleno controle de si mesmas. As estratégias de envolvi­ mento, música, dança, gestos, etc. privam as pessoas de uma dimensão essencial do ser humano: pensar, refletir, considerar, criticar e escolher livremente. Os freqüentadores são tratados como multidão, como uma massa anônima, não como pessoas. Numa multidão, ou em situações massivas, as pessoas não se perguntam sobre fatores que as possam tornar mais conscientes do

mundo e da realidade que as cerca. O que se vê é um constante apelo ao afetivo, multidões batendo palmas, levantando-se, sentando, exclamando, gritando. É após estes momentos poderosos de catarse e alívio espiritual que se chega ao elemento material. Deus fez sua parte, operando milagres e curas. Os fiéis devem fazer a deles: pagar a conta.

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7. A POPULARIZAÇÃO DA CIÊNCIA COMO “IMUNIZAÇÃO CULTURAL”: A FUNÇÃO DE RESISTÊNCIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

Martin Bauer Neste trabalho eu me proponho discutir uma das questões que deu origem à noção de Representações Sociais: as RS são a produção cultural de uma comunidade, que tem como um de seus objetivos resistir a conceitos, conhecimentos e atividades que ameaçam destruir sua identidade. A resistência é uma parte essencial da prag­ mática das Representações Socias. Sob esta luz, a resis­ tência é um fator criativo, que introduz e mantém heterogeneidade no mundo simbólico de contextos inter-grupais. A função de resistência pressupõe uma segmentação so­ cial em diferentes subculturas, que mantêm sua autonomia resistindo às inovações simbólicas que elas não produzi­ ram. Esta defesa toma a forma de re-(a)presentações. Essas representações podem ser consideradas como a ação de um "sistema imunológico" cultural: novas idéias são assi­ miladas às já existentes, que neutralizam a ameaça que elas apresentam e tanto a nova idéia, como o sistema que a hospeda, sofrem modificações nesse processo. Uma breve revisão da resistência, enquanto elemento constitutivo das RS, permite-me (a) situar parte de nosso trabalho sobre a popularização da ciência no Museu de Ciências de Londres, e (b) ir além disso, em uma tentativa ambiciosa de orientar pesquisas futuras. A análise das representações pertence a uma tradição que pesquisa a

popularização da ciência desde os anos 60. Sua fronteira inovadora é o reconhecimento claro de que o conhecimen­ to se transforma quando circula para além de seu próprio contexto de produção. Nesse processo de circulação, o fator de resistência merece atenção renovada tanto teórica, como empiricamente. A recente retomada de interesse em noções populares de ciência e tecnologia nos países euro­ peus apresenta-nos a oportunidade de estudar os efeitos da resistência cultural na análise dos meios de comunica­ ção, na pesquisa sobre opinião pública ou nos estudos de caso. Uma questão ainda em aberto refere-se às dimensões relevantes da segmentação cultural.

1. Recuperando a função de resistência: ponto de referência Barber (1961) e Kuhn (1962) discutiram o problema de como novos conhecimentos sofrem resistência dentro de um círculo fechado de especialistas. Geralmente o conhe­ cimento científico se organiza em torno de paradigmas, que constituem o foco teórico e metodológico para a maioria das pessoas envolvidas. Periodicamente, esses paradigmas são questionados, tanto pelo acúmulo crescen­ te de evidência contrária, como por teorias que resistem em ajustar-se a eles. Em conseqüência disso, o progresso do conhecimento científico não é cumulativo; ele se mo­ vimenta através de erupções periódicas. A normalidade temporária é quebrada por transformações nos pressupos­ tos e métodos básicos. Na ciência normal, a instituciona­ lização de paradigmas conduz ao mesmo tempo à crista­ lização de idéias e ao refinamento e precisão, de tal forma que estes se tornam mais vulneráveis à anomalias; a rigidez e a vulnerabilidade estão correlacionados. A resistência da ciência normal se presta a duas funções aparentemente paradoxais: (a) ela restringe internamente a atenção dos cientistas para que estes não se desviem de seu trabalho, e (b) ela presta atenção à crítica externa sobre os pontos

centrais do paradigma, apenas para questioná-lo de ma­ neira melhor e mais fundamental (Kuhn, 1962: 64). Quando definimos as representações sociais, nós mui­ tas vezes nos referimos às suas conseqüências quanto à cognição e à ação; isto é, referimo-nos às suas funções simbólicas e pragmáticas (Cranach, 1992). A função sim­ bólica se refere ao fato de que em RS lidamos com imagens variáveis da realidade, através das quais as pessoas esta­ belecem um sentido de ordem, transformam o não-familiar em familiar através da ancoragem de novos conhecimentos em antigos esquemas, criam uma estabilidade temporária através da objetificação, e localizam a si próprios entre os demais através de um senso de identidade social. Esta conquista de ordem é problemática e periodicamente sofre ameaças. A função pragmática das RS refere-se ao fato de que nossas ações são motivadas, guiadas, planejadas e justificadas em prejuízo de nossas estruturas simbólicas. Nesse sentido, as RS se constituem tanto em percepção, como em ação ou, para usar termos mais antigos, tanto em estímulo como em resposta (Wagner, neste volume). Para fins de investigação, nós procuramos enfocar o elemento pragmático das representações sociais, e toma­ mos a capacidade de resistência como ponto de referência para nossa análise. É minha opinião que esse modelo de análise contém potencial suficiente para a análise dos problemas atuais que envolvem a compreensão popular de noções científicas. Estudos anteriores realizados na França investigaram a compreensão popular do raio laser, a diver­ sidade das imagens corporais, as noções de saúde e doença, a doença mental, a compreensão da inflação, noções de peso e levitação fora do espaço, etc. (Barbichon & Moscovici, 1965; Ackermann & Dulong, 1971; Barbi­ chon, 1973; Schiele & Jacobi, 1989). Uma inovação evidente dessa tradição é que ela nos leva a perceber que o objeto de difusão se transforma nesse processo. A re-(a)presentação é tanto uma atividade, como um resultado, que conduz a múltiplas identidades de um

mesmo objeto em contextos de pluralidade cultural. Se quisermos reconhecer tal fato, é necessário que nos dis­ tanciemos temporariamente para observar os observadores e suas ações. Isso contradiz uma noção de difusão que vê o objeto de difusão como constante e impõe homogenei­ dade à tarefa de incentivar tal difusão. A transição do conhecimento proveniente de um círculo científico restrito de especialistas para territórios públicos mais amplos é, muitas vezes, a mesma transição entre o pensar com conceitos para o pensar com imagens e mitos (Moscovici, 1992). O estudo original de Moscovici sobre psicanálise na França, realizado durante a década de 50, oferece-nos uma compreensão exata da resistência e de seus efeitos nesse processo. O grau de resistência às idéias da psicanálise em uma comunidade cultural é o fator distintivo que produz uma heterogeneidade de imagens. As representações so­ ciais da psicanálise são instrumentos para defender a integridade da comunidade contra idéias ameaçadoras. Lemos ali que “...as RS emergem onde existe perigo para a identidade coletiva; quando a comunicação subestima as regras que um grupo social se colocou" (Moscovici, 1976: 171). O estudo desenvolve-se distinguindo três segmentos culturais da sociedade francesa dos anos 50, os processos de comunicação que lhes eram característicos e seu con­ teúdo estrutural. A Tabela 1 compara a difusão, a propa­ gação e a propaganda, e processos característicos, de acordo com diversos critérios para a cultura urbano-liberal, a cultura do meio católico e a cultura ligada aos comunis­ tas: como é apresentada a ordem entre conceitos e idéias; como são apresentados os vários temas da psicanálise; qual a suposta relação entre a fonte e a audiência da comunicação; quais as intenções e os componentes de ação da comunicação; a estrutura da mensagem; os graus de resistência; o grupo social; e o grau de identidade desse grupo social. É uma característica desse enfoque associar

os processos de comunicação com a estrutura do conteú­ do. Sensales (1990) usa essas distinções a fim de estudar a cobertura sobre computadores na imprensa italiana de 1976 a 1984. Tabela 1: A Comunicação da psicanálise em função da resistência Difusão

Propagação

Propaganda

ordem

não-sistemática

sistemática multifacetada

sistemática dicotômica

temas

aleatório, móvel, implícito

definido explícito

definido e sempre reafirmado

relações entre os participantes

distância não-engajamento transmissão dirigida pela audiência

instrutiva independente da audiência concessão à facção

instrutiva independente da audiência

intenção

oportunidade ação não necessária

mudança na significação construção de norma integrativa

intervenção imperativo à ação incompatibilidade conflitual

estrutura da mensagem (resultado)

opinião

atitude

estereótipo

resistência

baixa

média

alta

grupo social

urbano-liberal

católico

partido comunista

identidade

difusa

definida

definida

Fonte: adaptado de Moscovici, 1976, 474 f.; e Sensales, 1990, 25 f. O processo de difusão envolve um grupo social com uma identidade difusa, que oferece fraca, ou nenhuma, resistência à psicanálise. Os processos de comunicação são controlados pela audiência, orientados para informar sobre novas oportunidades; os temas são ordenados sem sistematização, apresentados aleatoriamente e móveis. A mensagem se apresenta em forma de opinião, sem nenhu­ ma implicação para ações específicas. Isso não surpreende,

pois as atividades psicanalíticas estão sociologicamente inseridas nesse meio. A propagação é a forma de comunicação do meio católico, um grupo social bem definido, com um nível médio de resistência à psicanálise. O processo de comuni­ cação é relativamente independente de sua audiência e se pressupõe que seja educativo. Os temas são sistematica­ mente ordenados e bem definidos. A intenção é fazer concessões e acomodar uma facção interna de pessoas que têm afinidades com a psicanálise mas, ao mesmo tempo, colocar limites que têm sua referência na tradição. O processo mantém controle sobre o significado das novas práticas e suas experiências correlatas através da formação de atitudes. A propagação tenta uma assimilação parcial e uma acomodação à psicanálise, ancorando-a em concei­ tos e práticas tradicionais. A propaganda é o processo de comunicação do meio comunista. Os temas são ordenados sistematicamente, bem definidos em dicotomias de amigo/inimigo, a fim de enfatizar incompatibilidade e conflito. A intenção é estri­ tamente educativa no que se refere à ação necessária dentro do conflito social. A estrutura da mensagem é estereotipada. Esse é o meio mais resistente à psicanálise. A propaganda manifesta rejeição clara, ancorando a psica­ nálise a imagens do inimigo. Essas associações entre a estrutura da mensagem, processo de comunicação e a comunidade social indicam diferentes efeitos de resistência. O objeto de difusão, a psicanálise, adquire uma identidade múltipla: a do meio urbano-liberal, a do meio católico e a do meio comunista. O objeto de difusão se transforma durante o processo e se multiplica. A resistência cultural das três comunidades francesas para a aceitação da psicanálise como tal resulta na proliferação de três imagens que, espera-se, retro-alimentam o próprio movimento psicanalítico. O efeito da resistência é a diversidade no domínio público, à medida em que novas idéias são acomodadas de forma específica.

Em relação ao processo histórico, os efeitos da resistência constituem-se em um processo de re-alimentação para o contexto da produção de conhecimento.

2. As condições sociais das Representações Sociais As RS são representações de alguma coisa sustentadas por alguém. É essencial identificar o grupo que as veicula, situar seu conteúdo simbólico no espaço e no tempo, e relacioná-lo funcionalmente a um contexto intergrupal específico. Uma representação particular pode, contudo, mudar de grupo hospedeiro e vagar por entre grupos sociais, assumindo vida própria. Uma sociedade se estrutura de acordo com diferentes clivagens. O estudo das representações da psicanálise apóia-se no que os cientistas políticos chamam de segmen­ tação cultural. Aqui, a unidade de análise diferencia-se de acordo com alguns critérios culturais "objetivos", tais como religião, língua ou grupo étnico, como é de fato o caso em certo número de países europeus. Na Holanda, essa seg­ mentação cultural é chamada de “Zuilen" (colunas); na Bélgica e França "famille spirítuelle" (famílias espirituais); na Áustria “Lagers" (territórios); na Alemanha "Weltanschauungen" (concepções de mundo); na Suíça, "ghettos" (Lorwin, 1971; Altermatt, 1978). A segmentação cultural tem as características de uma estrutura social que se justapõe às divisões sócio-econômicas; os limites culturais podem se correlacionar, mas não correspondem exatamente à estratificação sócio-econômica. Em uma hierarquia social esquematizada, a divisão sócio-econômica seria indicada por uma linha horizontal, enquanto que a distinção cultural é feita por linhas mais ou menos verticais. Imagens como as de colunas, territó­ rios ou guetos referem-se a tais diferenciações verticais, que se justapõem à divisão sócio-econômica; cada subcultura pode recrutar sua própria elite dentro dela mesma, em

outras subculturas e nas suas bases; o processo total resulta em um sistema em que elites representativas e suas respectivas bases competem umas com as outras. As disparidades econômicas não são irrelevantes, mas seu poder é limitado na explicação da experiência e dos com­ portamentos das pessoas. Uma conseqüência dessas estratificações sociais multidimensionais tem sido, tradicio­ nalmente, uma pluralidade de organizações sindicais ba­ seadas em diferenças culturais, nos países capitalistas (Beyme, 1977). O pluralismo sindical é um indicador para localizar os países que são adequados a estudos históricos sobre RS. Para a França dos anos 50, Moscovici estabeleceu o meio liberal urbano, o meio católico e a subcultura do partido comunista como relevantes em relação à psicaná­ lise. Na Suíça, poder-se-iam distinguir três meios culturais com importância constante para as culturas políticas até o século 20: o liberal-protestante, o católico e o socialista (Altermatt, 1978). Igualmente na Holanda, a segmentação de diferenciações religiosas como a liberal-reformada, a calvinista-ortodoxa, a católica e a socialista, mostrou-se relevante no que se relaciona a reações simbólicas a novas tecnologias (Van Lente, 1992). Na Bélgica a divisão lingüís­ tica entre comunidades de fala flamenga e francesa atra­ vessa dimensões político-partidárias. Uma representação simbólica de um tema científico expressa a relação entre esses meios e as relações desse meio com respeito à fonte de onde provém esse conheci­ mento. O conhecimento que provém de um desses meios será aceito com mais ou menos reservas pelos outros meios. Poder-se-ia dizer que o estudo de Moscovici revela a importância da disparidade cultural na França dos anos 50, mas que ele não situa a fonte, isto é, a psicanálise, dentro dessa estrutura. A fonte do novo conhecimento se situa, supostamente, fora. É mais provável que ela se situe dentro do meio urbano-liberal, onde a distância social entre a fonte e a audiência é pequena, e a comunicação toma a

forma de humor e informação sobre novas oportunidades; para os outros meios, esse conhecimento implica uma ameaça potencial, e por isso uma variedade de repre­ sentações emergem. Essa visão dá origem a três questões para a pesquisa sobre a popularização da ciência. Em primeiro lugar, estu­ dos comparativos sobre a maneira como a psicanálise foi divulgada em países marcados por segmentação cultural tais como a Holanda, Bélgica e Suíça, e países com segmentação predominantemente econômica, tais como a Inglaterra ou os Países Escandinavos, podem ser surpreen­ dentes. Em segundo lugar, temos um problema empírico que é demonstrar se os meios culturais tradicionais ainda são relevantes para as representações de temas científicos e tecnológicos nos dias atuais - ou não. Em terceiro lugar, velhas imposições culturais ainda podem produzir impor­ tantes efeitos em sociedades modernas. Estudos sobre movimentos sociais e comportamento eleitoral indicam que fatores econômicos, tais como a flutuação comercial e a classe social, se tornam menos importantes na explicação da mobilização na Europa do após-guerra, enquanto que as diferenças culturais e de valor assumem mais importân­ cia (Inglehart, 1990; Touraine, 1995). No que se refere ao estudo das representações sociais, tal fato nos deixa a tarefa de identificar quais são as distinções significativas para comparar representações de problemas científicos e tecnológicos no espaço e no tempo. Sondagens podem ajudar-nos a identificar aquelas variáveis culturais que melhor explicam a variância social.

3. Implicações para o estudo da popularização da ciência 3.1. O modelo dominante, mas irreal, de popularização A pesquisa sobre a difusão do conhecimento técnicocientífico em ambientes especializados e em um público

mais amplo coloca-se na origem dos interesses pela “re­ presentação social" (Barbichon e Moscovici, 1965). A difu­ são interna discute a dinâmica de um novo conhecimento dentro de círculos de especialistas de vários graus. A difusão externa discute a circulação do conhecimento especializado em um domínio público mais amplo. A fim de incrementar a eficiência desses processos, os pesquisa­ dores identificam e tentam controlar os obstáculos que encontram no caminho. Tais tentativas, muitas vezes, deixam transparecer uma noção de despreparo atribuída ao público, aos comunicadores, ou à comunidade científi­ ca. A resistência por parte do público é associada a hábitos, rigidez, condicionamentos, falta de motivação para apren­ der, e limitações institucionais no trabalho ou na escola (Barbichon, 1973). Hilgartner (1990) denominou tais noções como a "visão dominante da popularização” , que serve, com certa flexi­ bilidade, para avançar os interesses das comunidades científicas. A idéia de popularização pressupõe uma dis­ tinção entre "conhecimento científico genuíno" e sua “cir­ culação popular” ; a última varia em graus de distorção, degradação e poluição conforme os padrões do "conheci­ mento científico” . O conhecimento científico genuíno, des­ de este ponto de vista, é santuário exclusivo de cientistas, definido para e pela autoridade científica. Tal procedimen­ to constitui um discurso político flexível. Ele fornece um vocabulário para demarcar o que é ciência e o que não é, e orienta a distribuição de prestígio, verbas e status numa única direção (distribuição de recursos). A noção de co­ nhecimento poluído implica a idéia de contaminação por fontes externas, tais como “ideologia” , "religião” ou in­ fluências semelhantes (demarcação); a idéia de contami­ nação implica “pureza" e estabelece uma hierarquia entre as atividades do próprio grupo e as de grupos externos. Esses mecanismos asseguram à autoridade científica o direito de decidir sobre simplificações adequadas ou im­ próprias a fim de controlar sua própria imagem (controle da imagem). Tem-se a impressão que se um traço particu­

lar da popularização favorece a causa do(a) cientista, ele é "adequado"; se não favorecer o ponto de vista dele, ou dela, ele é inadequado. As duas distinções, popularização genuína ou vulgarizada e adequada ou distorcida, são instrumentos discursivos para preservar autonomias e pri­ vilégios, quando em concorrência com outros grupos pro­ fissionais e sistemas de comunicação. Esse modelo dominante de popularização está ligado a um interesse dominante de comunicação, que foi muito bem sintetizado por Doman: “ o projeto de com unicação da ciência, ao menos nos Estados Unidos, esteve indissoluvelmente aliado aos esforços das organizações científicas para fabricar uma cobertura dócil e para criar um público que irá aceitar a proposta científica de uma autoridade racional” (Doman, 1990:64)

O interesse dominante segue o modelo de alta fideli­ dade (hi-fi model): a transmissão de uma mensagem é controlada através da supressão do nível de ruído no canal, e preserva com o máximo de qualidade o sinal original da autoridade científica. A pesquisa, dentro desse enfoque, mede o volume de cobertura científica através de análises de conteúdo, investiga as características dos produtores (organizações da mídia, jornalistas, e cientistas “visíveis") e de audiências através de sondagens sociais, e avalia a exatidão da cobertura com análises de conteúdo normati­ vas. Tudo isso é feito para reiterar periodicamente as queixas estereotipadas sobre coberturas deficientes e in­ terpretações distorcidas da ciência por parte dos meios de comunicação, especialmente no que se refere ao sensacionalismo e à falta de exatidão (Cronholm e Sandell, 1981). O esforço é crítico num sentido pragmático; ele se refere, porém, à autoridade científica e o esforço de comunicação é subserviente àqueles interesses científicos que compe­ tem com outros interesses sociais. Os pressupostos sobre a audiência, na maior parte das vezes, seguem o modelo de "despreparo": a comunidade científica se defronta com um público ignorante, que é alheio à ciência no que concerne a decisões políticas sobre seu próprio futuro.

Para um observador, contudo, não fica claro onde traçar a linha divisória entre idéias e conhecimento "popu­ lar'' e idéias e conhecimento “genuíno” . A análise das práticas comunicativas demonstra que todas as formas de escrita e comunicação são gêneros estilizados, adequadas a certas audiências e propósitos, em contextos que vão de relatórios de experiências feitas em laboratório, revistas, conferências, livros-texto, artigos de jornal, até livros po­ pulares, etc. (Whitley, 1985). Seria uma atitude mais realista pressupor um continuum de contextos comunicativos den­ tro dos pólos ciência pura e circulação popular. Hilgartner (1990: 528) chamou esses pólos de contextos de comuni­ cação que tem “fluxo ascendente", quando crescem em cientificidade, e "fluxo descendente” , quando crescem em popularização. Este continuum permite tanto a transforma­ ção de tópicos que pertencem ao senso comum em tópicos científicos (fluxo ascendente), como a transformação do conhecimento científico em senso comum (fluxo descen­ dente). A difusão de idéias na direção descendente cons­ titui uma forma de "popularização"; a difusão em direção ascendente constitui uma forma de “cientificização” . Para fins de pesquisa, as idéias ou tópicos podem ser observa­ dos através de vários canais. Uma idéia específica pode ser primeiramente formulada como um projeto de financia­ mento para um comitê misto (ponto de entrada); uma vez obtido o financiamento, a pesquisa prossegue na linha de se produzir resultados escritos, de uma forma especializada e formalizada (fluxo ascendente). A partir daí, as idéias circulam em várias apresentações em conferências, publi­ cação em jornais, livros-texto para os jornais ou televisão (fluxo descendente). Canais ascendentes parecem instigar o pensamento teórico; os canais descendentes parecem estimular o pensamento mitológico e a formação de ima­ gens. No que se refere à pesquisa, este continuum apre­ senta uma classificação ordinal de contextos de comuni­ cação por graus de popularização. Permanece a idéia de uma demarcação entre conhecimento genuíno e popular, porém mais como um continuum, do que como uma dicotomia.

3.2. Resistência e canais de comunicação Que importância tem a idéia de "representação social" em tudo isso? A relação é dupla. Em primeiro lugar, na origem mesma da idéia de representações sociais está a difusão do conhecimento e um projeto de comunicação da ciência, ainda que apenas no contexto francófono dos anos 60 (Barbichon & Moscovici, 1965; Ackermann & Dulong, 1971; Schiele 8c Jacobi, 1989). Podemos assim reconhecer uma afinidade que tem sua base em uma origem comum. Em segundo lugar, a idéia de RS desenvolve uma noção da ciência popularizada para além da simples concepção de "despreparo". Quatro pontos merecem ser destacados: (a) As representações sociais têm um caráter de signo referencial duplo: elas re-presentam algo diferente e são usadas por alguma comunidade. Uma representação tem um conteúdo estrutural. Nós aqui estamos interessados nas associações distintivas entre usuários particulares e conteúdos estruturais específicos. (b) A análise é funcional: com a ajuda das RS nós nos orientamos no mundo e sabemos o que fazer; elas são recursos de que dispomos. Entretanto, ao influenciar o modo como pensamos e aquilo que fazemos, elas tornamse também nossos limites. Como recursos e como limita­ ções, elas estruturam a cognição e o comportamento (Thommen et al.,1992). Essa função tem, como ponto de referência, o sistema que representa. Sob este enfoque, parece inadequado ver a representação como deficiente; ela age do jeito que age. (c) Para fins de pesquisa, nós dirigimos nossa atenção para duas formas básicas de codificação: a ancoragem, com a ajuda de metáforas, e a objetificação, com imagens e ícones. Em nossa pesquisa, portanto, identificamos ân­ coras e imagens, e as classificamos em relação a grupos sociais. (d) Para isso, não nos confinamos a um cânone meto­ dológico: análise de conteúdo, sondagens, observação,

sejam eles de tipo qualitativo ou quantitativo, são igual­ mente úteis para identificar âncoras e imagens, sua preva­ lência, e sua associação com grupos sociais (Farr, 1993). Operacionalmente falando, a pesquisa da repre­ sentação social é uma relação entre quatro conjuntos de variáveis. A o caracterizar um "objeto" como a psicanálise, o raio laser, o peso, o dinheiro, a inflação, a AIDS, o corpo ou o genoma humano nós analisamos a estrutura do conteúdo, associamos esses tópicos aos seus usuários, construímos hipóteses sobre suas funções, e para fazer tudo isso nós empregamos certos métodos de investigação: RS (método [conteúdo, usuário, função]) O pressuposto da funcionalidade nos força a observar com mais cuidado como diferentes representações do “mesmo” objeto se relacionam com as atividades do grupo e com sua segmentação cultural. Possibilitar a um grupo social resistir a investidas hegemônicas é uma função interna das representações sociais e sinalizar a necessida­ de de mudanças para o grupo inovador é uma função externa. Pode até acontecer que a persistência do modelo dominante de popularização - apesar de sua evidente irrealidade e crítica que se seguiu nos últimos 30 anos seja ela própria uma visão mítica da comunicação, que tem necessidade de ser entendida em termos de resistência e autonomia, numa relação ciência-ciência. Ao enfatizar que a resistência tem um papel a desem­ penhar no desenvolvimento das representações sociais, outra distinção toma-se importante. No modelo de “alta fidelidade", a resistência é um ruído no processo comuni­ cativo; ela distorce e impede que a mensagem seja comu­ nicada adequadamente. O desvio entre a intenção da fonte e o efeito sobre a audiência é pensado como sendo ou resistência da audiência, ou incompetência do emissor. A resistência da audiência é algo que deve ser superado eficientemente, através do manejo competente de mensa­ gens e contextos; ela implica uma noção de despreparo, tanto da parte do emissor, como do receptor.

Esta noção de resistência como despreparo difere da que discutimos aqui. Para nós a resistência se constitui em uma qualidade do canal de comunicação, isto é, um atributo da relação entre fonte e audiência; mas ela é, também, uma forma de criatividade que introduz e garante a diversidade do sistema a médio e longo prazo. Para fins de descrição, nós atribuímos resistência à audiência, mas bloqueamos a implicação pragmática; em vez de tomar uma posição partidária e procurar reduzir a resistência, nós nos limitamos, ao menos temporariamente, a observar os observadores em uma atitude mais descompromissada, que nos permite prazer e estimula a diversidade. Isso acarreta implicações evidentes para o estudo da popularização da ciência. A teoria de Hilgartner implica uma classificação dos canais dos meios de comunicação por graus de popularização. Eu sugiro que acrescentemos uma segunda dimensão, também ordinal: resistência a um tipo específico de conhecimento. Folhetos especiais, jor­ nais, estações de rádio, canais de televisão, revistas, con­ textos de entrevistas, locais de observação, são assim também classificados de acordo com o grau de resistência a um conhecimento novo. Para isso, é necessário distinguir padrões de consumo dos meios de comunicação de massa e associá-los a grupos sociais de modo a formar conjuntos culturais. Contudo, não seria realista satisfazermo-nos com esse esquema de pesquisa bidimensional. Os sistemas de comunicação são sistemas de ação no tempo. De maneira ideal, portanto, nós representamos esses sistemas simul­ taneamente, pelas suas ações mais ou menos populares, e mais ou menos resistentes à fonte de conhecimento. Esta atividade é descrita tanto por um indicador quantitativo da cobertura total, como por uma análise qualitativa desta cobertura. Com isso nós atingimos um quinto procedimen­ to operacional no estudo da representação social. (e) Para propósitos de pesquisa, nós classificamos vários canais de comunicação de acordo com as duas dimensões de popularização e resistência do ponto de vista

da fonte, e analisamos o conteúdo (ancoragem e figuração) nesses diversos canais, ao longo do tempo. 3.3. A diferenciação da comunicação através da resistência Através do agrupamento de conteúdos, de leitores e canais de popularização e resistência nós chegamos a um modelo tridimensional de comunicação da ciência, que tanto possui um nível de complexidade que nos parece mais realista, como possibilita uma abertura para a diver­ sidade. Em se tratando dos dados, poderíamos descrever tal sistema através de diversos grupos de diagramas que mostram a intensidade da cobertura de certo tópico em cada canal ao longo do tempo. Cada grupo de diagramas é complementado com uma descrição dos elementos sim­ bólicos usados, que vão mudando no processo. As carac­ terísticas de uma representação podem passar de um canal a outro. Os canais são autônomos na maneira como pro­ cessam a informação, mas criam uma dependência mútua como resultado de seus atritos. Talvez tome-se óbvio aqui que essa perspectiva é mais um projeto ambicioso, do que algo que possa ser realizado através de um único estudo. Na ciência da comunicação, a atividade de múltiplos canais tem sido foco de vários estudos. O tempo relativo da atividade pode ser um indicador da função dos canais. O modelo dominante de comunicação da ciência nutre expectativas que a função de definir a pauta de prioridades provenha do canal especialista: quando se trata de deter­ minados assuntos, a comunicação aparece primeiro no canal especializado, e somente num estágio posterior ela será tomada em consideração por canais populares, tais como jornais ou-televisão. Strodthoff, Hawkins & Schoenfeld (1985) mostraram que foi isso que aconteceu com a informação ambiental nos Estados Unidos entre 1959 e 1979: a grande mídia reage à agenda da mídia especializada. Em outros casos a história é diferente. Lewenstein (1995) mostra como a "saga da fusão a frio” começou com

uma conferência à imprensa na Universidade de Utah, dali passou para a televisão e jornais, para tornar-se um tópico na comunicação científica especializada apenas em um estágio posterior. Esse padrão de comunicação é chamado de "ciência por conferências à imprensa", e viola uma norma implícita da atividade científica: as teorias científi­ cas devem ser validadas dentro dos círculos especializa­ dos, antes de chegarem até ao público. Eu mesmo discuti um caso similar de definição de agenda por parte do público (Bauer, 1994) relacionado à “ciberfobia” . Construída como uma ansiedade patológica a computadores, tanto no trabalho, como na escola e em casa, a ciberfobia foi assunto da mídia popular no início da década de 80, antes de tornar-se um fenômeno clínico de pesquisa depois de 1985, e isso principalmente nos Estados Unidos. Em uma veia semelhante, Gregory (1994), ao discutir cientistas britânicos não ortodoxos, mostra como uma idéia transmitida primeiramente através de ficção científica pode tornar-se uma preocupação para especia­ listas muitos anos depois. Gamson & Modigliani (1989) definiram uma amostra da cobertura dada por notícias de televisão, revistas, edi­ toriais e charges a acontecimentos relacionados ao poder nuclear, entre 1945 e 1980 nos Estados Unidos. Para cada canal eles delimitaram a freqüência relativa de um número restrito de controvérsias e metáforas centrais que eles chamaram de "pacotes significativos", tais como "o pro­ gresso", "solução amigável” ou "negociação com o diabo". O debate público dos Estados Unidos sobre energia nuclear é caracterizado pela relativa preponderância desses “paco­ tes” num determinado período. Em um estudo histórico Weart (1988) analisa a mudan­ ça das imagens relacionadas ao "átomo" em jornais norteamericanos de 1905 até os dias de hoje. Em termos quantitativos, ele demonstra que a intensidade dos tópicos referentes ao átomo chega ao cume em 1945/46,1955,1963 e 1979, e a conotação geral se toma crescentemente

negativa depois de 1975. Qualitativamente falando, ele mostra uma sucessão de imagens do “átomo" e seus poderes: de “elixir" e "veneno” nos anos 20, passando pela “autonomia nacional” , pela "paz e sobrevivência” nos anos 40 e 50, até “poluição” , "escolha" e "guerra” nos anos 70. O estudo mostra a ida e vinda de imagens e os agentes sociais a elas relacionados, dentro do sistema de comuni­ cação de uma única nação. Em um outro projeto que desenvolvemos atualmente no Museu de Ciência em Londres, nós estamos analisando uma larga amostra de jornais britânicos entre 1946 e 1985, para caracterizar a forma como se deu a cobertura científica e tecnológica na Inglaterra do período do após-guerra (Bauer, 1994). Alguns milhares de artigos de jornal foram codificados em 59 variáveis que cobrem aspectos formais, como tipo de jornal, secção do jornal onde está a notícia, tamanho, o tom geral do artigo, citações, ilustrações, e elementos narrativos, tais como autor, acontecimento, localidade, horizonte de tempo, efeitos, moral da história. Os resultados indicam as flutuações da cultura científica e tecnológica na Inglaterra e nos permitem agrupar assuntos, autores e jornais para caracterizar a atividade e o conteúdo dos vários canais no espaço de 40 anos. Eles também nos possibilitam avaliar transformações nas imagens mobiliza­ das por assuntos científicos e tecnológicos, em diferentes canais, nesse período. Jacobi & Schiele (1993) enfatizam a simultaneidade de vários níveis de compreensão em um único artigo de revista; existem várias leituras e várias audiências possí­ veis implicadas em um só artigo. Sua análise revela a complexidade das mensagens de popularização. A multi­ plicação de significados ocorre em vários canais paralelos, através da organização das imagens e metáforas. Todos esses exemplos podem demonstrar como o padrão de atividade em um sistema de canais paralelos é uma ques­ tão empírica quantitativa - quanto à cobertura ao longo do tempo - e qualitativa - pelas características mutáveis de seu conteúdo.

3.4. A diversidade simbólica do conteúdo Caracterizar a atividade ao longo do tempo é apenas parte da história. Em última instância, o que nós preten­ demos é caracterizar variedade cultural em um sistema de comunicação. Com a classificação bidimensional dos meios de comunicação por graus de popularização e resis­ tência à fonte, nós temos uma heurística à mão. Um simples exemplo pode mostrar como isso funciona. Na Figura 1, nós assumimos um padrão de 12 canais; distinguimos dois níveis especializados (a e b) e dois níveis populares (c e d); distinguimos, em seguida, três “culturas" (I,II,III), das quais “I” é a menos resistente e "111” é a mais resistente a uma idéia específica. Uma análise de conteúdo dessas 12 atividades irá revelar padrões de ancoragem e metáforas ligados às três culturas, que diferem de acordo com seu grau de resistência.

FIGURA 1: MÍDIA CIENTÍFICA CLASSIFICADA POR RESISTÊNCIA E POPULARIZAÇÃO

Níveis de Resistência Grau de Popularização

I (baixo)

n

ffl (alto)

Científico Médio (baixo)

1

2

3

Elite Médio

4

5

6

Popular Médio (alto)

7

8

9

Uma estrutura hipotética de um sistema de comunicação com duas dimensões: resistência e popularização. Horizontalmente os canais de comunicação são classificados de acordo com o seu grau de resistência para com a fonte da informação, e verticalmente os canais são classifi­ cados de acordo com o grau de popularização, segundo o conceito de Hilgartner de continuum de popularização. Os números 1 a 9 repre­ sentam canais específicos de comunicação (revistas científicas, jornais, revistas, programas de televisão). As colunas verticais são diferentes representações sociais variando em forma e conteúdo.

Em 1950, era possível distinguir três meios culturais com diferentes representações da psicanálise na França. Hoje, precisamos identificar novamente quais as divisões culturais relevantes. O meio católico se desintegrou, na maioria dos países europeus, depois do processo de aber­ tura da Igreja e o mesmo aconteceu com o meio ligado ao partido comunista, muito antes da queda do muro que separava a Europa Oriental da Ocidental. A crise e declínio dos movimentos políticos ligados a esses movimentos na França, Itália, Espanha e outros países europeus mostra essas mudanças subjacentes. Dada essa situação, os estu­ dos sobre a popularização da ciência necessitam questio­ nar o que se constitui como diferencial nas representações de um tópico científico particular. Novos movimentos sociais, tais como o movimento antinuclear, pela paz, de libertação das mulheres e outros, podem ser candidatos para caracterizar uma segmentação cultural. Parece, con­ tudo, que esses movimentos sociais têm um período de vida muito curto, para sedimentar uma cultura coerente. Devemos, por isso, recorrer a dados estatísticos para iden­ tificar alguma associação estável entre as representações de um tópico e um grupo social definido (Doise et al., 1992). Ainda estamos longe de ter claro que tipo de clivagens culturais estão emergindo. O critério último seria encontrar alguma característica "objetiva", como língua, religião, região geográfica, renda, ou educação, que seja significante para as representações. Cientistas sociais depositam suas esperanças na identificação de padrões de valor ou padrões de consumo como formas emergentes de segmentação. Em um de nossos estudos sobre representações da hereditariedade humana, nós analisamos a cobertura de jornais sobre o Projeto Genoma, entre 1988 e 1992, e conduzimos 12 grupos focais - a maior parte na Grande Londres - sobre assuntos relacionados à genética (Durant et al., no prelo). O Projeto Genoma é um enorme projeto científico, cujo objetivo é mapear completamente a base genética da espécie humana. Naturalmente, isso dá origem a questões morais, legais e comerciais.

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Nós classificamos, então, a ancoragem e as metáforas utilizadas na cobertura dada pela imprensa e nas conver­ sações dos grupos. A representação social das atividades de pesquisa genética na Inglaterra podem ser caracteriza­ das em três dimensões: o Projeto Genoma, ainda que bastante desconhecido, eventualmente emerge na rede de associações. Os tópicos mencionados se agrupam ao longo de problemas como manipulação e identificação, promessa e preocupações, e controle social/falta de controle. A Figura 2 mostra as duas primeiras dimensões e a terceira deve ser imaginada ortogonalmente às outras duas. Esta estrutura fornece uma base para se localizar grupos sociais e meios de comunicação particulares, bem como para que possamos mapear situações mutáveis ao longo do tempo. A terceira dimensão, ‘controle/falta de controle', necessita ser pensada como se estivesse atravessando uma estrutura tri-dimensional. Até agora, não identificamos um padrão claro de segmentação que seja significativo para as repre­ sentações, mas nossa análise ainda não está completa. Em outro estudo, nos propusemos a analisar o conceito popular de atividade científica em 11 países europeus e nos Estados Unidos. A unidade de segmentação foram os diferentes países. Codificamos no total 13.000 respostas que representavam respostas das diferentes populações à pergunta aberta: "Por favor, diga-me, com suas próprias palavras, o que significa estudar algo cientificamente?" (Bauer et al., 1992; Bauer e Schoon, 1993). As respostas incluíram referências a processos científicos (experimen­ tos, estudo em profundidade, testagem de teorias), referên­ cias a instituições (pelo nome, em termos de papéis, ou como empreendimento societário e normativo), referências a conseqüências (pessoais, locais ou de âmbito universal) e exemplos (ciências da vida, ciências físicas, ciências sociais, etc.).

Tabela 2: Classificando os países pela resposta mais freqüente em cada dimensão País

Processo

Instituição

Efeito

Exemplo

França

Teoria/ Profundidade

Societária

Humanidade

Vida

Portugal

Profundidade

Geral

Humanidade

Técnica/outro

Holanda

Profundidade

Societária

Pessoal

Vida

Luxemburgo

Profundidade

Geral

Pessoal

Vida

Grécia

Profundidade

Geral

Pessoal

Física/outro

Itália

Experimento/ Profundidade

Nome

Humanidade

Física/outro

Estados Unidos

Teoria/Expe­ rimento

Geral

Humanidade

Social

Alemanha

Experimento

Nome

Local

Social

Manda

Experimento

Nome

Local

Vida

Grã-Bretanha

Experimento

Nome

Local

Física

Irlanda do Norte

Experimento

Nome

Humanidade/ Local

Técnica/outro

Espanha

Experimento

Geral

Humanidade

Física/outro

Esta tabela mostra a classificação em quatro dimensões de análise. A classificação está baseada na resposta mais freqüente por pais e por dimensão. O realce de uma classificação indica posições extremas na análise de correspondência. Tais países são identificados como protóti­ pos para uma classificação. A análise está baseada em 12 conjuntos de dados, excluindo-se os dados dos Estados Unidos, 1990.

A Tabela 2 mostra os resultados principais, tomandose as respostas mais freqüentes para cada país. Não há uma única linha a separar os 12 países na nossa compara­ ção. Em cada dimensão os países se agrupam de modo diferente. Podemos perceber que os países latinos (França, Itália, Espanha e Portugal) partilham uma noção de ciência como contribuindo para o progresso da humanidade como um todo. Tal fato pode ser expressão de um sentimento

positivista que persiste nesses países. O elo céltico-anglosaxão entre Inglaterra, Estados Unidos, Irlanda e Irlanda do Norte se faz quando os respondentes identificam "ser científico" com o método experimental, ou com uma ins­ tituição particular que eles referem estar estudando algo cientificamente. Essas associações, contudo, são frágeis; até o presente ainda não conseguimos encontrar um pa­ drão claro de segmentação entre países europeus e os Estados Unidos, muito embora nosso esforço continue.

4. Algumas conclusões Neste ensaio eu procurei re-enfatizar as funções prag­ máticas das representações sociais, que possibilitam a uma comunidade social resistir à influência hegemônica de outra. As representações sociais funcionam como um "sistema cultural imunizante” em um contexto intergrupal: inovações simbólicas são ativamente neutralizadas através de sua ancoragem em formações tradicionais. Do lugar de observação dos observadores, a resistência é um fator de criatividade e diversidade, que multiplica as imagens de um objeto à medida em que ele se difunde em vários contextos. O estudo original da psicanálise mostra clara­ mente como subculturas francesas de meio urbano-liberal, de meio católico e de meio ligado ao partido comunista, acomodaram a psicanálise através de diferentes estratégias e obtiveram resultados diferentes em função do seu grau de resistência. A pouca resistência apresentada pelo meio urbano-liberal expressa o fato de que a psicanálise se localiza sociologicamente nesse meio. Os estudos das representações sociais contrapõem-se ao modelo de comunicação da ciência de "alta fidelidade” , porque reconhecem que o objeto em difusão muda ao longo do processo. Por isso as diferenças entre as intenções da fonte e os efeitos da audiência em processos comunicativos são culturalmente significativas e não simplesmente indi­ cadoras de um manejo deficiente da comunicação. A

resistência da audiência não é algo que deva ser superado, mas um fator de criatividade e diversidade a ser consi­ derado. A partir daí podemos extrair algumas conclusões para o estudo de noções populares de ciência e tecnologia. Os estudos das representações sociais se fundamentam em segmentações culturais dentro de uma unidade de análise, seja ela uma instituição, uma sociedade, ou qualquer uni­ dade mais ampla. Combinando a idéia de popularização de Hilgartner e o pressuposto de resistência cultural, o que eu apresentei aqui foi uma proposta a estudar a popularização da ciência através de uma classificação bidimensional de atividades comunicativas: pelo grau de popularização e pelo grau de resistência. Tais atividades são conjuntos de discussões públicas e atividades de meios de comunicação em uma dimensão temporal. Em momento algum tais conjuntos são associados a um grupo social. O conteúdo simbólico é analisado quantitativamente quanto à intensi­ dade flutuante da cobertura, e qualitativamente, quanto aos padrões de mudança do seu conteúdo. Uma dificulda­ de, ainda presente em vários estudos empíricos, é definir qual a clivagem cultural relevante que seja significativa para distinguir representações sobre uma questão científi­ ca ou técnica. Sondagens podem nos oferecer uma heurís­ tica importante nesses casos. É pouco provável que as segmentações culturais pre­ sentes no estudo sobre a psicanálise ainda hoje se mante­ nham relevantes; cientistas sociais, entretanto, prevêem um crescente significado para as estratificações culturais, em contraste com estratificações econômicas, nas socie­ dades ocidentais. Aqui se abre um caminho considerável para estudos das representações simbólicas de inovações científicas e tecnológicas, tais como tecnologias da infor­ mação, novas biotecnologias e genética.

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GERARD DUVEEN

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8. CRIANÇAS ENQUANTO ATORES SOCIAIS: AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS EM DESENVOLVIMENTO

Gerard Duveen 1. Dois Caminhos na Construção do Conhecimento Social Enquanto empreendimento teórico, as representações sociais têm sido situadas dentro do âmbito da p s ic o l o g ia s o c i a l e, de fato, fica claro, nos próprios escritos de Moscovici, que ele elabora sua contribuição como uma tenta­ tiva de recuperar e enriquecer aquelas tradições em p s ic o ­ l o g i a s o c ia l que foram eclipsadas pelas conseqüências nefastas (especialmente nos Estados Unidos) do individua­ lismo teórico, associado ao behaviorismo. Não é de se estranhar, portanto, que a maioria das discussões em torno das representações sociais têm considerado a teoria como uma contribuição à p s ic o l o g ia s o c ia l e, mais particular­ mente, à p s ic o l o g i a s o c ia l do mundo adulto, onde a preocupação com o desenvolvimento da criança, enquanto ator social, mereceu um interesse apenas marginal. Entre­ tanto, existem razões suficientes para insistir em que essas preocupações tenham um papel mais central. Se exami­ narmos os processos através dos quais a criança incorpora as estruturas do pensamento de sua comunidade e adquire assim um lugar como participante competente e funcional nessa comunidade, eles nos apresentam um campo de investigação que pode ser fonte de questões produtivas e contribuições construtivas para a própria t e o r i a d a s r e ­

s o c i a i s . Da mesma forma, interesse na influência da "sociedade pensante” , na qual a criança se desenvolve, pode ser fonte de uma série de desafios que teorias do desenvolvimento precisam enfrentar. Se vale a pena insistir em uma colaboração mais próxima entre essas duas tradições, é porque elas estão dirigidas, fundamen­ talmente, às mesmas questões. Como o próprio Moscovici destacou, elas têm “um ponto de partida comum e são animadas por pressupostos subjacentes próximos. Suas tradições e métodos diferenciados permitem a manifesta­ ção de similaridade profunda e seu entrelaçamento. É como se a p s ic o l o g ia s o c i a l e a Psicologia do Desenvol­ vimento estivessem preocupadas com a mesma coisa, a primeira no espaço e a última no tempo, a primeira na dimensão externa, a segunda na dimensão interna" (1990, p. 169). Se o problema para os desenvolvimentistas é, então, compreender como a criança se desenvolve enquan­ to ator social, os psicólogos sociais muitas vezes também esquecem, e em detrimento próprio, que todo ator social tem uma história de desenvolvimento, cuja influência não pode ser ignorada. presentaçõ es

Na verdade, se as designações “social" e "desenvolvi­ mento" passaram a significar categorias distintas em Psi­ cologia, para a epistemologia construtivista essa é uma distinção que necessariamente sucumbe. Tanto Moscovici como Piaget compartilham uma mesma postura epistemológica. O mundo, tal como nós o conhecemos, é o mundo que nós construímos através de nossas operações psicoló­ gicas. Piaget, como se sabe, elaborou e defendeu sua posição construtivista - ou genética - tanto contra posições de a príorísmo como de empiricismo. O conhecimento não é nem um produto de características inerentes à mente humana, nem simplesmente um reflexo de influências do meio ambiente. Ao contrário, para Piaget, o conhecimento se desenvolve através das interações da criança com o meio ambiente, ao longo das quais ela chega a coordenar suas próprias ações e, a partir daí, a abstrair operações mais gerais. De modo similar, Moscovici (1972) elaborou e de­

fendeu o que ele considera uma p s ic o l o g i a s o c i a l siste­ mática contra aquelas posições, nas teorias da p s ic o l o g ia s o c i a l , baseadas em epistemologias do tipo a príorí ou empiricistas. Mais tarde, Moscovici (1976a) chegou a ca­ racterizar sua posição como exemplo de uma p s ic o l o g ia s o c i a l genética, e o uso mesmo da palavra genética, tão impregnada de sobre-tons piagetianos, deve servir como um alerta para a harmonia existente entre esses dois autores. E é exatamente nessa perspectiva genética co­ mum que a harmonia se faz ouvir mais claramente. Um dos pressupostos centrais das teorias genéticas em Psicologia é que, para que possamos compreender qual­ quer coisa, é necessário que possamos compreender os processos através dos quais ela foi produzida, quer dizer, é necessário apreender o desenvolvimento de sua constru­ ção. Esse pressuposto foi mais claramente elaborado nos textos clássicos de Piaget e Vigotsky, mas também tem-se feito evidente na t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c i a i s . Se nós quisermos entender as representações sociais, preci­ samos entender os processos através dos quais elas são produzidas e transformadas. Para Moscovici isso significa não somente os processos de ancoragem e objetivação, mas também, como Doise (1993) recentemente nos lem­ brou, os processos de propagação, propaganda e difusão. Nos seus comentários sobre uma série de estudos desenvolvimentistas em representações sociais, Moscovici (1990) sugeriu que existem duas abordagens para analisar os processos através dos quais as representações sociais são construídas. O primeiro, que ele sugere ser o mais típico em p s ic o l o g i a s o c i a l , é descrito como o modo de Bartlett, já que propõe a análise da construção e recons­ trução das representações sociais enquanto elas passam de um grupo social a outro. A segunda abordagem, ele caracteriza como o modo de Vigotsky (e ele observa que este é também o modo de Piaget, mas, como veremos mais adiante, ainda que eles compartilhem algumas caracterís­ ticas comuns, o modo de Piaget nem sempre é o mesmo que o modo de Vigotsky), e nela se busca entender as

representações analisando suas transformações sucessivas através de diferentes estágios na infância e na adolescência. Ainda que Moscovici sugira que estes são dois modos de atingir os mesmos fins, existem diferenças entre o modo de Bartlett e o modo de Vigotsky. O modo de Bartlett conduziu a investigações dos processos através dos quais as representações são organizadas e os meios através dos quais elas são comunicadas em sociedade (Moscovici, 1976b) e, dentro deste parâmetro geral, reflexões posterio­ res sobre as próprias representações conduziram aos estu­ dos das estruturas psicossociais dos grupos que produzem as representações (por exemplo, Jodelet, 1991). Algumas preocupações similares podem ser observadas nos estudos que seguiram o modo de Vigotsky (ainda que nada possa ser comparado, neste segundo caso, à riqueza da análise que Jodelet realizou da p s ic o l o g i a s o c i a l subjacente aos seus “vileiros franceses", lutando para elaborar a presença do louco na sua vida cotidiana), embora o foco central, nesses estudos, tenha sido a emergência da criança como ator social. Na maior parte dos casos o modo de Vigotsky tem sido aproximar um problema específico - se a criança nasce em um mundo que já é estruturado em termos de representações sociais, como ela se toma um membro participativo de sua comunidade? A ênfase, então, nos estudos sobre representações sociais ao modo de Vigotsky, é bastante diferente daquelas que se evidenciaram no modo de Bartlett. Nós poderíamos dizer que o modo de Vigotsky tem sido apropriado para questões da ontogênese das representações sociais, enquanto o modo de Bartlett tem sido mais geralmente adotado para o estudo de sua sociogênese (cf. Duveen and Lloyd, 1990). O foco em questões ontogenéticas, portanto, tem gerado um conjunto de preocupações diferentes, ainda que complementares, com relação àquelas que são evidentes em estudos sociogenéticos. Em primeiro lugar, natural­ mente, porque foi necessário aos estudos ontogenéticos negociar um caminho em torno dos edifícios clássicos da

Psicologia do Desenvolvimento e seu pressuposto central, de que as capacidades mentais da criança mudam, elas mesmas, ao longo do desenvolvimento da criança. Que contribuição, se alguma, o desenvolvimento da organiza­ ção mental da criança exerce na sua aquisição de repre­ sentações sociais? É tentador ver as várias respostas para esta questão ilustrando duas abordagens fundamentais que, ou vão seguir Piaget e sua ênfase no papel constitutivo das próprias estruturas mentais emergentes da criança, ou vão compartilhar a ênfase de Vigotsky na internalização de sistemas de signos coletivos. Antes de considerar a contribuição que esses autores podem trazer para a compreensão do desenvolvimento das representações sociais, eu gostaria de delinear a aborda­ gem que emergiu do trabalho que Bárbara Lloyd e eu desenvolvemos nos últimos cinco anos sobre o desenvol­ vimento de representações sociais de gênero em crianças pequenas (Duveen & Lloyd, 1986, 1990, 1993; Lloyd & Duveen, 1989,1990,1992). Questões de gênero constituem um campo particularmente fértil para realizar essa discus­ são, porque elas são um fenômeno universal, que levam, como nós sugerimos em trabalhos anteriores, à construção de identidades sociais de caráter imperativo e não contra­ tual.

2. O desenvolvimento das Representações Sociais A criança nasce em um mundo que já está estruturado pelas representações sociais de sua comunidade, o que lhe garante a tomada de um lugar em um conjunto sistemático de relações e práticas sociais. Perspectivas contemporâ­ neas em Psicologia do Desenvolvimento demonstram uma consciência crescente dessa situação, e em lugar algum essas perspectivas têm sido mais importantes do que em relação ao desenvolvimento dos gêneros, precisamente porque esta é uma das dimensões mais poderosas e oni­ presentes do mundo social em que a criança nasce. De

fato, parece inapropriado falar aqui de “a criança" como se um conjunto de características compartilhadas pudesse servir para identificar o objeto de estudo. Enquanto Piaget podia falar com autoridade de "a criança” como sujeito epistêmico, e usar tal conceptualização como noção estra­ tégica central para buscar uma análise do desenvolvimento da inteligência, tal generalização não pode ser sustentada em relação aos gêneros, onde o problema mais relevante é o da diferença. A força da categorização nas repre­ sentações de gênero que circulam em volta da criança é tão forte que ela sempre vai aparecer como uma menina ou como um menino desenvolvendo identidades sociais específicas. Desde os seus dias mais remotos (que graças à tecnologia moderna hoje significa freqüentemente en­ quanto ainda no útero), a criança é construída como um ser com gênero por aqueles à sua volta, que conseqüente­ mente vão agir em relação a ela à luz dessa construção. Mas, se é verdade que a criança nasce em um mundo que é estruturado por representações sociais de gênero, e através dessas representações ela é construída, isso não significa que ela nasce com competência para ser um ator social independente no mundo. Inicialmente a criança figura como objeto para representações de gênero que outros sustentam, e é apenas gradualmente que ela come­ ça a internalizar essas representações. Ao assim o fazer, a criança também chega a identificar sua posição própria dentro de um mundo estruturado por essas representações. Representações de gênero fornecem uma referência impor­ tante através da qual a criança adquire uma identidade que lhe permite situar-se no mundo social. Essa relação entre representações e identidade não é específica ao campo de gênero. Sejam quais forem as representações internaliza­ das, elas estão entrelaçadas aos processos de construção de identidade, ainda que as conseqüências da identidade nem sempre sejam as mesmas. Por exemplo, muito fre­ qüentemente nós não consideramos que a internalização de representações sobre matemática, pela criança, esteja ligada a uma identidade social específica. Entretanto esse

pode ser, de fato, o caso. Quando a forma de matemática que a criança internaliza está ligada a sua identidade como membro de um grupo social marginalizado, isso pode levar a uma relação conflitiva na escola, e é somente quando nós apreciamos as conseqüências de dificuldades e fracasso na escola, que o sentido, no qual as representações sobre matemática também expressam uma identidade social, se torna aparente (de Abreu, 1993). Mas, se a relação entre representação e identidade é freqüentemente opaca no campo da matemática, ela pode tornar-se clara em alguns outros contextos. A pervasividade das variações e diferen­ ças associadas aos gêneros vai permitir que a relação entre representações e identidades se torne clara através de uma longa variedade de contextos. Que este seja o caso, pode ser explicado pelo significado que gênero assume enquan­ to dimensão de poder no mundo social. Representações são sempre construtivas; elas consti­ tuem o mundo tal como ele é conhecido e as identidades que elas sustentam garantem ao sujeito um lugar nesse mundo. Assim, ao serem internalizadas, as representações passam a expressar a relação do sujeito com o mundo que ele conhece e, ao mesmo tempo, elas o situam nesse mundo. É essa dupla operação de definir o mundo e localizar um lugar nele que fornece às representações o seu valor simbólico. Moscovici refere-se a isso quando fala de representações sociais estabelecendo "uma ordem que permite aos sujeitos orientar-se no seu mundo material e social, e comandá-lo" (1973, p. xiii). Sendo assim estabe­ lecida, a ordem que é fornecida pelas representações assume um caráter fixo e objetivo. Elas assumem a esta­ bilidade que garante segurança para os sujeitos encontra­ rem um lugar próprio no mundo. Esse aspecto da atividade cognitiva tem raramente sido um foco explícito de discus­ são, ainda que Shweder (1990) desenvolva um argumento similar ao apresentar suas idéias sobre Psicologia Cultural. Ele propõe a cognição como atividade que funciona para reduzir a incerteza existencial humana. Um outro exemplo pode ser extraído do estudo que Mugny e Carugati (1989)

realizaram sobre representações sociais da inteligência. O que eles encontraram mostrou que aqueles estudantes que estavam mais distantes do mundo da criança possuíam representações sobre inteligência menos claramente estru­ turadas e organizadas que grupos como pais e professores, que enfrentam uma realidade cotidiana onde diferenças entre crianças estão a exigir algum tipo de padrão explica­ tivo. Esses autores descrevem estes grupos sociais como possuindo uma participação social diferenciada nessas representações, uma idéia próxima ao que eu tenho em mente quando falo do aspecto simbólico das repre­ sentações. Talvez não tenha sido acidental que, ao refletir sobre representações sociais de gênero, eu começasse a dar ênfase à sua função simbólica. Ora, representações de gênero, exatamente porque se referem a uma dimensão central de organização e poder social, carregam conse­ qüências também centrais para nossas definições de Eu. Nós não podemos pensar em nós mesmos como neutros em relação ao campo dos gêneros: de uma forma ou outra, nós sempre pensamos em nós mesmos como homens ou mulheres, e essas identidades sociais emergem exatamen­ te à medida que internalizamos representações de gênero. Outros campos representacionais podem carregar menos conseqüências existenciais, e nesse caso seu valor simbó­ lico também se reduziria, como no caso dos estudantes de Mugny e Carugati. Enquanto processo psicossocial, a construção de uma identidade é um modo de organizar significados que pos­ sibilitam à pessoa se posicionar como ator social. Uma identidade fornece os meios de organizar a experiência, o que contribui para a definição do Eu, mas o faz dando ao Eu um lugar no Mundo. Para a criança recém-nascida, identidades de gênero são, no início, externas. Elas se apresentam à criança através de práticas de outros. O que nós vemos no desenvolvimento das representações sociais de gênero é um tomar consciência, em que a criança desenvolve uma consciência reflexiva dos significados do ato social de assinalamento a um grupo de gênero.

3. O modo de Piaget Não há espaço nesse ensaio para desenvolver uma apreciação sistemática da relevância do trabalho de Piaget para uma Psicologia do Desenvolvimento das repre­ sentações sociais. Eu já me referi ao significado da epistemologia construtivista, e existem referências múltiplas que eu poderia oferecer a esse respeito. Jovchelovitch (1994), por exemplo, enfatizou a importância da análise piagetiana em relação ao desenvolvimento da representação e da descentração como contribuições para a t e o r i a d a s r e ­ p r e s e n t a ç õ e s s o c i a i s . A isso poderíamos adicionar a im­ portância que a análise de Piaget sobre o pensamento infantil tem para a análise que Moscovici (1976b) desen­ volveu das características das representações sociais (e essa referência ao trabalho de Piaget traz consigo a influên­ cia de Lévy-Bruhl, que foi uma referência importante tanto para Bartlett como para Luria; de fato, talvez seja em Lévy-Bruhl que possamos ver claramente uma origem comum para os dois modos a que se refere Moscovici). Sem dúvida, uma análise sistemática traria à tona muitos outros pontos de convergência entre Piaget e Mos­ covici. E ainda assim, para alguns autores, Piaget tornou-se uma figura extremamente polêmica no que diz respeito às representações sociais. Emler (1986; Emler, Ohana & Dickinson, 1990) em particular atacou a obra piagetiana a partir de dois pontos centrais. Primeiro, que Piaget concebe a criança como um indivíduo autônomo, envolvido na construção do conhecimento através de processos que apenas marginalmente são afetados por influências sociais. Segundo, que teorias piagetianas apresentam uma imagem restrita da criança, como alguém que antes de tudo é um solucionador de problemas lógicos. Naturalmente, Emler encontra evidência nos escritos de Piaget para condená-lo por tamanhos pecados, mas isso se funda em uma leitura demasiado simplista de Piaget. Ou talvez nós pudéssemos dizer que, apesar da extraordinária integridade teórica que sustentou o trabalho de Piaget no curso de sua vida longa

e produtiva, ainda existam lacunas na sua obra, que se abrem precisamente em torno da forma como ele concebe o caráter social do conhecimento. Mais do que em qualquer outro lugar, é nessa arena que vamos encontrar, não uma única teoria piagetiana, mas uma multiplicidade de textos piagetianos. Existe, de um lado, o Piaget que escreveu O Juízo Moral na Críança (1932) e Estudos Sociológicos (1977) (e talvez devêssemos adicionar Jogo, Sonhos e Imitação, 1951, a essa lista), onde o caráter social do conhecimento e os processos sociais que o constituem são uma preocu­ pação central. De outro lado, existem vários outros textos onde, ao enfatizar as fontes biológicas das estruturas cognitivas, Piaget aparece como excluindo qualquer dis­ tinção entre forças biológicas e sociais. Em suma, o social é um elemento instável na análise piagetiana do desenvol­ vimento do conhecimento. E, de fato, poderíamos ir mais longe, e sugerir que é precisamente essa instabilidade que contribuiu para a construção de uma imagem da obra de Piaget como "a-social", uma imagem que está de modo peculiar profundamente impregnada no mundo anglo-sa­ xão (poderíamos quase imaginar um estudo das repre­ sentações sociais da obra de Piaget que ilustraria os modos como suas teorias, à medida em que são ancoradas em outros modelos psicológicos, vão sendo transformadas). A leitura que Emler faz de Piaget é, na minha opinião, demasiado ligada a essa imagem de Piaget. É uma leitura que falha na apreciação dos elementos radicais da obra piagetiana, que resistem justamente à interpretação que Emler procura sustentar. Em primeiro lugar, o foco de Piaget não é o indivíduo, mas o que ele chama de sujeito do conhecimento, ou sujeito epistêmico, que ele distingue do sujeito psicológico. "Existe” , ele escreve, "o 'sujeito psicológico' centrado em um ego consciente cujo caráter funcional é incontestável, mas que não é a origem das estruturas do conhecimento geral; mas existe também o ‘sujeito epistêmico’ ou aquilo que é comum a todos os sujeitos no mesmo nível de desenvolvimento, cujas estruturas cognitivas são deriva­

das de mecanismos mais gerais de co-ordenação das ações” (Piaget, 1966, p. 308). Poder-se-ia acusar Piaget, e com legitimidade, de um transcendentalismo que obscurece uma visão das estruturas cognitivas como formações sócio-culturais (p. ex. Buck-Morss, 1975), mas não existe um traço sequer de individualismo teórico no seu trabalho. A questão do foco é absolutamente fundamental na apre­ ciação do trabalho de Piaget. Sua questão central sempre foi “Como o conhecimento é possível?", e, desde esse ponto de vista, co-ordenações sensório-motoras e opera­ ções mentais não são em si mesmas o conhecimento, mas o solo do conhecimento, os processos através dos quais o conhecimento do mundo é construído. Assim, para a perspectiva piagetiana, as variações no conteúdo do co­ nhecimento são menos importantes que a uniformidade que se sustenta através de contextos sociais e culturais. Podemos, então, entender qual o aspecto que uma leitura crítica de Piaget necessita reconhecer, qual seja, que Piaget constrói, como universal, formas de organização cognitiva que são, em si mesmas, representações sociais particulares. Nesse sentido, à questão que Piaget coloca “Como o conhecimento é possível?” precisamos adicionar uma outra questão, "Para quem o conhecimento é possí­ vel?", de forma a podermos introduzir um terceiro termo à distição binária de Piaget. É preciso reconhecer o sujeito psicológico e o sujeito epistêmico, mas também é preciso reconhecer o sujeito psicossocial (cf. Duveen and Lloyd, 1986) para quem o conhecimento não é produto de um universal em abstrato, mas é expressão de uma identidade social. Dizer isso não significa negar o caráter lógico do conhecimento, mas ao contrário reafirmar que o uso da lógica na construção do conhecimento fornece ao sujeito um lugar, em um mundo em que essa mesma lógica precisa ser considerada como legítima. A segunda objeção de Emler é que Piaget caracteriza a criança primeiramente como um solucionador de proble­ mas. Ele cita seu próprio trabalho sobre desigualdade na renda como evidência de que tal visão é um erro. Longe

de resolver problemas, as crianças por ele entrevistadas responderam como se elas tivessem acesso a soluções prontas, que requeriam pouca ou nenhuma elaboração cognitiva, mas que refletiam primeiramente a posição social da criança. Por isso ele encontrou pouca variação quanto à idade, quanto aos juízos das crianças sobre renda relativa, mas encontrou variações significativas com res­ peito à classe social.1 Emler estabelece tais resultados como evidência contra a visão piagetiana do desenvolvi­ mento do conhecimento social, já que existem poucos indícios de qualquer atividade reconstrutiva por parte da criança, que aparece como simplesmente repetindo o co­ nhecimento comum a sua classe social. Mas de novo esses argumentos refletem apenas uma leitura bastante parcial de Piaget, e uma leitura que ainda ignora uma das contri­ buições mais importantes que Piaget tem a oferecer a uma psicologia do desenvolvimento das representações sociais. Em O Juízo Moral na Criança (1932) Piaget estabelece uma distinção fundamental entre duas formas de adquirir o conhecimento social. Por um lado, há o conhecimento que ele descreve como produto da transmissão social, onde a fonte do conhecimento é a autoridade de uma figura dominante ou privilegiada. E contra isso, Piaget também argumenta que existe o conhecimento que é adquirido através de elaboração cognitiva, em um processo de re­ construção. A primeira, diz ele, ocorre nas relações heterônomas, onde a assimetria de poder exerce sua força sobre o menos poderoso. O último, em contraste, pode apenas ocorrer em relações autônomas, entre companheiros em situação de igualdade, onde cada um tem a liberdade de se engajar na discussão e no debate. Emler, parece-me, não consegue perceber essa distinção. Os resultados que ele nos apresenta podem ser considerados como um bom 1. Esses resultados foram questionados por Burgard, Cheyne e Jahoda (1989) com base na sua tentativa de replicar o estudo. Meu objetivo aqui, entretanto, não é o de resolver essa disputa, mas concentrar meu argumento nos modos como o uso que Emler faz da evidência que ele dispõe reflete a leitura que ele faz de Piaget.

exemplo de aquisição de conhecimento através de trans­ missão social. Mas também encontramos outras fontes de evidência, que mostram a criança engajada em uma ela­ boração cognitiva mais produtiva do conhecimento social. Nesse sentido, podemos citar as pesquisas desenvolvidas em Genebra sobre interação social e desenvolvimento cognitivo (Doise e Mugny, 1984), como uma instância exemplar. Lá, eles descobriram que o engajamento coletivo em um problema conduz a soluções mais complexas do que aquelas que cada participante encontrava quando trabalhando de forma independente de outros. Mas talvez esse exemplo fosse descartado por Emler como sendo de orientação demasiado explícita em direção à lógica e resolução de problemas. Uma fonte diferente de evidência para a reconstrução do conhecimento social em relações simétricas se encontra em investigações de jogos de "fazde conta” em crianças pequenas, nos quais o mundo social é literalmente reconstruído na medida em que a criança o entendeu (cf. Duveen e Lloyd, 1988; Furth, 1992). Evidência adicional nos é oferecida por Corsaro (1990) em seu estudo sobre a elaboração construtiva de regras sociais entre colegas de jardim de infância. Para ilustrar essa questão, consideremos esses dois fragmentos de gravações em vídeo de crianças brincando durante o seu primeiro ano na escola (Lloyd e Duveen, 1992). O primeiro extrato contém uma longa cena domés­ tica, onde aparecem mamãe, papai, a cama deles, os bebês e o casamento. Oscar reafirma seu papel e responsabilida­ des como papai nas falas 1, 4 e 5. Sally inicia a mudança na cena, indo da domesticidade ao flerte com a princesa na fala 17. Adultos são encenados como ativamente pro­ curando um parceiro que provavelmemte, com o casamen­ to, se tornam mamães e papais. Contato físico entre um menino e uma menina inevitavelmente resulta em casa­ mento, como Sally proclama na fala 27. Os comentários de Betty, um tanto ambíguos na fala 28, deixam pouca dúvida que o casamento do príncipe envolve procriação. Esses episódios nos oferecem uma visão geral sobre o entendi­

mento que crianças desenvolvem da vida familiar. É uma visão baseada na pertença de adultos a um grupo sexual, que possibilita pouca escolha de papéis, ou pouca variabi­ lidade dentro dos grupos sexuais. A sexualidade é heteros­ sexual e para fins de procriação.

Extrato 1 Oscar é Papai, Rachel é Mamãe e Betty, o Bebê. Já houve falas anteriores sobre comer e consertar coisas. 1. Oscar: (No colchão) Eu sou o Papai. 2. Sally: (Para Rachel) A janta não está pronta, tem que esperar. 3. Betty: (Para Oscar) E você escuta meu choro a-haaah-aah. 4. Oscar: (Vai até Betty que ainda chora) Fica quietinha, neném, quietinha. 5. Oscar: Eu vou deixar isso na sua cama, caso você quiser jantar. (Ele volta para a cama) 6. Rachel: (Junta-se a Oscar) Não-aah! 7. Oscar: Essa é minha cama. É minha cama. (Os dois estão deitados nela) 8. (Interrupção, seguida de) 9. Sally: Essa é a cama do pai e da mãe. (Deitados na cama, Oscar se coloca sobre Sally) 10. (Mudança de personagem e Sally se torna Mamãe) 11. Rachel: (Rolando na cama) Oi, mãe. 12. Sally: Não! Sai da cama do pai e da mãe. Você está sendo muito travessa hoje. 13. Betty: (Se arrastando sobre eles) Gugu, gugu, dada.

14. Sally: Pega aquele cobertor, bebê? 15. Betty: (Alcança o cobertor para Sally) 16. (Indo para a cama, Bebê chorando, torneira pingando) 17. Sally: Eu sou a princesa. (Senta na cama) 18. Betty: Faz de conta, faz de conta, eu quero, faz de conta que você era um pouquinho bonita e eu era... 19. Oscar: Eu sou o príncipe. 20. Betty: ...lindo. Nós dois somos lindos. Decide com quem você quer casar. 21. Oscar: Eu sou o príncipe. 22. Betty: Você procura por uma mulher bonita. 23. (Oscar faz de conta que vai se atirar entre Sally e Betty. Enquanto isso, Rachel puxa a perna das calças de Oscar) 24. Rachel: Eu peguei ele! Peguei ele! Peguei ele! Peguei ele! Peguei ele! Peguei ele! 25. (Sally ganha o jogo e Oscar põe seus braços em volta dela, senta ao lado dela na cama, e põe sua cabeça no ombro dela) 26. Betty: [...] 27. Sally: Ele casa comigo. 28. Betty: [..?] Sim, sim, e eu tenho que ser a...? princesa, mas com você menininha. Faz de conta que vocês casaram e vocês, vocês tiveram a..?..crescido. E eu tinha que ir pra escola. O segundo extrato ilumina novamente a crença da criança que o contato sexual/físico entre membros de grupos sexuais necessita ser validado através do casamen­ to. Oscar é disputado por algum tempo pelas meninas, mas, uma vez tendo sido beijado por Christine, talvez para

sua própria surpresa, ele proclama, na fala 16, que vai casar com ela. A criança constrói um mundo simples, onde o contato físico entre membros de grupos sexuais é construí­ do como sexual e conduz ao casamento. Nesse mundo, ações possuem conseqüências diretas e predizíveis.

Extrato 2 1. Edith: ...e Lulu beija, uhm, Oscar. Continua. 2. Christine: Eu não tô brincando agora. 3. Edith: Vai embora, então. 4. Lulu: Não, você beija o Oscar e eu beijo o Darren. 5. Edith: Eu sei. Olha. Você (Joan) beija ele, Darren. 6. Lulu: E eu vou beijar o Oscar. 7. Edith: Joan beija o Oscar. 8. Edith: Joan beija o Darren, e Oscar beija...você! 9. Joan: (Começa com o Darren, que foge) Hei! 10. Edith: Vem aqui. (Agarra Lulu e a move em direção a Oscar, sem muita vontade) Não, beija! Beija ela na boca. Beija ela na boca. Anda! 11. Lulu: Eu não! 12. Edith: Vamos, beija ela. Beija ela. 13. Christine: (Aponta para Oscar) Eu beijei ele. 14. Oscar: Eu beijei ELA! 15. Edith: Oh! 16. Oscar: (Aponta para Christine) Eu vou casar com ela. 17. Edith: (Com Lulu, já sem brigar, bem perto) Beija ela.

18. Oscar: Eu vou casar com ela. 19. Sally: (Também se aproximando de Oscar) 20. Oscar: Tá bem. (Mas qual das duas ele deve beijar?) 21. Sally: Beija eu. (Eles se beijam) 22. (Todos riem. Oscar se atira no sofá.) Esses exemplos ilustram o processo reconstrutivo na aquisição pelas crianças do conhecimento social, que pode ser contrastado com aqueles aspectos do conhecimento social que aparecem como resultado da transmissão social. Ao argumentar que, da perspectiva das representações sociais, o conhecimento somente se adquire através de transmissão social, Emler não somente nos oferece uma visão parcial do argumento de Piaget, mas ele também restringe o âmbito das representações sociais. Se nós considerarmos por um momento outros estudos sobre o conhecimento econômico, encontraremos evidência sufi­ ciente de aspectos construtivos na elaboração, pela crian­ ça, de conceitos tais como salários, preços e lucro (p. ex. Berti e Bombi, 1988). É claro que essas noções não se adquirem simplesmente por um processo de transmissão social, mas isso significa dizer que a idéia de lucro, por exemplo, não é uma representação social? Certamente que não. Com Piaget, então, nós podemos pensar os diferentes processos que estão em jogo na aquisição do conhecimen­ to social. Ele mesmo associa a transmissão social com a aquisição, pela criança, das representações coletivas de sua sociedade (e ao usar o termo ele faz uma referência explícita a Durkheim), enquanto que a reconstrução é para ele uma função do engajamento na atividade cognitiva. Mas, se lermos o argumento de Piaget à luz da perspectiva crítica que procuramos delinear acima, o que ele constrói como atividade cognitiva também precisa ser construído como representação social. E no que concerne a esse ponto de vista, é interessante voltar a Moscovici e ao contraste

que ele estabelece entre representações sociais e a análise que Durkheim faz de representações coletivas. Para Mos­ covici, a análise de Durkheim é demasiado estática, e sua principal razão para preferir o adjetivo "social" foi enfatizar a dinâmica das representações sociais. Ele pretende se concentrar no conhecimento social em processo de forma­ ção e transformação, ao invés do conhecimento social como sabedoria recebida (ou o que Sartre chamou de practico-inert). Existe, naturalmente, uma relação entre representações sociais e representações coletivas, já que mesmo as representações coletivas devem ter, em algum momento, emergido de um processo mais dinâmico de elaboração (do mesmo modo como o practico-inert nada mais é que o produto acumulado da práxis humana passa­ da). Na infância, muito do que aparece como o estático senso comum do mundo adulto está sujeito a uma forma mais dinâmica de elaboração. E é quando a criança está envolvida em tal elaboração que nós melhor podemos aprender com Piaget, pois ali elas vão articular repre­ sentações que refletem a sua estrutura cognitiva, que não são, de forma alguma, um reflexo imediato do pensamento adulto. Piaget também nos oferece uma outra lição: elabo­ rações cognitivas ocorrem em um contexto de relações simétricas, onde o pensamento não está limitado pelo poder hegemônico. Na vida da criança, é exatamente na sua relação com outras crianças que esta condição é mais freqüentemente encontrada, de forma que elaborações cognitivas construtivas no desenvolvimento das repre­ sentações sociais vão ocorrer mais claramente na análise da interação da criança com os seus iguais, em situações em que elas estão livres para inventar. Se tomarmos o argumento de Emler na sua mais extrema conclusão, ele implica não apenas que nós deve­ mos abandonar Piaget, mas também que nós deveríamos abandonar o compromisso com a idéia de que o desenvol­ vimento cognitivo implica um projeto de autonomia. Minha tentativa aqui foi mostrar que essas posições não se sustentam, e que existe muito a ganhar se continuarmos

um diálogo construtivo com a teoria piagetiana. 0 momen­ to construtivo da elaboração cognitiva é um dos mais importantes elementos na psicologia genética de Piaget, e adotar a perspectiva das representações sociais não signi­ fica abandonar a noção de desenvolvimento cognitivo, mas, ao contrário, perceber que as estruturas que emergem são elas próprias produtos sociais e culturais. Isso talvez nos leve a ver o desenvolvimento cognitivo como um momento de relativa autonomia (para adotar uma frase de Althusser), mas também serve para nos lembrar que entre a "sociedade pensante" dos adultos e a emergência da criança enquanto ator social existe um processo de cons­ trução que merece ser entendido.

4. O modo de Vigotsky À primeira vista, Vigotsky parece apresentar uma teoria do desenvolvimento mais afinada com preocupações psicossociais. Harré (1989) certamente falou em uma "vi­ rada vigotskyana” na p s ic o l o g ia s o c i a l , e alguns autores adotaram temas vigotskyanos para o estudo das represen­ tações sociais (Semin e Papadopoulou, 1990). Dois temas em especial atraíram atenção. O primeiro é sua insistência sobre o fato de que os processos psicológicos encontram sua origem em relações sociais. Na sua “lei genética geral de desenvolvimento cultural" ele propõe que o que emerge como interno, como processos intra-individuais, são as internalizações que foram estabelecidas externamente, em processos interindividuais. “O que a criança faz em coope­ ração hoje, ela fará sozinha amanhã". No segundo, Vigots­ ky constrói processos psicológicos como formas de mediação semiótica, e os signos que são usados dessa maneira, como qualquer signo, pressupõem uma comuni­ dade de usuários para que eles possam funcionar. Em conjunto, esses temas apresentam um quadro em que a criança em desenvolvimento vai progressivamente internalizando as práticas coletivas de sua comunidade, através

de interações com adultos competentes e crianças que já conhecem mais. Dessa maneira, ele oferece uma perspec­ tiva em que não somente os processos psicológicos são socialmente construídos, mas em que esses processos mesmos, em sua própria estrutura, são produtos históricoculturais. Existe aqui algo que é extremamente sedutor para a p s ic o l o g i a s o c i a l , e especialmente para a t e o r i a d a s r e p r e s e n t a ç õ e s s o c i a i s . Mas talvez essa atratividade mesma da teoria sociocultural de Vigotsky deveria ser um sinal de alerta. Será que nós realmente podemos resolver nossas questões tão imediatamente? Moscovici tem lá suas suspeitas, ao descrer a teoria de Vigotsky como "boa demais para ser verdade" (1990, p. 179). A arena na qual as teorias vigotskyanas tiveram sua maior influência foi a Psicologia do Desenvolvimento e não a p s ic o l o g i a s o c i a l . Para os desenvolvimentistas, Vigots­ ky é considerado como alguém que forneceu uma teoria social da cognição, que pode superar as presumíveis defi­ ciências sociais de outras formas de teorização sobre a cognição. Já que nós vivemos em uma época em que o Marxismo, que Vigotsky considerava ser a influência pri­ meira em sua obra, está sendo substituído pelo dogma da livre iniciativa, uma metáfora que vem do marketing me parece apropriada aqui. O indicador-chave para desempe­ nho no mundo acadêmico é o índice de citações, onde as referências a Vigotsky já ultrapassam em muito as referên­ cias feitas a Piaget nas revistas científicas sobre desenvol­ vimento. Uma parte da campanha publicitária que ajudou a tendência vigotskyana a melhorar de tal modo sua cota no mercado tem sido a proposição de que a perspectiva de Vigostky alimenta aqueles aspectos socioculturais da cog­ nição humana que a teoria piagetiana deixa sem tocar. Como qualquer slogan publicitário, esse nos engana, e obscurece mais do que ilumina. Porque o que esses copywríters do modelo de Vigotsky não conseguem explicar, não é somente que existe, na teoria piagetiana, uma compreensão muito mais forte de realidades socioculturais do que a que o slogan gostaria de admitir, mas, mais

importante ainda, para as minhas preocupações aqui, que a maneira pela qual a perspectiva vigotskyana se dirige a aspectos socioculturais da cognição é, ela mesma, limitada em um número de importantes aspectos. O principais copywríters de Vigotsky em Psicologia do Desenvolvimento são aqueles que defenderam um modelo de aprendizagem para o desenvolvimento da cognição (p. ex. Rogoff e Lave, 1984; Rogoff, 1990). Nesse modelo, a criança adquire as ferramentas cognitivas da sua cultura ao ser introduzida por peritos nas práticas sociais de sua comunidade. Na melhor das situações, esse modelo con­ seguiu demonstrar o poder que tal perícia - como um andaime - pode exercer, através de uma participação guiada no desenvolvimento das habilidades. Este é o caso, por exemplo, nas descrições de Greenfield (1984) da apren­ dizagem do tecer em Zinacantan no México, ou nas des­ crições de Lave (1990) de aprendizes de alfaiataria entre os Vai na Libéria. Mas essas descrições se referem a contextos culturais específicos, cujas características limitam a gene­ ralidade do modelo. Nestas situações, crianças e adoles­ centes estão adquirindo as habilidades tradicionais de uma comunidade particular, onde a aprendizagem ocorre sob uma série de condições bastante restritas. O que está sendo adquirido são habilidades embebidas em práticas sociais muito bem estruturadas. Estas práticas são, elas próprias, altamente valorizadas pela comunidade, de tal forma que elas são vistas como expressão legítima da cultura da comunidade. Além do mais, o modelo de apren­ dizagem assume que existem interesses comuns entre o aprendiz e o perito, de modo que qualquer conflito entre eles, sobre o valor daquilo que está sendo aprendido, desaparece. Assim, o que este modelo fornece é uma receita para a reprodução de relações sociais existentes em situações caracterizadas pela assimetria de poder entre o aprendiz e o perito. Em circunstâncias restritas como estas podemos, de fato, ver a fórmula vigotskiana em funciona­ mento, já que relações interpessoais são internalizadas e reproduzidas ao nível intrapessoal.

0 que preocupa Moscovici é que a fórmula de Vigotsky sugere uma relação direta entre práticas sociais e funcio­ namento individual. O que levanta suas suspeitas é essa falta de atenção às estruturas intermediárias entre esses dois planos de desenvolvimento. Nós já vimos, discutindo a contribuição de Piaget, que lá onde a aquisição do conhecimento prossegue através de um processo de reconstução cognitiva, as elaborações da criança vão expres­ sar a mediação de suas próprias estruturas cognitivas em desenvolvimento. Mas existe uma ausência ainda mais surpreendente na obra de Vigotsky, que é sua falta de atenção ao papel mediador das identidades sociais no desenvolvimento do conhecimento. Para ilustrar esse ar­ gumento eu vou considerar em mais detalhes alguns dos resultados de nossos estudos sobre o desenvolvimento de identidades de gênero em crianças do primeiro ano escolar (Lloyd e Duveen, 1992). Observações sistemáticas nos permitiram determinar os modos como determinados brinquedos eram diferencia­ dos, quanto ao gênero, nas práticas sociais das salas de aula que estudamos. Nós também apresentamos às crian­ ças, através de entrevistas, uma variedade de tarefas que exploravam seu conhecimento quanto à identificação, a partir do gênero, desses brinquedos. Uma dessas tarefas pedia a eles para primeiro organizar um conjunto de brinquedos, que servissem tanto para meninos como para meninas brincarem, e então selecionar os que cada um deles preferia, dentro daquela coleção de brinquedos. As respostas mostraram que, ainda que as crianças, de fato, usem a categoria gênero para organizar sua escolha de brinquedos, eles consideravam o que na verdade eram as suas crenças idiossincráticas sobre os modos como deter­ minados itens estavam identificados quanto ao gênero como se elas fossem crenças consensuais. Esse resultado não cabe em uma noção de desenvolvimento como sendo a simples passagem do interindividual para o intra-individual. Se este fosse o caso, poderíamos esperar que as crianças tivessem selecionado como sua preferência os

brinquedos que estivessem claramente identificados nas práticas coletivas da sala de aula. Uma dificuldade posterior, com a fórmula vigotskiana, é que o mesmo conjunto de práticas coletivas dá origem a identidades de gênero diferenciadas. De nossas observa­ ções sistemáticas nós extraímos uma matriz de freqüências com as quais cada criança, na sala de aula, era observada interagindo com outra criança. A análise da correspondên­ cia dessas matrizes produziu agrupamentos gráficos que demonstraram uma tendência para meninos brincarem com meninos e meninas com meninas. Os padrões de associação nestes agrupamentos gráficos também indica­ ram diversidade entre as crianças na forma como elas expressam suas identidades sociais de gênero. Observouse que algumas crianças brincavam mais freqüentemente com o grupo do sexo oposto, enquanto que, dentro dos grupos sexuais, agrupamentos menores de crianças po­ diam ser observados tendo padrões distintos de associa­ ção. Por exemplo, nós observamos grupos de meninas que interagiam quase que exclusivamente umas com as outras e eram raramente vistas brincando com outras crianças, fossem estas meninos ou meninas, enquanto que outros agrupamentos de meninas não somente brincavam fre­ qüentemente umas com as outras, mas também com um dos meninos. Esses padrões diferenciados de associação ilustram o desenvolvimento de identidades femininas múl­ tiplas entre as meninas. A diversidade nos padrões de associação dentro dos grupos sexuais nos fornece evidência para propor uma distinção entre a pertença das crianças a um grupo sexual e a sua forma de expressar identidades sociais de gênero. Teoricamente, essa diversidade reflete o fato de que as representações sociais de gênero, elaboradas nas salas de aula do nível primário, podem oferecer os recursos para uma multiplicidade de identidades masculinas e femininas. Analiticamente, nós investigamos essa diversidade toman­ do como indicador das identidades de gênero das crianças

a proporção de tempo que elas passavam em grupos do mesmo sexo. Ainda que esse índice seja, na melhor das hipóteses, uma medida pouco sofisticada, já que nos dá apenas um indicador simples daquilo que é um fenômeno muito mais complexo, ele mostrou alguma utilidade. Nos­ sas observações sugeriram que há pouca correspondência entre nossa medida de identidade de gênero no período escolar do outono e no período escolar de verão. Ao longo do primeiro ano de escola existe apenas uma consistência limitada nas práticas sociais das crianças. Não é possível predizer a freqüência com que as crianças brincam em grupos do mesmo sexo, no fim do ano escolar, com base no conhecimento de como eles se comportaram no outono. Ainda assim, mesmo no período escolar do outono, as crianças responderam à diferenciação de gênero de vários aspectos da cultura material e do espaço. Em outras palavras, as práticas sociais em cada sala de aula haviam estabelecido claramente sistemas de diferenciação de g ê ­ nero, mesmo no começo do ano escolar. O que mudou, ao longo do ano, foi o modo como cada criança individual­ mente se posicionou em relação a esse sistema coletivo de significados. Esse processo foi mais claro entre as meninas do que entre os meninos, mas o que permanece pouco claro é como esses processos de posicionamento podem ser explicados pela fórmula vigotskiana. O que está faltando, no enfoque de Vigotsky, é uma apreciação do significado das identidades sociais como estruturas que fazem a mediação do interpsicolológico e do intrapsicológico. Sua fórmula descreve um mundo em que todos os indivíduos adquirem um mesmo entendimen­ to de um único conjunto de práticas sociais. Mas, quando diferenças emergem entre indivíduos em relação ao um mesmo sistema de significação coletiva, sua fórmula é inadequada. Cabe salientar que as próprias pesquisas de Vigotsky não se estenderam a áreas da vida social onde diferenças entre indivíduos tomam-se significativas. Para um psicólogo marxista, Vigotsky demonstra uma curiosa indiferença em relação à importância dos grupos sociais.

Qualquer que seja o grau de sugestividade de sua insistên­ cia no significado do desenvolvimento das práticas sociais, sua obra não ofereceu uma p s ic o l o g ia s o c ia l "pronta". Poder-se-ia adicionar que até mesmo um vigotskyano convicto como Wertsch (1991) defendeu recentemente a incorporação da noção de “voz” , desenvolvida por Bahktin, como forma de superar a ausência de mediações sociais na psicologia de Vigotsky.

5. A função simbólica das Representações Sociais Essas reflexões sobre as contribuições de Piaget e Vigotsky para uma Psicologia do Desenvolvimento das representações sociais nos remete a uma comparação interessante entre os dois. De Piaget podemos extrair uma lição importante relacionada com sua distinção entre dois modos de aquisição do conhecimento social. De um lado, existe a aquisição através de transmissão social, caracte­ rizada pela assimetria de poder, onde o conhecimento é reproduzido em função da influência e do prestígio de sua fonte. Mas, de outro lado, existe também a aquisição através da reconstrução, em relações sociais de simetria entre companheiros. Como sempre em Piaget é o conflito que está no coração deste processo, mas para o conflito ser produtivo ele deve ser situado em um contexto onde o pensamento não é limitado por influências hegemônicas, de tal forma que ele possa ter liberdade para inventar e construir. A obra de Vigotsky se dirige, na verdade, apenas ao primeiro desses modos. Ela descreve a aquisição do conhecimento social através de transmissão social em relações sociais assimétricas. Aqui o conhecimento é, de fato, poder, porque é a posse da perícia e do prestígio que a perícia traz que faz a diferença entre o perito e o aprendiz. Essa conclusão pode parecer algo paradoxal, já que as imagens de Piaget e Vigotsky, que circulam atualmente no mundo da Psicologia, geralmente associaram mais a ima­ gem de Vigotsky como um teórico da cognição enquanto

processo social, e a de Piaget como um teórico da cognição individual. Mas, como eu tentei demonstrar, esse paradoxo é mais aparente do que real. Porque a teoria de Vigotsky oferece apenas um sentido restrito do que uma teoria social da cognição deve ser, enquanto que Piaget tem uma compreensão muito mais profunda da influência das rela­ ções sociais no desenvolvimento do conhecimento social do que é comumente assumido. Se meus comentários sobre Vigotsky foram mais críticos do que os dirigidos a Piaget, é porque eu procurei enfatizar esse contraste. E ainda assim nenhum desses autores nos fornece um mo­ delo "pronto", no qual possamos fundar uma análise da criança como um ator social em desenvolvimento. A aná­ lise de Piaget sempre retoma para o enfoque do "sujeito epistêmico", e dá apenas um limitado reconhecimento ao significado das representações sociais que estruturam o mundo coletivo no qual a criança se desenvolve. Se a teoria de Vigostky pode ser dita como centrando-se na criança como "sujeito cultural", ela assim o faz reduzindo cultura a um conjunto de signos que funcionam como instrumento cognitivo, e excluindo aquele sentido em que signos tam­ bém expressam os valores de grupos sociais particulares. Pode ser útil, como conclusão a esse capítulo, retornar aos nossos estudos do desenvolvimento das representações sociais de gênero, para tentar ilustrar o modo através do qual uma perspectiva desenvolvimentista em repre­ sentações sociais pode centrar nossa atenção na criança enquanto ator social. A questão central, nas representações sociais de g ê ­ nero, é uma metáfora reprodutiva que oferece uma imagem de gênero em termos de uma oposição bipolar entre o masculino e o feminino. Essa é uma imagem que a criança parece haver adquirido muito cedo em sua vida e que persiste na vida adulta (de Rosa, 1987, também observa que os aspectos icônicos das representações sociais da loucura são adquiridos no começo da vida). Ao discutir o processo de objetivação, Moscovici se refere ao núcleo figurativo das representações sociais, “uma estrutura em

imagem que reproduz uma estrutura conceituai de maneira visível" (Moscovici, 1981). O maior exemplo gráfico dos aspectos icônicos das representações sociais de gênero em nosso trabalho se refere à evocação que a criança faz da sexualidade na hora do jogo, onde, como nós vimos nos extratos de nossas gravações, esta última é evocada pre­ cisamente como a união de opostos bipolares, e, uma vez estabelecida, é celebrada através de rituais como o casa­ mento e a vida doméstica. Na verdade, para essas crianças há uma fusão sincrética das relações sexuais, da instituição casamento e a da complementaridade dos papéis de gêne­ ro na vida doméstica. A estrutura da oposição bipolar é o fio condutor entre esses diferentes elementos; cada um desses elementos implica o outro, de tal modo que, quando um elemento é evocado no jogo, pode remeter à evocação de todos os outros. O núcleo figurativo dos opostos bipolares também apóia a conceptualização da vida social em termos de duas categorias complementares, mas exclusivas. Essa estrutu­ ra conceituai influencia o modo como a criança interpreta o mundo à sua volta, enquanto que sua participação na vida coletiva fornece os andaimes que vão conferir legiti­ midade adicional a essa estrutura conceituai. Na sexuali­ dade, ou, mais precisamente, na heterossexualidade, a diferença se afirma tanto porque depende da presença dos opostos bipolares, como porque é, ao mesmo tempo, superada através da união desses opostos. A sexualidade assume assim um status privilegiado para a criança peque­ na porque oferece a resolução mais clara possível para o problema da diferença. Como nós argumentamos antes, a imagem da oposição bipolar liga a sexualidade ao casa­ mento e à vida doméstica, e, quando brinca, o envolvimen­ to da criança com esse tema expressa e celebra um certo entendimento do mundo. Nesse entendimento sexo e gênero são reduzidos a uma única dimensão, e é a diferen­ ça entre as categorias do masculino e do feminino que são enfatizadas, enquanto diferenças dentro de cada uma dessas categorias são obscurecidas.

Nossas observações sugeriram que a criança é geral­ mente o elemento mais conservador na cultura de gênero da sala de aula. A imagem de oposição bipolar como o núcleo figurativo de suas representações sociais de gênero nos deixa ver por que esse é, de fato, o caso. Como uma imagem, ela oferece um grau de claridade e simplicidade que também é consistente com a ainda limitada capacida­ de da criança para qualquer elaboração cognitiva que possa exigir mais sofisticação. A resistência da criança a qualquer influência de uma voz igualitária nas repre­ sentações de gênero é também uma resistência à perda de uma imagem clara e aguda do mundo. Assim, a imagem da oposição bipolar cristaliza, para a criança, um estado de entendimento que também funde a forma do conhecimento (sua estrutura categorial) com o conteúdo do conhecimento (a separação entre coisas masculinas e femininas). Todas as coisas masculinas tendem a se agrupar e a se separar das coisas femininas. Como nós notamos na nossa etnografia, a separação ao longo dessas linhas pode vir a caracterizar o padrão de interação na sala de aula, e uma vez estabelecido dessa forma, o jogo dinâmico entre ativi­ dade e entendimento é capaz de sustentar tais momentos sobre extensos períodos de tempo. Ainda assim, da mesma forma como representa dife­ rença, a imagem dos gêneros como oposições bipolares também representa hierarquia, já que a relação entre os gêneros é também uma relação de poder. Mas, mesmo que essa imagem esteja saturada com noções de hierarquia e poder, enquanto a diferença entre os opostos bipolares puder ser resolvida, a hierarquia pode ser obscurecida. A união dos opostos bipolares na sexualidade, ou a comple­ mentaridade do casamento e dos papéis domésticos, apre­ senta uma imagem em que o aspecto da hierarquia é mascarado. E, ainda assim, o masculino e o feminino não são iguais, e a sombra que essa desigualdade produz pode ser observada nas disputas que irrompem sobre o acesso a recursos e, nos padrões psicológicos, de superestimar o mesmo grupo sexual e desvalorizar o gênero oposto. Para

as meninas, é claro, a reprodução da hierarquia de gênero também traz consigo a desvalorização de seu próprio gênero. Talvez não seja surpresa que é entre as meninas que nós encontramos evidência de uma quebra na hege­ monia da oposição bipolar rígida. Deste ponto de vista, a recusa das meninas, em um de nossos instrumentos, para atribuir a qualquer comportamento socialmente indesejá­ vel a condição feminina, pode ser entendida como indica­ tiva de tal processo. Na nossa etnografia, nós também registramos um número de episódios em que meninas desafiavam essa imagem, geralmente competindo com os meninos por recursos identificados como masculinos. Comparados à dominação das imagens de gênero como oposição bipolar, tais exemplos são marginais no curso geral da vida na sala de aula. Ainda assim, eles ilustram o fato de que, mesmo entre crianças, os gêneros não são um terreno livre de disputas, e mesmo aqui relações de poder podem gerar resistência. Cada criança cresce para tornar-se um ator social hábil no campo dos gêneros. As características sociais e psico­ lógicas, que estão presentes no nascimento, fornecem a base para o assinalamento da criança a um dos dois grupos sexuais. Ainda assim, a variação das condições congênitas - que permitem indeterminação no que diz respeito à pertença a grupos sexuais - sugere que a natureza não é assim tão rígida, como o é a categorização bipolar aplicada à criança recém-nascida. Uma vez assinaladas a um grupo sexual, a criança é traduzida e construída em termos de características associadas a cada grupo sexual. Daquilo que a faz ser um objeto das práticas de outros, a criança gradualmente cresce para ser um ator social independente no campo dos gêneros, através da internalização das representações sociais da sua comunidade. Essas repre­ sentações não somente sustentam determinados valores, idéias e práticas, mas também desempenham funções mais simbólicas. À medida em que ela entende o significado do ato social que lhe assinalou um lugar em um grupo sexual, a criança está adquirindo um sentido estável do Eu, loca­

lizado em um mundo de significados coletivos estáveis. É através de uma preocupação com a função simbólica das representações, ao mesmo tempo cognitiva e social, que a criança pode emergir como um ator social nas nossas formas de teorizar sobre ela.

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9. “EU NÃO", “O MEU GRUPO NÃO": REPRESENTAÇÕES SOCIAIS TRANSCULTURAIS DA AIDS

Hélène Jofíe A Aids como condição estrangeira Quando confrontadas com doenças epidêmicas incu­ ráveis - tanto histórica como transculturalmente - as pessoas responderam: "Eu não", “o meu grupo não” . Quando a sífilis começou a varrer a Europa, no século 15, as respostas foram semelhantes, e nos oferecem um exem­ plo clássico: “Era a mancha francesa para os ingleses, a morbus Germanicus para os parisienses, a doença de Nápoles para os florentinos, e a enfermidade chinesa para os japoneses" (Sontag, 1989:47). Desde a década passada, a Aids - nova doença epidê­ mica - também tem sido ligada a nações estrangeiras e a grupos marginais. No Ocidente, sua origem é geralmente localizada na África. Os africanos, por sua vez, tendem a situar a origem da Aids no Ocidente - relacionando-a com colonialismo e imperialismo. Além de ligar a Aids a nações estrangeiras, cada cultura específica a associa com certos grupos marginais: homossexuais e drogados no Ocidente, e mulheres, incluindo prostitutas, no mundo subdesenvol­ vido. Doenças epidêmicas incuráveis também têm sido associadas a práticas que a ideologia hegemônica constrói como “estrangeiras", tais como bestialidade, alcoolismo e

promiscuidade. Se nos ativermos a essas tendências his­ tóricas e transculturais, poderemos observar que as repre­ sentações sociais da Aids muito provavelmente se estruturam em torno de um “núcleo central" (Abric, 1984, 1993) que tem a "condição estrangeira" e o "outro" como conteúdo principal.

Por que estrangeira? O medo do desconhecido motiva as pessoas a criar representações sociais de novos fenômenos (Moscovici, 1984; Kaès, 1984). Objetos sociais estranhos evocam medo, porque eles ameaçam o sentido de ordem das pessoas e sua sensação de controle sobre o mundo. Uma vez repre­ sentado sob uma feição mais familiar, o objeto social se torna menos ameaçador e tal processo nos ajuda a entender por que a Aids foi inicialmente ancorada a representações mais familiares, como a de praga. Temos um exemplo claro de tal situação nos meios de comunicação ocidentais, que proclamaram a Aids como "praga homossexual” , extraindo tal representação do mundo médico. Em 1981, médicos norte-americanos isolaram um conjunto de sintomas do que, posteriormente, veio a ser chamado Aids, em cinco homossexuais americanos. Eles a chamaram de Síndrome de Deficiência Imunológica Ligada aos Homossexuais ("Gay Related Immune Deficiency”). Nos esforços da mídia para transformar o achado médico em material interessante e atraente para a comunicação de massa foram invocadas representações sociais de praga. O novo fenômeno, ao circular por entre os meios médicos, entre leigos e na mídia ocidental, veio a ser objetificado não apenas na imagem de praga, mas em uma praga que se abatia apenas sobre identidades marginais: homossexuais, africanos, haitianos, drogados, prostitutas. A noção de "praga homossexual" ancora a Aids a uma ameaça prévia - a praga bubônica, e a torna mais familiar. Mais ainda, ela objetifica a ameaça

da Aids nos homossexuais, um grupo externo, fazendo-a menos ameaçadora para o grupo interno. Embora a permanência histórica do elo entre epide­ mias incuráveis e condição estrangeira seja evidente em uma variedade de análises (por exemplo, Markova & Wilkie, 1987; Herzlich 8c Pierret, 1989; Sontag, 1989), poucos são os que elucidam o porquê do elo ter sido originalmente estabelecido. Minha proposta, neste trabalho, é de que a Aids é ligada ã condição estrangeira como parte de uma estratégia projetiva, em face da ameaça. Sentimentos re­ manescentes de impotência, não de todo erradicados, podem ser evocados em um período de crise massiva potencial, e antigos padrões de defesa são convocados como meio de proteção. Tal defensividade é a força motora subjacente à formação das representações sociais da Aids, que desvia a atenção da ameaça colocada pela Aids ao Eu (e ao grupo interno), e centra seu olhar sobre o “outro” , ameaçado e ameaçador. Eu acredito que uma das formas primeiras, pela qual as pessoas se defendem de medos associados à Aids, é através da projeção da responsabili­ dade por sua origem e seu desenvolvimento em outros, distanciando-se, desse modo, da situação ameaçadora. Embora isso resulte em uma variedade de diferentes re­ presentações sociais da Aids, que dependem do grupo que está sendo protegido, as representações sociais defensivas de grupos hegemônicos são as que atravessam o mundo médico e o mundo dos meios de comunicação de massa. Ao agirem assim, elas minimizam as tentativas daqueles grupos sociais, ligados à Aids por representações hegemô­ nicas de afirmarem: "eu não", "o meu grupo não” .

Metodologia Antes de esboçar uma teoria dos trabalhos das repre­ sentações sociais da Aids, eu vou discutir os dados que iluminam tais processos. Entrevistas em profundidade, semi-estruturadas, com sessenta jovens sul-africanos e

britânicos, homens e mulheres, escolarizados, não espe­ cialistas, foram realizadas no início de 1990. Em cada uma das duas culturas a amostra se compôs dos seguintes grupos: 10 heterossexuais brancos (metade homens, me­ tade mulheres); 10 heterossexuais negros (metade homens, metade mulheres); 10 homossexuais homens (6 brancos e 4 negros; 4 com soro-positivo para o vírus). A idade média dos sujeitos foi de 23 anos (os sul-africanos numa faixa de 17 a 37 anos e os britânicos numa faixa de 18 a 39 anos). A grande maioria dos respondentes possuía ao menos o segundo grau de escolarização, sendo que aproximadamente dois terços, em ambos os países, eram estudantes universitários. Os tópicos levantados nas entrevistas incluíam: onde o HIV/Aids se originou, como o HIV/AIDS se dissemina, quais os grupos mais afetados pela Aids no país do respondente. Além da análise de conteúdo qualitativa dessas entrevistas, também foi realizada a aná­ lise de conteúdo das campanhas oficiais contra a Aids e do discurso de políticas públicas sobre a Aids dos governos da África do Sul e da Grã-Bretanha. A escolha de um método multifacetado se liga ao pressuposto de que as representações sociais são plasmadas na interação entre o pensamento popular e o contexto social em que esse pensamento acontece. Este capítulo discute os resultados das entrevistas com não-especialistas, mas também se utiliza de aspectos de uma análise mais ampla.

Resultados: “Eu não”, “Não o Meu grupo” Os dados se caracterizaram pela negação de que a Aids se tenha originado no continente com o qual o respondente se identificava, e a negação de que o HIV estivesse, no momento, se disseminando no interior do seu grupo. Continentes e grupos diversos daqueles com os quais os respondentes se identificavam eram receptáculos de projeções relacionadas à Aids. Desse modo, em primeiro lugar e fundamentalmente, as pessoas dizem “eu não",

"não o meu grupo", quando falam sobre a origem e a disseminação da Aids. A grande maioria dos sujeitos brancos, na amostra total, acredita na origem africana da Aids (14 em 16 sujeitos brancos sul-africanos e 11 em 16 sujeitos brancos britânicos); a maioria dos sujeitos negros, na amostra total, acredita na origem ocidental da Aids (10 em 14 sujeitos negros sul-africanos e 11 em 14 sujeitos negros britânicos). Ao falar sobre os grupos mais atingidos pela Aids em seu próprio país, dois terços dos sul-africanos (19 em 30), tanto negros como brancos, acreditam que as pessoas negras são mais afetadas pela Aids na África do Sul; dois terços dos respondentes britânicos (20 em 30), tanto ho­ mossexuais como heterossexuais, acreditam que os ho­ mossexuais são mais afetados pela Aids na Grã-Bretanha. Dois pontos precisam ser realçados, com relação a esse achado. Em primeiro lugar, é importante notar que, quando falam sobre a Aids, os sul-africanos dividem espontanea­ mente sua sociedade em grupos raciais, ao passo que os britânicos a dividem em relação a grupos sexualmente orientados. Em segundo lugar, a divisão da projeção rela­ cionada à Aids não é simétrica. Sul-africanos negros e britânicos homossexuais vêem a si próprios, e não outros grupos, como mais afetados pela Aids. Esses fatores indi­ cam a maneira como mecanismos psíquicos internos inte­ ragem com forças sociais para forjar as representações sociais da Aids: ainda que exista uma tendência para imaginar que acontecimentos ruins têm sua origem em outros, se alguém é constantemente bombardeado com representações que ligam seu próprio grupo a esses acon­ tecimentos, ele pode internalizar tais representações (Joffe, 1994). Da mesma forma, também é importante notar que, quando essas entrevistas foram realizadas, as estatísticas oficiais do governo da África do Sul não apresentavam a população negra como a mais atingida pela Aids. Ao contrário, homens brancos e homossexuais estavam afeta­ dos muito mais seriamente. Mas, ao mesmo tempo, os

meios de comunicação de massa de todo o mundo apre­ sentavam uma disseminação exponencial da doença do centro da África para as periferias. Antes de nos voltarmos para a explicação teórica do processo "eu não"/“meu grupo não", vejamos o intricado conjunto de representações, referentes à ameaça que gru­ pos externos trazem ao grupo próprio. Minha sugestão é de que a tendência dominante na representação da Aids se relaciona com a responsabilidade, e especialmente com a responsabilidade e a culpabilidade do “outro” . Todas as três representações que serão ilustradas relacionam-se a esse núcleo central. Certos grupos, entretanto, tais como homens homossexuais, absorvem a responsabilidade que foi projetada neles pelas representações dominantes que circulam na sociedade. Tais grupos vêem os outros como responsáveis pela Aids em parte, mas consideram-se tam­ bém como os agentes causadores dela.

1. A Representação Social da responsabilidade Dois terços da amostra total (19/30 sul-africanos e 20/30 britânicos) empregam um discurso que implica res­ ponsabilidade, quando falam de pessoas que contraíram o HIV/AIDS. Quando falam sobre pessoas com Aids, uma resposta comum é: "Muitos deles são irresponsáveis no que se refere a sua vida sexuai; não se protegem e acredito que sejam promíscuos" (Homem, branco, britânico, heterossexual). É comum, entre os respondentes, que eles discutam consigo mesmos a respeito do grau de culpabilidade de várias pessoas com Aids: "Veja, as pessoas que pegam, em primeiro lugar, do jeito como eu vejo, eles na verdade não estão se importando, não são pessoas estáveis. Assim eles não serão tão responsáveis em primeiro lugar... Mas eu penso que isso não é justo, porque há muitas pessoas inocentes que M o pegá-la, não

As conseqüências que recaem sobre as pessoas ten­ dem a ser vistas como controláveis. Contrair Aids está relacionado com escolha. As pessoas com Aids são julga­ das como estando "em falta” , ou dignas de acusação, porque contraíram um vírus. Indivíduos são considerados diretamente responsáveis pela Aids. Entretanto, como ve­ remos a seguir, a Aids também faz "vítimas inocentes".

2. A Representação Social do "vazamento": cruzando limites raciais e sexuais De que forma, então, a Aids alcança suas vítimas "inocentes"? Como é possível que a praga do grupo exter­ no se transforme em um problema para o próprio grupo? De que forma grupos distintos, cada um com fronteiras sociais bem delineadas ao seu redor, podem se contami­ nar? Existem representações poderosas de “vazamento" que vêm de um grupo externo, infectado, para o próprio grupo,"inocente” . Quase um terço (8 de 30) da amostra sul-africana cita a sexualidade entre raças em conexão com a disseminação da Aids. "Eu penso que durante a relação sexual de pessoas de nações diferentes. Por exemplo, eu sou da nação Zulu, ou melhor, de uma nação negra. Alguém é da índia e eu sou um cara negro e durmo com uma menina de uma nação indígena... isso é o que eu penso que causa Aids, como a relação sexual de um "de cor" [pessoa miscigenada] e um homem negro, em vez de dormir com um "de cor" (Homem, negro, sul-africano, heterossexual). "Os negros - eu garanto que foi de pessoas que vieram lá de cima da África e espalharam. Eu não sei sobre os brancos. Eu garanto que deve ter havido uma cruza entre negros e

"Se você dorme com sua namorada e você não está seguro quanto a ela ou mesmo se ela viveu com alguém de outra nação, então ela vem com você e isso é a causa de você pegar Aids... Não se preocupe com Aids, elas dizem em geral, Aids é coisa de brancos. Assim, se você quiser pegar Aids, é só ir para Eldorado, lugar de gente "de cor" [pessoas miscigenadas], e você vai pegar Aids. Mas aqui em Soweto não há Aids" (Homem, negro, sul-africano, heterosse­ xual). Como o terceiro exemplo mostra, muitas vezes são lugares que fornecem às pessoas objetificações da asso­ ciação entre sexualidade inter-racial e Aids. Tanto na África do Sul, como na Grã-Bretanha, o conceito de "vazamento” da Aids entre o grupo próprio e o grupo externo também inclui orientação sexual. A bissexualidade representa a contravenção da fronteira entre a heterossexualidade e homossexualidade. Ela é vista como o ponto em que a Aids faz sua transição entre grupos homossexuais e heterossexuais por um terço dos sul-africanos (10 em 30), e para mais de um terço dos britânicos (12 em 30). O trecho seguinte é típico: "Eu penso assim, as pessoas mais perigosas nesses tempos são as pessoas bissexuais que são casadas e eles trouxeram a Aids pra casa para suas esposas, e então suas esposas, quando ficam grávidas, para os filhos..." (Homem, negro, inglês, homossexual). Rock Hudson e Freddy Mercury são muitas vezes mencionados quando um respondente procura expressar que cruzar fronteiras entre diferentes orientações sexuais ocorre com mais freqüência do que nós pensamos. Uma fonte a mais de vazamento da Aids se dá através da sexualidade entre animais e humanos. Um quarto dos sul-africanos (8 em 30) e um quinto dos britânicos (6 em 30) trazem à tona a bestialidade quando falam de Aids:

"Como eu ouvi falar, ela começou na Inglaterra... Ela come­ çou entre um macaco e uma pessoa depois que uma pessoa teve relações sexuais com um macaco... depois que apessoa teve relações com o macaco ele nunca se lavou e ele procurou sua companheira. Então eles tiveram relações"

(Homem, negro, sul-africano, heterossexual). “Os macacos na África. Eu penso que foi isso que ouvi falar e isso foi passando Deus sabe de que jeito. Eu ouvi algumas histórias horríveis sobre como ela chegou até nós [muita risada], Que eu prefiro não dizer. Entrevistador: Eu, na verdade, estou muito interessada em ouvir... Tu poderias me contar, mesmo que seja difícil. Respondente: Era exatamente o que se chama de bestia­ lidade, eu penso" (Homem, branco, britânico, heteros­

sexual). Os grupos a que as pessoas não pertencem são facil­ mente associados com uma sexualidade aberrante. Mas que outras práticas são associadas com o continente ou grupo infestado pela Aids, o continente ou grupo que são vistos como contaminando o próprio grupo? Acima de dois terços da amostragem total (21 em 30 britânicos; 23 em 30

Tabela 1: Práticas Associadas ao Continente ou Grupo Infectados pela Aids

sul-africanos) mencionaram pelo menos um dos cinco fatores seguintes em associação com contrair HIV: Um terço da amostra (11 em 30 sul-africanos; 11 em 30 britânicos) combinam pelo menos dois dos cinco fatores, chegando a uma surpreendente mistura, que eu chamo de "cocktail de pecados” . O cocktail de pecados envolve a combinação de duas ou mais práticas "aberrantes” , uma supergeneralização da medida em que elas são praticadas e a sua ligação a determinados grupos. Os seguintes extratos das entrevistas expressam o processo de combinar um número de práticas pecaminosas do “outro", com o objetivo de distanciar da Aids a identidade e as práticas do respondente. Respostas à pergunta "Onde se originou o HIV/Aids?” seguido da pergunta "Como se dissemina o HIV/AIDS" aparecem abaixo. As alusões previamente mencionadas sobre bestialidade persistem como parte de um cocktail de pecados mais amplo. As respostas da população branca, para cada uma das duas culturas, são apresentadas primeiro. "Os macacos na África. Eu penso que foi isso que eu escutei que ela se espalhou Deus sabe de que jeito. Eu ouvi falar de algumas histórias horríveis sobre como ela chegou até nós [ri muito). Que eu prefiro não dizer... Era exatamente o que se chama de bestialidade, eu penso... Eu poderia imaginar que seria algo como... as tribos na África seriam provavel­ mente mais inclinadas a esse tipo de coisas... Se um homem pegou e ele fez sexo com sua mulher e alguém aparece, eu não sei como essas tribos vivem, assim eu não sei o julga­ mento moral que se deve fazer sobre eles. Alguém poderia chegar e pagar algum dinheiro e fazer sexo com a mulher dele e então ele poderia levar isso para seu país e passá-lo a sua mulher... Eu imagino que isso é horrível na África. Se começou lá, não há jeito de controlar. Não há remédio. Eu imagino que realmente isso seria terrível. Eu espero que muitos desses países [Terceiro Mundo] serão varridos. Eles simplesmente não entendem esse tipo de coisa" (Homem, branco, britânico, heterossexual).

"Essas pessoas não se lavam. Quero dizer, eu não quero ser preconceituoso [em voz baixa, devido à empregada na casa] mas você não sabe por onde eies andam, quero dizer, as mulheres são muito sujas, realmente elas são sujas, incrivel­ mente sujas. Eu quero dizer que não existem, eu penso que não existem banheiros, eles sentam e urinam onde eles dormem, eles defecam onde dormem. Quer dizer, isso só tem de causar certa reação... o sexo é tão mal usado que ele se toma nojento. Eu não sei, com galinhas, eu não sei o que eles usam, eu penso que eles praticam besüalidade, não sei. Mas de minha parte eu penso que é devido a isso [que a Aids aparece]... poderia ser devido ao incesto, que o cérebro desapareceu dessas pessoas, por que essa gente [em voz baixa] não sabe. Eles casariam com a irmã deles amanhã" (Homem, branco, sul-africano, homossexual). Todos os sujeitos brancos relacionam a Aids com os ritos sexuais aberrantes do "outro" africano. Para os britâ­ nicos, o "Terceiro Mundo” é visto como impotente, porque não possui uma medicina ocidental, enquanto que o sulafricano (branco) expressa a noção de aberração em termos de rituais ligados à sujeira e sua narrativa culmina numa idéia de degenerescência. Chama a atenção que esse mesmo sujeito (homem, sul-africano, branco) seja homos­ sexual e relate que ele mesmo pratica uma ampla gama de atividades sexuais com grande número de parceiros. Mas o que dizem os respondentes negros sobre a origem e a disseminação da Aids? "O Ocidente, eles praticam toda sorte de atividades sexuais - falando da América, Europa, Rússia, etc. Eles têm homos­ sexuais, eles têm bissexuais, heterossexuais, e eles têm gente que é tão doente que chega a ter relações com animais, etc. Assim que eu penso, porque eles estão sempre experimentando, eles estão sempre tentando descobrir. Isso e aquilo, isso e aquilo, eles sempre querendo descobir o que lhes convém. Assim eles estão sempre experimentando um com o outro, com outras coisas, outras criaturas, outros objetos quaisquer. Assim se você faz isso sempre, é certo que você vai ter alguma coisa errada nessa linha... É certo pois eles estão sempre experimentando. Esse filme que eu

vi, 'First B o m e eles tentaram cruzar um gorila com um ser humano e eles estão sempre fazendo esse tipo de coisa e para mim isso é doença, assim desse jeito, deve ter aconte­ cido algo errado e essa doença apareceu, porque ninguém sabia dela antes disso... Se você lê a história da África, a história da escravidão, e como os europeus costumavam colonizar todos os africanos e todos os outros países, os países mais pobres daqueles tempos, toda vez que eles vão para um país eles levam uma doença com eles. Como, por exemplo, os índios americanos, eles morreram por causa do homem branco, porque o homem branco levou doenças, ele matou os índios americanos, ele lhes roubou as terras, ele lhes roubou todos os seus pertences, etc., e ao mesmo tempo ele lhes passou doenças, todo tipo diferente de doenças que eles nunca tiveram, que eles nunca tinham tido. Assim para mim, olhando para isso desse jeito, o principal problema, não há maneta de você contrair a Aids na África porque a África, para mim, é o único país, no momento, que não está suficientemente ocidentalizado para criar novos problemas" (Homem, negro, britânico, heterossexual). "Como eu ouvi dizer ela começou na Inglaterra... Ela come­ çou entre um macaco e uma pessoa depois de uma relação sexual com um macaco... depois que a pessoa teve relações com o macaco ele nunca se lavou e procurou sua parceira. Então eles mantiveram relações. Então a parceira não se segurou, foi e teve relações com outro, e assim foi que ela se espalhou. Ele nunca se lavou antes de ii jogar futebol e assim a Aids foi transmitida às pessoas... porque no futebol eles suam. Então depois de suarem, ele se encosta em mim suado e então eu pego Aids" (Homem, negro, sul-africa­ no, heterossexual). Para os respondentes negros o "outro" do Ocidente também está relacionado com uma sexualidade aberrante. O sujeito negro britânico traz a relação entre experimenta­ ção com sexo e rituais experimentais de laboratório. O próprio ato de interferir no que é "natural" é visto como uma maneira de ser não-africana. Os sul-africanos tendem a se mostrar mais preocupados com promiscuidade e com falta de higiene, como causadores de Aids.

As quatro narrativas apresentadas são típicas do gran­ de número de questões que surgem do conjunto geral dos dados. Elas mostram uma simetria notável: tanto os sujei­ tos negros, como os sujeitos brancos, imaginam que o outro seja aberrante em termos de rituais sexuais, e isso é visto como a causa da Aids.

3. A Representação Social da conspiração Certos aspectos da representação social da Aids são menos simétricos que o cocktail de pecados. A maioria dos sujeitos negros britânicos (8 em 10) e a metade dos respon­ dentes também britânicos, mas homossexuais (negros e brancos), acreditam que a Aids é uma conspiração. Embora alguns heterossexuais brancos reconheçam a existência dessa conspiração, eles o fazem apenas para descartá-la. A conspiração sugerida pelos britânicos marginalizados dirige-se, em geral, contra seu próprio grupo. A conspira­ ção é muitas vezes objetivada no desejo da CIA (Agência Central de Inteligência dos EE.UU.) de varrer do mundo grupos marginais: "Eu penso que ela [Aids] poderia possivelmente ser uma guerra química... Eu li pedaços de publicações em que a CIA estava ligada, e sejamos realistas aqui. Você sabe, podia muito bem ser, você sabe, se você quer erradicar uma espécie do mundo, ou uma minoria, ou uma categoria, do mundo, sejam insetos ou outra qualquer, você vai ao seu sistema reprodutivo, não é, algo onde haveria contato, ou contato íntimo... certamente poderia ser a comunidade ho­ mossexual" (Homem britânico, branco, homossexual, HIV positivo). "Há grande possibilidade de ela [Aids] ser um experimento... Ela poderia ser usada como uma arma, eu penso, ela poderia ser usada como uma arma, não sei. Os americanos inventam uma porção de coisas, não é? As pessoas pensam que eles são as pessoas mais inocentes, mas eles não são, há uma porção de coisas que acontece por detrás das portas fecha­ das... talvez um animal teve essa doença desconhecida, ou

qualquer outra coisa, e eles provavelmente colheram amos­ tras de seu sangue ou seja o que for, poderia ser um macaco, um chimpanzé, qualquer coisa, não? - e poderia ter vazado, é uma dessas possibilidades, você sabe, um pouco como o caso de Chemobyl" (Homem, negro, britânico, heteros­ sexual). Surpreendentemente, apenas 1, em trinta sul-africanos, culpa a Aids por ser uma conspiração humana. São os grupos marginalizados, na amostra britânica, que freqüen­ temente representam a Aids em termos de conspiração.

Teorizando as Representações Sociais da Aids Os dados apresentam um quadro em que (i) "o outro" é responsável pela Aids, (ii) em que o "vazamento" ocorre entre "o outro” e o Eu, ou o próprio grupo, devido a práticas aberrantes, e em que (iii) no caso de certos grupos margi­ nalizados, uma conspiração traz a Aids para seus próprios grupos. Eu mencionei que o núcleo central do “outro” , nas representações sociais da Aids, se relaciona com o proces­ so de ancoragem, em que a Aids é ancorada a epidemias incuráveis prévias. Eu também propus que o núcleo central do "outro" é um instrumento projetivo de defesa. Aqui, eu me proponho a elaborar essas suposições à luz dos dados apresentados acima. Antes de delinear as representações sobre epidemias incuráveis que fornecem as âncoras para as representações sociais da Aids, é preciso que tenhamos claro de que maneira grupos marginalizados têm sido vistos, através da história, em períodos de ameaça. Cohn (1976) demonstra que desde o século II dC grupos marginais foram o depo­ sitário para fantasias de perversão erótica, canibalismo e infanticídio. Tais representações foram formuladas pelos romanos, dentro do Império Romano, quando estes se encontraram ameaçados pela ascensão do poder cristão, um grupo marginal naquele período. A cristandade medie-

vai reativou as fábulas romanas de eroticismo, canibalismo e infanticídio, e as aplicou a grupos religiosos externos: “Sempre de novo, em um período de séculos, seitas heréti­ cas foram acusadas de praticar orgias promíscuas no escu­ ro... ou adorar o demônio" (Cohn, 1976:54). “Quando se tratou de desacreditar alguns grupos religiosos externos, os monges se socorriam desse conjunto de rótulos difamatórios" (Cohn, 1976:56). Cohn (1976) afirma que fantasias referentes a rituais de grupos estranhos propiciam uma arma para que o próprio grupo desacredite o grupo estranho, construindo suas práticas como ameaçadoras para a sociedade. Embora essa teoria esteja, em grande parte, confinada a representações que emergem em períodos de dissensão religiosa, ela também encontra ressonância no que diz respeito ao tratamento de grupos estranhos, em períodos de outras crises. Epidemias incuráveis - que representam uma crise potencial para um grande número de pessoas - têm sido ligadas, historicamente, a grupos estranhos, cuja sexuali­ dade é aberrante e cujos rituais são misteriosos. Eu vou centrar minha discussão no laço histórico que se estabele­ ceu entre a sífilis e a aberração, ainda que outras "pragas" potenciais, tais como a cólera, tenham evocado repre­ sentações semelhantes. Na cultura ocidental do século XIX, a sífilis caracteri­ zava depravação moral (Gilman, 1985). As mulheres negras e as prostitutas eram tidas como as principais transmisso­ ras da doença. Ambos os grupos eram associados a uma sexualidade desenfreada. As mulheres negras, em particu­ lar, representavam tanto a hipersexualidade, como o exó­ tico. Elas eram geralmente consideradas como possuindo tanto um apetite sexual "primitivo" como os sinais externos de tal condição: uma genitália "primitiva". Imaginava-se que as mulheres negras copulavam com macacos (Gilman, 1992). Os museus europeus do século XIX exibiam diagra­ mas e partes da genitália das mulheres Hottentot. As

diferenças entre suas partes sexuais e as das mulheres ocidentais eram usadas para provar que elas pertenciam a uma espécie inferior. Ao mesmo tempo, as mulheres Hottentot eram figuradas em obras de arte da época como objetos extremamente sexualizados. A forma como os europeus degradavam os povos negros, ligada ao seu voyeurismo, era evidente na fascinação que ocorria com relação aos genitais das mulheres negras, bem como em certas práticas institucionais: os zoológicos da Alemanha, Áustria e Budapeste, possuíam pessoas africanas antes da I Guerra Mundial (Gilman, 1985). Tais grupos externos eram representados tanto de uma maneira degradante pela sua associação a espécies inferiores -, como de modo erótico. O laço entre grupos estranhos, aberração e doença voltou à cena principal nas representações sociais da Aids. Isso fica indubitavelmente claro nos cocktails de pecados que se depreendem dos trechos das entrevistas apresen­ tadas acima. Mas, é importante salientar que tais idéias não se originaram no psiquismo de indivíduos privados: as representações médicas e as representações dos meios de comunicação sobre a Aids forneceram as sementes para essas noções. A literatura médica ocidental tem sido pródiga na elaboração da associação entre a Aids e os rituais que são vistos como aberrantes no Ocidente. Farmer (1992) inves­ tigou uma corrente da literatura médica que ligou a Aids com as práticas do vudu: “Os cientistas norte-americanos especularam repetidamen­ te que a Aids pode ser transmitida entre os haitianos através dos ritos do vudu, a ingestão de sangue de animais sacrifi­ cados, o alimentar-se de gatos, a homossexualidade ritualizada, etc. - uma rica parafernália de coisas exóticas” (P. 224).

Do “vudu", por exemplo, se disse que: "traz à mente visões de mortes misteriosas, ritos secretos ou bacanais escuros celebradas por negros 'sanguinolentos, tarados, enlouquecidos”’ (Métraux, 1972: 15). O laço entre a Aids, o vudu e o grupo externo haitiano penetrou revistas médicas americanas de prestígio, e dali deslocou-se para os meios de comunicação de massa e para a população leiga. Os meios de comunicação ociden­ tais, cuja penetração vai muito além do Ocidente, conti­ nuaram considerando o mundo subdesenvolvido, e a África em particular, como o lugar onde a Aids se originou. O elo entre África, macacos e Aids, conquistou a atenção popu­ lar, porque ele se ajusta a pré-concepções relacionadas à natureza causadora de doenças da floresta africana. Fan­ tasias relacionadas à sujeira, doenças e promiscuidade sexual vêm rapidamente à mente ocidental quando se pensa na África (Dada, 1990). A validade dos relatórios médicos, que sustentam um elo entre a África, os Macacos Verdes e a Aids, somente foi questionada posteriormente, devido à pressão que os próprios grupos estigmatizados exerceram sobre os médicos. As nossas entrevistas mostram que, enquanto os oci­ dentais consideram as práticas de grupos que lhes são estranhos - africanos e homossexuais - como perversas, da mesma forma, também os sujeitos negros viam as práticas ocidentais com suspeita. Esses dados corroboram a afirmativa de Farmer (1992) de que grupos acusados em função da Aids são sugestionáveis a teorias conspiratórias sobre a origem da doença. A Aids é considerada como tendo sido fabricada em laboratórios de pesquisa - muitas vezes pela CIA ou pelo FBI - para fins de engenharia genética ou de guerra biológica (Aggleton et al.,1989). Mais uma vez, os meios de comunicação desempenharam um importante papel na circulação dessa representação. As teorias conspiratórias em relação à Aids foram inicialmente defendidas no Haiti, onde um folheto denunciou a Aids como "uma conspiração imperialista para destruir o Ter­

ceiro Mundo" (Farmer, 1992). Depois disso, teorias conspiratórias receberam uma atenção regular na imprensa ho­ mossexual da América do Norte e da Europa, e no mundo subdesenvolvido. Exatamente aqueles que haviam sido acusados de ter introduzido o HIV/AIDS no mundo ociden­ tal foram os principais defensores das teorias conspiratórias. Teorias conspiratórias parecem, assim, ser uma defesa retórica de grupos destituídos de poder. Elas são uma forma de resistência às representações sociais mais hege­ mônicas, que proliferaram nos meios de comunicação de massa de todo o mundo. Uma das representações sociais dominantes afirma que a Aids se originou e se disseminou a partir dos Macacos Verdes na África. Embora os médicos não tenham sugerido a bestialidade, na África, como uma forma de contato entre os Macacos Verdes e seres huma­ nos, existe um discurso recorrente, nos meios de comuni­ cação, sobre um tipo de vírus HIV-símio, que se aproxima do vírus humano. Ora, a população leiga necessita enten­ der, a seu modo, como esse vírus passou do macaco para seres humanos. Quando ligada a transformações incons­ cientes, relacionadas a práticas aberrantes praticadas por grupos estranhos na África, uma representação que impli­ que bestialidade passa a ter sentido. Ainda dentro da teoria de Cohn (1976), o caráter estranho dos rituais pertencentes a grupos externos é usado tanto para denunciar o grupo externo, como para distanciar o próprio grupo desse tipo de ritual. Da mesma forma que o canibalismo desempenhou um papel crucial de denunciar a civilização indígena do "Novo Mundo” , também a bestialidade e outros rituais são utilizados para denunciar os africanos. Os cronistas de Colombo supergeneralizaram a escala em que o canibalismo, a bestialidade e o infanticídio eram praticados, e imaginaram que as pessoas combinavam essas três práticas (Thomsen, 1987). As concepções européias sobre o "Novo Mundo" conti­ nham uma estranha mistura de mitos, fábulas e fantasias coletivas. É essa estranha mistura de mitos com respeito à África que fornece hoje aos ocidentais um caminho para

ver os africanos de um modo degradante e alheio, permi­ tindo, ao mesmo tempo, que os ocidentais se distanciem dos africanos e da doença que hoje é associada a eles.

Projeção sobre o estrangeiro O processo histórico, através do qual um poderoso conjunto de fantasias ligadas à bestialidade, à sujeira, à promiscuidade e à homossexualidade emergiu como res­ posta à Aids, não pode ser meramente explicado olhandose para representações anteriores de epidemias incuráveis. É necessário ir mais a fundo para explicar o laço histórico entre doença e condição estrangeira. Mudanças no am­ biente social produzem insegurança, que por sua vez exacerba conflitos de identidade não resolvidos. Quando as pessoas ligam práticas aberrantes a um “outro", já não lhes é mais necessário se deparar com os conflitos que também lhes pertencem (Gilman, 1985). Por isso, a maneira como os europeus representam doenças epidêmicas incu­ ráveis, reflete muito de suas tensões e problemas não resolvidos (Gilman, 1988). Cada grupo social tem vários "depositários" (Sherwood), ou "grupos indefesos” (Gilman, 1988; Andreski, 1989) como alvos potenciais para projeção desses proble­ mas não resolvidos e tensões. Para a teoria das repre­ sentações sociais, o conhecimento que as pessoas têm sobre grupos que podem ser alvo de projeção é construído tanto por memórias coletivas, como pelas teorias que circulam na comunidade científica, nos meios de comuni­ cação de massa e nas conversações do dia-a-dia. As diferenças nas representações sociais que diferentes indi­ víduos sustentam podem ser atribuídas às diferentes posi­ ções sociais de cada indivíduo. Ainda que diferentes grupos, em uma sociedade, tenham diferentes “depositá­ rios” para acusar, a ideologia dominante da sociedade tende a propagar imagens de alguns grupos específicos

como o seu “outro" total. Os homossexuais tendem a ser um dos grupos que ocupa essa posição nas sociedades ocidentais. Além do mais, experiências subjetivas e inter­ nas são parte e parcela desses posicionamentos sociais. É dentro de um referencial sócio-histórico e psicodinâmico, que uma teoria que explique o processo do “eu não / o meu grupo não” deve ser desenvolvida. A projeção de ações socialmente inaceitáveis sobre outros está relacionada a sistemas de defesa primários, cujos traços permanecem ao longo de toda a vida. A defesa, ainda que tenha sua origem no sujeito individual, pode ser tanto exacerbada como diminuída, dependendo das práticas discursivas que estão em torno do sujeito em desenvolvimento. Desse modo, a interação contínua entre meios de comunicação e o imaginário popular é central para o processo de formação de fantasia. De acordo com Klein (1952), desde os primeiros meses de vida a criança usa artifícios de autopreservação para se defender contra a ansiedade que é sentida quando seu objeto primário - na maior parte das vezes, a mãe - não consegue satisfazer suas necessidades. Sentimentos de ódio em relação à experiência de perseguição por parte do objeto primário são superados quando a criança os separa dos sentimentos de amor que ela quer conservar. A dissociação, como mecanismo inconsciente de defesa, consiste na introjeção de experiências e sentimentos prazerosos, e na projeção de experiências e sentimentos ruins. A dissociação, a introjeção e a projeção estão entre os primeiros processos mentais ativos da criança. Resíduos de sentimentos e defesas primárias permanecem com o sujeito durante toda a vida. Bion (1961), e mais recentemente Young (1991), afirmaram que sentimentos e defesas primários se tornam parte das vicissitudes da interação cotidiana, que são reativados quando a pessoa experimenta impotência em relação a objetos do mundo externo. A ameaça de epide­ mias incuráveis é uma dessas experiências. O mecanismo de dissociação, que opera entre a criança e seu objeto primário, possui uma contrapartida social. No processo de

L

formação da identidade, as pessoas dissociam os “objetos" (ou pessoas) do mundo ao seu redor, em grupos bons e grupos maus. Essas dissociações naturalmente também são geradas por divisões ocorridas na história de suas respectivas sociedades. Quando ocorrem mudanças amea­ çadoras no ambiente social, as representações da mudança servem para dar às pessoas um sentimento de controle da situação potencialmente incontrolável. Surgem então rep­ resentações defensivas da mudança como as repre­ sentações que garantem a idéia do "eu não” , "o meu grupo não". O que se busca aqui é controle e sentido de comu­ nidade, através da projeção do medo na realidade externa. As representações sociais da Aids são formadas atra­ vés da ancoragem da Aids a ideologias que já circulam em determinada sociedade, e através da objetificação da Aids em certos lugares, práticas ou grupos. Aquelas repre­ sentações sociais da Aids que eu procurei mapear refletem ideologias centrais que circulam na África do Sul e na Grã-Bretanha. Individualismo, colonialismo e heterossexismo são comuns a ambas as sociedades, enquanto que ideologias ligadas ao apartheid são específicas à África do Sul, e teorias conspiratórias são específicas à Grã-Breta­ nha. A predisposição das pessoas para endossar certas representações sociais de um acontecimento, e não outras, emerge das experiências da infância ligadas às experiên­ cias da vida adulta em constante desenvolvimento, que interagem com imagens mediatizadas pelos meios de comunicação, lendas e brincadeiras populares. Gilman (1988) mostra que representações ocidentais da doença contêm o medo do colapso. De acordo com o processo de projeção, porém, esse medo do colapso não permanece internalizado. Ele é projetado no mundo exter­ no, justamente para ser facilmente localizado. Uma vez localizado, o medo da desintegração é removido. Esse processo é graficamente descrito por Williamson (1989). Ela afirma que o pensamento dominante em relação ao HIV/AIDS:

"unifica um pântano de realidades impensáveis, em que a homossexualidade (para muitas pessoas) já está submergi­ da, um território gótico onde os temores são jogados numa espécie de terra mental abandonada, para além das mura­ lhas do castelo do ego" (p. 70). A construção de um "território gótico" é funcional: ela permite a manutenção do controle do próprio território. Aqueles que operam dentro do “território gótico" são considerados alienígenas. Os alienígenas deixam claro que comportamentos os membros da sociedade devem evitar e desempenham um papel importante na coesão e identi­ dade do grupo dominante. Junto a esses grupos encontrase um conjunto de práticas que, por serem elas mesmas “desvio", constroem os parâmetros que definem as normas da sociedade. O “outro" é necessário ao Eu. A o definir o que é um "comportamento antinatural” , os membros de um grupo também estabelecem as denotações do que é "natural” . De acordo com Gilman (1992), fantasias relacio­ nadas a grupos estranhos permitem às pessoas projetar nos outros aquelas facetas de si mesmas que elas, e suas respectivas sociedades, consideram inaceitáveis. A “não aceitabilidade" é, em grande parte, ditada por aquelas práticas que diferem do status quo e por isso o subvertem. E aqui é importante que se diga: as representações sociais que constroem o “outro" como aberração têm conseqüên­ cias para a prática. Elas permitem que esse “outro" seja maltratado e discriminado: a subordinação daquelas pes­ soas, cujos sistemas de valores, práticas e identidades são diferentes, passa a ser apenas um desdobramento justo de uma lei considerada “natural".

Conclusão A disseminação da Aids, seja ela representada em termos de sexualidade inter-racial, seja em termos de conspiração, aparece sempre como responsabilidade de grupos que são externos ao próprio grupo. A projeção da

responsabilidade sobre grupos estranhos é um mecanismo de defesa que afasta tanto o próprio grupo como o Eu da Aids, deixando intacta a sensação de controle. A projeção intergrupal ocorre como forma de controlar o que ameaça nossos sentimentos de onipotência. A partir da perspectiva kleiniana dos processos projetivos (1952), Douglas (1966) afirma que as pessoas constroem sistemas simbólicos ligados à pureza, a fim de ordenar o conjunto caótico de estímulos que existem ao seu redor. Aqueles elementos que não podem ser classificados dentro do sistema amea­ çam sua ordem e se tornam, por isso, tanto perigosos, como poderosos. A emocionalidade, a espiritualidade e o lado instintivo (animal), historicamente associados aos grupos estranhos (Cohn, 1976), ameaçam o sentimento de onipo­ tência. Espero ter enfatizado, suficientemente, o papel do afeto - incluindo aqui sentimentos de medo, ansiedade e impotência - na formação das representações sociais. A teoria das representações socias nos alerta para o fato de que essas respostas emocionais não se originam em indi­ víduos isoladamente. Elas são o produto de representações emocionais da doença, que surgiram historicamente, mas que ainda hoje circulam no meio científico, nos meios de comunicação de massa e do pensamento popular. O ato mesmo de construção da representação social, como um todo, relaciona-se com o medo de impotência diante de um objeto social desconhecido. O elemento defensivo, contudo, pode ser aumentado na representação social de crises. Nas representações sociais sul-africanas e britânicas sobre a origem e a disseminação da Aids, nós podemos observar uma cacofonia de pecados postos juntos. O bes­ tial, o bissexual e o conspiracional são "liquidificados" ao mesmo tempo, produzindo uma mistura forte de imagens e fantasias relacionadas às práticas de grupos estranhos. Ao construir cocktails de pecado que geram doenças, as pessoas fazem de suas próprias práticas um conjunto de

práticas “puras". Isso vem reforçar um sentimento de imunidade diante do HIV/AIDS e sustentar valores hege­ mônicos. Não é, pois, coincidência que a grande maioria de minha amostra total sinta que suas chances de contrair o HIV são mínimas. Sejam quais forem as práticas pessoais de alguém, as práticas do “outro” podem ser construídas, ao nível das representações sociais, como mais perversas, antinaturais e geradoras de doença. Mas, ao mesmo tempo em que se distanciavam das ações do "outro” , os sujeitos de meu estudo se mostraram excepcionalmente dispostos a teorizar e descrever essas práticas. A qualidade de tal teorização, embora freqüentemente expressa em termos de repulsa, é uma demonstração de desejo. O desejo co-existe com a desumanização das práticas do “outro” . A fascina­ ção do mundo médico, de não-especialistas e dos meios de comunicação pela homossexualidade e pela sexualida­ de africana, nesses tempos de Aids, é uma expressão de desejo. O gozo é obtido, aqui, através de um olhar voyerístico aos cocktails de pecado que grupos estranhos, “exóticos", representam. Como conseqüência, grupos es­ tranhos se deparam com representações que os degradam e os sexualizam, ao mesmo tempo. Os dados discutidos aqui indicam que os membros de grupos marginalizados freqüentemente internalizam tais representações, o que os faz surgir com identidades deterioradas. A internalização de uma representação degradante e sexualizada se revela na fala de muitos membros de grupos marginalizados: "Eu mesmo sou homossexual, mas os homossexuais são repugnantes. Hum, você teve, quero dizer, não vamos ficar aqui fazendo rodeios... a coisa é tão violenta que com isso agora nós estamos vivendo num tempo em que um homem se achega a outro homem em plena luz do dia. Eu fui abordado em plena luz do dia, sabe, e em locais públicos e coisas assim. E existem, hum, é verdade há uma porção de parques, e há multa atividade sexual clandestina acontecen­ do por aí, clubes, camionetas, ônibus; eu foi molestado nos piores lugares, sabe. Eu, pessoalmente, passei pelas situa­ ções mais incríveis, há uma porção de desvios de compor­ tamento acontecendo e isso eu não estou dizendo que é

errado, mas é certamente um desvio, sabe" (Homem, ne­ gro, britânico, homossexual).

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SOBRE OS AUTORES Martin Bauer é professor de p s ic o l o g i a s o c i a l e Métodos da Pesquisa Social na London School of Economics and Political Science e Research Fellow no Museu de Ciências de Londres, Reino Unido. Gerard Duveen é professor da Faculdade de Ciências Políticas e Sociais da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, e Fellow do Corpus Christi College. Em 1990 organizou, com Barbara Lloyd, o livro Representações Sociais e o Desenvolvimento do Conhecimento. Rob M. Farr é Professor de p s ic o l o g i a s o c i a l na London School of Economics and Political Science. Em 1984 editou, com Serge Moscovici, o livro Representações Sociais. Pedrinho A. Guareschi é Professor de

p s ic o l o g ia

nos Mestrados de Psicologia e Comunicação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil, e Professor na Accademia Alfonsiana (Universidade Lateranense), Roma. SOCIAL

Hélène Joffe é PhD pela London School of Economics and Political Science e atualmente trabalha como pesqui­ sadora na mesma instituição. Sandra Jovchelovitch é psicóloga, professora na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil, e está completando seu PhD na London School of Economics and Political Science.

Maria Cecília Minayo é Professora e pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, Brasil. Publicou, entre outros: O Desafio do conhecimento - pesquisa qualitativa em saúde.

Serge Moscovici é Professor na École des Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris. É um dos fundadores da Associação Européia de Psicologia Experimental e é

c o n s id e r a d o o in ic ia d o r d a

t e o r ia d a s r e p r e s e n t a ç õ e s

s o c ia is .

Mary Jane Spink é Professora e coordenadora do Programa de Estudos Pós-graduados em p s ic o l o g i a s o c i a l da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Editou, em 1993, o livro O Conhecimento no Cotidiano - As representações sociais na perspectiva da psicologia social. W olfgang Wagner é Professor da Universidade de Linz, na Áustria, e co-editor da revista Papers on Social Representations.

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