Corazza. História Da Infância Sem Fim

  • Uploaded by: Eliane de Jesus
  • 0
  • 0
  • March 2021
  • PDF

This document was uploaded by user and they confirmed that they have the permission to share it. If you are author or own the copyright of this book, please report to us by using this DMCA report form. Report DMCA


Overview

Download & View Corazza. História Da Infância Sem Fim as PDF for free.

More details

  • Words: 109,126
  • Pages: 393
Loading documents preview...
HISTORIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Sandra Mara Corazza

HISTORIA DA INfÂNCIA SEM FIM 2 ã edição

fe (INIJCll

Ijuí 2004

© 2000, Editora Unijuí Rua do Comércio, 1364 Caixa Postal 560 98700-000 - Ijuí - RS - Brasil Fone: (0_55) 3332-0217 Fax: (0_55) 3332-0343 E-mail: [email protected] Http: //www. unijui. tche. br/unijui/editora Editor: Gilmar Antônio Bedin Editor Adjunto: Joel Corso Capa: Ubiratan L. O. Pereira e Elias Ricardo Schüssler Responsabilidade Editorial e Administrativa: Editora Unijuí da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí; Ijuí, RS, Brasil) Serviços Gráficos: Sedigraf Ilustração/capa: La-Família de Felipe IV o "Las Meninas" Diego Velázques de Silva (1599-1660) Primeira edição: 2000 Segunda edição: 2004 Catalogação na Publicação: Biblioteca Universitária Mario Osório Marques - Unijuí C788h

Corazza, Sandra Mara História da infância sem fim / Sandra Mara Corazza. - 2. ed. -- Ijuí: Ed. Unijuí, 2004. - 392 p. - (Coleção fronteiras da educação). ISBN 85-7429-182-X 1.Educação 2.Psicologia educacional 3.Educação infantil 4.Infantilidade 5.Ética I.Título II.Série CDU :

37.015

37.015.3

v Editora Unijuí afiliada:

Associação Brasileira das Editoras Universitárias

j

^Hjy||lí,^!nfr!ttB!> f UM «KlSelrjp editorial '"^nn^tfyflgBflLif''" visa^r ,náflfali"*7TP ilr m.ni|HI' ^' que. co«y<;riativida<|e e ousadia, apresentam ^jj^ÉrtWGç&BssjgM%£||j|£ayngM^Ml^^iaeáreadaedu^j|§. Atendem ao perfil dessa coleção' as "pesquisas que, emergindo do campo da educação, propõem revisões críticas em nível dos seus pressupostos, apontando para novas perspectivas em termos epistemológicos, éticos, axiológicos, estéticos, políticos e t c , e conseguem estabelecer um diálogo crítico e fecundo com outras ciências e outros campos de reflexão, como a filosofia, a psicologia, a sociologia, a estética e a psicanálise.

CONSELHO

EDITORIAL

1 - Jacques Therrien (UFC) - Filosofia e Pedagogia 2 - Gaudêncio Frigotto (UFF) - Filosofia e Economia 3 - José Carlos Libâneo (UFG) - Pedagogia 4 - Magda Becker Soares (UFMG) - Linguagem e Alfabetização 5 - Valdemar Sguissardi (UNIMEP) - Política da Educação 6 - Elenor Kunz (UFSC) - Educação Física 7 - Janete Bolite Frant (Santa Ursula - RJ) - Educação Matemática 8 - Lúcio Kreutz (UNIS1N0S) - História e Filosofia da Educação 9 - Margareth Schaefer (UFRGS) - Psicologia e Pedagogia 10 - Valeska Fortes de Oliveira (UFSM) - Pedagogia

COMITê DE

1234-

REDAçãO

José Pedro Boufleuer - Presidente Ruth Marilda Fricke Elza Maria Fonseca Falkembach Joel Corso

Editora ÍJMiJCi! FRONTEIRAS" - €DUCACÃ0 1 - Por Uma Teoria da Pedagogia: Pesquisas Contemporâneas sobre o Saber Docente Clermont Gauthier Stéphane Martineau Jean-François Desbiens Annie Maio Denis Simard 2 - O Tortuoso e Doce Caminho da Sensibilidade: Um Estudo Sobre Arte e Educação Angela Maria Bessa Linhares 3 - Co-Educação Física e Esportes: Quando a Diferença É Mito Maria do Carmo Saraiva 4 - A Escola no Computador: Linguagens Rearticuladas, Educação Outra Mario Osório Marques 5 - Inter-Relação: A Pedagogia da Ciência - Uma Leitura do Discurso Epistemológico de Gaston Bachelard Ilton Benoni da Silua 6 - História da Educação Brasileira: Formação do Campo Carlos Monarcha (Org.) 7 - A Eticidade da Educação: o Discurso de uma Práxis Solidária/Universal Alvori Ahlert 8 - Não Brinco Mais: a (des)construção do brincar no cotidiano educacional Maria Sílvia Pinto de Moura Librandi da Rocha 9 - Do "Manifesto de 1932" à Construção de um Saber Pedagógico: ensaiando um Diálogo entre Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira Pedro Ângelo Pagni 10 - Economia Popular e Cultura do Trabalho: Pedagogia(s) da Produção associada Lia Tiriba 11 - História da Infância Sem Fim Sandra Mara Corazza

Para Hugo, Paulo, André e Sérgio, com quem aprendi a ser mulher e mãe no jogo amoroso da vida.

UMARIG

PREFACIO

13

AURORA

15

Era uma vez ... quer que conte outra vez?

31

Espectros de infantil

35

HISTÓRIAS DE GOVERNO: CRIANÇAS & CIA

39

A-VIDA-A-MORTE

56

Na Roda

60

Disparate da proveniência A identidade: começos inumeráveis

114 116

Infantes, soldados, lacaios, servos, peões, pequenos... Este homem é de uma infância!

124

Secundárias, débeis, ignorantes, incapazes de conversa ou defesa, miúdas, insignificantes, incompetentes, anjinhos felizes, párvulos, "papel blanco"

134

Mulheres, anciãos, efeminados

146

Plebeus, camponeses, escravos negros, amas, criadas

149

A loucura é infância

151

Doente, primitivo, criança

157

O corpo: superfície de inscrição Dormindo/morto Imobilizado Afastado Afrontamento da emergência Cenas Cena zero. Ponto de surgimento: criança-mãe Cena um. Infância bem-educada Cena dois. Infância em afanise no telégrafo Cena três. Infância a-edípica Cena final. Cai o pano A natimorta no camarim-trincheira MAIS-VALIA O processo de produzir mais-valia Trabalho pedagógico Temer o demônio e a si-mesma Educar(-se) para libertar(-se) Pedagogizar a sexualidade. Moralizar a pedagogia.. Infantilizar(-se) Trabalho diurno e noturho. O trabalho das mulheres e das crianças Controlar a urina e as fezes Falar(-se) do sexo-soberano

161 163 169 173 184 185 185 187 190 196 201 203 209 223 230 230 234 244 256 261 261 263

Sexualizar a pedagogia. Moralizar o sexo Sexualizar(-se)

275 292

Nos espelhos do Grande-Outro

300

A ÉTICA DA INFANTILIDADE

327

Ser-si: sujeito na dobradura

331

Figuras de infantil

338

Sofia

338

Emílio

340

Graciliano

343

El Nino/La Nina

345

Nós

348

Resumo

361

REFERÊNCIAS BIBUOGRAFICAS

363

PREFACIO

Neste livro, nascido de sua Tese de Doutorado em Educação, Sandra Corazza magistralmente descreve a complexa trama de enunciados de um discurso que, nas sociedades contemporâneas, não deixa de afirmar a saudade de um inocente jardim das delícias, ou de um eterno paraíso perdido, embora anuncie e denuncie todos as formas perversas e violentas de expropriação da infância. Para contar esta história sem fim do infantil, Sandra apodera-se competente e criativamente das ferramentas oferecidas pelo genial pensamento de Michel Foucault, articulando uma densa narrativa dos modos pelos quais temos problematizado o infantil, ou seja, dos modos pelos quais temos produzido verdades e temos investido poderes na constituição de identidades-criança. Adentramos este texto quase como se estivéssemos num trem-fantasma, sujeitos a sons e a movimentos, a coreografias e gestos, enfim, a figuras que num susto se nos aparecem e subitamente se iluminam, fazendo-nos exclamar: "É isto! Eu já vi isto!". Desfilam diante de nós, entre tantas, a figura da criança-pai (ela é a origem, é nela que aprendemos a ser), da criança-do-mal (ela será então excluída, separada, educada), da criança-objeto-científico, da criança-cotidiano (objeto de cuidados e ternura), da criançatempo (ela é o próprio lugar de apego do humano em relação a si mesmo), da criança-inferioridade, da criança-pro-

1 4

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

messa-de-felicidade, da criança-roubada. Elas são ditas e mostradas muitas e outras vezes, até que a autora se pergunta, ao final, sobre uma ética da infantilidade, que nos vem pensada também a partir de novas figuras - £/ Nino/ La Nina, por exemplo. Concluímos a leitura e parece que precisamos voltar ao início, a nos reencontrar em cada uma dessas imagens, enredados numa infância sem fim, talvez porque nos seja por demais árduo, por demais doloroso desaparecer, assim, como escreveu Foucault, feito um rosto de areia à beira-mar. Rosa Maria Bueno Fischer Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Brasil

Aurora

AURORA

1 *y

Oh! que saudades que tenho Da aurora da minha vida, Da minha infância querida Que os anos não trazem mais! (Abreu, 1954, p. 193-4)

Parece que, por muito tempo, teríamos encontrado um mito de origem do sujeito moderno e nele buscaríamos até hoje nossa verdade primeva, sujeitando-nos a seus decretos, ordens e promessas: estado de excelência do ser humano autêntico; forma ontogenética de um ser único repetindo a filogênese da espécie; modelo positivo que induz à valorização do melhor e do mais real do humano; mecanismo de representação fiel que serve para explicar a unidade de sua natureza; ou, em linguagem figurada: mundo maravilhoso e encantado; jardim das delícias; paraíso de pureza e inocência pletóricas; viveiro de felicidades; subterrâneo não socializado - selvagem, arcaico, primitivo, insondável, belo, inato, perfeito, livre -, onde mora o que foi reprimido posteriormente; em suma, aurora de nossas vidas. Neste lugar e constituindo-o, um ser: ao mesmo tempo, Mesmo e Outro, o Próximo e o Longínquo. Não é que este ser - ora soberano de lídima pátria, ora súdito renegado - não tivesse existido antes; mas é que, por não ser um fato de natureza, mas de cultura - cuja história é a das culturas que o dizem infantil e o governam - como as outras figuras de saber, da baixa Idade Média e da Renascença, repetia-se apenas no parentesco, na vizinhança e na afinidade infindável dos signos e da semelhança, os quais asseguravam a monótona correspondência, em forma de anel, das coisas de um mundo indefinido, fechado, pleno, tautológico (cf. Foucault, 1968).

1 B

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Fraturada a fronteira desse grande texto da similitude pelas andanças de Don Quixote - limiar em que as palavras e as coisas nunca mais se assemelharão como no século XVI -, será na época clássica da representação que a natureza humana desse ser principiará a ser pensada e esclarecida como um ponto na série; porém, apenas para ser comparada e entrar na hierarquia da ordem. Embora a cultura ocidental tenha configurado, nos séculos XVII e XVIII, uma nova epistéme - em que o semelhante, por intermédio da medida e da comparação, dissocia-se numa análise feita em termos de identidade e diferença -, o Ser que aqui interessa não estará ainda colocado no quadro dos seres. Mesmo que a tela de Velázquez - Las Meninas tenha por título este que tem, "as meninas", tais como hoje as conhecemos, não puderam estar aí presentes, pela impossibilidade da pintura de representar o próprio ato de representar e o ser que o organizava. As luzes do Iluminismo terão feito do "quadro" - apesar de seus espelhos, reflexos, retratos, imitações - o exercício derradeiro que produz a opacidade representacional. Se Deus não ordenava mais o mundo; se as noções de mathesis, de taxionomia e de gênesis não sustentavam mais o projeto de uma ciência geral da ordem; se os nexos dessa ordem - até então preexistente e independente do humano - não eram mais passíveis de serem representados nos quadros ordenados das identidades e das diferenças; e se, desses quadros, os humanos transbordavam, por estarem exilados dos outros seres vivos, é porque novos sulcos vinham sendo traçados na superfície iluminada dos saberes. A mutação arqueológica do final do século XVIII exigirá uma nova relação entre os discursos, as práticas e seus ordenamentos: não se pedirá mais à história natural, à análise das riquezas e à reflexão sobre a linguagem que repre-

1 9

sentem os seres naturais, as trocas e a moeda, as palavras. Com o final da representação clássica, as coisas mesmas serão buscadas: a vida deverá definir as condições de possibilidade do vivo; o trabalho indicará as possibilidades da mudança, os lucros e a produção; a linguagem designará as condições históricas do discurso e a gramática. Quando a vida, o trabalho e a linguagem deixam de representar-se segundo os quadros taxionômicos e retroagem a suas leis, duas coisas estarão acontecendo: o humano passa a ser determinado por sua vida, sua produção e seu trabalho, para se fazer alguém que é um ser finito, temporal. Um vazio se faz então no saber, que reivindica ser preenchido por este ser ambíguo e limitado, cuja finitude é anunciada pela positividade de seu próprio saber. Apenas nesse momento de despertar do sono antropológico - manhã da qual parece que ainda não nos desprendemos -, numa reflexão de nível misto, é que o transcendental e o empírico se preocuparão com o humano, cuidando para defini-lo como ser vivo, indivíduo no trabalho e sujeito falante; somente aqui é que o sujeito - que vive, trabalha e fala - pôde ser pensado, tornando-se mais do que um sujeito entre objetos: o sujeito e o objeto de seu conhecimento. As leis da Biologia, da Economia Política e da Filologia descobrem e positivam a exterioridade e a anterioridade da vida, do trabalho e da linguagem, em relação com a ambígua figura epistêmica de objeto para um saber e de sujeito que conhece. Ao introduzir a contingência, a Modernidade põe às claras, para o humano, sua própria finitude, pensada a partir da finitude mesma e não mais na negatividade metafísica do infinito: finitude positiva da vida, do trabalho e da linguagem, a partir da finitude fundamental do humano e da finitude de sua vida, de seu trabalho e de sua linguagem. Instalado o humano no espaço vazio da frente e do

2 D

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

centro de Las Meninas - prisioneiro como fica dos limites positivos da vida, do trabalho e da linguagem -, é aqui que este se autoriza a tomar o lugar de Deus, reivindicando o conhecimento total, implicado pelo fato mesmo de não ser infinito. Com o fim da epistéme clássica, também "a infância" '' e "a criança" - como "a loucura" e "o louco", "a doença" e "o doente" - entrarão em uma nova relação que se estabelece entre as palavras, as coisas e sua ordem; pois, como disse Foucault, o humanismo do Renascimento e o racionalismo dos clássicos puderam dar um lugar privilegiado aos humanos na ordem do mundo, mas o que não puderam foi pensar o homem - nem, muito menos, o que Foucault não disse, puderam pensar a mulher e a criança. Quando o saber tinha parado de ziguezaguear entre as semelhanças, cuja busca final provocara ilusões e delírios; quando as palavras se divorciaram definitivamente das coisas e passaram a representar suas representações e a consciência que as representava; foi quando o sujeito se reconheceu como objeto e sujeito finito, cujo ponto infinito, que esclarecia a finitude, era a Morte. A nova matriz da finitude gerará múltiplas mortes em vida, antes da morte biológica: o corpo adoece, pelo estado mórbido; a razão esmorece ou se aliena, pela desrazão ou pela loucura; o trabalho não sustenta condições de sobrevivência, pela exploração; a linguagem não representa, pela afasia filológica e gramatical; e o universo adulto descobre o velho tema de que as crianças vivem, para além da morte de suas mães e pais. Fora necessário que o humano entrasse no pensamento da finitude, mantendo-o implicado em sua temporalidade; referenciando-o à sua própria destruição; fazendo dele tanto a imagem de sua verdade quanto a eventualidade de sua morte; fixando-o na dialética da vida e da morte, por amar a

AURORA

2 i

Eros e temer a Tanatos-. isso para que a criança ocidental pudesse aparecer como elemento deste devir - uma criança que, desse modo, parecia nascer da Morte e nesta encontrar sua matriz geral. Nova figura na paisagem social, é quem recordaria a cada humano a finitude do que fala, trabalha e vive; lembraria o nada de sua existência; emblematizaria sua contingência - o que foi não é mais, deixará definitivamente de ser: dentre os personagens ocidentais, "o infantil" é o que melhor tematizaria a temática do fim, por ter começado a ser o começo de todos eles. A um só tempo, funcionaria como escudo contra a finitude: nele, o humano se perpetuaria, evitando a Morte, fazendo-se outra vez partícipe da infinitude, driblando o Derradeiro; seria o espelho que, secretamente, reflete o sonho da presunção infinita do humano que se descobrira finito. Só que, doravante, "a infantilidade" - essa qualidade, esse estado, essa propriedade, esse modo de ser do infantil - tomará parte das medidas da Razão, do trabalho da Verdade e das tecnologias de Poder. Por isso é que o infantil - a infância, as crianças & Cia. - , produzido pelo dispositivo que infantiliza, tem como matriz geral não a Morte - que o inscreve no conjunto moderno de uma finitude que não é mais transportada sobre a infinitude da presença divina, nesta sua relação obstinada com a morte: "Em Nome da Morte", poder-se-ia dizer - , mas a Vida, que inventa sua identidade para si, de sua idade. Apenas um poder capaz de causar a vida ou devolver à morte poderia ter engendrado, como um de seus dispositivos, esse de infantilidade: por meio de procedimentos de poder disciplinares; por fazer a anátomo-política do corpo infantil; e, através de intervenções e controles reguladores sobre a população, por realizar a biopolítica de uma população agora dividida em infantil e adulta.

2 2

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Quando a velha potência de morte do Pai, a pátria potestas, cai em desuso e outra sociedade constituída por outro tipo de poder reúne-se na hora do parto - em substituição à comunidade feminina das parteiras, comadres e vizinhas -, bem como ao redor do berço -, que deixará de ser móvel de morte para ser chave de significação vital -, somente aí é que se abrem as condições históricas de possibilidade para métodos de poder político que gerem a vida daquele ser constituído ao nível da vida, da espécie, da raça e da população. Investidas pelo biopoder em seus corpos sujeitados, "as crianças" serão seres vivos, cuja vida se calculará e cujo fato de viver cairá no campo de controle do saber e de intervenção do poder, os quais se deixarão implicar em sua saúde, alimentação, condições de existência, necessidades, interesses, desejos, identidade. Esse poder - atuado cada vez mais pela Norma e menos pela lei do gládio - agenciará concretamente "a infância", tornando-a uma idéia histórica complexa, formada no seio do dispositivo de infantilidade, e um ponto ideal e imaginário fixado por este mesmo dispositivo. Idéia e ponto pelos quais todos os infantis deverão passar para atingir suas próprias inteligibilidade e identidade; os quais todos precisarão esmiuçar, perseguir nos sonhos, suspeitar por trás dos pequenos sintomas cotidianos, sussurrar no escuro pegajoso do confessionário e no lusco-fusco tépido do diva, comprovar nas grandes loucuras e nos crimes hediondos; ao mesmo tempo em que tal idéia e ponto vão tornando-se temas de operações políticas, de intervenções econômicas, de campanhas ideológicas de moralização e de escolarização: índices de força de uma sociedade, que revelam tanto sua energia política, quanto seu vigor biológico. Embora a experiência da infantilidade não tenha sido um fato maciço, nem haja formado um conjunto homogêneo - surgindo em pontos múltiplos, de forma dispersa -, per-

23

tence ao domínio dessas experiências fundamentais da sociedade e da cultura ocidentais, nas quais essas arriscam os valores que lhe são próprios, compromete-os na contradição e, a um só tempo, os previne contra elas: por constituir a infantilidade como um dos enigmas fundamentais da verdade ontológica dos seres humanos, do qual só a Esfinge - com rosto e seios de mulher, corpo de leão e cauda de serpente da porta de Tebas possuiu a chave, antes de se precipitar no abismo, por ter Édipo decifrado o enigma: "Qual o ser que na manhã de sua vida anda de quatro, ao meio-dia, de duas, e à tarde, de três pernas"? Desde que começa a viver tal experiência, nossa cultura não parará mais de falar do outro-infantil, que lhe é a um tempo interior e estranho, sua mesmidade e outridade, seu igual e diferente, seu incessante Fort-Da: jogo de carretei que mostra a face do Mesmo - subjacente a tudo que somos, guardião do segredo mais profundo de nossa essência, de nossa definição e funcionamento, ao qual rogamos, insistentemente, atribuição de sentido, decodificação e domínio; jogo de vai-e-vem que traz o pequeno-outro condenado à exclusão, do qual nos esforçamos por conjurar o perigo interior de devoramento, ao qual precisamos fechar, para lhe reduzir a perigosa alteridade e defini-lo para, perpetuamente, regulá-lo. Este não será nunca um outro qualquer, mas o Próximo implicado por uma ambigüidade: a quem se constituirá como diferente, de quem se quererá sempre livrar, por ser próximo e, ao mesmo tempo, longínquo, por ser o mais familiar e o mais estranho, por não ser o mesmo e ser, no subterrâneo, nós-mesmos. Atração e repulsão, duas forças coexistentes: identificação entre adulto e criança, lugar de busca e encontro da ontologia constitutiva; também negação em se reconhecer no infantil, destinado ao mundo da exclusão, e luta para,

2 4

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

conhecendo-o, não ser nunca mais ele. No redemoinho dessas forças - antagônicas e convergentes -, a infantilidade e o processo de infantilização fundam a verdade de um conhecimento, a possibilidade de uma prática do infantil e um tipo de poder que se exerce sobre quem, produzido por essas mesmas forças, passa a ser visível, enunciável e, acima de tudo, educável. No vazio deixado pela ausência dos deuses, um trabalho hercúleo: instituições e espaços sociais serão reconfigurados, práticas e poderes exercidos, verdades e saberes constituídos: duradouro reino, de potente produção discursiva, cujo Soberano é o ser infantil - seus cuidados, higiene, saúde, educação, felicidade -, do qual diz-se que a família conjugai burguesa foi seu território privilegiado e a dupla parental seu exército mais aguerrido. Fala-se também de território e soberano positivados pela sociedade industrial, como força de trabalho para o desenvolvimento capitalista emergente, que os integrou, por puro interesse, a seus modos de produção: de forma encarnada, estariam presentifiçados - mais do que as/os próprias/os trabalhadoras/es dóceis e úteis seus embriões. O triedro dos saberes ou dos modelos da epistéme moderna, com as suas não-ciências que são, segundo Foucault, as Ciências Humanas, ou com as suas contraciências, que são a Psicanálise e a Etnologia - neste lugar que é o de nossa contemporaneidade, o da idade de nosso pensamento -, descreverá a infância como vida original, semente, célula mater, passado anunciado no presente e sentenciando o futuro. Até a exaustão, enunciará o corpo e a alma do SujeitoInfantil - que, se não substitui o próprio Rei e a Rainha, porque este é o lugar dos humanos adultos, fica no lugar, não menos nobre, do Príncipe e da Princesa, ou melhor, do Infante e da Infanta -, dirigindo-lhe um olhar atento e orien-

25

tado e atribuindo-lhe condição diferente: características próprias, cognição, sensibilidades particulares; uma vida em tudo distinta, inscrita nas dobradiças da Morte, do Desejo e da Lei-Linguagem. Essa idéia do infantil, como "o outro" do adulto, não foi somente objeto de teorias que se aplicaram a dizer a verdade de sua identidade; foi também objeto de práticas culturais e educativas, destinadas a modificar sua economia no real e a mudar seu futuro. Foi para este pequeno-outro que o século XVIII principiou a constituir um mundo à altura - irreal, abstrato, arcaico -, com regras pedagógicas adequadas a seu desenvolvimento, objetivando preservá-lo do mundo conflitivo dos adultos. A pedagogia ocidental, desde então, só fez aumentar a distância que separa, para o humano, sua vida de criança de sua vida de adulto, não lhe permitindo liquidar o passado e assimilá-lo ao conteúdo atual da experiência; ao mesmo tempo em que fortalecia a idéia de que conhecer o infantil o libertava deste modo de ser. Nas práticas educacionais, nossa cultura sonhou sempre com uma "Idade de Ouro do Infantil", ao projetar, em suas instituições escolares, não diretamente a realidade cultural, com seus conflitos e contradições, mas refletindo-se indiretamente através de mitos que a perdoam, justificam-na e idealizam-na numa coerência quimérica. Tornou-se corrente afirmar que a infância "é ela mesma" e que, por isto, deve ter respeitados e garantidos seus direitos. Benefícios foram distribuídos a esta locução, criando todo um conjunto de normas nas relações adultos-crianças, sentimentos de piedade e ternura, amor materno/paterno-filial, teorias científicas, saberes profissionais, poderes ensejadores de responsabilidades e de experiências, uma certa política da verdade: produção pródiga, economia abundante

2 6

HISTÓRIA DA INFÂNCIA BEM FIM

de discursos sobre a infância, implicados por interesses que lhes deram sustentação, por silêncios e estratégias que apoiaram e atravessaram sua discursividade. Entretanto, em nossa história presente, a experiência da individualidade infantil sofre uma fratura; a identidade de si um desacoplamento; a unidade presumida desta configuração muita desordem; a história do saber sobre a infância uma descontinuidade; a regularidade de tal discurso um corte; a grandeza de tal experiência uma vilania: diz-se agora "o fim da infância". As práticas de infância passam a ser vistas como tendo sido degradadas e perdidas suas virtudes, de modo tal que viveríamos uma outra economia em que a criança - antes constituída como um sujeito distinto com uma identidade específica - perdeu seus privilégios e mesmo o devido respeito: leis, manifestos, estatutos, regras, associações, conferências mundiais, pactos internacionais objetivam defendê-la desse fim, perda, falta, negação, espoliação, roubo, ultraje. Colocar a infância em discurso, incitar a produção de saberes sobre ela, regular relações de poder e práticas institucionais em seu nome, construir ideais religiosos e laicos de vida e de sociedades futuras, produzir mitos infantis: tudo isto entra em colisão com a nova faceta do dispositivo de infantilidade - a perda da infância - , de onde proviria a figura de um novo mesmo do sujeito adulto, próprio das sociedades contemporâneas. Começam a funcionar outros enunciados e a operar outras práticas sociais e subjetivas, entrecruzados com os anteriores, explicitamente hierarquizados, dispostos sob a forma de oposições binárias, todos articulados em torno de um novo feixe de relações de poder. Entre o fim-de-infância e o poder existiria uma relação de dominação tal, que uma transformação radical de nossas sociedades implicaria que fosse modificada também esta re-

27

lação: onde a infância não mais estivesse ameaçada pela modelagem adulta, exploração, violência, assassinatos, abusos sexuais, trabalho precoce, prostituição, morte prematura, patologias deixadas de herança às adultas e aos adultos desajustadas/os em quem as crianças, expropriadas de infância, inevitavelmente se transformam. A idéia de uma infância que vem perdendo-se, que vem sendo roubada, negada, vitimada, deformada pela volúpia narcísica dos/as adultos/as inquietos/as em fazer deste outro um Si-Mesmo/a - onde as crianças não conseguem mais ser crianças porque são cada vez mais pensadas e tratadas como se fossem adultos/as -, tornou-se objeto de cuidados e de inquietação, elemento para reflexão e debates, questão e problema social de ordem moral, tratados com pânico e urgência, e também matéria de estilização. As sociedades ditas pós-industriais, entre suas violências, estariam cometendo mais esta: a de retirar da infância a possibilidade de ser infantil; e nossas lutas emancipatórias deveriam voltar-se, com prioridade, no mínimo absoluta, contra essa modalidade de perversão em direção à libertação da infância, ao direito de ser criança, ao direito de ter preservados seus direitos infantis. Nos anos 90, com um sentido inteiramente novo e numa cultura diferente, as formas de exclusão social da criança - acrescidas pela persistente demanda moderna de reintegração espiritual da infância - subsistem. Para esse sentido despedaçado da infância, as regularidades enunciativas das práticas culturais indicam como remédios sociais e morais: a diminuição ou supressão da pobreza e da miséria econômicas; famílias emocional e moralmente melhor estruturadas; respeito aos direitos e atendimento às necessidades da infância; mais saberes especializados, que resultariam em maior sensibilidade por sua condição infantil; mais

2 8

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

efetiva escolarização, funcionando como salvaguarda para a perda de infância. Nessas práticas, o fim da infância aparece sempre ligado à privação da educação escolar, por acreditarem que, se a criança para ali fosse e permanecesse, este fim seria adiado, abreviado, mesmo suprimido, e ela poderia continuar a ser criança e a viver o e no Mundo Infantil. É neste último ponto que situo a analítica do que denomino "dispositivo de infantilidade", para a qual o busílis, o nó cego, o xis, a equação pertinente, com uma enorme e aterradora incógnita, pode organizar-se do seguinte modo: mal-doença social/cultural = fim-da-infância, remédio moral/institucional/político = mais e melhor escolarização, cujo efeito continuaria sendo = a infância-sem-fim. Derivada do estranhamento causado por essa atual ruptura no dispositivo de infantilidade, tal equação enreda-se no estabelecimento das seguintes interrogações: como e por que pode ser enunciado o fim-da-infância, justo numa época em que as práticas políticas encontram-se abundantemente empenhadas na produção e na defesa de uma infância sem fim? Nas práticas discursivas e não-discursivas de nosso presente, que política da infância e qual identidade de infantil são enunciadas, que justificam que a escolarização das crianças se constitua como uma salvaguarda contra o fim-deinfância? Em que medida e com que forças o discurso da educação faz funcionar e mantém o dispositivo de infantilidade, contribuindo para assim fixar o ponto imaginário da "infância" e a identidade ideal de "criança", instaurados há quase quatro séculos por este mesmo dispositivo? Em relação à infantilidade formulo três dúvidas: 1) a produção do infantil, como um "outro" do sujeito ocidental, seria mesmo uma evidência, na assim chamada "história da infância"? 2) a mecânica do poder disciplinar seria da ordem

29

de produção de um outro-criança, ou foi desde sempre de um "mesmo" que tratou? 3) o discurso crítico que se dirige contra o fim-da-infância seria uma via de barrar este fim, ou faria parte da mesma rede histórica daquilo que denuncia? Em outras palavras: existiria uma ruptura histórica entre a "Idade da Infância", a análise crítica do "Fim da Infância", e os anseios e práticas culturais em prol de uma "Infância Sem Fim"? Ou todos estes mecanismos integram as grandes e descontínuas linhas históricas que tecem e enodam os poderes, saberes e verdades do dispositivo de infantilidade? Essas dúvidas objetivam muito menos mostrar que o infantil não está desregrado - que o fim da infância é falso, que nada está ocorrendo que mereça nossa atenção, que as crianças continuam iguais ao que sempre foram - do que recolocar tal identidade numa nova economia de poder-saber-verdade no seio das sociedades contemporâneas. Por que se continua a falar da infância e da criança e o que delas é dito? Quais os efeitos de poder induzidos por essa abundância discursiva? Quais as relações entre esses discursos, os efeitos desse poder e as práticas educacionais nos quais se investem? Que saberes aí se formam? Qual o sentido do dispositivo de infantilidade em conexão com o fim-da-infância, em termos de suas relações com a verdade do sujeito ocidental, a qual parece objetivar uma infância-sem-fim, matriz da tecnologia política do poder de infantilidade? Trata-se de determinar, em seu funcionamento e em suas formas de ser, os jogos estratégicos de verdade - tanto os que adotam a configuração de uma ciência, de uma religião, de uma teoria, quanto os que podem ser encontrados em instituições ou em práticas de controle — que sustentam, nos tempos presentes, o discurso sobre o infantil, por levar em consideração o fato discursivo da infância e sua colocação em discurso: o fato de se falar da infância, quem

3 D

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

fala, o que se diz, as instituições que estão autorizadas a fazê-lo, que incitam este discurso, o armazenam e o difundem, excitando aquilo que flui em tal discurso para positivar a verdade - ontológica, deontológica, ascética, teleológica, escato-teológica - do ser adulto. Não refiro a história da infantilidade à instância da infância; mas mostro como "a infância" se encontra na história da infantilidade - esta condição histórica muito real -, como um efeito de superfície, uma centelha, um resplendor, um clarão, um fulgor, uma cintilação; como uma faísca que brota do jogo, do choque, do enfrentamento, da luta, do combate, do produto da confluência, do compromisso, do lance de dados, do acaso de duas rupturas: a-vida-a-morte e mais-valia de uma infância sem fim. O ponto importante a ressaltar será aquele que mostra a incessante vontade de infantil do dispositivo de infantilidade, seus mecanismos de saber, suas relações de poder, sua arte de governar a infância e as crianças & Cia., como uma vontade de verdade-infantil sobre o Si-Mesma/o da/ o adult a / o . Vontade que leva este Si-mesma/o a fabricar e a se servir do poder-saber do fim-de-infância e da infância-semfim, como duas horas de um mesmo dia - seu meio-dia e sua meia-noite - , que o implicam nas práticas de liberdade de um certo cuidado de si, enquanto uma das formas preferidas de sua subjetivação como indivíduo moral, e também em determinados processos de liberação em suas relações com os outros. Em que medida, por quais saberes e técnicas de poder, em que direção subjetiva, afinal, as práticas de nossa história presente (des)constroem o Infantil? Na direção do Mesmo? do Outro? como um Outro-Eu? um Outro-Desde-Nós-Mesmos/as? um Outro-Na-Nossa-Medida? um Outro-Como-Outro? Na direção inusitada, ainda indecidível, de uma prática reflexiva da liberdade?

ERA UMA VEZ... QUER QUE CONTE OUTRA VEZ?

O infantil que fomos e que alegamos conhecer tão bem começou a viver e como - se fosse uma lei vital-mortal tudo o que vive também morre, este estudo é, ao mesmo tempo, uma maneira de indicar alguns pontos significativos da sua história e também de esboçar certos problemas teóricos acerca das formas de conceber seu nascimento, de fazêlo entrar em um regime de mais-valia e de produzir o desaparecimento de tal condição infantil, por meio do dispositivo de infantilidade. Dispositivo que, disseminado por toda a sociedade e em nichos institucionais, talvez ainda resista e persista na fabricação de uma infância sem fim. Meu problema é saber como se pôde fazer a questão do infantil ser tão problemática, que podia e devia ser pensada e falada, e mesmo funcionar como um discurso com função e estatuto de verdade (cf. Foucault, 1991j; 1995a), até se tornar uma "experiência fundamental" - ao lado das experiências da criminalidade, da doença, da loucura, da sexualidade - dos sujeitos da sociedade ocidental moderna (cf. Foucault, 1990b; 1991c, g). Experiência que correlaciona, em nossa cultura, campos de saber, tipos de normatividade e formas de subjetividade e que, por isso, nos leva a pensar a nós próprios/as e aos/as outros/as como indivíduos que,

3 2

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

irrefutavelmente, são, serão ou foram infantis de uma determinada maneira - mesmo que da infância seja dito que está em vias de extinção (cf. Aviram, 1992; Bellingham, 1988; Fuller, 1979; Gélis, 1995; Ghiraldelli Jr., 1994, 1995; Hoyles, 1979; Pollock, 1983; Stone, 1974; Wilson, 1980). Não estou interessada e - devido a esse desinteresse nem vou perguntar sobre a ontologia tornada natural desse sujeito-criança, quem foi, como é, muito menos o que será, nem qual a identidade essencial desta parcela da sociedade ocidental a que chamamos "infantil". Mas, por que é que a infância prossegue sendo conceptualizada e falada como um estágio, uma etapa, uma condição que, à primeira vista, deve ser reprimida e superada para que possamos ir em direção a outros estágios, etapas, condições, tais como a puberdade, a adolescência, a adultez ou a velhice - os quais nos acostumamos a nomear por oposição àquela condição de infantil. Quero saber de ontologias, sim, mas, ao modo de Foucault (1995b), da ontologia histórica de nós mesmas/ os, em relação à verdade que nos constituiu como sujeitos infantis de conhecimento; da ontologia histórica de nós mesmos/as, implicada nas relações de poder que nos constituem como sujeitos infantis atuando sobre os demais; da ontologia histórica de nós mesmas/os, na relação ética, por meio da qual nos constituímos como sujeitos infantis de ação moral. Para isso, tomarei apenas uma das práticas organizadoras de nossa cultura, no caso a do dispositivo que infantiliza. A partir dela, produzirei uma análise histórica da infantilidade, tal como esta foi colocada em termos de verdade, no interior do discurso da Modernidade, em que o infantil devia e deve dizer alguma coisa acerca da verdade de quem é a criança que educamos, o sujeito adulto que foi criança, ou os modos de operar da instituição escolar que educou e educa essa

33

criança. Passarei em revista textos diversos e lhes perguntarei a respeito da vontade de saber e de poder que os conduz e a prática estratégica que os sustenta; usando mais ou menos - sempre é do jeito que cada uma/um pode - a perspectiva geral da teorização social pós-estruturalista, com forte atenção para a "caixa de ferramentas" (Foucault, 1990e, p.71; 1991a, p.88; s.d.a, p . l l ) deixada pela produção de Michel Foucault. Analisarei as relações entre a experiência fundamental da infância, os saberes que a constituíram e como o poder disciplinar vem exercendo-se sobre essa experiência, de maneira que tais conhecimentos e poder nos converteram nas subjetividades infantis que somos. O que farei será parte da história de nosso presente, por partir da questão do fim da infância, nos termos em que se coloca atualmente; e, desde esse diagnóstico, poder realizar uma analítica do poder infantilizador, que tão eficazmente produziu a vida do infantil e que, parece, vem auxiliando naquilo que se clama como sendo a sua morte. Se a infância se constituiu para nossa sociedade ocidental como um domínio a conhecer, quero saber quais são as relações de poder que a instituíram como objeto possível, e se, entre outros, o dispositivo de infantilidade pôde tomála por foco, como se tornou possível investir sobre ela através de técnicas de saber e de procedimentos discursivos? Como foi que a subjetividade infantil e sua identidade social constituíram-se como uma problemática para a sociedade ocidental? Como foram produzidas, enquanto questão, pelas práticas discursivas e não-discursivas da Pedagogia e da Escola, e entraram no vértice de suas relações de dominação? Por que a infância foi constituída como uma condição humana, em que se pode aí encontrar verdades subjetivas?

3 4

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Realizarei as operações necessárias para dar conta dessas perguntas assim: não contarei uma história das idéias, das ideologias, das representações, ou dos costumes, nem mesmo dos comportamentos, ou ao modo da história social da infância e sim, como Foucault, por seu trabalho teórico, mostrou o jeito de fazer, articularei uma história dos modos em que o infantil foi sendo problematizado e refletido e pensado pelo discursos culturais, em relação a uma verdade do sujeito ocidental moderno e a uma certa arte de viver e de cuidar de si. De onde tirarei essa história das relações de podersaber e das formas de subjetivação do modo moderno de ser infantil? Ela não está em nenhum lugar, à espera de que eu vá buscá-la (cf. Corazza, 1996b); ao contrário, ela será moldada, cortada, alinhavada e costurada com os utensílios teóricos de que disponho. De posse deles, contarei a história das duas descontinuidades que consegui isolar da história da infantilidade, por querer saber acerca das vontades de poder e de verdade expressas n'a-vida-a-morte e na mais-valia de uma infância sem fim. O que farei para contar outra vez o "era-uma-vez" narrado pela história da infância? Um trabalho de investigação pós-crítica, para enunciar e dar uma visão do que o dispositivo de infantilidade vem fazendo com essa sua invenção da infância e das crianças, em nome de seu caráter atribuído de serem infantis dependentes, adultos, sexuados e educados, até chegar a desenhar cinco figuras de uma ética da infantilidade.

ESPECTROS DE INFANTIL

Como toda história "de horror" que se preze tem seus fantasmas, a nossa é obsidiada por alguns espectros, que a fazem meditar sobre a vida e a morte das verdades infantis: isto é, sobre as questões de democracia e de emancipação, do discurso universal sobre os direitos humanos, da nova ordem internacional, dos juros do mercado mundial, das dívidas interna e externa, do futuro da infância, de nós próprias/os, e de tudo o mais que esse conceito "infantil" metonimiza. O conjunto fantasmático da infantilidade desloca-se como o movimento dessa história, liberta-nos de quem faz a lei, e nos deixa entregues à voz e às aparições dos espectros, levando-nos a perguntar: como essas figuras podem retornar e apresentar-se de novo? Como podem valer para todas as vezes que alguém diz "infantil"? Durante a leitura, não se deve lembrar de tal conjunto com uma devoção passadista, nem como uma simples e imóvel repetição de algo que vai tão mal no mundo de hoje; apenas tomá-lo no que é: um conjunto de transformações do qual somos todas e todos, quer queiramos ou não, saibamos ou não, todos os homens, todas as mulheres, sobre a terra do Ocidente inteiro, são hoje, numa certa medida, herdeiras e herdeiros. Fantasmas que, em seu tráfico de influências, perturbam as mutações tecno-científico-econômico-midiáticas, as filosofias da técnica e o sistema onto-teo-teleológico da infância.

3 6

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Para que essa lembrança? Para proceder de maneira hipercrítica, ou seja: criticar interminavelmente, utilizando um método pronto à sua autocrítica; exercitar a postura problematizadora; produzir acontecimentos; convocar a novas formas de ação, de prática, de organização; etc.; sem as afirmações emancipatórias e messiânicas constituintes de uma determinada experiência da promessa, tal como o padre ascético de Nietzsche enunciaria acerca da salvação do infantil. Ao contrário, com Derrida (1994), lembrar desse conjunto fantasmático da infantilidade, nossa herança, para produzir um lugar e uma experiência da espectralidade, em que o espectro de infantil torne-se alguma coisa difícil de ser nomeada: nem alma nem corpo e uma e outra coisa. Figura epistêmica positiva: grade de compreensão de si mesmo: o primitivo, arcaico, originário: a criança como "o Pai" e "o Mestre" do "Homem" (sic). Figura histórica negativa: o Outro, desordem da razão, o inumano, o anormal: na Geografia do Mal, negado, abandonado, excluído, confinado, educado. Figura da ciência: objeto de poder de discursos, um saber positivado, uma subjetividade descrita, mas que não sustenta discursos sobre si mesmo. Figura social: família fracassa em manter o infantil na esfera privada: objeto de solicitude caritativa, filantrópica, de investimento estatal, do capital. Figura cotidiana: objeto de ternura, cuidados, distrações, amores. Figura do tempo: apego do humano a si, relacionamento que mantém consigo, comprometimento de si nesta relação, comportamento explicado pela hermenêutica da própria infância.

37

Figura antropológica: no mesmo plano dos negros, orientais, insensatos, insanos, alienados, loucos, desatinados, degenerados, imbecis, parvos, patetas, pobres, miseráveis, indigentes, enfermos, irracionais, doentes venéreos, velhas-infantis, velhos caducos, mulheres, negras, moças incorrigíveis, prostitutas, histéricas, invertidos, inocentes malformados e disformes, deficientes, aqueles com espírito arruinado, pais dissipadores, libertinos, irracionais, desajustados sociais. Figura moral: promessa antecipada, profecia realizada, mito moral em que o humano racional se garante de si próprio: criança feliz = mundo feliz / infância melhor = mundo melhor. Figura regressiva: ameaça patológica: ao se perceber finito - criminoso, doente, louco, anormal -, retorno ao estado de menoridade jurídica, à pequenez moral, à inferioridade subjetiva: infantilismo. Figura de juízo e definição: relacionamento de posse, obscura dependência: "Esta é uma criança". "Esta é minha criança". Suficientemente adultos/as para reconhecer a infantilidade: reconhecimento que marca, sinaliza e emblematiza a consciência da adultez, mas que não pode atestar a existência da infância sem comprometer-se nestas relações. Figura de pânico: infância roubada, inocência perdida, encantamento negado, desaparecimento, morte da infância. Do "sentimento de infância" ao "direito de infância" contemporâneo: é necessário preservar o direito de ser criança, respeitar os direitos das crianças, construir na plenitude o sujeito social de direitos infantis. A criança É IGUAL ao adulto: FIM.

HISTÓRIAS DE GOVERNO CRIANÇAS & CIA

HISTÓRIAS DE BOVERNOI CRIANÇAS E C I A .

4

1

Se este estudo estivesse situado na velha "história oficial", relatada a partir de grandes narrativas, com seus efeitos hegemônicos de verdade; ou na "história social" da vida cotidiana que acontecia nas casas e nos pátios das classes letradas; ou, quem sabe, em sua versão mais recente da "história vista de baixo", narrada a partir de pequenas, fragmentárias e obscuras referências dos que escreveram sobre a gente comum, que não pôde deixar registros deste tipo; também se estivesse posicionado na "história das mentalidades" ou na "história das idéias", com seu caráter comparativo e regressivo, que parte do que se sabe sobre os comportamentos de hoje, compara-os com os dados do passado e, a seguir, considera este novo modelo como uma segunda origem e desce novamente até o presente; ou, se tivesse por sítio a linha da "psico-história coletiva", em que a evolução psicológica é tomada como postulado para explicar as mudanças históricas nas relações humanas; mesmo se pretendesse realizar uma história dos comportamentos e das representações, ou uma história das condutas e das práticas, conforme suas formas sucessivas, sua evolução e difusão; se quisesse analisar as idéias científicas, religiosas ou filosóficas, através das quais foram representados os comportamentos, sentimentos, ou concepções: em qualquer um desses casos, a história da infância seria monótona. Monotonia implicada em todas as "histórias dos historiadores" - como Foucault as chamava -, por seu dever auto-imposto de tudo compreender e de tudo aceitar, sem fazer diferença; por invocarem a objetividade, a exatidão dos fatos, o passado inamovível; por sua grande amizade com Platão, que as fez mergulhar nas profundidades dos acontecimentos e nos obscuros interiores da consciência, garimpando suas leis subjacentes, finalidades metafísicas e boas intenções; pela constância que caracteriza sua vontade

4 2

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

de perfurar a opacidade e o segredo das coisas, buscando incessantemente as continuidades, tomadas como ponto de partida e também de chegada; por traçar as curvas lentas das evoluções, utilizando-se das teorias progressivistas que explicam a mudança histórica; por seu desassossego em interpretar as verdadeiras finalidades e as primitivas essências; pelas gêneses lineares que traçam de identidades universais a serem fixadas; por sua obsessiva pesquisa da origem, dos significados profundos escondidos, dos pontos inacessíveis da verdade histórica (cf. Dreyfus & Rabinow, 1995; Foucault, 1990d). Agora, se este estudo se ancorasse no porto que Foucault chamou de "história efetiva" ou "história do presente" e operasse a partir de uma "perspectiva genealógica" (cf. Díaz, 1993, 1995; Gordon, 1991; Machado, 1981; Morey, 1991; Veiga-Neto, 1996; Veyne, 1995; entre outros/as), tomando "a infância" como o elemento mais especulativo, mais ideal e ao mesmo tempo mais interior do dispositivo de infantilidade - tal como ancora e considera - , a história do infantil poderia ser narrada em um tom distante de toda finalidade monótona. Então, se demoraria em marcar a singularidade dos acontecimentos, por suspender a insistência do tema de que a sucessão é um absoluto; aplicar-se-ia em soltar todos os fios dos modelos lineares da palavra e da escritura, bem como do fluxo de consciência, que a paciência histórica d o s / as historiadores/as da infância ligara; multiplicaria as diferenças - levando-as muito a sério e, assim fazendo, dizendo em que consistem e diferenciando-as -, por embaralhar as linhas de comunicação, por se esforçar para tornar as passagens mais difíceis; e, acima de tudo, por aplicar-se em "problematizar": afinal, todas tarefas de uma história que se opõe à história dos comportamentos ou das representações,

HISTóRIAS DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

4

3

cujo encargo é definir as condições nas quais o ser humano problematiza o que ele é, e o mundo no qual ele vive (Foucault, 1972; 1990b, d; s.d.a). Ancorado aí, contaria uma história da verdade infantil, que não é nem nominalista nem essencialista, embora trabalhe com os usos da palavra "infantil". História que envolve dispositivos, mais precisamente, zonas de problematização: uma história da verdade infantil como história da problematização do infantil, e mesmo como sua arqueologia, através da qual o ser infantil aparece como podendo e devendo ser pensado. Trata-se de analisar justo a problematização em que o pensamento do ser infantil cruza as práticas culturais e a genealogia das práticas de si, através das quais ela se formou. Com sua vigilância reflexiva e o cuidado de pensar dentro de sua especificidade, tal história reivindica, para uma outra ocasião, a problematização de sua própria problematização: também esta poderá interrogar a si mesma, com o mesmo cuidado arqueológico e genealógico que, metodicamente, aqui prescreve. Por enquanto, vejamos como este estudo escreve a história da infantilidade, inicialmente indicando as duas coordenadas teóricas - a de "dispositivo" e a de "história do presente" - selecionadas para orientá-lo; em seguida, mostrando-as em operação, quando servirem de guia para a narração d'a-vida-a-morte e da mais-valia de uma infância sem fim. A história do presente dis-positivo? "Dispositivo" é um termo técnico que Foucault introduz nos anos 70, para trabalhar a genealogia do sujeito moderno, mostrando o desenvolvimento das técnicas de poder orientadas para os indivíduos. Um termo que, desde aí, encontra-se espalhado em sua produção, sendo designado como: "dispositivos disciplinares"; "dispositivos de saber e poder"; "dispositivo da pri-

4 4

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

são", ou "do encarceramento"; "do internamente"; "de" ou "da sexualidade"; "da loucura"; "da doença mental"; "da neurose"; "de aliança"; "da confissão"; "da escuta clínica"; "da seleção" [entre os normais e os anormais]; "de segurança"; "de verdade"; "de luta"; "de guerra"; "de batalha"; "das petições"; "da polícia"; "das lettres de cachet"; entre outras designações (cf. Deleuze, 1996; Dreyfus & Rabinow, 1995; Foucault, 1989; 1990h; 1993) . Embora Foucault não tenha explicitado suficientemente a idéia de dispositivo, os domínios - nos quais este estudo se movimenta, seja dito, de um modo "metodológico" - para os quais este termo aponta são mais ou menos visíveis: 1) diferencia-se de epistéme, por abranger práticas discursivas e não-discursivas; 2) é heterogêneo, por incluir discursos, instituições, disposições arquitetônicas, regulamentos, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, moralidade, filantropia, etc; 3) a partir destes componentes díspares, pode ser estabelecido um conjunto de relações flexíveis, reunindo-as em um único dispositivo, de modo a se poder isolar um problema específico; 4) por reunir poder e saber, o dispositivo permite a constituição de uma grade específica de análise; 5) dispositivo é, ao mesmo tempo, as práticas culturais elas mesmas, atuando como aparelhos, constituindo sujeitos e organizando-os; 6) temos um dispositivo quando se consegue isolar estratégias de relações de força que suportam tipos de saber e vice-versa; 7) o dispositivo, para o/a investigador/a, será utilizado como ferramenta de análise e não como um fim em si mesmo; 7) sendo assim, o dispositivo é uma tentativa inicial de nomear, de apontar um problema do campo social. Pode-se encontrar a mais longa elucidação que Foucault (1990h) faz de "dispositivo" na entrevista em que discute com as/os psicanalistas da International Psychoanalytical

HISTÓRIAS DE GOVERNO! CRIANÇAS E C I A .

4

5

Association (IPA) francesa, mesmo que, nela, afirme: "A respeito do dispositivo, encontro-me diante de um problema que ainda não resolvi". Nesta entrevista, Foucault afirma que, por meio deste termo, tenta demarcar: 1) "um conjunto decididamente heterogêneo", onde "o dito e o não-dito são os elementos do dispositivo", e este "é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos"; 2) "a natureza da relação que pode existir entre estes elementos heterogêneos", de modo que o discurso do dispositivo pode aparecer como "programa de uma instituição", ou como elemento "que permite justificar e mascarar uma prática que permanece muda", ou como "reinterpretação desta prática, dando-lhe acesso a um novo campo de racionalidade"; 3) Foucault diz entender o dispositivo "como um tipo de formação que, em um determinado momento histórico, teve como função principal responder a uma urgência", adquirindo, portanto, "uma função estratégica dominante"; da qual cita como exemplo o imperativo estratégico da população flutuante que, para uma economia mercantilista, era incômoda: este imperativo funcionou como "matriz de um dispositivo" que, pouco a pouco, tornou-se o dispositivo de "controle-dominação da loucura, da doença mental, da neurose". Interrogado acerca do caráter de um "certo tipo de gênese" que talvez estivesse atribuindo ao dispositivo - além da definição de sua estrutura feita de elementos heterogêneos -, Foucault concorda, dizendo que, em tal gênese, vê dois momentos essenciais, quais sejam: um primeiro, que é o da predominância de um objetivo estratégico; e, em seguida, a condição do dispositivo constituir-se enquanto tal e de continuar sendo dispositivo, por englobar um duplo processo: 1) o de "sobredeterminação funcional", em que cada efeito do dispositivo estabelece uma relação de ressonância ou de contradição com outros dispositivos, exigindo uma rearticulação

4 6

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

dos elementos heterogêneos que surgem dispersamente; 2) o processo de perpétuo "preenchimento estratégico", do qual cita, como exemplo, o dispositivo do aprisionamento, tal como analisado em Vigiar e punir, a) medidas de detenção como o instrumento mais eficaz para o fenômeno da criminalidade; b) efeito - constituição de um meio delinqüente; c) acontecimento - a prisão funcionando como isolamento deste meio delinqüente; d) a partir de 1830, a reutilização imediata deste efeito involuntário e negativo em uma nova estratégia "que de certa forma ocupou o espaço vazio ou transformou o negativo em positivo", fazendo com que o meio delinqüente fosse reutilizado com finalidades políticas e econômicas diversas: "a extração de um lucro do prazer, com a organização da prostituição", operadora do preenchimento estratégico do dispositivo de aprisionamento (ib., p.244-7). Para Deleuze (1991), no livro Foucault, "dispositivo" é sinônimo de diagrama ou de máquina abstrata que é causa dos agenciamentos concretos da escola, da oficina, do exército, da prisão, do asilo, os quais expõem e efetuam as relações de forças que constituem o poder. Já no texto Qu'est-ce qu'un dispositif?, Deleuze (1990) trata deste conceito operatório em um sentido mais amplo, referindo-o às três dimensões que constituem a produção foucaultiana saber, poder, ética - e não mais dizendo respeito apenas ao poder. Dessa perspectiva, o dispositivo forma um conjunto multilinear, composto por linhas de diferentes naturezas que não abarcam sistemas, onde cada um é homogêneo por sua conta, tal como c sistema do sujeito, do objeto, da linguagem. Conjunto que é composto por linhas que não possuem coordenadas constantes; seguem direções diferentes; suscitam outras linhas que se cruzam e se mesclam; variam e mudam de disposição; formam processos em desequilíbrio -

HISTÓRIAS DE GQVERND: CRIANÇAS E CIA.

<4 "7

linhas, em suma, que se aproximam e se afastam umas das outras. Em um dispositivo, cada linha está quebrada e submetida a variações de direção - "bifurcada, enforquilhada", diz Deleuze -, implicada pelas seguintes derivações: os objetos visíveis, as enunciações formuláveis, as forças em exercício, e os sujeitos em posição que são como vetores ou tensores, constituidores das cadeias de variáveis relacionadas entre si e que ocupam as três grandes instâncias tratadas por Foucault: saber, poder e subjetividade. Como a continuidade deste estudo descreverá, a infantilidade é operada como um dispositivo técnico-histórico, ou seja, como uma "máquina" (Deleuze, 1990, p.155), a qual: 1) faz ver, por suas curvas de visibilidade; 2) faz falar, por suas curvas de enunciação; 3) está implicada em linhas de forças de poder-saber, 4) em linhas de objetivação, que são linhas de subjetivação - que são também linhas de fuga -, as quais constituem nossos processos de individualização; 5) em linhas de ruptura, de fissura, de fratura, que são aquelas que nos permitem distinguir o que somos, o que já não somos, e o que vamos sendo enquanto "sujeitos-infantis" objeto subjetivado por esse mesmo dispositivo. Para percorrer tais curvas e desemaranhar as linhas do dispositivo de infantilidade será necessário desenhar o terreno, cartografando as linhas já existentes da história da infância - linhas que estão sedimentadas em outras referências teóricas e metodológicas, mas que, por serem móveis, como é da natureza mesma do dispositivo, permitirão que sejam desarranjadas na promoção das fissuras, fraturas, rupturas. Cartografia que, para se exercitar, estará atenta àqueles pontos mais fortes que permitam delinear a analítica do dispositivo de infantilidade, quais sejam: 1) Ao regime de luz do infantil - considerando "infância" como um dos pontos imaginários e necessários fixados pelo dispositivo de infantilidade não como uma luz geral

4 8

HISTORIADA INFÂNCIA SEM FIM

que ilumina um objeto preexistente, e sim como a luz que cai, difunde-se, quando distribui o visível e o invisível do infantil, fazendo nascer, esmaecer ou desaparecer o objeto histórico "infantil", o qual não existe sem ser por ela iluminado. 2) Ao regime de enunciação da infância - não como uma lei de significantes constitutivos do infantil, os quais, após criados, apontariam para o signo universal "infantil", e sim como componentes de um "arquivo da infância": a) constituído por linhas de enunciação do que é e do que deve ser tomado por infantil; b) por onde se distribuem as posições diferenciais de seus elementos; c) que é a lei do que pode ser dito e que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares, definindo seus modos de enunciabilidade, de funcionamento e de atualidade; d) que produz mecanismos positivadores de saberes, multiplicadores de discursos e verdades que induzem ao prazer, ou ao sofrimento, e geram poderes. 3) Às linhas de força da infantilidade - que se produzem em toda a relação de um ponto ao outro do dispositivo, passando por todos os seus lugares e penetrando as coisas e as palavras infantis: de um certo modo, invisíveis e indizíveis, estas são as linhas mais estreitamente mescladas com as outras. Por articularem poderes e saberes, as linhas de força são as que melhor diagnosticam o dispositivo de infantilidade, como disposição estratégica de formas sociais e práticas discursivas acerca do infantil, da infância, das crianças & Cia. 4) Às linhas de objetivação e subjetivação do infantil - que constituem a curva realizada dentro do dispositivo de infantilidade, quando alguém se pergunta: "Como cruzar as linhas de força, como passar ao outro lado"? Curva que ocorre quando uma força, em lugar de entrar em relação linear

HISTÓRIAS DE GOVERNO: CRIANÇA5 E CIA.

4 9

com outra força, volta-se para si mesma, afetando-se a si própria. Nesse processo de subjetivação, pode-se perguntar se estas linhas são as bordas extremas do dispositivo que, talvez, esbocem a passagem da infantilidade, dispositivo antigo, para um novo; sendo que, neste caso, podem ser estas as linhas que preparam aquelas de ruptura. 5) Às linhas de fissura, de fratura, de ruptura da infantilidade - as quais, como é próprio do dispositivo, repudiam os universais e o eterno, bem como os valores transcendentes, para apreender um novo infantil. Novo que se refere à criatividade variável dentro do dispositivo, sem preocupar-se com a originalidade de uma enunciação, porque considera unicamente sua "regularidade" (Foucault, 1972, p. 51): ou seja, seu teor de novidade, de criatividade, que marca, ao mesmo tempo, a capacidade do dispositivo de infantilidade de transformar-se e projetar-se como um dispositivo do futuro que rompe com o antigo. Este estudo considera a infantilidade como um dos dispositivos concretos da história genealógica do sujeito ocidental, tendo sido ele que suscitara, dentre tantos elementos necessários a seu funcionamento: 1) como elemento especulativo, a noção de "infância"; 2) como elemento político de poder, a identidade social do "infantil"; 3) e como elemento moral de subjetivação, a condição "infantil". Por isso, examinará o dispositivo de infantilidade - no que se refere a seus elementos de saber da infância, de poder com as crianças e de subjetivação do infantil -, atentamente, não se colocando fora dele, mesmo porque isso seria impossível, já que "pertencemos a certos dispositivos e trabalhamos neles" (Deleuze, 1991, p. 159). Tomará, portanto, a infantilidade como sendo de natureza eminentemente estratégica, o que supõe tratar-se de uma certa manipulação das relações de força, de uma inter-

5 D

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

venção racional e organizada nessas relações, seja para desenvolvê-las em determinada direção, seja para bloqueálas, estabilizá-las, utilizá-las etc. (Foucault, 1990h). Como um dispositivo que está inscrito em um jogo de poder, ligado às configurações de saber que dele nascem, mas que também o condicionam, do mesmo modo que faz suceder com as formas de subjetivação infantil. Dispositivo que, ao proceder à mise en discours do infantil, emparelha-o com uma série de técnicas, estratégias e sistemas, deste e de outros dispositivos, para corroborar a instalação e a existência de um mesmo objeto: "o infantil", formado na conjunção de vários tipos de condições, regras, condutas, relações e saberes, discursivos ou não, que nos fazem dizer a verdade da infância - nossa e a das/os outras/os. Porque diagnostica problemas de produção, de status e de efeitos da verdade infantil em nosso tempo presente, este estudo fará a genealogia das relações de força, dos desenvolvimentos estratégicos e das táticas, ao isolar as políticas do enunciado "infância", os regimes desse discurso e as economias das relações de poder com os infantis (cf. Foucault, 1990j). Estando empenhado em situar a infância no interior de uma economia geral do discurso histórico, mostrará sob que formas a infância vem sendo interrogada para que diga sua verdade, passando a constituir algo digno de ser inquirido, investigado, classificado e apropriado, tornando-se um legítimo objeto de conhecimento das Ciências Humanas e Sociais. Contará a história do que foi e é dito acerca da infância, perguntando aos textos: o que exatamente as práticas discursivas da história da infância, constituídas pelo dispositivo de infantilidade, fazem? Não determinará "a verdade" de suas teses, constituídas desde diversas posições historiográficas, mas se deterá na noção cotidiana e recente de infân-

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

cia, para dela distanciar-se, ao contornar sua evidência tão familiar. Analisará o contexto teórico e prático ao qual a infância é associada, como uma experiência historicamente singular da sociedade ocidental que gira ao redor de três eixos: 1) a formação histórica dos saberes que se referem à infância; 2) os sistemas de poder que regulam nossas relações com os infantis; c) as formas pelas quais os indivíduos podem e devem reconhecer-se como sujeitos da infantilidade. Não atentará aos esquemas suaves e continuistas de desenvolvimento que, usualmente, são admitidos na chamada "história da infância"; mas, relendo estes e outros textos, com uma ênfase genealógica, empenhar-se-á em descrever como foi possível que, em certos momentos históricos, em certas ordens de saber e sob determinadas relações de poder, ocorressem mudanças bruscas, precipitações de evolução, modificações globais. Portanto, analisará as "rupturas" (Foucault, 1972, p. 207; p. 211-2) da história da infantilidade, descrevendo a disposição sistemática de seus descontínuos, por usar a descontinuidade como "conceito operatório", diferentemente daquilo que recebe do material histórico a tratar; e também por realizar uma "prática de análise histórica" (Foucault, 1976, p. 58-9), diferentemente de qualquer sistema. Municiado por suas ferramentas analíticas, este estudo montará duas grandes linhas de rupturas que passam a ser ressignificadas e narradas, na prática histórica do dispositivo de infantilidade, como se formando no nível dos saberes acerca da infância, das relações de poder com as crianças e das formas de subjetivação do infantil, quais sejam: 1) a-vida-amorte, 2) mais-valia de uma infância sem fim. Rupturas constituídas por quatro conjuntos estratégicos e suas figuras específicas, respectivamente: 1) subordinação da identidade infantil e adultização das crianças/infantilização dos adultos

5 2

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

- com as figuras correspondentes do infantil dependente e adulto; 2) pedagogização do corpo-alma e sexualização do infantil/infantilização do sexo - com as figuras do infantil educado e sexuado. Como fará isso? Ora, fazendo uma "história do presente" (Foucault, 1990f, p. 151; 1991h, p. 198), por ter enunciado o dispositivo de infantilidade como um componente vital do poder moderno e por haver "diagnosticado" (Foucault, 1991d, p. 42) a situação atual da infância - em sua orientação inequívoca de fim-de-infância (Corazza, 1997; 1998, p. 38-191) - , localizando algumas manifestações desse ritual meticuloso de poder nas práticas culturais. A partir dessa perspectiva, poder abandonar, entre outros, ao menos dois tipos de história: o presentismo e o finalismo. Pelo presentismo, tomar do presente a significação, o sentimento, a identidade, a subjetividade, o conceito, as práticas do infantil, e encontrar, quase por definição, paralelos no passado; pelo finalismo, encontrar a origem, as verdades seminais do infantil do presente, em algum ponto distante do passado, do qual o presente é o ponto máximo do desenvolvimento sucedido, de modo que tudo tem um lugar, um sentido: "tudo está situado a partir do objetivo final que a história alcançará" (Dreyfus & Rabinow, 1 9 9 5 , p. 132). Foucault denomina de "ceticismo radical" - "mas sem agressividade" - essa sua "precaução de método", também adotada por este estudo, em relação à perspectiva de progresso, a qual se dá por princípio não tomar o ponto em que nos encontramos pelo final de um progresso que caberia aos/às historiadores/as reconstituir com precisão Por concordar com Foucault (1990i, p. 140) que colocar o problema "Por que progredimos?" é um "mau método", este trabalho não buscará uma história ordenada do passado, nem as conexões de causa-efeito entre fatos reais

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

5

3

de uma realidade acontecida com os fatos atuais; não apresentará nenhum compromisso com uma teleologia da razão, já que esta é compreendida como um produto de circunstâncias históricas; nem historicizará as idéias ou as mentalidades, já que estas não são objetos de existência contínua que possam ser acompanhados ao longo do tempo. Perguntará: - como foi mesmo que chegamos até aqui? Para responder, isolará os componentes centrais de ruptura da tecnologia política da infância e os traçará para trás, de posse da seguinte pergunta-guia: o que era a infância nos tempos mais antigos e o que se tornou hoje? Usará como lentes de aumento, para poder variar as ênfases (cf. Foucault, 1990i), os jogos das vontades e sua história das sujeições e lutas; isto é, das estratégias de dominação, das relações de força, das disposições, manobras, táticas, técnicas e funcionamentos, que constituem a longa história do dispositivo de infantilidade. Abordará os escritos dos/as historiadores/as, de modo que, a partir daí, possa descrever a história das muitas interpretações que nos têm sido impostas (cf. Foucault, 1989), pela pesquisa: 1) da procedência (Herkunft) - que não funda, mas, ao contrário, "agita o que se percebe imóvel", "fragmenta o que se pensava unido", mostrando "a heterogenei-dade do que se imaginava em conformidade consigo mesmo" (Foucault, 1990d, p. 21); 2) da emergência (Entestehung) - que faz entrar em cena as forças: "sua interrupção, o salto pelo qual elas passam dos bastidores para o teatro, cada uma com seu vigor e sua própria juventude" (ib., p. 24). Pacientemente, a escuta histórica deste estudo escutará as histórias já narradas, para opor-se ao desdobramento meta-histórico das significações ideais e das indefini^ das teleologias, se, não por acaso, com elas se deparar. Assim, o "sentido histórico" da infantilidade poderá retornar às três modalidades da história que Nietzsche reconhecia em 1874, embora tentando superar as objeções que

5 4

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

ele então lhes fazia, em nome da vida, de seu poder de afirmar e criar. Retornar a essas modalidades, pela via das metamorfoses operadas por Foucault (1990d, p.33-7), ao adotar os usos que ambos opuseram às modalidades platônicas da história, quais sejam: 1) o uso paródico e burlesco que se opõe ao tema da história-reminiscência, reconhecimento: ao infantil despedaçado de nosso presente não oferecer identidades sobressalentes, melhor individualizadas e mais verdadeiras do que a sua porque o genealogista [e também "a" genealogista, por certo] saberá o que é necessário pensar de toda "essa mascarada"; bem como a levará ao extremo, por colocar em cena "um grande carnaval do tempo", em que as máscaras infantis reaparecem sem cessar; 2) o uso dissociativo e destruidor da identidade que se opõe à história-continuidade ou tradição - não tentar encontrar as raízes da identidade infantil, mas ao contrário, obstinarse em dissipá-la; não demarcar o território único de onde vieram os infantis - essa primeira pátria, essa aurora de nossas vidas, à qual tantos prometeram que retornaríamos, enquanto outros/as nos ameaçam com o degredo porque dela não conseguimos sair -, mas fazer aparecer todas as descontinuidades que o atravessam; "tarefa antiquaria" essa, cuja função é demonstrar os sistemas heterogêneos que, sob a máscara de nosso eu infantil, nos proíbem toda outra identidade; 3) o uso sacrificial e destruidor da verdade que se opõe à história-conhecimento - pela injustiça que é própria da vontade de saber, querer saber sobre o infantil, a infância e as crianças não se aproxima de uma verdade universal; não nos dá um exato e sereno controle da natureza; ao contrário, esta vontade multiplica os riscos, faz nascer os perigos, abate as proteções ilusórias, desfaz a unidade do

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

5

5

sujeito e libera nele tudo o que se obstina em dissociá-lo e destruí-lo. Em poucas palavras, trata-se "de arriscar a destruição do sujeito de conhecimento na vontade, indefinidamente desdobrada, de saber". Desses modos, a história da infantilidade que, desde aqui, começa a ser formulada: 1. partirá "de um problema" - no caso deste estudo, o problema do infantil, das crianças e Cia.; 2. "nos termos como é formulado atualmente" - do chamado "fim" ou desaparecimento da infância, como a descontinuidade mais visível na história contemporânea do dispositivo de infantilidade; 3. e realizará "sua genealogia". Por quê? Ora, é simples, falou Foucault (1991c, p. 237): porque fazer genealogia "quer dizer que realizo a análise partindo de uma questão presente".

A-VI DA-A-M D RTE

A-vida-a-morte não exerce somente a função de um título, nem a de dar nome a uma seção; é visível que exerce também estas funções, mas, acima de tudo opera como uma posição analítica, cuja "lógica" é outra que não aquela da binaridade, do sim ou não; uma lógica, portanto, que não é a do logos filosófico ocidental. Derrida (1995a, p. 9-13) refere que Platão, no Timeu, já a designara sob o nome de khôra - lugar, local, localização, região, território - que parecia desafiar essa lógica da não-contradição dos filósofos, essa lógica da binaridade, do isso ou aquilo. Não sendo nem sensível, nem inteligível, a khôra pertence a um terceiro gênero; sobre ela não se pode nem mesmo dizer que não é nem isso, nem aquilo, ou que é ao mesmo tempo isso e aquilo; ela não nomeia nem isso, nem aquilo, nem diz isso e aquilo. O que desafia e mesmo embaraça o Timeu manifesta-se da seguinte forma: algumas vezes a khôra não parece ser isso nem aquilo, outras simultaneamente isso e aquilo. Essa alternativa entre a lógica da exclusão e a da participação talvez deva-se a uma aparência provisória e às coerções da retórica, ou até mesmo a uma inaptidão em nomear. O discurso sobre a khôra não procede do logos natural ou legítimo, mas muito mais de um raciocínio híbrido, bastardo - logismô nothô -, mestiço. Ele se anuncia como em

HISTÓRIAS DE GOVERNO: CRIANÇAS E CIA.

5*7

um sonho, o que pode tanto privá-lo de lucidez quanto conferir-lhe um poder de adivinhação. Sua oscilação não se dá entre dois pólos, mas é entre dois gêneros que a khôra oscila: a dupla exclusão - nem/nem -, e a participação - ao mesmo tempo ... e, isto e aquilo. Também para Derrida (1995c, p. 7-11), quando se pretende falar segundo o que chamam de "apófase" ou, em outras palavras, segundo a voz imparcial, a via da teologia dita ou autodenominada negativa, essa voz se reduz a si mesma: ela diz uma coisa e seu contrário, ela diz - Deus que é sem ser ou Deus que (está) além do ser. Sim e não. Então a frase apofática não será somente equívoca, mas dotada de um equívoco essencial, significante, apenas decisivo em sua própria indecidibilidade. Tanto a /chora quanto a apófase são exemplos de indecidíveis - indécidables -, isto é, elementos ambivalentes, sem natureza própria, que não se deixam compreender nas oposições binárias; elementos irredutíveis a qualquer forma de operação lógica ou dialética. Ao contrário deles, o discurso da filosofia ocidental - platonismo e antiplatonismo repousa sobre o princípio da discernibilidade, ou seja, a possibilidade de distinguir o falso e o verdadeiro, o isso e o aquilo, o que uma coisa é ou seu contrário. Este discurso ontológico tem no "ente presente" a forma matricial da substância, da realidade, que distingue da aparência, da imagem, do fenômeno. O recurso à verdade daquilo que é sempre permite sempre decidir sobre ela (cf. Derrida, 1971, p. 260-284; Santiago, 1976, p. 49). A ausência de significado transcendental, postulada a partir de uma determinada aquisição teórica e de uma operação de "desconstrução" (cf. Culler, 1985; Derrida, 1971, p. 229-252; 1973; 1993) assinala que o ente presente, o referente, não se dá como percepção ou intuição. Mesmo

5 B

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

com essa ausência permanece a referência e inscreve-se aí uma marca - pura e impura - , sem pólos decidíveis, sem termos independentes e irreversíveis, ficção sem imaginário, mímica sem imitação, aparência sem realidade dissimulada, traços que nenhum presente teria precedido ou sucedido. Essa marca produz um milieu - "essência" anaidética do pharmakon, espaço onde se constitui o suplemento - , enquanto meio, como elemento que contém os dois termos - pura e impura -, ao mesmo tempo. Constituindo um "lugar" sem lugar marcado, atópico, o milieu mantém-se entre dois termos, funcionando como a barra - lugar entre - que se situa no limite dos diferenciandos. A esta marca, Derrida chama "indecidível", isto é, unidades de simulacro, falsas propriedades verbais, nominais ou semânticas que não se deixam compreender na oposição filosófica - binaria; e que, no entanto, habitam-na, resistem-lhe e a desorganizam, sem jamais constituir um terceiro termo, sem jamais dar lugar a uma solução na forma da dialética especulativa (cf. Santiago, 1976, p. 49-50). Exemplos de indecidíveis: o pharmacon não é nem o remédio, nem o veneno; o suplemento não é nem um mais nem um menos; o hímen não é nem a confusão nem a distinção; o espaçamento não é nem o espaço nem o tempo; o encetamento não é nem a integridade de um começo nem a simples secundariedade (cf. Derrida, 1973; 1991). Quanto a saber, em Espectros de Marx (Derrida, 1994a), se Marx e seus herdeiros ajudaram-nos a pensar e a tratar o fenômeno do poder tecno-midiático, a resposta, diz Derrida, é, ao mesmo tempo, sim e não, sim a tal respeito, não a tal outro. O que é preciso é assumir a herança do marxismo, assumir a mais "viva", ou seja, paradoxalmente, o que nunca se afastou da questão da vida, do espírito ou do espectral, "de avida-a-morte para além da oposição entre a vida e a morte".

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

5

g

Posição, portanto, para além das oposições, que também faz Derrida (1971) religar, na desconstrução do texto de Freud, Mais além do princípio do prazer, a-vida-a-morte por meio da análise dos valores de nexum, de desmos, de liga, de estreitura, utilizando esse "mais além" - em francês, pas au-delà - para empregar pas como "passo", e fazê-lo oscilar, muitas vezes, em seu seminário La carte postale (Derrida, 1986), enquanto advérbio negativo: "passo-demais". Assim como "o segredo", de Paixões (Derrida, 1995b), que não responde, que não se deixa encobrir pela relação com o outro, pelo estar-com, ou por nenhuma forma de "laço social". Embora o segredo seja aquele que torna possível a consciência, o sujeito, o Dasein em seu poder ser autêntico, ele é o que não responde. Nenhuma responsiveness, diz Derrida. E indaga: "Será isso chamado a morte? A morte dada? A morte recebida? Não vejo razão alguma para não chamar isso a vida, a existência, o rastro" (Derrida, 1973, p. 22) E não o contrário. Para esse "título" que chega com o nome de A-vida-amorte, o elemento indecidível, que não pode ser apreendido pelas oposições binárias, não é nem a morte/nem a vida, nem vital/nem mortal, sendo ao mesmo tempo ou bem a vida, ou bem a morte, ou bem vital, ou bem mortal: o indecidível do dispositivo de infantilidade que produziu avida-a-morte dos infantis, porque se constituiu na cadeia eternamente aberta da differánce. Cadeia cujos elos foram produzidos, em sua Herkunft e Entestehung, pelo dispositivo da Roda.

ÊD

NA

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

RDDA

Eis onde e como se pode situar a khôra do indecidível "a-vida-a-morte" infantil das sociedades ocidentais: no vão estreito e ligeiramente oval de um muro de pedra, ocupado por um mecanismo giratório. A "Roda" não passou de um restrito episódio: alguns séculos somente e localizado em poucos países - Itália, França, Alemanha, Portugal, Brasil. Nem por isso é menos importante na história dos mecanismos de poder-saber do dispositivo de infantilidade, enquanto sua dobradiça por excelência, seu dispositivo de eixo giratório. Antes dela, as crianças, as quais não se matavam diretamente, mas que, por motivos os mais diversos, não se criavam, eram deixadas em qualquer lugar: no lixo, em vias públicas, na entrada de casas aristocráticas, nos pátios, terrenos baldios, nos átrios de mosteiros e conventos, em portais de igrejas, hospícios, hospitais gerais, nas fímbrias de bosques, matos, florestas - pela mãe, pai, por ambos os progenitores, parentes, vizinhos, amigos, inimigos -, logo após o nascimento, ou nos primeiros dias, meses, anos de vida. Essa "exposição" de crianças consistia em pô-las à vista, apresentá-las, mostrá-las, exibi-las publicamente; bem como "as expostas" eram aquelas crianças que estavam à vista, oferecidas aos outros, ofertadas à-vida-à-morte. A criança implicada por essa prática foi chamada de "enjeitada", "achada", "abandonada", sendo que "criança exposta" consistiu o termo genérico e corrente com o qual foi historicamente designada. Como se verá, tais expressões, que poderiam parecer simplesmente "terminológicas", tiveram implicações políticas, educacionais e subjetivas importantes.

H I S T ó R I A S DE G D V E R N D : CRIANçAS E CIA.

Q 1

A exposta, geralmente, era deixada vestida, em caixas, cestas, pequenos berços; acompanhavam-na uma sacola ou trouxa com um humilde ou luxuoso enxoval, um bilhete ou carta contendo informações, tais como o primeiro nome, se fora ou não batizada, se existia ou não a intenção futura de ir buscá-la, os motivos pelos quais estava sendo deixada. Também era freqüente encontrar junto a ela objetos para sua posterior identificação, como medalhas, moedas, colares, figas; ou nada disso, sendo deixado apenas um corpo: vivo, semimorto, morto. Os limites entre a prática de expor crianças e as diversas formas que o infanticídio assumiu na história ocidental são tênues; uma e outras produziram, no mais das vezes, a morte das crianças e provocaram uma dispersão de efeitos, muitos dos quais nos alcançaram, tais como os registros escritos: essas objetivações que hoje nos permitem pensá-las e delas falar, colocando em jogo linguagens sociais organizadas e valoradas em termos de verdade e poder. A exposição diferenciou-se do infanticídio por constituir um sistema de forças que articulava a exposta, os/as expositores/as, e alguém/uma instituição que recolhesse, ou não, aquela que fora exposta. Por relacionar essas forças, tal sistema requisitava, como seu correlato imediato e mais operante, a terceira delas: a efetivação das práticas de recolhimento, acionando e criando instituições, procedimentos e políticas de recolha que "salvassem" as crianças expostas, para evitar que ficassem abandonadas ou que morressem. No sistema infanticida, operavam apenas a mão que matava e a criança morta; na exposição, alérn da mão que expunha e a exposta, funcionaram sempre as linhas de força das práticas culturais que atribuíram significações diversas, às vezes antagônicas entre si, e operaram atos diferentes "de salvação" do corpo infantil.

6 2

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Desde a Antigüidade, a exposição articulou a emergência de mecanismos individuais e coletivos - ora de caráter religioso, piedoso, caritativo e missionário, ora filantrópico, assistencial e educacional, ou então mesclados -, os quais provocaram descontinuidades nas práticas de significação culturais. Por exemplo, no final do século XIX e início do XX, pode-se identificar o deslocamento entre as formas de assistência regidas pela filantropia caritativa e a assistência regida pelos princípios médico-higienistas, fundados na fé, na ciência e no humanitarismo (cf. Kuhlmann Jr., 1997, p.6-9). A partir do Renascimento, o "problema" das expostas foi sendo tematizado cada vez com maior ênfase e tratado de formas as mais diversas, até que, na Modernidade, constituiu-se como uma séria questão de governo para os Estados: questão moral e biológica da raça, da espécie, do corpo social, e do corpo de cada indivíduo, principalmente das mulheres e das crianças; questão ligada ao aumento e à necessidade de regular a população, de distribuir e agrupar os indivíduos nas cidades e vilas, de administrar os recursos na gestão econômica das riquezas. A exposição moderna positivou um feixe múltiplo de problematizações, umas mais gerais, outras mais específicas: problemas da natalidade e da mortalidade infantis; questões acerca da família conjugai e de suas práticas sexuais; problemáticas da mulher, de seu corpo biológico-moral e de sua sexualidade, em correlação com a maternidade, o aleitamento, o amor filial, os cuidados das crianças; configurações e funcionamentos das sociedades e dos grupos em relação com as morais correspondentes; a categoria social de "criança exposta" e os binarismos daí derivados entre identidades de filhos "bastardos" e "naturais", de "legítimos" e "ilegítimos"; formas diferenciadas de governo e de educação das crianças; saberes acerca do infantil "padrão" e dos in-

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

g

3

fantis "anômalos" etc. A literatura tratou de "motivações" que induziam à prática de expor, bem como dos processos de inserção social dessas crianças (cf. Machado de Assis, 1962; Guimarães, s.d.); e, por exemplo, durante o século XIX, no Brasil, o discurso médico-higienista elegeu a assistência às crianças expostas como um de seus alvos prioritários, tornando-a um suporte instrumental para intervir nas condutas da família patriarcal assentada em uma sociedade escravocrata (cf. Costa, 1989). Diz-se que, se o sistema geral da exposição foi constituindo-se de modo descontínuo, duas de suas linhas se mantiveram invariáveis: a exposição das crianças, a partir da Antigüidade até os séculos XII e XIII, teve por característica uma relativa desordem espacial e temporal, e um grau também relativo de incerteza acerca dos destinos das expostas. O que este esquema de poder produzia eram modelos mais ou menos caóticos de exclusão-rejeição e de acolhimentosalvação, já que expor uma criança sempre foi, de certa forma, entregá-la aos desígnios de Deus ou do Destino. Porém, as práticas mais antigas de exposição consistiram em deixar as expostas em lugares ermos ou em lugares de acesso público, em que tivessem nenhuma, menor ou maior possibilidade de serem encontradas, por tais ou quais pessoas ou grupos, que apresentavam de antemão mais ou menos chances de criá-las. Lidava-se, é certo, com a provável proteção dos deuses e com a expectativa de que a caridade alheia induzisse a seu recolhimento, mas, de algum modo, podia-se vislumbrar aí uma certa ordem, expressa em um cálculo de perdas e ganhos, no qual os indicadores eram a vida ou a morte das expostas. Tanto Sargão, Moisés e Édipo, quanto Rômulo e Remo, entre outros conhecidos expostos por fatores ditos político-religiosos, tiveram suas exposições cercadas de algumas precauções para que sobre-

6 4

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

vivessem até serem encontrados, das quais é exemplo o fato de que os cinco foram colocados a navegar nos rios em cestos devidamente calafetados (cf. Bíblia, 1982, p. 83). Em função desse cálculo, integrante de uma desordem ordenada, é que se encontra, inserida nas práticas escravistas do Mediterrâneo, na Antigüidade, a organização de elementos que já anunciava um "sistema", materializado no comércio especializado em crianças, as quais eram, em sua maioria, meninas destinadas à prostituição. Muitas eram recolhidas pelos traficantes nas ruas onde seus pais as expunham desde o nascimento, sendo que essa exposição de filhas neonatas era considerada uma necessidade para as famílias de poucos rendimentos: "Com efeito, para os pobres, uma filha representa uma boca inútil a alimentar e é assim votada à exposição antes mesmo de ter nascido". Essas expostas eram colocadas perto das latas de lixo, nos cantos das ruas, embora houvesse o cuidado de pô-las dentro de vasos ou em marmitas, para protegê-las dos cães errantes. As mais antigas leis de Roma, as chamadas "Leis de Rômulo", impuseram aos pais o dever de criar "todos os filhos homens e a primeira filha mulher a nascer", o que foi feito por muitos romanos, até avançado o Período Imperial. Na cidade, existiam lugares especiais, como o sopé da Coluna Lactária, destinados à exposição de crianças indesejadas, em geral meninas, mas às vezes meninos ilegítimos, deformados ou cujo nascimento fora acompanhado por maus presságios: umas poucas eram recolhidas por estranhos e adotadas ou criadas como escravas, mas a maioria era deixada à morte em suas cestas, pela exposição ao tempo ou à fome (cf. Oliveira, 1990, p. 51-52; Mello e Souza, 1996, p. 31). Integrava essa ordem, relativamente calculada, um anátema geral sobre a exposição das filhas mulheres, do qual são exemplos: 1) Um operário egípcio escreveu as seguintes instruções a sua mulher que estava grávida: "Quando deres

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

S

5

à luz, se for um menino, guarda-o; se for uma menina, deves expô-la". 2) Em documento de um autor cômico do século III lia-se: "Um filho é criado por qualquer pessoa, mesmo que seja pobre; uma filha é sempre exposta, ainda que os pais sejam ricos". 3) Em uma comédia de Terêncio Varrão, um homem repreendia sua mulher que entregara a filha para uma velha expor: "Que estupidez! Tua filha, que deste a esta velha, é agora uma prostituta, ou então foi vendida em leilão" (Salles, 1983, p.46-47). Dela, também fez parte uma ênfase ao caráter menos cruel do infanticídio em relação à prática de expor recém-nascidos, tal como a indicada por Tertuliano, em 198 d . C , ao censurar as condutas dos pagãos: Todavia, vocês são infanticidas (...); vocês que matam seus filhos recém-nascidos pela exposição (...). O fato de que o assassinato que cometem não seja ritual, nem realizado pela espada, não constitui uma diferença. Ao contrário, o ato é ainda mais cruel, por causa do frio, da fome ou dos animais, se vocês expuserem a criança; ou por causa da morte mais lenta nas águas, se vocês a afogarem (Oliveira, 1990, p. 42). Aristóteles, em Política, ao discutir o tamanho das propriedades e sua importância na segurança do Estado, considerou a necessidade de limitar o número de filhos para evitar o empobrecimento dos cidadãos, estabelecendo a necessidade do infanticídio, desde que a exposição não fosse permitida pelos costumes da polis: Quanto a rejeitar ou criar os recém-nascidos, terá de haver uma lei segundo a qual nenhuma criança disforme será criada; com vistas a evitar o excesso de crianças, se os costumes das cidades impedem o abandono de recém-nascidos deve haver um dispositivo legal limitando a procriação; se alguém tiver um filho contrariamente a tal dispositivo, deveria ser provocado o aborto

Ê 6

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

antes que comecem as sensações e a vida (a legalidade ou a ilegalidade do aborto será definida pelo critério de haver ou não sensação e vida) (Aristóteles, 1988, p. 149). Após a chamada desagregação do Mundo Antigo, a exposição de crianças continuou a ser praticada nas sociedades ocidentais. Em todo mundo cristão, a Igreja Católica condenou-a, juntamente com o aborto e o infanticídio, e foram algumas ordens religiosas as primeiras que providenciaram a institucionalização do recolhimento das crianças expostas. Também as monarquias adotaram medidas para regulamentar e incrementar a assistência a essas crianças, conjugando-se com o clero e as mulheres da alta nobreza, infantas e rainhas. Durante os séculos VI e VII, em diversas cidades da França, existiu junto à porta das maiores igrejas uma "concha de mármore" onde as recém-nascidas eram expostas, recolhidas e criadas pelas cortes e pelos eclesiásticos. Em 1273, a rainha portuguesa D. Beatriz, esposa de D. Afonso II de Castela - "sensibilizada com a situação dos bebês abandonados, que muitas vezes morriam ao relento, sem assistência e sem batismo" -, fundou um hospital para os meninos órfãos de Lisboa. Erguido na rua da Porta de São Vicente de Mouraria, o Ecclesia Innocentus Hospitalis Puerorum "destinava-se a recolher os expostos e velar pelo seu bem-estar físico e moral, preparando-os para ganhar seu próprio sustento na juventude" (Marcilio, 1997, p.56). Albergues, asilos, hospitais, hospícios, casas de recolhimento distribuíram-se e se organizaram para o recolhimento das crianças expostas - em Milão (787), Siena (832), Pádua (1000), Montpellier (1070), Eibeck (1200), Florença (1317), Santarém (1321), Nuremberg (1331), Paris (1362), Lisboa (1492) -, na mesma proporção em que se disseminava a formulação da problemática da exposição como uma das questões de governo, enquanto correlacionada com as

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

6

7

práticas sexuais extraconjugais e a gestão moral das condutas individuais e coletivas das famílias, das mulheres e de suas crianças. A assistência aos expostos, na França dos séculos XV e XVI, distinguia os recém-nascidos provenientes "do pecado" daqueles provenientes "da miséria", no intuito de privilegiar o recolhimento dos segundos. Por serem "os bens dos hospitais" considerados como "bens dos pobres", não se poderia receber os expostos indiscriminadamente, além de tal acolhimento servir de estímulo ao pecado, como argumentou Carlos VII, em 1445: Se recebêssemos sem distinção as crianças ilegítimas, seriam em grande quantidade, porque muita gente as abandonaria e continuaria pecando, pois veria que os frutos do pecado seriam alimentados melhor e que os pais não teriam os encargos nem os cuidados. Tais hospitais não conseguiriam oferecer e suportar isso por muito tempo. (Flandrin, 1988, p. 199-200) Alguns bispos franceses reservavam para si o direito de absolver aqueles que abandonavam as crianças nos hospitais ou em lugares públicos. As avaliações teológicas não eram unívocas: um bispo do século XVI considerava pecado expor crianças em lugar público ou privado quando os pais possuíam "meios de alimentá-las". No século XVIII, outro teólogo, apesar de ser partidário daqueles que desaconselhavam o enjeitamento dos filhos por uma mulher, fosse para preservar sua honra, fosse por não ter como alimentá-los - pois "isto seria abrir as portas ao desregramento" -, citava vários teólogos de sua época e de séculos anteriores, que expressaram opinião contrária: "Há os que dizem que a mulher pode enjeitar o filho em uma ou outra dessas circunstâncias (...), desde que não se exponha essa criança ao perigo de morrer de frio ou de fome". Em 1780, um Abade escrevia: "Sob o pretexto de aliviar a miséria, nossos 'hotéis' de crianças achadas propagam o concubinato" (Flandrin, 1988, p. 200-202).

GB

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

No século XVIII, na cidade de Mariana, em Minas Gerais, todo exposto recolhido das ruas ou portas deveria ser declarado à Câmara Municipal, receberia uma matrícula, e aquele que o recolhera, três oitavas de ouro por mês, perfazendo 36 oitavas anuais, para sua criação. Entre os anos de 1753 a 1759, foram encontradas algumas destas matrículas, onde a Câmara expressava o seu propósito de não criar "mestiços, mulatos, negros, cabras, crioulos", exigindo que, além da certidão de batismo, fosse apresentada também uma certidão de "brancura", passada por um médico ou cirurgião. Tal como se lê no seguinte Termo de Matrícula da Enjeitada por nome Maria, digo por nome Clara: Aos vinte e três dias do mês de Maio de mil setecentos e cincoenta e três anos nesta Leal Cidade Mariana e casas de moradas de mim escrivão adiante nomeado apareceu presente Manoel Rodrigues Viana morador nesta cidade e reconhecido de mim escrivão e por ele me foi apresentada uma sua petição com o seu despacho nela posto pelo Doutor Presidente e mais oficiais da câmara para efeito de se matricular a enjeitada por nome Clara à qual assiste o Senado com três oitavas de ouro cada mês para a sua criação, com declaração porém que a todo o tempo que se vier no conhecimento ser mulata e não branca lhe não correrá o dito estipêndio de três oitavas mas antes será o dito obrigado a repor ao Senado tudo o que tiver recebido por conta da dita criação (...). E declaro que a dita enjeitada a deu a criar a Luiza Rodrigues do Couto preta forra moradora nesta cidade e reconhecida de mim escrivão a quem pertence o dito ordenado enquanto criar a dita enjeitada e de como a recebeu assinou com uma cruz por não saber ler nem escrever (Mello e Souza, 1996, p. 40). Em 1803, o governador da Capitania de São Paulo, Antônio Joze da Franca e Horta escrevia ao Vice-Rei acerca da

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

£

g

precizão q. há de Caza para os Expostos: são muitos os infeliz, e muitos os q. na Cidade de Sam Paulo, e em Santos se encontrão dislacerados por Animaes, quando de noite expostos sem Cautelas nas Portarias das Commonidades, outros semi vivos em dezamparo na rua, e só remidos por alguma mão benéfica q. os encontra (Marcilio, 1997, p. 68). Alguns pesquisadores de demografia histórica da América Latina, tendo consultado, entre outros, os registros paroquiais de batizados dos séculos XVIII e XIX, identificaram as seguintes variações da prática da exposição no Brasil, nesse período: 1) as crianças eram deixadas indiscriminadamente em casas de famílias ricas, de senhores de engenho, mas também em casas de roceiros, costureiras, fiandeiras, prostitutas, mendigos; 2) a prática de criar filhos alheios foi amplamente difundida e aceita no Brasil, sendo raras as famílias que, mesmo antes de existir o estatuto da adoção, não possuíam um filho de criação; 3) os caiçaras, que viviam de pequenas roças de subsistência, e os índios não expunham os filhos nem as filhas; 4) paróquias urbanas centrais como a da Sé de São Paulo ou a de São José do Rio de Janeiro apresentavam as maiores taxas de exposição, caracterizando-a como um fenômeno especificamente urbano; 5) no Brasil, a exposição nunca chegou aos níveis conhecidos na Europa do século XIX - tida como "a época da exposição em massa de bebês" (Mello e Souza, 1996, p. 31-32); 6) o que caracterizou a natalidade geral brasileira foi a elevada taxa de ilegitimidade por raça: em Salvador, Bahia, na virada do século XVIII, 81,3% das crianças livres eram mulatas e 86,3% das crianças negras que nasciam eram ilegítimas, contra 33% das brancas (cf. Marcilio, 1997, p. 68-71). A partir dos séculos XVII e XVIII, algumas instituições caritativas, particularmente aquelas entregues às irmandades de misericórdia, passaram a ser conhecidas por "Casa

7 D

HISTÓRIA DA INFÂNCIA BEM FIM

da Roda", "Casa dos Enjeitados", ou "Casa dos Expostos", cujos propósitos eram os de recolher e cuidar das crianças abandonadas para que não ficassem desprotegidas ou morressem. O nome simples e abreviado de "Roda", com o qual foram designadas, devia-se à adoção do dispositivo onde eram depositadas as crianças, e foi o primeiro mecanismo conhecido destinado a racionalizar a recepção das expostas, ordenar e centralizar a antiga prática da exposição indiscriminada. A Roda consistia em um cilindro de madeira, incrustado em uma parede de pedra, onde era preso por um eixo vertical que a fazia girar, com uma parte da superfície lateral aberta, por onde eram introduzidas as crianças. Tal dispositivo permitia que, do lado de fora, pudesse ser colocada a exposta e, após um giro, esta passasse para dentro do estabelecimento, sem um contato direto entre quem estivesse em seu interior com quem estivesse no exterior, de modo que tanto o depositário quanto o recebedor não pudessem ver-se reciprocamente. Puxava-se então uma corda com uma sineta, para avisar a vigilante, ou "Rodeira", que uma exposta acabava de ser deixada, e o expositor retirava-se do local, sem ser identificado. Na forma e ao modo das seguintes descrições, respectivamente, de 1 9 4 5 , 1909, 1887 e 1851: Bem ao lado da Capela dos Passos [Capela do Senhor dos Passos da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre], em um janelão vetusto dos tempos coloniais, solidamente guarnecido por um gradil de ferro, havia uma pequena abertura da qual emergia estranha caixa cinzenta. Circular, dividida em duas partes simétricas, girava macia, em torno de um eixo. E quando o fazia, o tilintar de um sino rasgava o silêncio. Roda dos Expostos (Maia Neto, 1945, p. 10).

H I S T ó R I A S D E GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

«7 1

A Roda dos Expostos era uma porta de grossa madeira sobre a qual se via uma janela ou fresta, mais alta do que larga, tapada por um meio cilindro também de madeira, apresentando uma face convexa e outra côncava. Na segunda, existiam duas prateleiras onde se colocava o enjeitado. Com suma facilidade, o meio cilindro girava no sentido vertical. Dando pequeno impulso, desaparecia da janela ou fresta a parte convexa do cilindro para dar lugar à parte côncava. Uma campainha, posta em comunicação com o aparelho giratório, servia de aviso à irmã de caridade para, principalmente, à noite, tirar da prateleira a criança abandonada (Oliveira, 1990, p. 6, citando descrição de um médico higienista do Rio de Janeiro, de 1909). O edifício dá para a calçada e nada indica em sua fachada para que serve a não ser, talvez, o lugar onde as crianças são depositadas; e isso não chama a atenção do transeunte que não conhece o edifício, porque o vão da parede mal aparece. O que parece ser um vão estreito e ligeiramente oval na parede, numa moldura de pedra, é a parte exterior da 'roda', uma espécie de mecanismo giratório com três lados abertos na parte inferior. O lado externo fecha firmemente e é preciso um puxão firme para girá-lo e abrir as prateleiras para a rua. Quando se faz isso, um recém-nascido pode ser colocado numa das prateleiras; e quando a roda gira de novo, a criança é introduzida no interior do asilo, no que se poderia chamar de recepção e ao mesmo tempo soa um sino bem alto. (Leite, 1996, p. 106, referindo diário de viagem de diplomata norte-americano, de 1887). Esta Roda ocupa o lugar de uma janela dando face para a rua e gira num eixo vertical. É dividida em quatro partes por compartimentos triangulares, um dos quais abre sempre para fora, convidando assim a que dela se aproxime toda mãe que tem tão pouco coração que é capaz de separar-se de seu filho recémnascido. Tem apenas que depositar o exposto na caixa, e ir-se embora sem que ninguém a observe (Leite, 1996, p. 100, indicando anotações de missionários protestantes, de 1851).

7 2

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

A origem desses cilindros rotatórios de madeira é atribuída àqueles usados nos vestíbulos de mosteiros e conventos medievais, como meio de enviar objetos, alimentos, mensagens, orações, promessas, aos seus residentes. Rodava-se o cilindro e os depósitos iam para o interior da casa, sem que os internos vissem quem os deixara. A finalidade deste mecanismo era evitar todo contato dos religiosos enclausurados com o mundo exterior, garantindo-lhes a vida contemplativa. Os mosteiros passaram a receber também os oblatos puerorum, isto é, crianças destinadas ao serviço de Deus, as quais, sendo "indevidamente" colocadas no cilindro, fizeram desse uso ser aproveitada a Roda para receber as expostas. As primeiras rodas específicas, de que se têm registro, destinadas a receber as crianças expostas, foram as da Idade Média, na Itália, junto com a emergência das confrarias de caridade, no século XII. Tais confrarias funcionavam circunvizinhas aos hospitais, para recolhimento e assistência aos pobres, aos peregrinos, aos doentes, leprosos, loucos e também às crianças expostas. Buscavam assim realizar as "Obras de Misericórdia", que eram sete materiais e sete espirituais: Visito-poto-cibo-redimo-tego-colligo-condo. Consule-carpe-doce-solare-remitte-fer-ora, quer dizer, "Eu visito, sacio, alimento, resgato, visto, curo, enterro. Aconselho, repreendo, ensino, consolo, perdôo, suporto, rezo" (Marcilio, 1997, p. 54). O Hospital do Santo Espírito, em Roma, foi o primeiro a utilizar a Roda para a recepção de expostas, no ano de 1198 (cf. Russel-Wood, 1981; Marcilio, 1997); e no Hospital de Santa Maria in Saxia, também em Roma, nos anos de 1201 a 1204, organizou-se o primeiro sistema institucional de proteção à criança exposta, do qual a Roda constituía o centro de acolhimento, organização e funcionamento. Em

HISTÓRIAS DE GOVERNO: CRIANÇAS E C I A .

*J

3

Portugal, pela Ordem Regia de 1783, as rodas deviam ser instaladas em cada cidade ou vila, sendo atribuição da pessoa encarregada levar os recém-nascidos expostos ao magistrado da localidade, que os entregaria às amas-de-leite pagas com os recursos da Câmara Municipal. Muitas cidades em Portugal não estabeleceram a Roda e, em algumas delas, organizou-se uma espécie de "feira", onde apareciam mulheres chamadas de "recoveiras" que levavam as expostas para as rodas das terras mais ricas, "havendo até algumas câmaras que pagavam as tais 'recoveiras', livrando-se assim do encargo de ter rodas" (Oliveira, 1990, p. 54). Na França, o Decreto de 1811 determinava que em todo distrito deveria existir um estabelecimento para recolher as crianças expostas, sendo que em cada um existiria uma Roda para recebê-las. O sistema da Roda tornou-se o modelo preferido para a admissão dos expostos, tendo a França contado, ainda no mesmo ano, com 269 rodas espalhadas pelo país (cf. Donzelot, 1980). No Brasil, a Roda de Salvador foi aberta em 1726, junto à Portaria do "Recolhimento das Meninas", na Santa Casa de Misericórdia. O objetivo, conforme consta nas atas da Mesa desta Santa Casa, era o de evitar-se o horror e a deshumanidade que então praticavão com alguns recém-nascidos, as ingratas e desamorozas mães, desasistindo-os de si, e considerando-as a expor as crianças em vários lugares imundos com a sombra da noite, e de quando amanhecia o dia se achavão mortas, e algumas devoradas pelos cães e outros animais, com laztimoso sentimento de piedade catholica, por se perderem aquelas almas pela falta do Sacramento do Baptismo (Marcilio, 1997, p. 58). A segunda Casa da Roda foi criada em 1738, no Rio de Janeiro, com os objetivos declarados de proteger a honra da família colonial dos nascimentos ilegítimos e a vida das

7 4

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

crianças expostas. A terceira e última Roda do período colonial brasileiro foi instalada na Santa Casa de Misericórdia do Recife, em finais do século XVIII: no primeiro ano de seu funcionamento a casa contava com "quarenta meninos que têm sido recolhidos, e dados a criar a amas-de-leite". Com a Independência do Brasil continuaram a funcionar as três rodas coloniais e, por vigorar a determinação das Ordenações Filipinas, toda assistência às crianças expostas continuava sendo obrigação de cada Câmara Municipal. Tal encargo fora, desde o início das rodas, aceito com relutância pelas câmaras (cf. Mello e Souza, 1996) e, a partir de 1 8 2 8 , com a promulgação da Lei dos Municípios, passou para as assembléias legislativas provinciais. Estas determinaram que, em toda cidade onde houvesse uma Casa de Misericórdia, a Câmara deveria usar de seus serviços para instalação da Roda e assistência aos enjeitados nela recebidos. Oficializava-se assim a Roda de Expostos nas Misericórdias, colocando-as a serviço do Estado; ao mesmo tempo em que a iniciativa particular era incentivada a assumir a criação das crianças, liberando as municipalidades. Com base nesse espírito dual, filantrópico e utilitarista, surgiram novas rodas, como solução asilar de assistência, dentre as quais três na província do Rio Grande do Sul: Porto Alegre (1837), Rio Grande (1838) e Pelotas (1849) (cf. Marcilio, 1997, p. 60-62). Thomas Ewbank, um dos fundadores da American Ethnological Society, dos Estados Unidos, deixou um diário sobre o cotidiano urbano do Rio de Janeiro de meados do século passado. Nele descreve a visita que fez a uma Roda: Tendo ouvido falar muito sobre a exposição diária de crianças e as facilidades que se dão a fim de que os que queiram livrar-se delas possam fazê-lo discretamente, resolvi ir observar o lugar

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

*7 5

de recepção. E isto, até há pouco, dava-se no Hospital, mas agora é numa rua quase deserta, para escândalo da Mãe Sagrada das Monjas, cujo nome leva. O engenho para receber as crianças consta de um cilindro oco e vertical, e girando em tomo de um eixo. Um terço dele é aberto para dar acesso ao interior, e o fundo é coberto com uma almofada. O aparelho é constituído de tal modo que é impossível aos de dentro verem os do lado de fora. Caminhei por toda a extensão da Rua Santa Teresa sem perceber nada, mas voltando, uma placa, de apenas algumas polegadas sobre uma porta fechada de um edifício normal, chamou a minha atenção. A inscrição era clara: EXPOSTOS DA MISERICÓRDIA N9 30. Enquanto a lia, veio de dentro um rumor de confirmação. A única janela da fachada era próxima da porta e era, de fato, o receptáculo. O que eu tomara quando passei pela primeira vez, por um postigo verde, vi agora que era ligeiramente encurvado. Toquei-o, a sua abertura girou rapidamente. Hesitei por um momento, mas quando os moradores de uma casa do lado oposto abriram suas janelas para ver quem estava abandonando ali um enjeitado à plena luz do dia, bati rapidamente em retirada (Leite, 1996, p.104, citando excerto de diário, de 1846). Com o século XIX, chegaram ao Brasil as influências da filosofia das luzes, do utilitarismo, da medicina higienista, de novas formas de exercer a filantropia e o liberalismo, e as santas casas não conseguiam mais subsidiar os gastos com a assistência aos expostos. Para contornar essas dificuldades e satisfazer as novas necessidades, os governos provinciais, junto com os bispos católicos, trouxeram da Europa as "filhas de caridade", religiosas tais como as Irmãs Vicentinas e de São José de Chamberry, as religiosas Dorotéias, as filhas de Santana, as Irmãs Franciscanas da Caridade e da Penitência. A partir de 1830, o caráter de assistência às crianças expostas deixava de ser uma ação descentralizada, a cargo das municipalidades e das confrarias de leigos, para tornar-se uma questão centralizada de governo das províncias.

7 6

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Em meados deste século, começou forte campanha para a abolição da Roda, com argumentos fundados no progresso contínuo, na ordem e na ciência: a Roda foi considerada imoral e atentatória aos interesses da Nação, por agregar filhos de prostitutas, produtos de uniões ilegais, crianças com defeitos físicos ou mentais; enfim, "o resultado do estado de pobreza em que viviam os estratos mais baixos das populações" (Pereira, 1994, p. 95). No Brasil, sua extinção foi inicialmente pedida pelos médicos-higienistas, alarmados com os altos níveis de mortalidade reinantes dentro das casas dos expostos, sendo que, em 1852, a cifra era de 82%. A Casa da Roda do Rio de Janeiro foi avaliada como mais um foco autóctone de mortalidade infantil, pela pobreza de suas instalações e meios de manutenção. Um higienista da época assim se pronunciou perante a Imperial Academia de Medicina do Rio de Janeiro, em sessão de 6 de julho de 1886: Antes das estatísticas que com sumo cuidado obtivemos antes de procedermos à análise minuciosa dos dados existentes, guiados unicamente pelo coração, éramos partidários decididos das "rodas"; depois do estudo o nosso espírito vacila e quase que afirma a inutilidade delas, se não for possível diminuir a sua mortandade excessiva e se a justiça pública não intervier para punir os crimes de infanticídio, principalmente por omissão, que muitas vezes encontram nas rodas um meio mais fácil de ocultá-los, entregando-lhes crianças semimortas, senão mesmo mortas (Costa, 1989, p. 164-165, apresentando excerto de tese médica). Considera-se que o movimento contra as rodas inseriuse também nas lutas pela melhoria da raça humana, levantadas com base nas teorias evolucionistas, pelos eugenistas; a literatura brasileira apontou a imoralidade da Roda, tal como fez Macedo (1961), em A luneta mágica; a eles agregaramse os juristas, que propunham novas leis para proteger as

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

r

7r7

crianças abandonadas e para corrigir a questão social da adolescência infratora, problema emergente. Exemplar desse movimento é a reportagem de João Maia Neto (1945), sob o título Um convite ao pecado sob o manto da noite publicada, com chamada de capa, no jornal Diário de Notícias de Porto Alegre, em 1945, acerca do fechamento da Roda da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre e de sua substituição pela Maternidade -, onde pode ser lido: A Roda dos Expostos já conheceu melhores dias. Tempo houve em que, noite após noite, por essa pequena abertura eram jogados os minúsculos párias da vida. A mão nervosa da jovem transviada (esfomeada, talvez) fazia girar o rústico cilindro. A sineta rompia o silêncio pesado levando à guardiã do hospital uma nova mensagem de vida, a síntese de um novo drama. Depois, o portoalegrense compreendeu que "a roda" não era a carinhosa "mãe de todas as crianças". Sentiu ser ela uma auxiliar discreta. Um anônimo, a quem Maia Neto entrevistou para realizar a reportagem, falou assim sobre a Roda: Era o manto de misericórdia que acobertava os desgraçados espúrios e, no mesmo passo, era a mão de ferro destinada a tapar a boca da maledicência e evitar o zum-zum do escândalo. Foi o cofre que guardou para sempre, em sigilo inviolável, o epílogo de grandes dramas. Os enjeitadinhos eram trazidos altas horas da noite, enrolados num trapo ou num lençol que, às vezes, inda vinham salpicados de sangue gotejado do cordão umbilical atado às pressas na ânsia de dar sumiço ao intruso. Alguns traziam num pedaço de papel a indicação de um nome vago: José... Maria, Antônio. Outros nem isso. Fram passageiros clandestinos atirados à praia do esquecimento. A Roda devia ter no frontispício a legenda de Dante: Lasciate ogni speranza voi chi entrate. Esperança de ser identificado. Sua voz inda ressoa em nossos ouvidos. Dolorida. Como se cada um daqueles inocentes fosse um pedaço de si mesmo.

V B

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Para o jornalista, na Roda terminavam "todas as histórias de fraqueza, de miséria, de pecado. Era tão simples. Bastava lançar a testemunha indiscreta, a boca para a qual não havia alimento". Depois, podia-se "iniciar nova vida ou continuar na senda já trilhada", da mesma forma como ocorria com aqueles que não tocavam mais a sineta e, mais recentemente, procuravam os fasseures d'anges: "Até parecia que não se pecava mais em Porto Alegre"! Mas não era isso que se dava: "Uma profissão nova estava ganhando adeptos em nossa capital"; por isso, "os encarregados dos Expostos não sabiam a que atribuir a 'crise' de crianças". As rivais da Roda ofereciam uma série de vantagens: "a discrição era a mesma"; "cortava-se o mal pela raiz"; era "evitado um longo período de fuga às vistas inquisitórias dos vizinhos". "É verdade", escreve Maia Neto, "que havia um certo perigo de vida muito desagradável", e, "naturalmente, a morte da criança era inevitável, mas isso era o de menos"! A Roda foi assim "se desmoralizando" e aos poucos "sendo esquecida". Os amigos da Roda - "pois muito os havia e até hoje há quem reclame sua volta" - lembravam com tristeza "o ano da graça de 1876, quando a sineta tocou nada menos de 196 vezes". "E a Roda morreu...". Até hoje, diz Maia Neto, "há quem se bata por ela. Mas está definitivamente morta": Morreu mesmo. E nem poderia ser de outra forma. Foi uma instituição que deu seus frutos... em sua época. Depois se tornou anacrônica; nos tempos idos em que conheceu seu fastígio ela poderia ser, de fato, útil. Então os homens serviam-se de fios de barba para selar contratos. A mulher que usava pinturas era estigmatizada. O mais leve deslize, o olhar franco e simples de dois entes atraídos pela força suprema - um labéu eterno. E assim mesmo é discutível. Afirmam-no as autoridades no assunto, daqui e de algures, que as rodas serviram mais como cúmplices discretas de crimes.

H I S T ó R I A S DE GDVERNO : CRIANçAS E C I A .

7

g

O doutor Mario Totta, uma vez eleito Mordomo dos Expostos da Santa Casa, foi quem "encetou a luta sem tréguas contra 'a mãe de todas as crianças'"; e de um seu ofício, "justificando a própria vitória", o jornalista cita: Contra sua supressão altearam a voz, movidos, aliás, por sentimentos os mais nobres, partidários exaltados, que viam na Roda uma uma de caridade e um escudo de grande valia contra o escândalo e o crime; no outro lado formou luzida plêiade de espíritos de escol, condenando de modo formal a vetusta instituição a cujo ativo são encarregados malefícios de monta entre os quais avulta a separação definitiva que ela estabelece entre mãe e filho. Os primeiros aferram-se aos seguintes argumentos: a Roda previne o infanticídio, toma inviolável o segredo da desonra e desta arte, evita escândalos sociais de conseqüências incalculáveis. Ora, já de há muito tempo se verificara - na França principalmente - que a Roda longe de evitar os infanticídios antes os favorecia. Os tours de Paris recebiam mais cadáveres de recém-nascidos do que recém-nascidos vivos (Maia Neto, 1945, p. 10). As rodas adentraram o século XX: a do Rio de Janeiro foi fechada em 1938, a de Porto Alegre, oficialmente, em 1940, as de São Paulo e de Salvador somente na década de 1950, sendo as últimas do gênero existentes nessa época em todo o mundo ocidental (cf. Marcilio, 1997). Com exceção da Roda de Porto Alegre, as expostas deixadas nas treze rodas que funcionaram na história do Brasil foram, em sua grande maioria, filhos e filhas de escravas que tendo sido ali abandonados, passavam a gozar da condição de "libertos" (Mello e Souza, 1996, p. 37). Após a Lei do Ventre Livre, em 1871, os médicos higienistas constataram a diminuição do número de expostos; o Marquês de Lavradio afirmou, em 1887, que a diminuição dos expostos devia-se a dois fatores: primeiramente, a redução do número de escravas que procuravam esconder os filhos nascidos da prostituição, in-

BQ

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

clusive com os próprios senhores; e, em segundo lugar, a redução do número de escravas que eram obrigadas a expor os filhos para serem alugadas como amas-de-leite (cf. Costa, 1989; Lima e Venâncio, 1996; Mello e Souza, 1996). A Roda teria servido para as seguintes finalidades: evitar o "mal maior" consubstanciado no aborto e no infanticídio; defender a honra das famílias cujas filhas engravidavam fora do casamento; como mecanismo para regular o tamanho das famílias, dado que não havia métodos eficazes de controle da natalidade. Na França, foram partidários da Roda todos os defensores do poder jurídico da família: homens como Lamartine, A. de Melun, Le Play. Eles exaltavam sua "função purgadora dos desvios sexuais" e, a fim de amenizar o excessivo número de abandonados, propunham "revalorizar o peso jurídico da família restaurando os procedimentos de busca de paternidade", em desuso desde a Revolução Francesa; instaurar "um imposto sobre o celibato"; separar "o registro dos indivíduos inscritos no quadro familiar do registro dos bastardos", os quais podiam ser destinados às tarefas externas de colonização, ou como substitutos dos filhos de família para o serviço na milícia. Eram hostis à Roda os homens da filantropia esclarecida, como Chaptal, La Rochefoucauld-Liacourt, Decpétiaux, partidários de uma racionalização da assistência pública e do desenvolvimento da adoção: "portanto, de uma primazia da conservação dos indivíduos sobre a preservação dos direitos do sangue". Desde o final do século XVIII, as administrações dos hospícios franceses começaram a "desconfiar que suas instituições eram objeto de um desvio fraudulento", produzido pela "utilização popular da Roda", que nada tinha em comum com sua destinação primeira: a retirada dos "objetos de escândalo", que eram os filhos adulterinos. Necker, em

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

Q 1

U administration des finances de Ia France, afirma que, sem dúvida, a Roda impedira "que seres dignos de compaixão fossem vítimas dos sentimentos desnaturados de seus pais", mas, "insensivelmente fomos acostumados a ver os hospitais para menores abandonados como casas públicas onde seria justo o soberano alimentar e manter as crianças mais pobres dentre seus súditos; esta idéia, estendendo-se afrouxou, no seio do povo, os vínculos entre o dever e o amor paterno" (Donzelot, 1980, p. 31). O sistema comportara "fraudes" e "abusos": mães que levavam seus próprios filhos para a Roda e, em seguida, apresentavam-se na instituição oferecendo-se como amasde-leite, de modo a receberem o pagamento mensal; senhores que mandavam suas escravas depositarem os filhos na Roda, para depois irem buscá-los a fim de serem amamentados com estipêndio e, finda a criação paga, continuarem com as crianças como escravas; amas-de-leite que não declaravam a morte das crianças à Santa Casa para continuarem recebendo os salários, como se as crianças estivessem vivas; "amas 'externas' [que] costumavam escravizar ilegalmente os abandonados"; tesoureiros desonestos que "matriculavam" expostos já mortos, pagavam criadeiras inexistentes, forjavam listas de rações com preços exorbitantes, inventavam dotes às meninas expostas de idade inferior a dezoito anos, faziam constar das despesas crianças que não tinham mais direito à pensão pela idade completa, ou que haviam ficado em casa das criadeiras, ou que tinham sido adotadas (cf. Flores, 1985; Pereira, 1994; Marcilio, 1997). As comissões de inquérito, formadas no século XIX, na França, constataram um número considerável de filhos legítimos entre os expostos, ainda mais depois da redução da mortalidade nos hospícios; mas, o mais grave, segundo os

B 2

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

gestores, foi que não apenas as famílias legítimas abandonavam seus filhos por causa da pobreza, como também certas famílias os expunham para que fossem alimentados pelo Estado, arranjando-se para recebê-los de volta como nutrizes, tal como é relatado por Terme e Maufalcon, em 1837: Desde que a legislação regularizou a condição dos menores abandonados atribuindo um salário às nutrizes, uma nova espécie de exposição começou a aparecer repentinamente e ganhou, em pouco tempo, um desenvolvimento extraordinário. Agora, a mãe que expõe um recém-nascido na Roda de um hospício, não tem a menor intenção de abandoná-lo; separa-se dele apenas para retomá-lo alguns dias mais tarde, com a cumplicidade das mensageiras. Quando os hospícios ficaram sobrecarregados com um grande número de recém-nascidos, logo perceberam a impossibilidade de rodeá-los dos cuidados adequados no seu interior. Tornou-se indispensável recorrer a nutrizes do campo. As crianças lhes foram confiadas, estabelecendo-se um salário para esse serviço. Mensageiros levavam os recém-nascidos do hospício à mulher que devia amamentá-los e cedo estabeleceram-se graves desordens. Essas moças e mulheres do campo acreditaram que teriam vantagem em expor os seus recém-nascidos; se, através de entendimento com os mensageiros, pudessem se reapossar de seus filhos, isso significaria garantir meses de salário como nutrizes e, mais tarde, uma pensão. A fraude desafiava qualquer inquérito. Quando a mãe, impedida por algum fato particular, não ousava criar o seu filho em sua própria casa, algum vizinho se encarregava oficialmente do recém-nascido (Donzelot, 1980, p. 32) Em 1827, o ministro do Interior, De Corbière, baixou uma circular que prescrevia a transferência das crianças para um outro Departamento, a fim de impedir as mães de amamentarem, como assalariadas, os filhos expostos na Roda, ou de os visitarem em casas de nutrizes a cujos cuidados eles fossem confiados. O resultado foi que, das 32 mil crianças

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

B

3

transferidas, em dez anos, oito mil foram reclamadas por suas mães, que as trouxeram de volta, e quase todas as outras morreram por causa dessas transferências. Em 1837, De Gasparin sancionou o fracasso dessa política, através de um relatório ao Rei, onde emitiu a idéia de substituir o recolhimento hospitalar por um sistema de assistência domiciliar para a mãe, "o que significaria saldar junto à mãe os meses pagos pelo hospício a uma nutriz, em princípio estranha". A perda de iniciativa da administração, seguida dos desvios no sistema da Roda, fizeram com que o "segredo da origem" fosse trocado por um "sistema aberto", o qual buscava desencorajar a exposição e atribuir o controle à investigação administrativa da situação das mães. Os efeitos dessa decisão de fornecer uma assistência financeira e médica às mulheres mais pobres, como também às imorais, provocou um mecanismo implicado na "generalização desses tipos de serviços a todas as outras categorias de mães para não se correr o risco de ser acusado de atribuir um prêmio ao vício". O que começou a ser dado como auxílio às mães solteiras, transformou-se num direito ainda mais legítimo para as viúvas pobres cheias de filhos, depois, para as mães de família numerosa e para as mães operárias, a quem não se devia desencorajar a reprodução. O "salário-família" nasceu, assim, na França do início do século XIX, no ponto de confluência entre uma prática assistencial que estendeu o círculo de seus administrados, e "uma prática patronal do paternalismo, feliz em se livrar, em plano nacional, de uma gestão cujos embaraços eram iguais aos benefícios que propiciava" (Donzelot, 1980, p. 33). Daí decorreu também a extensão do controle médico sobre a criação dos filhos de família popular, com o surgimento, em 1865, das primeiras sociedades protetoras da infância em Paris, que assumiam como objetivo garantir

B 4

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

a inspeção médica das crianças colocadas pelos pais em nutrizes, e aperfeiçoar os sistemas de educação, os métodos de higiene e a vigilância das crianças das classes pobres. Os comitês patronais avaliavam que as crianças mais bem-tratadas eram aquelas que dependiam da Assistência Pública, conforme um relatório de 1882: Apesar dos conselhos desinteressados dos médicos e das pessoas esclarecidas, a rotina, a teimosia brutal dos camponeses e os conselhos estúpidos das matronas, entretêm hábitos fatais para as crianças cuja higiene é muito mal dirigida; basta acrescentar um detalhe característico: é que as únicas crianças de boa saúde nos Departamentos pobres, crianças cuja mortalidade baixa a seis por cento, são os filhos de mães solteiras que conseguiram obter auxílios mensais do Departamento e que são controladas especialmente por um inspetor da prefeitura a quem temem e cujos conselhos escutam (Donzelot, 1980, p. 34). No Brasil, as casas de misericórdia não podiam abrigar todas as crianças que voltavam "da criação" e a maioria delas não tinha para onde ir, ficando então nas ruas, prostituindo-se ou vivendo de esmolas e pequenos furtos. As administrações das rodas buscavam famílias que recebessem as crianças como aprendizes, no caso dos meninos, e como empregadas domésticas, no caso das meninas. As meninas, devido à preservação da honra e da castidade, eram objetos das maiores preocupações: para elas foram criadas junto às maiores misericórdias recolhimentos "de Meninas Órfãs e Desvalidas" que estiveram sempre ligadas às casas da Roda. Para os meninos havia também a possibilidade de serem enviados para as companhias de Aprendizes Marinheiros ou de Aprendizes do Arsenal da Guerra, escolas profissionalizantes destinadas aos expostos, dentro de dura disciplina militar. Nessas companhias, os meninos viviam ao lado de presos, escravos e degredados; sua alimentação era

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

g

5

à base de farinha de mandioca, sendo que a maioria acabava definhando e morrendo. No testemunho de um médico do Rio de Janeiro, que observou os meninos expostos do Arsenal da Marinha, a maioria "comia terra" e tinha "o corpo enfraquecido pelos parasitas intestinais": o menino entrava "robusto, alegre, brincalhão, e bem nutrido" e começava "a definhar, emagrecer, tornar-se triste, melancólico e adquirir uma cor pálida, macilenta, terrosa, amarelada... era a tuberculose que se aproximava" (Marcilio, 1997, p. 74). Na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, passadas a Revolução Farroupilha e a cholera morbus, que chegara a Porto Alegre em 1855, as preocupações dos administradores do hospital eram duas: uma era reforçar as grades do "Asylo dos Alienados" para evitar que eles quebrassem os vidros; e a outra era os "Meninos do Arsenal", expostos na Casa da Roda que, ao atingirem idade conveniente, conseguiam trabalho no Arsenal de Guerra. O provedor, marechal de campo Manuel Luiz de Lima e Silva, escreveu, à época: Para pôr um termo às travessuras dos menores do Arsenal de Guerra que nas enfermarias eram tratados e não se podia conseguir que estivessem em suas camas e só sim queriam vagar pelos corredores e quintal em desenvolturas e romperem roupas da casa e enquanto não se tratava de fazer a respectiva enfermaria designada no Regimento Interno, os fiz provisoriamente remover para um salão fechado que existe no fim do Asylo dos Alienados para, por este meio, podê-los conter, pois devereis saber que esses meninos que se acumulam nesta Santa Casa e mor parte sem terem moléstia alguma e só inventam enfermidades para vadiarem e não estarem sujeitos, pois quem está verdadeiramente doente não anda de pé, não corre e não quer brincar no quintal, além de estragarem roupas, utensis, sujarem paredes e riscar portas pintadas e fazer todos os danos próprios da infância desenvolta (Guimarães, 1984, p. 24-25).

B 6

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

A partir de 1860, no Brasil e em outros países, surgiram inúmeras instituições de proteção à infância desamparada, de caráter público ou privado, tais como: casas pias e seminários, para "cuidar na sustentação e ensino de meninos orphãos e desvalidos, afim de que, convenientemente educados, e com profissões honestas venham depois a ser úteis a si e à nação, que muito lucra com seus bons costumes e trabalho"; também institutos de menores artesãos; asilos para a infância desvalida; colégios para as meninas enjeitadas; colônias agrícolas "orphanologicas"; etc. Tais instituições combinavam a moral cristã da caridade e da filantropia utilitarista com o bom aproveitamento do indivíduo para aumentar a riqueza da nação: ordens religiosas de caridade fundaram asilos e orfanatos por toda parte; os salesianos criaram liceus de artes e ofícios; a Ordem de São Carlos fundou asilos para os órfãos e desamparados, filhos de imigrantes europeus (cf. Lima e Venâncio, 1996). A filantropia constituía-se e se fortalecia como modelo assistencial, fundamentado na Ciência, para substituir o modelo de caridade. Desde 1930, muitas associações foram criadas com base neste modelo para amparo e assistência à infância exposta, tais como a Liga das Senhoras Católicas, o Rothary Club, o Lyons Club, a Associação Pérola Bygthon. A partir dos anos 60, foi criada a Fundação de Amparo e Bem-Estar do Menor, seguida da instalação, nos Estados, das fundações estaduais de bem-estar dos menores. Em 1988, com a Constituição Cidadã, inseriram-se os Direitos Internacionais da Criança, proclamados pela ONU nos anos 50; e em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente fez com que o Estado assumisse a responsabilidade sobre a assistência aos desvalidos, tornando as crianças e os adolescentes "sujeitos de Direito", pela primeira vez na história do Brasil.

H I S T ó R I A S DE GDVERNO: CRIANçAS E CIA.

8*7

Em Porto Alegre, na década de 40 "surgiu algo de grandioso", "um símbolo", afirmava o jornalista Maia Neto, do jornal Diário de Notícias, descrevendo a Maternidade que viera ocupar o lugar da Roda: Primorosamente instalada, servida pela dedicação de jovens enfermeiras especializadas e pelos sextanistas da Faculdade de Medicina e uma plêiade de médicos, para quem uma criança é mais do que um pedacinho de gente. Seu berçário onde cinqüenta e mais berços estão reunidos é cercado com vidro, temperatura constante, umidade controlada. Tudo científico. Tudo perfeito. Os recém-nascidos prematuros, "isolados dos demais empreendem a luta tremenda e desigual pela existência"; e todos os "pequeninos enjeitados" são, a partir de agora, "filhos adotivos da Maternidade oficialmente considerados como tais". Ao nascer [o enjeitado] recebe no pulso minúsculo uma pulseira com um número - o número que orna o braço da mãe. Todos os dias há visita. Um pouco de saudade... e muita fome. Vem com mais este companheirinho, deitado em comprida maça. Fazendo algazarra numa inconsciência deliciosa. E vai crescendo. Quando a mãe está restabelecida e se acha em condições de sair, o enjeitado recebe uma caderneta que lhe informa ser considerado, até completar seu primeiro ano de idade, filho adotivo da Casa [Santa Casa de Misericórdia] Sua "mamãe é levada para a cozinha da instituição onde recebe um curso completo que se poderia intitular: 'Como alimentar meu bebê'. [Essa caderneta] contém os primeiros conselhos; (...) uma ficha de identificação [e] espaço para as anotações periódicas, [já que a Maternidade] faz questão cerrada que o petiz [a] visite ao menos uma vez por mês (...) Controle de peso. Exame completo. E mais instruções para a mãe. É bem melhor do que a velha Roda".

8 8

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

E os "casos complicados"? Esses continuam a existir: "Os homens e as mulheres são tão tentados quanto os de antigamente. Talvez até mais; se ceder (que Deus não o permita), como procederá"? É simples, pois a Santa Casa acabou com a Roda, "mas manteve viva a idéia que ela simbolizava". A Roda "era um convite ao pecado"; um "convite ao abandono dos filhos"; hoje, "a Maternidade convida isso sim cada mãe a permanecer junto de seu filho". Tenha ela a origem que tiver. Ele merece, o pobre inocente, um pouco de sacrifício. Ela, se seguir o conselho, sentirá mais tarde, o manancial de prazer que isso lhe trará. Um prazer que nasce do próprio sofrimento. Da angústia das noites mal dormidas à cabeceira do doente. Do medo atroz de perdê-lo. Um prazer infinito que só os pais conhecem. Para aquelas mães "que não quiserem conservar a criança", a Maternidade oferece alguma coisa, ainda sigilosa: Em lugar de se dirigir, alta noite, a um recanto afastado (e o era antigamente) para introduzir a criança em um orifício aberto na parede, vai em pleno dia ou manda alguém por si. E deposita seu filho nos braços do Mordomo dos Expostos ou de outra pessoa encarregada. Pode dizer, se quiser, o nome por que deverá ser chamado. Se desejar, dirá o seu próprio ou fará qualquer indicação que lhe permita, mais tarde, vir buscá-lo. Do contrário, não dirá nada. E nada lhe será perguntado. Entregará o pequeno e sairá pela porta que lhe deu entrada. Silenciosa! Cercada do sigilo acolhedor. Então, a criancinha terá seu próprio destino: "A lei da oferta e da procura, sustentáculo do liberalismo econômico, tem sua aplicação nos setores mais estranhos. Até na Santa Casa". Uma vez "de posse do pequeno, o Mordomo dos Expostos trata de assegurar-lhe um futuro"; trata-o se estiver doente; ajuda-o se necessário; e procura uma família em

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

Q

g

condições de proporcionar-lhe "uma infância feliz, como prólogo de uma existência útil". A Maternidade examina, com cuidado, as famílias dispostas "a oferecer-lhe um lar e afinal o entrega". E essa escolha é bastante trabalhosa. Paradoxalmente, enquanto uns procuram desfazer-se de seus filhos, outros empenham tudo para conseguir ao menos um alheio. No momento, por exemplo, a Maternidade Mario Totta está com dezenove pedidos para o primeiro enjeitado que surgir. Casais sem filho. Que não querem ser tragados pela esterilidade assassina. Que desejam deixar após a si alguém que os recorde com carinho, que derrame uma lágrima por eles. Casais que dispõem de uma reserva imensa de afeto. Todos em disputa dos minúsculos párias da vida que a Maternidade redimiu. Felizmente, afirma Maia Neto (1945), "vida oferece compensações". Daqui a alguns anos, quando esse enjeitado que os dezenove casais estão esperando, visitar, braço dado com a mãe, as brancas salas da Santa Casa, "não saberá a qual das duas reverenciar com mais gratidão". É que ele, "o pequeno miserável que a própria mãe recusou, dividirá seu afeto entre as duas que o acolheram" (ib., p.10). Por interesse, regressemos à Roda - se é que dela já tínhamos saído. A Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, fundada em 1803, teve a Casa da Roda instituída em 1837, quando a Câmara Municipal comprometia-se a passar para a Santa Casa todos os expostos sob sua responsabilidade, assim como "todos os bens móveis, semoventes, ou de raiz, direitos, acções e obrigações activas e passivas pertencentes aos Expostos deste Município para os administrar, e pôr a rendimento" (Irmandade..., 1882, s.p.). Na Apresentação escrita por Saturnino de Souza e Oliveira, Provedor em 1842, ao Regimento da Caza dos Expostos da Santa Casa da Mizericordia da Cidade de Porto Alegre, lê-se:

9 D

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

A obrigação de prover á creação e amparo dos infelizes, que são abandonados ao nascer pela ingratidão de quem lhes dêo a existência, é uma das mais nobres e importantes que tem hoje a nossa Pia Confraria: encarregada desta delicada e benéfica tarefa pelo § l 9 do art. 7 da Lei Provincial n. 9 de 22 de novembro de 1837, ella estabelecêo a Casa da Roda desta Cidade, que até hoje tem-se regido sem estatutos [...]; o pouco tempo que tenho tido a honra de presidir-vos, como vosso Provedor, me tem feito conhecer quam urgente é a necessidade de darmos um Regimento escripto á Casa da Roda, de introduzir a Ordem, e a regularidade no seo serviço, para que desempenhemos nossa missão com maior proveito dos infelizes Expostos, da humanidade, e da Pátria na conservação destes seos filhos confiados aos nossos cuidados e desvellos (Irmandade, 1842, P-2) Assim que era recebida no interior da Casa da Roda, quase sempre à noite, "a Rodeira", que dormia junto à Roda, recolhia a criança imediatamente, entregando-a à "Regente", com o enxoval ou qualquer objeto que trouxesse com ela. A Regente examinava a exposta, prestando socorro imediato às enfermas e maltrapilhas, e colocava em seu pescoço uma pequena chapa numerada, de acordo com o "Livro de Matrículas". Neste livro, anotava o número de entrada, sexo, cor, idade aproximada, estado de saúde, o dia, a hora, o mês e o ano em que fora achada na Roda. Apontava também o enxoval ou roupa, qualquer papel escrito, medalha ou sinal, pelos quais a criança pudesse ser identificada, se algum dia viessem buscá-la. Depois, a Regente designava a "Ama-de-Leite" e a "Ama-de-Criação", encarregadas de seu tratamento. No outro dia, o Médico ou Cirurgião examinava o enjeitado, anotando todos os sinais e marcas, vacinando se fosse necessário. Então, o "Irmão Mordomo" fazia batizar o inocente para que não morresse nem crescesse pagão (cf. Irmandade..., 1842; 1882; 1997).

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

g

1

Umas das preocupações centrais do sistema da Roda para com a exposta era a de providenciar sem tardar seu batismo (Mattoso, 1996, p. 88-89), "salvando a alma da criança: a menos que trouxesse consigo um escritinho - fato muito corrente - que informava à rodeira de que o bebê já estava batizado" (Marcilio, 1997, p . 52). Nos arquivos da Roda de Porto Alegre, a maioria dos escritos examinados dizia que a criança ainda não fora batizada e pedia que o fizessem, tais como estes: Antônio Maria. Foi exposto na Roda em 4 de Fevereiro de 1841, acompanhava-o hum bilhete em que pedião fosse baptizado com o nome de Antônio M§, para por ele ser procurado. Maria da Conceição. Foi exposta na Roda em 2 de março de 1841 pelas 9 horas da noite. Trazia hum escripto do theor seguinte: Roga-se á Uma. Snra. Directoria da Roda dos Expostos, que por beneficência aceite essa menina; e não estando ella ainda baptizada, quando o for, se chamará Maria da Conceição a fim de que possa seu Pae, recebel-a e felicital-a. Germano. Ás 10 horas da noite de 2 de março de 1854 foi lançado na Roda desta Santa Caza da Misericórdia hum menino de côr branca que parecia ter oito dias. Acompanha hum bilhete que dizia não ter sido baptizado. Francisco. Ás dez horas da noite de 14 de abril de 1856, foi lançada na Roda desta Santa Caza da Misericórdia huma menina recém nascida e de cor branca. Vinha pobremente vestida e acompanhava hum bilhete que declarava não ter sido baptizada esta innocente e pedião á Regente que a não desse a crear para fora do estabelecimento. (Irmandade..., 1882, respectivamente, p. 29; p. 35; p. 170; p. 189) Quando era registrado nos escritos deixados junto à exposta que ela fora batizada, mas os responsáveis pela instituição tivessem qualquer dúvida sobre a validade do ba-

9 2

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

tismo anunciado, batizavam-na de novo, sub conditionem, como decretavam as leis do Direito Canônico. Após o batismo, a criança era dada a uma "Criadeira" - desconhecendose os critérios com os quais eram selecionadas algumas das expostas para serem criadas na própria Casa da Roda -, a qual, em troca de pagamento, responsabilizava-se por cuidar do menino até os sete e da menina até os oito anos, devolvendo-os para a Casa (cf. Flores, 1985; Irmandade..., 1842). Os meninos que eram devolvidos pelas criadeiras iam para o Arsenal de Guerra aprender uma profissão; enquanto as meninas ajudavam a cuidar dos menores, como amassecas, estudavam bordado, costura e as primeiras letras (cf. Flores, 1985, p. 52; Irmandade..., 1882, p. 37-8), e recebiam um dote quando chegavam aos dezoito anos para se casarem. Estas "Recolhidas", como passavam então a ser chamadas, viviam isoladas, sendo expressamente proibida qualquer comunicação sua com o mundo exterior, e as raras visitas ocorriam sempre em presença da Regente (cf. Irmandade..., 1842, p. 19). Os dispositivos da Roda e do Batismo, conjugados, configuravam o ingresso da criança em uma nova vida de salvação e, no mesmo momento, decretavam a morte de uma identidade. Através da Roda, as crianças expostas entravam em outro espaço, não mais desordenado e sujeito aos "fados", como o da exposição indiscriminada, mas em um espaço cujo esquema suscitava um policiamento tático, não tão rígido quanto o da educação escolar que a substituiria junto ao corpo infantil, mas que efetivava seu disciplinamento. A criação de tal dispositivo e a institucionalização de seus mecanismos incitaram o recolhimento das crianças, o impedimento de identificar os genitores, e uma especificação da prática de expor em relação às diversas formas de infanticídio. A expectativa de que a criança seria recolhida

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

CJ 3

"em vida" afastou esta prática daquela do infanticídio, sem que fosse necessário entregar a sorte dos filhos "nas mãos de Deus, já responsável pelo nascimento", elidindo a intenção de matar, tal como a prática da "sufocação" havia feito (Flandrin, 1988, p. 243). Dava-se assim a entrada do infantil num eixo de preocupações que conferia outra racionalidade à exposição: a piedade pelas expostas justificava os procedimentos de acolhimento, mas não a tolerância que lhe era correlata. O anonimato dos expositores era mantido, inclusive através de procedimentos legislativos, ocorrendo em cada localidade uma responsabilização coletiva pelo custeio da criação dos enjeitados. Uma das justificativas para preservar esse anonimato foi a defesa da vida das crianças, pois acreditava-se que não as identificando era-lhes possibilitada outra alternativa que não o infanticídio ou o aborto (Badinter, 1985, p. 42-3). Presidindo a sessão da Câmara da Vila de Nossa Senhora do Desterro, em 22 de agosto de 1812, o Juiz de Fora, doutor Francisco Lourenço de Almeida, propôs o estabelecimento de uma casa com Roda, assegurando que tal tipo de casa seria um dos "mais eficazes remédios" para evitar os infanticídios dos miseráveis inocentes que têm a infelicidade de deverem o seu nascimento à desordenada licença do deboche e da luxúria, e sendo informado da pouca ou nenhuma atenção que até o presente tem merecido um objeto de tanto peso e ponderação quanto é o interesse que ao Estado resulta do aumento da população [...] principalmente onde esta ainda jaz no seu berço; propunha por isso ele Ministro a ser da maior importância erigir-se nesta vila uma Roda dos enjeitados, sendo colocada em um sítio escuro retirado e mais apto para a culta recepção dos referidos inocentes (Oliveira, 1990, p. 57).

9 4

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Diante das finanças precárias da municipalidade, o Conselho Municipal de Desterro decidiu que fossem "convocados por Edital a nobreza e o povo da vila" para deliberar "se era ou não de pública utilidade e necessidade" a Roda e se era ou não útil que "à Sua Alteza Real se pedisse algum novo imposto sobre exportação de gêneros desta Ilha" para atender às "despesas dos filhos da falha" (Oliveira, 1990, p. 58-60). Filhos da falha humana, do deboche, a Roda salvava não apenas as crianças, como também suas mães, cuja mortalidade devida aos abortos era mais elevada do que a ocasionada pelos partos, além de positivar a honra do chefe de família bem como a da Família, como instituição. A alta mortalidade das crianças que eram abrigadas nas casas da Roda - "morreram, antes de um ano, mais de 90% das crianças abandonadas no asilo de Rouen, 84% em Paris, e 50% em Marselha" (Badinter, 1985, p. 141); das 8.086 crianças, recebidas pela Casa dos Expostos do Rio de Janeiro, entre 1861 e 1874, morreram 3.545 (Costa, 1989, p. 165-6); entre 1911 e 1912, na mesma casa faleceram 68% do total das crianças (Oliveira, 1990, p. 94) - possibilita situar a Roda menos como um mecanismo de salvação da vida infantil e mais como um mecanismo destinado ao governo dos costumes das populações. Depuração da consciência: desestímulo às práticas do aborto e do infanticídio; eliminação do espetáculo de crianças mortas nos espaços de circulação pública. Depuração da experiência da morte: anulava-se o ato de matar com as próprias mãos; esquecia-se a banalidade cotidiana de topar com as mortas. Depuração da desordem: a-morte-a-vida infantil ingressava em procedimentos institucionais e administrativos. Depuração da luxúria: os filhos e as filhas da falha, minúsculos párias da vida, testemunhas indiscretas, não pararam de ser produzidos, mas, via o cilindro oco de madeira, eram ocultos/as pela anulação

HISTORIAS DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

g

5

das identidades e dos acontecimentos de sua geração e exposição, pelo rompimento entre a criança e suas origens, pela preservação da reputação moral dos/as faltosos/as, pela cumplicidade social dos/as habitantes, pela manutenção da paz da família, pelo fomento dos interesses e lucros do Estado. Uma instituição "imaginária" que equacionaria em um só lugar a salvação das crianças, a paz das famílias e os interesses do Estado foi proposta, em 1769, por Rétif de Ia Bretonne - em Le pornographe ou Idées d'un honnête homme sur un projet de réglement pour les prostituées propres à prevenir les maiheurs qu'occasionne le publicisme des femmes -, visando a integrar as funções dos conventos, as das casas de tolerância e as das casas de expostos da seguinte maneira: em tal instituição exemplar, seriam recebidas as moças que não eram destinadas ao casamento; as mais belas poderiam receber clientes e, talvez mesmo, casar; as outras cuidariam da criação das crianças que nascessem dessas relações; e o Estado teria "um viveiro de súditos" que não estarão diretamente a seu encargo (já que os clientes pagarão), e sobre os quais "ele terá um poder ilimitado, já que os direitos paternos e os do soberano se confundirão" (Donzelot, 1980, p. 29). Uma forma de racionalidade da assistência aos expostos que tornasse tal atividade útil ao Estado foi propugnada pelo filantropo Monsieur de Chamousset, em sua Mémoire politique sur les enfants, publicada na França, em 1756: É aflitivo ver que as despesas consideráveis que os asilos são obrigados a fazer com as crianças expostas produzem tão poucas vantagens para o Estado (...). A maioria dessas crianças morre antes de chegar a uma idade em que se poderia extrair delas alguma utilidade (...). Não se encontrará um décimo delas com

SS

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

20 anos de idade (...)• E o que vem a ser esse décimo, tão caro, se lançarmos à conta dos que sobrevivem a despesa feita com os que morrem? Um número muito pequeno aprende ofícios; os outros, saem dos asilos para serem mendigos e vagabundos, ou se transferem para Bicêtre com uma certidão de pobreza (Badinter, 1985, p. 156). O projeto de Chamousset era o de transformar a perda em lucro para o Estado, fazendo desse "peso morto (peso de mortos) uma produção rentável para a sociedade", através das seguintes medidas: 1) exportar para a Louisiana essas crianças, previamente alimentadas com leite de vaca, desde os cinco ou seis anos, para cultivar a colônia; 2) imediatamente após o desembarque, seriam ocupadas na criação do bicho-da-seda - "operação fácil, que proporcionaria grande lucro" -, trabalho "que lhes proporcionará naturalmente uma recreação", tal como se as vê divertindo-se nos intematos; 3) ocupá-las, desde os dez anos, até que casem, aos domingos e feriados, com exercícios militares, reservando-se um tempo para a aprendizagem dos princípios da Religião; 4) entre os vinte e 25 anos seriam casados, e se lhes daria tanta terra quanto pudessem cultivar. O cálculo dos lucros para a França deveria ser feito com base nos seguintes dados: a) somente na cidade de Paris, eram abandonadas cerca de 4.300 crianças; b) se o resto do país produzisse o dobro desse número, ter-se-ia então cerca de doze mil crianças achadas, a cada ano; c) adotando-se a proposta de aleitamento artificial, que diminuiria a mortalidade, restariam pelo menos nove mil crianças para serem exportadas todos os anos; d) ao fim de trinta anos deste regime, as colônias francesas se teriam enriquecido de duzentos mil colonos; e) em menos de um século, a França teria povoado um país maior e mais fértil, que lhe aumentaria consideravelmente as riquezas.

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

9

7

Chamousset sugeria outras utilizações para as crianças expostas, dentre as quais a de enviá-las às numerosas guerras, para não ter mais de recrutar os jovens de "famílias legítimas" retirados da agricultura; pois, essas crianças que não conhecem outra mãe senão a Pátria (...) devem pertencer a esta e ser empregadas da maneira que lhes seja mais útil: sem pais, sem apoio além do que um sábio governo lhes proporciona, elas não têm ao que se apegar, e nada a perder. Poderia a própria morte parecer temível a esses homens que nada parece prender à vida, e que se poderiam familiarizar desde cedo com o perigo, caso se lhes destinasse ao serviço como soldados (Badinter, 1985, p. 158)? Pelo fato de que "a educação pode tudo", acrescentava o filantropo, não seria difícil que as crianças expostas aprendessem a olhar com indiferença a morte e os perigos, sentimentos dos quais elas não correriam o risco de serem afastadas por qualquer ternura recíproca ou por laços de parentesco. O Estado e sua administração deveriam esforçar-se para conservar as expostas vivas, aperfeiçoar sua higiene e o aleitamento, de modo que sobrevivessem aos primeiros anos. Cada aldeia que quisesse ficar isenta do serviço militar deveria encarregar-se de, no mínimo, oito dessas crianças, até que entrassem no exército; assim, cada pai e mãe cuidariam delas convenientemente, pois veriam em sua subsistência a liberdade dos próprios filhos. Para indenizar o Estado das despesas feitas com sua criação, os jovens milicianos serviriam à Pátria até os 2 5 ou trinta anos e, durante seus anos de serviço, o Estado economizaria um salário de marinheiro ou de soldado, bem mais elevado do que o custo anual de uma criança (Badinter, 1985, p. 159-160). Em 1873, um anônimo que se subscrevia como "Amigo do Brasil" publicou um projeto para a fundação de uma Fazenda-Escola ou Colônia Agrícola de Órfãos e Meninos

9 8

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Abandonados ou Sem Trabalho. Após referir-se à recente liberdade concedida aos "filhos nascidos de ventre cativo", explicava: O que, pois, a agricultura receia é que o governo os mande para os arsenais da Marinha de Guerra, ou que se lhes dê uma educação ligeiramente estranha à vida dos campos: e esses receios não são infundados, pois que até aqui todos esses rapazes abandonados, pobres ou infelizes, têm ficado encerrados nos estreitos limites da cidade, ou completamente estranhos à vida agrícola (Lima e Venâncio, 1996, p. 71-2). A criação da fazenda-escola propiciaria "uma instrução séria, compatível com as necessidades da agricultura e do país". Para lá, os juizes de órfãos enviariam os meninos expostos, pois, como lembra o anônimo: "Nas nossas mãos temos um paliativo, senão um remédio, para os males que possam cair sobre a agricultura"; afinal, "temos os meninos do país", que podem tornar-se "excelentes obreiros, bons agricultores; temos todos esses crioulinhos libertos". Se a Roda foi um dos mecanismos que ajudou a pensar uma nova racionalidade de Estado e a calcular seus lucros, financeiros, administrativos, morais, as práticas de recolhimento e de segregação promovidas por ela somente são inteligíveis em relação aos axiomas que regiam o antigo sistema de alianças e de filiações, já que se incumbiam dos "restos" inevitáveis de tal regime familiar. Por livrarem as famílias "dos indesejáveis da ordem familiar", tanto ampliaram o espaço de intervenção do Estado, na conservação e utilização dos indivíduos, quanto funcionaram como ponto de partida para o desencadeamento de ações corretivas e moralizadoras das condutas; estabelecendo-se assim não uma aliança estratégica entre as duas ordens - a da família e a do Estado -, e sim uma "conivência tática", na qual a Roda "este dispositivo técnico engenhoso, como a chamou Donzelot

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

- rompia, "sem alarde e sem escândalo, o vínculo desses produtos de alianças não desejáveis", bem purava "as relações sociais das progenituras não à lei familiar, às suas ambições, à sua reputação" 1980, p. 28-31).

g

g

de origem como deconformes (Donzelot,

Exemplar da reviravolta na relação Estado-família, o sistema da Roda dispôs para o Estado, primeiramente, a absorção dos excluídos da ordem familiar, o estímulo a que vivessem para então integrá-los, e, finalmente, seu aproveitamento enquanto corpos úteis, proveitosos e lucrativos. Para a mãe de família popular, tal sistema a transformou em nutriz, mandatada pelo Estado, e foi desse modelo que ela retirou a dupla dimensão de sua condição a acompanhá-la por longo tempo: a remuneração coletiva e a vigilância médico-estatal. Para as expostas, articulou sua condição de "filhos da Pátria", produtos de um confronto entre a mulher popular e a assistência estatal, e sobre quem lançou a suspeita de se fora ou n ã o desejado seu e n g e n d r a m e n to (Donzelot, 1980, p. 34-5). Sem dúvida, pode-se afirmar que a Roda integrou o que Foucault chamou "prática do internamento", constituída por uma rede de instituições implantada a partir do século XVII, na Europa [e, como já vimos, não apenas lá]: uma nova reação à miséria, um novo patético; de um modo mais amplo, um outro relacionamento do sujeito humano com aquilo que pode haver de mais inumano em sua existência. O pobre, o miserável, o homem, a mulher e a criança da Roda que não sabiam responder por sua própria existência, assumiram no decorrer do século XVI uma figura que a Idade Média não teria reconhecido; isto é, a miséria despojada de sua positividade mística, por um duplo movimento do pensamento: "o que retira à Pobreza seu sentido absoluto e à Caridade o valor que ela obtém dessa pobreza socorrida" (Foucault, 1991e, p. 48).

1 DD

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

De um modo específico, o Estado reorganizava e regulava a pobreza, a Igreja Católica, sua caridade e vice-versa. Nesses movimentos, é exemplar que São Vicente de Paula, em 1632, em Paris, funde as primeiras Couche, ou abrigos das crianças achadas, que são consideradas os "embriões de creches" (Priore, 1996, p. 24). Através delas se afinava o pioneirismo jesuítico com o papel atribuído pelo Estado moderno à educação: centralização dos abandonos; atribuição de finalidade estatal ao encargo dessas crianças; antagonismo à utilização que a corporação dos mendigos fazia das expostas, a qual, "por meio de mutilações sem número, tornavam-nos objetos próprios a suscitar a 'compaixão'" (Donzelot, 1980, p.27; p. 59). O exílio daquela antiga criança exposta e a moderna reclusão da Roda não trouxeram consigo o mesmo sonho político, embora ambas conservassem o anonimato de quem expunha: um era o de uma comunidade caritativa, o outro, o sonho de uma sociedade disciplinar que, em seus primeiros gestos, ainda não necessitava nem queria ver quem expunha, mas que, talvez por isto mesmo, o que fazia era positivar e governar de forma disciplinar os corpos infantis expostos que assim se publicizavam. Tanto o exílio quanto a Roda, em sua maior ou menor intimidade com a morte, não configuraram de início "problemas públicos": isso foi constituindo-se de modo descontínuo, desde que as primeiras instituições de assistência, bem como a Roda, foram, por muito tempo, "problemas" do clero, das confrarias de caridade, dos homens e das mulheres da alta elite que se dedicaram a recolher esmolas e a proceder a legados e a doações para amparar a pobreza das crianças abandonadas (cf. Guimarães, 1984; Irmandade..., 1997; Lima e Venâncio, 1996). Centralizando a exposição desordenada e funcionando como uma estratégia de governo frente à mendicidade, o internamento da Roda ligou-se a uma problematização mais

IISTóRIAS DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

1 D

1

ampla da moral e da ordem, em uma época na qual a ética se tornava laica e a virtude dos indivíduos aparecia como um objeto a ser administrado pelo Estado, da mesma maneira que o comércio e a produção: "os muros da internação encerram de certo modo o lado negativo desta cidade moral, com a qual a consciência burguesa começa a sonhar no século XVII" - cidade onde impera uma "espécie de soberania do bem em que triunfa apenas a ameaça, e onde a virtude (...) só tem por recompensa o fato de escapar ao castigo". A sombra dessa cidade, nasceu uma estranha república do bem imposta pela força a todos os suspeitos de pertencer ao mal: as leis do Estado e as do coração finalmente identificavamse umas com as outras (cf. Foucault, 1991e, p. 75-6). Retirando a positividade mística que envolvia a miséria na Idade Média e recusando a necessidade das obras de caridade para a salvação eterna, a Reforma realizou um novo recorte da pobreza: além de ser o sinal de um castigo de Deus, passou a ser concebida como um efeito da desordem, um obstáculo à ordem. Também o catolicismo chegou, por caminhos diferentes, a resultados análogos: converteu os bens eclesiásticos em obras hospitalares, atribuindo a estas um alcance geral e avaliando-as conforme a sua utilidade para a ordem dos estados. O mundo católico adotou um modo de percepção da miséria que se havia desenvolvido no mundo protestante: a partir dela, os miseráveis não eram mais reconhecidos como o pretexto enviado por Deus para suscitar a caridade do cristão e com isso dar-lhe a oportunidade para sua salvação. Ao redefinir a miséria, a Igreja investiu em uma cisão que inexistia no mundo medieval: entre os bons e os maus pobres, os de Jesus Cristo e os do Demônio. Por tal divisão, o internamento justificava-se duas vezes: a título de benefício e a título de punição; ora era assistência, ora era castigo, conforme o valor moral daquele a quem se aplicava.

1 O 2

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

A "Grande Internação" inseriu-se na laicização da caridade, que assumia a forma de uma razão de Estado, colocando sob seus cuidados e os da cidade moral toda a população de pobres, incapazes, expostos (cf. Foucault, 1991e, p. 56-63). Se a exposição exaltara a miséria e glorificara a experiência de recolhimento, pela salvação e alívio que propiciava, a Roda suprimiu a criança miserável, fez a esmola desaparecer, deu cabo da dialética da humilhação e da glória. Foi ela que introduziu o corpo infantil na relação entre a desordem e a ordem, encerrando-o numa culpabilidade. Foi ela que começou a fazer deste corpo o corpo de um sujeito infantil moral, retirando-o da desordem das ruas para depositá-lo na rotação da ordem da Roda e da previdência dos Estados. Crianças da roda, filhas da falha, bocas para as quais não havia alimento, minúsculos párias, sobras da vida, desgraçados espúrios, sim; mas não mais expostos em qualquer lugar. Doravante, encerrados na hospitalidade camuflada de uma moldura de pedra, em um sítio escuro e retirado, seus corpos eram agora encarados apenas no horizonte da moral, dentro dos muros de uma casa vizinha a de todos os seus semelhantes. Desde então este corpo se destaca sobre o fundo formado por um problema de "polícia", referente à ordem dos indivíduos na cidade. Outrora, ele fora recolhido porque vinha de outro lugar. Agora, era excluído/incluído porque vem daqui mesmo, e porque seu lugar é entre os pobres, os miseráveis, os vagabundos, os loucos, os doentes. Acolhido, saneado, registrado, batizado, o corpo infantil estará assim na Roda fora do caminho, pois que perturba o espaço social. Problema de polícia: o corpo da Roda é já da alçada dos Estados administrativos, caracterizados pela multiplicação das atividades que passam a ser objeto de sua interven-

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

1 Q 3

ção, nas quais incorporam funções anteriormente executadas pela Igreja e por particulares. Corpo que exige a atuação das duas faces da polícia: a da segurança que garante o poder do Estado sobre as forças internas e assegura sua defesa contra as forças externas; a do bem-estar que deve aumentar a riqueza e a felicidade públicas. Nada mais simples de pensar: o sexo não se julgava apenas, administravase. Exigia procedimentos de gestão. Sobrelevava-se ao poder público. Devia ser assumido por discursos analíticos; o sexo se tornava uma questão de polícia no século XVIII. Então como teria sido possível deixar fora desta questão sexual "administrativa" o corpo infantil exposto, nascido do sexo, e de um sexo no mais das vezes "mau"? Como deixar de introduzi-lo não na repressão da desordem, mas na majoração ordenada das forças coletivas e individuais do Estado? A Roda exaltava a função purgadora dos desvios sexuais e era essa espécie de confessionário que, ao mesmo tempo, registrava e absolvia os produtos das faltas, também, mas acima de tudo administrava um novo corpo de criança que dela nascia. Os tratados de polícia, alicerçados na distinção entre Razão e Desatino, já tinham prescrito no século XVII o recolhimento daqueles que se entregavam à devassidão: escândalo público e interesse das famílias. O internamento tinha sido o instrumento que a monarquia absoluta dera para uso da família burguesa. Saúde e doença, normal e anormal: a Época Clássica doara uma ética sexual que ultrapassava a questão da legitimidade ou da ilegitimidade das relações. A vida do corpo exposto na Roda é objeto da polícia: seu indispensável, seu útil e seu supérfluo deviam ser por ela regulados na medida exata. Era missão da polícia garantir que esse corpo sobrevivesse, vivesse e inclusive fizesse algo mais do que viver: fosse feliz e útil e reforçasse a potência do Estado, enquanto população infantil.

1 D 4

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Portanto, uma questão de govemamentalização do Estado: o corpo infantil somente pôde ser depositado na Roda em função do desbloqueamento da arte de governar em conexão com a emergência do problema da população - a perspectiva da população, a realidade dos fenômenos próprios à população, suas variáveis. Corpo que daqui para a frente giraria, não só na Roda, mas também nas técnicas e táticas de governo que definiam a cada instante se ele devia ou não ser responsabilidade do Estado, se era público ou privado, se era estatal ou não. Governamentalidade de um corpo onde se encontraram as técnicas de dominação exercidas sobre outros corpos e as técnicas de si: o exposto implicado no governo de si mesmo, na arte de se governar adequadamente uma família e na ciência de bem governar o Estado. Constituição de "outra família", de outro "quadro familiar": célula de sujeitos morais da razão, não mais modelo quimérico e concreto de governo, mas elemento no interior da população e instrumento privilegiado da arte de governar. Gestão de uma família agora instrumental em relação à população, tal como demonstrado pelas campanhas contra a mortalidade, as relativas ao casamento, as campanhas de vacinação, as de aleitamento. Forma de governo não apenas de "um" corpo, mas de vários: corpos anônimos dos pais/mães; corpo familiar não conspurcado e em ordem; corpo social agindo pelos ditames da Lei e da Razão. Modo de cultura das disciplinas: a desarticulação dos mecanismos feudais de exercício do poder, bem como das organizações corporativas e comunitárias de controle e assistência, requisitara a constituição de um sujeito jurídico responsável ante uma sociedade regida por um contrato da Razão. Nesse processo, demarcava-se uma separação entre aquilo que é seu ser de Razão daquilo que era vivido como experiência do Desatino. Se a cultura das dis-

H I S T ó R I A S D E G D V E R N O : CRIANçAS E C I A .

1 D

5

ciplinas tirara dos indivíduos sua inocência e os levara a guiar suas condutas pela Razão, não mais possíveis de serem estabelecidas em conformidade com a Previdência ou com o Destino, a Roda foi um de seus mecanismos de ruptura e, ao mesmo tempo, de passagem para um tempo em que cada indivíduo será tido por um ser único, capaz de responder pelas próprias atitudes. Na supressão da tutela dos costumes, o ingresso na maioridade supôs ainda a tutela do Estado e de suas instituições que cuidaram de fazer superar a menoridade. A exposição das crianças na Roda talvez tenha sido o início de uma operação eminentemente pedagógica, enquanto operação de administração das condutas e das contingências a que os indivíduos se viam sujeitos; talvez tenha sido o complemento necessário para uma época de Iluminismo, que ainda não era uma época esclarecida, como disse Kant. A exposição dos cinco filhos de Rousseau na Roda pode ser exemplo da passagem dessa tutela do exterior para a tutela interior (cf. Oliveira, 1990, p. 85-92), ou, em outras palavras do governo pelos outros para o governo de si: Enquanto eu filosofava sobre os deveres do homem, um acontecimento veio obrigar-me a refletir mais sobre os meus. Thérése engravidou pela terceira vez. (...) Meu terceiro filho foi, portanto, posto na Roda, assim como os primeiros, e o mesmo aconteceu com os outros dois que se seguiram, pois foram cinco ao todo os filhos que tive. Tal arranjo me pareceu tão bom, tão sensato, tão legítimo, que se não me gabei abertamente, foi apenas por consideração a Thérése. (Rousseau, s.d., p. 235-6) Rousseau inicialmente justifica para si, e para seus leitores, tal atitude, vinculando-a a uma sujeição aos costumes do grupo:

1 D 6

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Enquanto eu engordava em Chenonceaux, minha pobre Thérése engordava em Paris, mas de outra maneira; e quando voltei verifiquei que minha obra estava mais adiantada do que pensara. Isso me teria lançado, visto minha situação, num embaraço extremo, se companheiros de mesa não me tivessem fornecido o único recurso para dele sair (Rousseau, s.d., p. 226). O grupo que se reunia na casa de madame La Selle mulher de um alfaiate, que fornecia "comida má", mas cuja mesa não deixava de ser procurada por causa da "companhia certa e boa" que ali se reunia - ensinava a Rousseau "loucas anedotas divertidas", e também "as máximas" que ali se estabeleciam: pessoas honradas ridicularizadas, maridos enganados, mulheres seduzidas, partos clandestinos, eram os assuntos mais comuns, "e os que forneciam crianças para os Enfants-Trouvés eram sempre os mais aplaudidos". Isso me seduziu; formei meu modo de pensar de acordo com o que via dominar entre pessoas tão gentis e no fundo tão honradas; e a mim mesmo disse: - Já que é este o costume da terra, posso segui-lo porque nela vivo. Eis o que eu procurava. Resolvi segui-lo com a alma leve, sem o menor escrúpulo; e o único que tive que vencer foi o de Thérése, com quem tive o maior trabalho do mundo para obrigar a adotar aquele meio único de salvar sua honra. A mãe que além disso receava novos embaraços com a filharada, tendo vindo em meu auxílio. Thérése deixou-se convencer (Rousseau, s.d., p. 226-7). Quando nasce seu terceiro filho, Rousseau constrói um paradoxo de si mesmo, enquanto indivíduo no uso da razão: fala de seus sentimentos de justiça, amor, amizade, generosidade e ternura, para indagar "se tudo isso pode ser harmonizado na mesma alma com a depravação que faz calcar aos pés, sem escrúpulos, o mais doce dos deveres" - o de ser pai. Responde:

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

1 D

V

Não, sinto-o e digo-o em voz alta, não é possível. Nunca, num só instante de sua vida, Jean-Jacques pode ser um homem sem sentimentos, sem entranhas, um pai desnaturado. Pude enganar-me, porém não ficar empedernido. Se expuser minhas razões, direi demais. Já que conseguiram seduzir-me, seduzirão muitos outros: não quero expor os jovens que me possam ler a que se deixem arrastar pelos mesmos erros. Contentar-me-ei em dizer que foram tais, que ao entregar meus filhos à educação pública, por não poder educá-los eu mesmo, destinando-os a ser operários e camponeses em vez de aventureiros e cavalheiros de indústria, julguei agir como cidadão e como pai, e considerava-me como um membro da república de Platão (Rousseau, s.d., p. 236). Os riscos de entregar seus filhos "àquela família maleducada" de Thérése, faz com que Rousseau opte pela educação pública, cuja única via era a exposição na Roda, usando o argumento da razão: "Os riscos da educação nos EnfantsTrouvés eram bem menores". Em Os devaneios do caminhante solitário, na Nona caminhada, escrita em 1778, ano de sua morte, Rousseau retoma a mesma justificativa: Compreendo que a censura por ter colocado meus filhos na Roda de Expostos tenha facilmente degenerado, forçando-se um pouco os fatos, na de ser um pai desnaturado e de odiar as crianças. Contudo, é certo que foi o medo de um destino para eles mil vezes pior e quase inevitável, na falta de qualquer outro caminho, que mais me determinou nessa diligência. Se eu fosse mais indiferente ao que se tornariam e sem as possibilidades de os criar eu mesmo, teria sido necessário, na minha situação, permitir que fossem criados por sua mãe, que os teria mimado, e por sua família, que deles teria feito monstros. Tremo ainda ao pensar nisso (Rousseau, 1995, p. 118). Diz ainda que, em virtude das perseguições que lhe moveram, das armadilhas que lhe armaram, vê confirmada essa sua atitude: "sabia que a educação menos perigosa

1 DB

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

para eles seria a do asilo de enjeitados e lá os coloquei". Com bem menores dúvidas, acrescenta Rousseau, faria hoje, se tivesse de voltar a fazê-lo: "e sei bem que nenhum pai é mais terno do que eu teria sido para com eles, contanto que o hábito tivesse ajudado um pouco a natureza" (Rousseau, 1995, p. 119). Embora o coração censurasse Rousseau por expor os filhos, a razão provava que agira com acerto: Mais de uma vez (...), os gemidos de meu coração me disseram que me havia enganado; mas, longe de minha razão me dizer o mesmo, freqüentemente bendisse o céu por tê-los resguardado desse modo do destino do pai e daquele que os ameaçava quando me visse obrigado a abandoná-los. Bem pesadas as coisas, escolhi o melhor para os meus filhos, ou pelo menos o que julgava ser o melhor. Teria querido mais ainda: preferia ter sido educado e criado como eles o foram (Rousseau, s.d., p. 236). Ainda que Rousseau faça passar pelo cálculo de "perdas-benefício" a decisão de expor seus filhos, sua fala também se implica na categoria de "anormalidade", quanto à prática de expor os filhos, incompatível com a razão e os sentimentos paternos normais: A resolução que eu tomara a respeito de meus filhos, embora pudesse me parecer razoável, não tinha podido deixar meu coração tranqüilo. Ao meditar em meu Traité de 1'éducation, senti que havia negligenciado os meus deveres aos quais não poderia fugir de modo nenhum. Os remorsos finalmente se tornaram tão fortes que quase me arrancaram a confissão pública de minha falta no começo de Émile, e traços dela ali estão, e tão claros que, depois de tal passagem, é surpreendente que tivessem tido a coragem de me censurarem por causa dela (Rousseau, s.d., p. 236).

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

1

0 9

À medida que "explicava" a exposição dos filhos na Roda, Rousseau se deixava afetar por três forças e por três formas diferentes de sujeição: 1) a força dos costumes leva-o à segurança do pertencimento a um grupo; 2) a força da razão encaminha-o à condição de cidadão como pertencente a um Estado; 3) a força da natureza humana integra-o, pela via da censura, à condição de "verdadeiro pai". Parece que, para exercer o auto-governo, Rousseau - e depois dele todo indivíduo ocidental - teve de "naturalizar" suas forças e formas de subjetivação: o instinto materno, a paternidade responsável, o infantil natural, a família monocelular, a heterossexualidade, a procriação, o verdadeiro sentimento em relação às crianças, a infância sem fim, a criança educada (cf. Foucault, 1981; 1991e,g ; 1993; Oliveira, 1990). A "exposição" e a "exposição na Roda": dois esquemas diferentes, mas não incompatíveis: o primeiro, integrante de um regime dominado pela estrutura da soberania; o segundo, componente de um regime dominado pelas técnicas de governo. Lentamente, eles se aproximam, combinam-se, cruzam-se, afastam-se, vão e vêm em seus movimentos ora de 1805, ora de 360 9 , após a girada do cilindro e o toque da sineta. Desde a prateleira côncava, com ou sem almofada, a-morte-a-vida infantil faz sua entrada em cena no quadriculamento disciplinar: o recorte fino dos espaços e dos tempos cotidianos de vida de cada criança em sua relação com os institucionais; a individualização pela atribuição numérica e pelos registros escritos; a interpelação e a divisão binaria entre as crianças "da Roda" e as "de família"; a determinação coercitiva e a repartição diferencial acerca de quem é essa criança, onde e com quem deve ficar até que idade, como caracterizá-la, como reconhecê-la se vierem buscá-la, como exercer sobre ela uma vigilância constante, como alimentá-la, o que lhe dar de comer, o que deve

1 1 D

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

vestir, onde e como dormir, quando deve ser mudada, qual medicação, em que quantidade e em qual horário, qual será o seu destino - "primário", "secundário", "final" - , etc. Se para o pai/a mãe parecia que a Roda funcionava por uma lógica oposta à do Panóptico, para a criança exposta existia só um único momento de escuridão: aquele átimo de instante em que o cilindro de madeira girava, da rua para dentro da Casa. Depois dele, o som da campainha confirmava a técnica de governo a que fora destinada, lançando-a na armadilha da visibilidade: as janelas da torre central de todas as santas casas, a luz dos refeitórios, a contraluz das salas de banhos, o candeeiro sempre aceso dos quartos de dormir, as camas com espaços brancos entre elas - próximas, mas sempre separadas (cf. Irmandade..., 1842, p.20). O visível finalmente do infantil, não mais obscurecido por monturos de lixo, soterrado por trapos, escondido em terrenos baldios, sendo tragado pela escuridão das goelas dos cães e dos porcos, fechado em cestas calafetadas com betume e piche; não mais desordenado como no infanticídio, mas diagramando toda sua vida, implantando seu corpo nos espaços, distribuindo-o em relação aos outros, organizandoo hierarquicamente, dispondo-o conforme os centros e os canais de poder, definindo-o de acordo com as formas de intervenção, assistência, caridade, impondo as tarefas, as dívidas, as culpas. O som da campainha alarmava e promovia a enunciabilidade da individualização: a cada criança reservava-se uma página do grande livro de registros de entradas, pois todas as eventualidades de sua vida eram cronologicamente aí inscritas - número de matrícula, sexo, cor, sinais, vacinas, hora, mês, ano, o batismo com a atribuição de nomes, os próprios, os dos padrinhos, os dos santos padroeiros, das criadeiras, das amas, os registros ao longo do tempo das apti-

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

1 1 1

does, condutas, faltas, erros, crimes, punições, condições de saúde, saídas para casas de amas, para prestar serviços, emancipação da casa, data do casamento, valor do dote, número e nomes dos filhos, data da morte, causa mortis. Todo um sistema de documentação individualizante e permanente: um boletim individual, um parecer descritivo de vida inteira, uma conta moral em nome de uma economia em material, em pessoal, em tempo; em nome da eficácia da prevenção; em nome de um funcionamento contínuo e da instalação de mecanismos contínuos; em nome da moral pública, da família, do sexo heteroconjugal, da homofobia, da sociedade ameaçada pelas crianças expostas; pelo uso de mecanismos que entrevistavam, testavam, inquiriam, examinavam, interrogavam, fazendo com que o infantil se confessasse e finalmente assumisse em toda extensão e intenção o visível e o enunciável da denominação genérica e corrente que lhe fora atribuída há muitos séculos atrás: a de CRIANÇA EXPOSTA - dada a outros, dada a ver, dada a ser dita; revelada, descoberta, exibida, mostrada; para ser batizada, quadriculada, educada. Nada de externo uersus interno, senão de efeitos estruturados de práticas sociais: as casas da Roda foram a majoração produtiva e o laboratório de poder acerca do infantil; seus mecanismos de observação ganharam em eficácia e em capacidade de penetração no comportamento das crianças; seus mecanismos de registro descobriram novos objetos a serem conhecidos em todas as superfícies onde este se exercia. Mecanismos de um poder surgidos de uma nova escala de observação e de um novo +<po de registros os quais fizeram nascer um novo objeto discursivo. Mecanismos e estratégias que, ainda agora, estão dispostos em torno do infantil, tanto para marcá-lo quanto para modificá-lo, tanto para apontar o normal quanto, com mais motivos, para tra-

1 1 2

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

tar do anormal. A Roda foi o engenho, a máquina, a engrenagem giratória e ótica, o arranjo, a figura da tecnologia política disciplinadora do infantil. Ela foi capaz de exercer muitas funções: de educação, terapêutica, de produção, de castigo, de moralização, de saneamento, de subjetivação e de dominação. Ela fez emergir objetos infantis pois remeteuse a instituições, processos econômicos e sociais, formas de comportamento, sistema de normas e técnicas. A Roda: esta espécie de antecâmara do "Ovo de Colombo" na ordem política do Panóptico. Simples objeto da época que condensa uma transição. O esquema da Roda se difundirá no corpo social, tomar-se-á uma função generalizada. A educação escolar fará suas vezes, fará a parte que lhe cabe, recebendo, acolhendo as crianças: não somente "as expostas", no sentido antigo, mas também as outras, "as expostas" à cultura, à racionalização, à moralização, à educação, à escolarização. Serão outras essas "rodas educativas", bem mais metafóricas, aquelas que exigirão nunca mais o anonimato, mas uma forte "aliança" entre quem expõe e quem acolhe o infantil ainda exposto. Tal como a matriz da escola cristã, nossas "rodas educativas" não podem apenas formar crianças dóceis; devem permitir vigiar também os pais e as mães, informar-se de suas maneiras de viver, seus recursos, suas piedades, seus costumes. Minúsculos observatórios sociais, essas rodas: penetrar nos adultos e exercer sobre eles um controle regular; mau comportamento de uma criança, sua ausência, são pretextos legítimos para interrogar os vizinhos, principalmente se a família não diz a verdade; depois o pai/a mãe, para verificar se sabem o catecismo e as orações, se estão decididos a arrancar os vícios das crianças, quantas camas há e como eles se repartem nelas durante a noite; a visita termina com esmola, presente de uma imagem, ou doação de camas suplementares (cf. Foucault, 1989).

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

1 1 3

O modelo continua sendo o corpo objetivo da criança sem amparo a ser amparado pelo poder educacional. De todo modo, a raiz de poder prossegue sendo esse infantil, como suporte para intervenções estratégicas; como um meio de governar, direta ou indiretamente, suas condutas e as dos adultos; como base para criar novas técnicas de cuidados, regulação e controle das populações. As práticas de "salvar as crianças" - do século XVII pelo recolhimento da exposição nas ruas, do século XVIII pela Roda - dão lugar, nos séculos XIX e XX, às práticas de "educar as crianças", mesmo porque aqui continua tratando-se de "salvação". Afinal, não foi por nada que a Razão de Estado descobrira que, ao salvar o Outro infantil, pela internação, produzia não apenas seu recolhimento, mas sua criação, gerando um estranhamento em relação àquela figura familiar do cotidiano. Os gestos e mecanismos que proscreveram a criança exposta, acolhendo-a, desfizeram a trama, alteraram seu rosto na paisagem social, fizeram dela uma figura bizarra que ninguém reconhecia mais: suscitaram "A Estrangeira" ali mesmo onde ninguém a pressentira. Refazer a história desse processo de banimento do corpo infantil é fazer a arqueologia de uma alienação: descrever os gestos que com ele foram realizados; voltar a escrever os registros que dele foram escritos; demonstrar as operações específicas que se equilibraram na totalidade por ele formada; inventariar de qual horizonte provinha aquele corpo que partiu junto com todos os outros sob o golpe da mesma segregação; escavar as experiências que fazia de si mesmo no exato momento em que alguns dos perfis mais costumeiros começaram a perder sua familiaridade e sua semelhança com aquilo que reconheciam como suas próprias imagens (cf. Foucault, 1991e, p. 81-2).

1 1 4

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

O dispositivo da Roda instalou um corte abrupto que provocou medidas administrativas sobre o corpo infantil; o qual, sem dúvida nenhuma, faz parte das camadas históricas da história da infantilidade, por materializar, na dura realidade do cilindro giratório, engastado em uma moldura de pedra, que da rua mal se via, os arranjos d'a-vida-a-morte do infantil e da mais-valia dos quais forneceu ambas as fórmulas. Tendo passado pela madeira escura da Roda, o infantil moderno finalmente ingressara na Casa de Vidro do panoptismo, toda ela atravessada e penetrada por mecanismos disciplinares. Millieu indecidível onde nós, chegada a nossa vez, o recolhemos: para otimizar o cálculo e o diagrama de eficácia na constituição de seu corpo produtivo.

DISPARATE DA PRQVENIENCIA

A busca da proveniência - Herkunft -, neste estudo, permitirá reencontrar, seguindo Foucault (1990d), sob o aspecto único do conceito "infantil", a proliferação dos acontecimentos "através dos quais (graças aos quais, contra os quais) eles se formaram". Esta espécie de genealogia não recuará no tempo para restabelecer a "grande continuidade" da história - dos/as historiadores/as - da infância, a qual, graças a seu evolucionismo, trata o objeto "infância" ao modo de uma vida biológica: nascimento, crescimento, maturidade, morte. Sua tarefa não é a de mostrar que "o passado ainda está lá, bem vivo no presente, animando-o ainda em segredo, depois de ter imposto a todos os obstáculos do percurso uma forma delineada desde o início". Ao contrário, é a tarefa de manter o que se passou com o infantil, na dispersão

IISTÓRIAS DE GOVERND: CRIANÇAS E CIA.

1 1 5

que lhe é própria, demarcando os acidentes, os pequenos desvios, e também as inversões completas - "os erros, as falhas na apreciação, os maus cálculos" - que deram "nascimento" à infância que existe e tem valor para nós; descobrindo que, na raiz do que conhecemos sobre ela, e daquilo que somos enquanto "infantis", "não existem a verdade e o ser, mas a exterioridade do acidente" (cf. Foucault, 1990d). A proveniência, aqui e em outras histórias de inspiração genealógica, diz sempre respeito ao corpo e a tudo que se refere ao corpo. Por isso, ela "se inscreve no sistema nervoso, no humor, no aparelho digestivo. Má alimentação, má respiração, corpo débil e vergado daqueles cujos ancestrais cometeram erros; que os pais tomem os efeitos por causas, acreditem na realidade do além, ou coloquem o valor eterno, é o corpo das crianças que sofrerá com isto". O corpo: "superfície de inscrição dos acontecimentos (enquanto que a linguagem os marca e as idéias os dissolvem), lugar de dissociação do Eu (que supõe a quimera de uma unidade substancial), volume em perpétua pulverização". A análise da proveniência "está portanto no ponto de articulação do corpo com a história. Ela deve mostrar o corpo inteiramente marcado de história e a história arruinando o corpo" (Foucault, 1990d, p. 22). Esse é o "dever" deste estudo daqui para a frente: mostrar como o corpo infantil foi marcado de história e de que modo a história arruinou esse corpo; para, desacreditando da metafísica, escutar mais a história, operando na direção de constituir uma história das rupturas que produzem e são produzidas por uma outra história que não a da infância: a do dispositivo que infantiliza.

1 1 6

A

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

IDENTIDADE: C ü M E ç D S

INUMERáVEIS

Emblemático do direito de pátria potestas na sociedade ocidental é o gesto da criança "elevada". Imediatamente após o parto, desembaraçado das lides das mulheres, o recém-nascido romano era exposto diante da porta, depositado no solo, cabendo ao pai reconhecê-lo, por tomá-lo em seus braços, quer dizer, elevá-lo - elevaie - do chão. Esta elevação física, em sentido figurado, convertia-se em aceitar criá-lo. Se o pai não "elevava" a criança, esta era deixada na porta, tal como era feito com os filhos não desejados dos escravos, com os filhos da miséria e do adultério, ou com as crianças livres não desejadas. Entretanto, para a história da infantilidade, o reconhecimento pela via da elevatio não simbolizou, como queria Aries (1986, p. 5-6), a questão de uma "vida dupla", que era dada à criança duas vezes - a primeira quando saía do ventre da mãe e a segunda quando o pai a elevava -; mas era sim uma questão de morte, já que, com este gesto, o pai marcava seu poder sobre a vida do filho, pela morte que tinha o direito de exigir. O tipo de poder que produziu esta prática foi o de um poder absoluto e direto sobre a vida das crianças, calcado no postulado de que quem tivesse dado a vida, tinha o direito de tirá-la. Foucault (1993, p. 127-149) articula o direito paterno do pátria potestas ao direito de vida e morte exercido pelo rei sobre seus súditos: ambos são assimétricos e, em seu funcionamento, manifestam um mesmo tipo de poder que atua sobre sujeitos jurídicos - os filhos e os súditos -, sobre os quais seu último acesso era a morte, efetivamente exercida ou contida. Se o direito paterno da potestas não conhecia limites - sendo mais soberano do que o do próprio soberano -, e era sempre direto, o do rei era limitado, tendo deixado de

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

1 1 "7

ser absoluto para ser mais uma espécie de direito de réplica, e fora relativizado sob duas formas: direto, ao tirar a vida do súdito, sob a forma de castigo, quando este o ameaçara em sua sobrevivência; e indireto, expondo sua vida nas guerras necessárias para defender o território, ou a legitimidade do próprio soberano. Esse poder sobre a vida, funcionando pela morte que tinha o direito de exigir, estava representado pelo direito jurídico de vida e morte, delegava a quem o exercia a escolha entre causar a morte ou deixar viver e era simbolizado pelo gládio. Sob essa figura jurídica, encontramos um tipo histórico de sociedade, onde o poder era confiscante, extorsivo, apropriador: de parte do soberano, extorsão dos bens, produtos, trabalho, sangue dos súditos; da parte paterna, confisco da vida e do sangue dos filhos. Tanto um quanto o outro implicavam-se em um poder cujos mecanismos qualificavam a morte sob uma variada abundância de formas. A partir da Época Clássica, ocorre uma transformação desses mecanismos de poder, de tal modo que o direito de morte desloca-se, apoiando-se sobre um poder que gera e ordena a vida. Aqui, o confisco e a supressão são apenas algumas das peças com funções de reforço, controle, vigilância, majoração e organização das forças vivas. A questão não é mais a do direito de vida e morte - seja real, seja parental -, mas passa a ser a questão biológica de uma população: o poder que era aquele do direito de causar a morte ou de deixar viver é substituído - não sem justaposições, interações e ecos - por um poder capaz de causar a vida ou devolver à morte, situado e exercido no nível da vida, da espécie, da raça, dos fenômenos da população. É sobre a vida que esse novo poder estabelece seus pontos de fixação, fazendo com que a morte se desqualifique, que seus rituais entrem em desuso e passe a ser o limite, o momento

1 1B

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

que lhe escapa - por exemplo, o momento no qual os pais choram, quando lhes morre um filho. Porque este poder parental e político assume a tarefa de gerir a vida, mata, em nome da necessidade de viver, aqueles que constituem um perigo para os outros, fazendo com que os massacres e genocídios tornem-se vitais. A tecnologia política própria deste poder - devida ao grande crescimento demográfico do ocidente europeu durante o século XVIII; à necessidade de coordenar esta acumulação humana e de integrá-la ao desenvolvimento do aparelho de produção; e de controlá-la por mecanismos de poder mais rigorosos - fez surgir "a população", com suas variáveis de números, de repartição no espaço e no tempo, de longevidade e de saúde: não somente como objeto de vigilância, análise, intervenções, operações transformadoras, mas também como problema teórico (cf. Foucault, 1990d). Tecnologia da população desenvolvida em dois pólos: um, anatômico, em que o corpo passa a ser visto como máquina, a partir das disciplinas do corpo - famílias, escolas, colégios, casernas, oficinas, hospitais, asilos -, produzindo uma anátomo-política do corpo humano, em torno das quais se desenvolve a organização do poder sobre a vida; e o outro, biológico, a do corpo-espécie, surgido para regular as populações, por meio de uma biopolítica, cujas tarefas consistem nas observações econômicas, no controle da longevidade, da natalidade e da morbidade, da saúde pública, da habitação, da migração: técnicas diversas para obter a sujeição dos corpos e o controle da população. Essa era do biopoder foi um elemento indispensável ao capitalismo, mas este exigiu mais: corpos para os aparelhos de produção e conhecimento dos fenômenos da população para prever os processos econômicos. Assim, a vida e seus fenômenos entram no campo das técnicas políticas; a um só

IISTóRIAS DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

1 1 9

tempo em que a vida entrava na história, fazendo com que seus processos fossem levados em conta pelos procedimentos de poder e de saber que tentaram calculá-los, modificálos e controlá-los. Agora, o poder estava às voltas com seres vivos; o império que exercia sobre eles devia situar-se no nível da própria vida e as tecnologias políticas dele derivadas e que o constituíam irão cada vez mais investir sobre o corpo, a saúde, a alimentação, as condições de vida e o espaço das existências. É preciso distribuir os vivos, encarregar-se da vida, por meio de mecanismos contínuos, reguladores e corretivos, em prol da norma e não mais da lei (cf. Ewald, 1993). O "direito" não é mais aquele derivado da lei, tal como se apresentava para o sistema jurídico clássico: esse "direito à vida", num sentido amplo, torna-se a réplica política aos novos procedimentos de poder, elaborados durante a Época Clássica e postos em ação no século XIX. Somente essa nova economia dos mecanismos de poder poderia ter produzido o chamado "nascimento da infância", derivado do dispositivo de poder-saber da infantilidade, pensado a partir das técnicas de poder que lhe são contemporâneas e do qual se indaga: de que modo articulou-se esse dispositivo à medida que se desenvolveram as tecnologias modernas de poder que tomaram por alvo a vida infantil? Por que se articulou o objeto histórico "infância", engendrado e tornado necessário pelo dispositivo de infantilidade e por seu funcionamento? Estimativas demográficas, cálculo da pirâmide das idades, previsão das diferentes esperanças de vida, contagem das taxas de morbidade, estudo das relações entre o crescimento das riquezas e da população, incitações ao casamento e à natalidade conjugai, desenvolvimento da educação escolarizada e da formação profissional, todos esses problemas, que giram em torno do "corpo infantil" - superfície de inscrição no corpo de cada indivíduo e no corpo das populações -, precisam ser levados em consideração para responder a essas perguntas.

1 2 O

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Uma coisa é certa: com aquele velho poder e sua potência de causar a morte e com o domínio do direito jurídico de vida e morte em ação, "a infância" não teria "nascido"; já que a nova condição histórica de possibilidade somente pôde ser criada pela eficácia produtiva do biopoder que devia encarregar-se dos corpos, não mais para exigir deles o serviço do sangue, protegê-los dos inimigos, assegurar os devidos castigos, extorquir as rendas ou dar-lhes a morte, mas para ajudá-los a garantir sua saúde e bem-estar. Caso se queira estabelecer datas, temos que, do início até o fim da Idade Média, o dispositivo de infantilidade não teve por função "cuidar do infantil", e sim zelar pelos cuidados da descendência, pelas relações de submissão e de posse entre pais/mães e filhos/as, pela guerra e pela paz. Até os séculos XVII e XVIII, o poder político do dispositivo de infantilidade efetuou-se e foi disputado em outras instâncias políticas de poder-saber, como naquelas que produziram: governantes-governados, médicos-doentes, confessores-fiéis, homens jovens-anciãos, diretores de consciênciadirigidos, psiquiatras-loucos, racionais-sem razão, ricos-pobres, homens-mulheres, aios-pupilos, cultos-ignorantes, homens livres-escravos, agentes penitenciarios-prisioneiros, mestres-discípulos, etc; todo um conjunto heterogêneo no qual, sem dúvida, algo e alguns/algumas - grupos e individualidades da sociedade ocidental - já vinham sendo infantilizados/as; e onde, por efeitos dessa operação, articulava-se a proveniência da instância moderna "adultosinfantis". O dispositivo de infantilidade distribuiu, regionalmente, as emergentes individualidades infantis junto às outras individualidades dependentes e sujeitadas, já existentes e conceitualizadas, por estarem sendo operadas por esse mesmo poder. A especificação e a partição desse conjunto hete-

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

1 2

1

rogêneo, todo ele recoberto pelo dispositivo de infantilidade, produziram, como elemento essencial de seu próprio discurso e funcionamento, a idéia de "infância": esse objeto imaginário, historicamente datável, que passo a tratar como nascido dos mecanismos desse poder, e a descrever suas passagens de uma simbólica do sangue a uma analítica da infantilidade. Por muito tempo, disse Foucault (1993), o sangue constituiu um elemento importante nos mecanismos de poder, em suas manifestações e rituais. Na história do dispositivo de infantilidade - da qual provém e emerge a infância -, o poder dos laços de sangue, a partir dos séculos II e III, acrescenta outra dimensão social e moral ao matrimônio que este não possuía na Roma antiga: a união dos corpos torna-se sagrada, bem como os filhos, frutos dela, e estende-se para além da vida, à morte - como comprovam as inscrições nos túmulos funerários (Aries, 1986, p. 6) -, e os vínculos carnais e sangüíneos passam a ser mais importantes do que aqueles vínculos eletivos que definiam as decisões da vontade paterna no gesto da elevatio. Inicia-se um longo período, pautado pelo mesmo tipo de poder, que só terminará na Época Moderna. Em uma sociedade dos laços de sangue dos séculos X e XI, em que a família [a mesnie] convivia com a linhagem - onde a solidariedade era extensiva a todos os descendentes de um mesmo ancestral, vivendo segundo um tipo de posse chamado frereche ou fraternitas, em uma mesma propriedade que se haviam recusado a dividir -, os nascimentos eram considerados uma riqueza e os filhos um produto indispensável, já que permitiam dominar os demais: a fidelidade mais segura era a do sangue, a do nascimento, e o sistema de progenitura garantia a permanência do nome e a salvaguarda do patrimônio; as filhas mulheres eram moedas correntes de

1 2 2

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

intercâmbio no regime de alianças; com muitos filhos, nos castelos, uma família tornava-se mais poderosa e, nas cabanas, tinha aumentada a segurança dos grupos e a quantidade de mão-de-obra (cf. Aries, 1981, p. 211-4). Nesse tipo histórico de sociedade, o poder falava através do sangue: onde predominavam os regimes de aliança, a forma política do soberano, a diferenciação em ordens e castas, o valor das linhagens; e onde a fome, as epidemias, as guerras, o verdugo e os suplícios faziam da morte presença contínua, o sangue constituía um dos valores essenciais e seu preço se devia, ao mesmo tempo: a seu papel instrumental - "poder derramar o sangue"; a seu funcionamento na ordem dos signos - "ter um certo sangue, ser do mesmo sangue, dispor-se a arriscar seu próprio sangue"; à sua precariedade - "fácil de derramar, sujeito à extinção, demasiadamente pronto a se misturar, suscetível de se corromper rapidamente" (Foucault, 1993, p. 138). Da realidade do sangue, com função simbólica, em que as famílias e os filhos são incitados pelo patrimônio e pela carne, e dispostos "do lado da lei, da morte, da transgressão, do simbólico e da soberania" (ib., p. 139), passar-se-á para a realidade de uma infantilidade, em que as famílias e os filhos - agora incitados pela monogamia indissolúvel do sacramento do matrimônio, pela afeição conjugai, pelo "sentimento de infância" (Aries, 1981, p. 77) -, serão colocados do lado da norma, do saber, da vida, do sentido, das disciplinas e das regulamentações. É possível ver como essa ruptura d'a-vida-a-morte produziu-se, inicialmente isolando da continuidade sem interrupção da história da infância - no cruzamento com alguns livros de Foucault (1991b,e) - uma grande unidade estratégica: a subordinação da identidade infantil, na qual poder e saber fundiram-se em mecanismos específicos, construídos em torno deste tronco: "o infantil". Por sua relativa persis-

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

1 2

3

tência e por operar as primeiras descontinuidades, os primeiros cortes de significação, de sentido, de progresso, na história da infantilidade, tal unidade criou as condições para que fossem unificados e inventados um indivíduo, um tipo social, um sentimento e uma idéia, cujos pertencimentos a um grupo da mesma "baixeza" nos permitem, ainda hoje, apontar e dizer: "Este é o/um infantil". "Isto é infantil"; fazendo com que, da exterioridade de todos esses acidentes, "nascesse" a infância que existe e tem valor para nós. Proveniência de um corpo marcado de história cuja análise permite especificar dois mecanismos, operados em dois pólos: 1) nas instâncias do biopoder, a regulação do pólo biológico do corpo-espécie que se aglutina sob o signo subordinado de mais uma identidade dependente, entre as outras, em relação à classe social, gênero, idade, raça, razão, saúde; 2) no pólo anatômico do corpo como máquina, o segundo mecanismo, por seu funcionamento interdiscursivo, reforça o primeiro, reunindo-se em torno de velhos mecanismos que advinham do poder do sangue, dos quais acaba por se separar, provocando efeitos de poder-saber que se enodam no corpo subordinado de um infantil sujeitado. Sujeição como transformação da subjetivação do indivíduo moderno, a qual, aqui, nessa primeira ruptura da infantilidade, consiste na submissão ao Outro pelo controle e pela dependência; sujeição realizada por todos os procedimentos de individualização e de modulação que o poder de infantilizar instaura, atingindo a vida cotidiana e a inferioridade daqueles infantis que ele chama "seus sujeitos". Essa identidade infantil é sujeitada pelo funcionamento do conjunto das instituições disciplinares, tais como a Família, o Quartel, a Igreja, a Escola, o Hospício, o Hospital, o Asilo, a Casa da Roda; e é consubstanciada em uma figura inequívoca: a do "infantil-dependente", enquanto "o outro" do "Adulto": um

1 2 4

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

infantil diferente, impróprio, diverso, desigual, distinto, dessemelhante, alterado, inexato, desavindo, malquisto, alheio, desgraçado, infortunado, desastrado, inconveniente; o infantil fora-da-norma, disforme, desconforme, desajustado, discrepante, desproporcionado, divergente, irregular; este infantil pequeno, acanhado, apoucado, dependente, subalterno, prejudicado, subordinado, carente, assujeitado, deficiente, imaturo, inconstante, impróprio, errado, incerto, irregular, desproporcionado, injusto, pervertido; este infantil fugido, alien, allius, forasteiro, estranho, esquisito, exótico, desgarrado, extraviado, desencaminhado, peregrino, errante, perdido, emigrado, proscrito; o infantil a ser expedido, remetido, enviado, despachado, desembaraçado, apartado, segregado, exilado, banido, desterrado, degredado, deportado, expatriado para um país estrangeiro (ausiand) - o País da Educação.

INFANTES,

SDLDADDS,

PEQUENOS...

ESTE

LACAIOS,

HOMEM

é

SERVOS,

DE UMA

PEõES,

INFâNCIA!

Examinando as palavras do século XVII que serviam para designar a infância, dentro da configuração das "Idades da Vida", Aries (1981, p. 29-49) afirma que a idéia de infância esteve ligada à idéia de dependência: as palavras fils, valets e garçons eram também palavras do vocabulário das relações feudais ou senhoriais de dependência; e só se saía da infância ao se sair da dependência, ou, ao menos, dos graus mais baixos de dependência. Essas palavras ligadas à infância iriam subsistir para designar familiarmente, na língua falada, os homens de baixa condição, cuja submissão aos outros continuava a ser total: os lacaios, os auxiliares, os soldados. Por exemplo, um petit garçon não era necessariamente uma criança, e sim um jovem servidor; em

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

1 2

5

1549, o diretor de um colégio escrevia ao pai de um de seus alunos, a propósito de seu enxoval e de seu séquito: "No que concerne ao seu serviço pessoal, basta um petit garçon". Aries acrescenta: "da mesma forma hoje, um patrão ou um contramestre dirão de um operário de 20 a 25 anos: 'É um bom menino', ou 'esse menino não vale nada'". No início do século XVIII, o dicionário de Furetière precisou o uso do termo enfant: - Enfant é também um termo de amizade utilizado para saudar ou agradar alguém ou levá-lo a fazer alguma coisa. - Quando se diz a uma pessoa de idade: 'adeus, bonne mère (boa mãe), 'até logo, grand-mère' (avozinha), na língua da Paris moderna, ela responde 'adeus, mon enfant' (ou 'adeus, mon gars', ou 'adeus, petit' ). - Ou então ela dirá a um lacaio: 'mon enfant, vá me buscar aquilo'. - Um mestre dirá aos trabalhadores, mandando-os trabalhar: 'coragem, enfants, agüentem firme'. - Os soldados da primeira fila, que estavam mais expostos ao perigo, eram chamados de 'enfants perdus' (crianças perdidas). (Aries, 1981, p.43) Desse mesmo dicionário, extraem-se provérbios que aparecem junto à palavra enfant: "é um enfant gâté (criança mimada), aquela a quem se deixou viver de um modo libertino, sem corrigi-la"; ou, '7/ n'y a plus d'enfant eqüivale a dizer que alguém começa a ter juízo e malícia cedo"; ou, "inocente como a criança que acabou de nascer". O francês precisou tomar emprestado de línguas estrangeiras palavras para designar a criança: assim foi com o italiano bambino para bambin; com o provençal pitchoun; com marmousets para marmots, na língua popular - "moleques de queixo engordurado que enfiam o dedo em todos os pratos"; ou, no

1 2 6

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

século XIX, do inglês baby, para bébé; também das gírias dos colégios latinos e das academias esportivas e militares frater, cadet, populo, petit peuple. Na mesma época, nas famílias nobres em que "a dependência era somente uma conseqüência da fragilidade física", diz Aries, o vocabulário da infância designava a primeira idade; no fim do século XVI, a palavra petit designava todos os alunos das "pequenas escolas", mesmo aqueles que não eram mais crianças; na Inglaterra, a palavra petty tinha o mesmo sentido que em francês, e um texto de 1627 mencionava a escola dos /yrí/e petties, ou seja, dos alunos menores. Foi a literatura moral e pedagógica - "que exprimiu uma necessidade de ordem moral difundida por toda parte, e da qual Port-Royal era também um testemunho" - que estabeleceu para uso escolar e ampliou o número de termos, dando-lhes o sentido moderno para designar a infância: os alunos de Jacqueline Pascal eram divididos em petits, moyens e granas. Aries (1981, p.44) valoriza positivamente essa criação de palavras para expressar a infância: "o século XVII, que parecia ter desdenhado a infância, ao contrário, introduziu o uso de expressões e de locuções que permanecem até hoje na língua francesa". Ele destaca, mais adiante: "[no século XVII], o fato de estar na 'dependência' de outrem ainda não havia assumido o caráter humilhante que adquiriu depois, pois, entre os criados e os senhores, a relação era de proteção e piedade, "o mesmo sentimento que se tinha pelas crianças" (ib., p. 262-3). Já para esta história da infantilidade, o que interessa destacar é a relação entre as palavras que designam a infância e a dependência por elas produzida. Lerena (1983) analisa o campo semântico em que o Século das Luzes criou o neologismo "educação" para designar o novo "processo de

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

1

2 7

produção de homens" - autônomos e soberanos -, e refere que tal neologismo deriva do poder do senhor e do "possuir" do dono ou do amo: poder e possuir que criavam nomes e produziam a realidade, como, por exemplo, a de seus objetos e produtos: o criado, o filho, o discípulo, o servo (ib., p. 10). Também Elias (1994), ao examinar o manual de civilidade de Erasmo de Rotterdam, De ciuilitate morum puerilium, de 1530, escrito para a educação das crianças entenda-se a educação dos meninos nobres -, mostra, entre os costumes, maneiras, etiquetas, códigos de conduta etc, a mesma correspondência entre infância e servilismo. Por exemplo, no colóquio Proci et puellae, sobre o Namoro, quando o jovem corteja a moça, pede-lhe que imagine como seria lindo quando ele como rei e ela como rainha "governassem seus filhos e serviçais"; ou então, em outro manual para meninos, Johannis Morisoti mediei colloquiorum iibri quatuor, ad Constantinum filium, de 1549, Morisot "apresenta a vida aos meninos", com a justificativa de que estes vivem desde cedo na esfera dos adultos, "mesmo sendo submissos e socialmente dependentes" (ib., p.171, 175). Tais sinonímia e estrutura mental entrarão em um sistema de racionalização e de sistematização quando a pequena burguesia entrar historicamente em ação; porém, continuarão operando por muito tempo na direção da equivalência de um poder que atribui às crianças, filhos/as, alunos/as e, de modo geral, a todos os "diferentes", uma posição social, subjetiva e política servil, enquanto filhos, criados e discípulos eternos. Em língua portuguesa, o mecanismo epistemológico de dependência da identidade infantil é facilmente identificado no português falado, quando as palavras apontam pessoas ou grupos sociais significados como dependentes e in-

1 Z B

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

feriores, ou quando se pretende sujeitar o adulto - homem, senhor. Em dicionários consultados de começo do século XX até o Aurélio (Ferreira, 1974), para o vocábulo "infância" (do latim, infantia), encontra-se o sentido expresso ("Brás. Pop.") de "ingenuidade" (Pequeno..., 1951, Ferreira, 1974), acrescido de "simplicidade" (Ferreira, 1974), que precede o exemplo: - Este homem é de uma infância! (Pequeno..., 1951, Ferreira, 1974), o qual é modificado, no Aurélio (1974), por: - Aquele senhor é de uma infância! Em dicionários de 1912 (Diccionario...) e 1946 (Ferreira, Dicionário...), tal exemplo não aparece. O primeiro define infância como "meninice", "as crianças", "primeiro período de uma arte" e "instituição" (p. 671); o segundo conserva "as crianças" e "meninice", porém atribui sentido figurado ao termo: (Fig.) "O começo da existência de alguma coisa: a infância da ciência" (Dicionário..., 1946, p. 912) O dicionário de 1946b indica "nascimento, origem, princípio, aparecimento, começo", sem atribuir sentido figurado, e dá os seguintes exemplos: "A infância do mundo, da fé, da religião" (Ferreira, 1946, p.528). A partir de 1951, esse sentido de "primeiro período" inclui também "sociedade" junto a "arte", "instituição", "etc." (p.679), prosseguindo na atribuição de sentido figurado, mas sem retomar os exemplos "do mundo, da fé, da religião". A definição de "primeiro período" é conservada nos dicionários posteriores - para arte, instituição, sociedade e etc. -, mas, a partir de 1946, desloca-se para o sentido nãofigurado de: "período da vida" (Dicionário..., 1946), "de crescimento" (Pequeno..., 1951, Ferreira, 1974). Tal indicação de "período" sofre duas modificações: em 1946, define-se infância como "período da vida desde o nascimento até os sete anos", sucedido, após uma vírgula, pela locução "mais ou menos". No Pequeno Dicionário Brasileiro da Lín-

HISTóRIAS DE GOVERND: CRIANçAS E C I A .

1 2 9

gua Portuguesa (1951) e no Aurélio (1974), "vida" é substituída por "crescimento", especificado por "no ser humano", sendo dito de tal período que "se estende do nascimento até a puberdade". No Aurélio (1974), é acrescentado um quinto sentido aos quatro anteriores: 1) período de crescimento, no ser humano, que vai do nascimento até a puberdade; 2) meninice, as crianças [mais "puerícia", no Aurélio]; 3) primeiro período de uma [da existência de uma] sociedade, instituição, arte, etc. (fig.); 4) ingenuidade, simplicidade, seguido do exemplo: Aquele homem [senhor] é de uma infância! (Brás. Pop.) -, qual seja, o significado "Psicol." [Psicológico], que indica características e introduz a divisão da infância em três estágios, separados por idade: "Período de vida" - aqui, é retomado o vocábulo "vida" que só foi encontrado no Diccionario Etymologico, Prosódico e Orthographico da Lingua Portugueza (1912) -, "que vai do nascimento à adolescência" - expressão não existente nos dicionários anteriores -, "extremamente dinâmico e rico, no qual o crescimento se faz, concomitantemente, em todos os domínios, e que, segundo os caracteres anatômicos, fisiológicos e psíquicos, se divide em três estágios: primeira infância, de zero a três anos; segunda infância, de três a sete anos; e terceira infância, de sete anos até a puberdade" (Ferreira, 1974, p. 767). Para "infante" [do lat. infante), são indicados três sentidos que produzem similaridade entre: 1) "pueril, infantil (o que está na infância)", 2) "o peão" [no Brasil, usado para amansador de cavalos, burros e bestas; condutor de tropas; trabalhador rural; e no Rio Grande do Sul, para serviçal de estância, conchavado], 3) "o soldado da infantaria" [que é dito da tropa militar que faz o serviço a pé], 4) "o filho de reis que não tem direito a herdar a coroa" [nesta acepção tem por feminino "infanta"].

1 3 0

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Para "infantil" [do lat. infantile], encontram-se três definições: 1) "relativo a crianças, próprio de crianças"; 2) mas também, "ingênuo" (Diccionario..., 1912, Fernandes, 1946, Ferreira, 1974), "inocente" (Diccionario..., 1912, Dicionário..., 1 9 4 6 , Fernandes, 1 9 4 6 , Pequeno..., 1 9 5 1 , Ferreira, 1974), "simples, tolo" (Ferreira, 1974), "cândido, pueril"; 3) "frívolo" (Fernandes, 1946); 4) apenas no Aurélio (1974) consta o sentido de "próprio para crianças: exemplo 'contos infantis'". Para "infantilidade" (grafado como "infantibilidade", no Diccionario Etymologico (1912) e em Fernandes (1946), encontra-se: 1) "qualidade de infantil"; 2) "ação, modos, ou dito próprios de crianças"; 3) "criancice, puerilidade" (Ferreira, 1974, Fernandes, 1946), "ingenuidade, simplicidade"; 4) "frivolidade, futilidade" (Fernandes, 1946). A ação de "infantilizar" é definida como: 1) "tornar infantil"; "dar feição e aspecto infantil a"; 2) "tornar-se infantil"; "praticar atos próprios da infância"; 3) não consta no Diccionario Etymologico (1912), no Dicionário Enciclopédico Brasileiro Ilustrado (1946) e em Fernandes (1946), enquanto "infantilização" é encontrado somente no Aurélio (1974, p.768), como - "Ação ou efeito de infantilizar(-se)". "Infantilismo" define-se como "anomalia" ou "anormalidade": 1) não consta no Diccionario Etymologico (1912) e em Fernandes (1946); 2) o Dicionário Enciclopédico (1946) apresenta-o como um "termo da Medicina" - "Anomalia que consiste na persistência, quando adulto, de certos caracteres físicos e mentais da infância. O infantilismo é um sinal de degenerescência, que resulta, as mais das vezes, de uma intoxicação crônica (alcoolismo, saturnismo) ou de uma infecção (sífilis) dos pais" (p. 912); 3) nos outros dicionários - "Med. Persistência anormal dos caracteres da infância na idade adulta" (o Aurélio escreve "anormal" entre vírgulas). Vê-se como o exemplo da língua portuguesa - Este homem

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

1 3

1

é de uma infância! - encontra-se carregado de sentidos e sentimentos equivalentes àqueles encontrados por Aries e Lerena. Sentidos e sentimentos também presentes nos vocábulos do campo "pequeno". Por exemplo, "pequeno", no Diccionario Etymohgico (1912), é definido como o adjetivo usado para o "que tem pouca extensão ou volume"; aquele "que é criança"; "limitado, que tem pouco valor"; ou, o que é "mesquinho", "humilde"; indica, como substantivo masculino, "menino"; e, no plural, "o povo miúdo". No Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa (1951), "pequeno" designa o que é "de tamanho diminuto"; "é criança"; "de baixa estatura"; "limitado" (comparativo de inferioridade: menor ou mais pequeno)"; no plural, denota "os humildes, a classe inferior da sociedade". Do mesmo campo semântico são, tanto no Diccionario Etymologico (1912) quanto no Pequeno Dicionário (1951), pequeninho [também pequenino] - o que é muito pequeno, pequenito, pequetito, menino -; pequenote; pequerralho; pequerrucho; pequenada - para filharada, porção de pequenos, grupo de rapazitos, filhos pequenos, meninos -; pequename - como gíria escolar para indicar raparigas, as namoradas -; e pequenez - como qualidade do que é pequeno, meninice \fig.], mesquinhez, humildade. Os sentidos se mantêm nos outros dicionários consultados, os quais o Aurélio sintetiza para "pequenez": 1) qualidade de pequeno; 2) meninice, infância; 3) pequena estatura; 4) [fig.] mesquinhez, insignificância, modéstia: a pequenez da esmola, do presente; 5) [fig.] pouca elevação intelectual ou moral: pequenez de espírito, de sentimentos. Na História do cerco de Lisboa, de Saramago (1989), narrada por Raimundo Silva, os soldados portugueses reivindicam o direito de saque, se a tomada de Lisboa aos mouros

T 3 2

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

fosse bem-sucedida, e um dos oficiais diz, referindo-se a eles, "São parvos", o que pretende significar, "são pequenos". Naquele tempo ainda se ligava à etimologia, não era como hoje, quando não se pode chamar parvo a ninguém, ainda que obviamente minorca, sem que fique logo aberta uma querela por ofensa (Saramago, 1989, p. 338-9). No Aurélio, "parvo" (do lat. parvulu, diminutivo de parvus, pequeno) significa: "pequeno, limitado, apoucado. V. tolo"; e "parvidade", a "qualidade de parvo; parvoíce. Pequenez, pouquidade". Na linguagem falada, entre adultos/as, os tratamentos "meu filho", "minha filha", "filho", "filha", "filhinho" e "filhinha" costumam expressar posição de superioridade por parte de quem os emprega para indicar a posição subordinada de quem é nominado dessa forma. Exemplo, ocorrido em março de 1997, foi a entrevista televisiva dada pelo expresidente Fernando Collor de Melo à jornalista Sônia Bridi, da Rede Globo, quando a chamou, por diversas vezes, de "minha filha", "filha", "filhotinha", fazendo acompanhar tais locuções de expressões faciais, gestos e palavras, cujo pretendido efeito visível era o de desqualificar as perguntas formuladas, bem como a atuação da jornalista. Criticando o ocorrido, a jornalista Célia Ribeiro (1997), do jornal Zero Hora, em matéria intitulada Modos & Maneiras, relata o caso de um colega seu, mais jovem do que o chefe, que "durante uma troca de opiniões diversas a respeito de assunto de trabalho, ficou profundamente chocado quando seu chefe o tratou de "meu filho": - '"Esta não, agora eu vou me irritar', falou, sentindo-se diminuído pelo tratamento que o fez lembrar a subordinação da criança aos pais". Autora do livro Etiqueta na prática para crianças, da L&PM Editores, 1997, Célia Ribeiro afirma que "criança não quer ser subestimada. Ela gosta de ser tratada com uma linguagem simples e correta, que pressupõe sua capacidade de compreensão e raciocínio lógico" (ib., p. 2).

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

1 3

3

No dia 22 de julho de 1997, o então governador do Rio Grande do Sul, Antônio Britto, "em um discurso ácido e contundente", feito a dezenas de empresários e políticos que assistiam à divulgação dos nomes dos primeiros doze fornecedores da General Motors, disse: "Era de se prever que os nossos simpáticos meninos do PT não assistissem a tanto desenvolvimento sem tentar atrapalhar". O governador responsabilizava "os simpáticos meninos do PT" pela invasão da área destinada à GM, em Gravataí. "Não é preciso ter idade", afirmou, "para lembrar o que já ocorreu em horas como essa" (Britto culpa PT..., 1997, p. 6). No dia anterior, o jornal Correio do Povo publicara um A Pedido, assinado pelo Sindicato dos Telefônicos, com o seguinte título: "Britto e Fernando Henrique Cardoso: 'Os bons meninos'". O parágrafo inicial do informe dizia: "Britto e FHC continuam executando o projeto neoliberal globalizante, ditado pelo grande capital internacional - FMI, Banco Mundial e Bird -, e enquanto continuarem sendo "bons meninos" vão ganhando a sua mesada". Como "bons meninos" ainda eram designados: "seus parceiros da grande imprensa engajada"; "lá de Brasília"; "os banqueiros incompetentes"; "todos os adesistas de plantão". Para deixar os '"bons meninos' bem contentes, [Britto] consegue mais isenções e empréstimo como aquele da "GM" e do "Gerdau". Afinal de contas, este 'bom menino' nunca falha". Aproveita, "para não ficar tão feio, faz demagogia com o Povo e tenta calar a boca do magistério, da polícia civil e militar, cria um 'fundinho' para dar um aumento de 'faz-de-conta', para que eles parem de incomodar". A nota terminava com a seguinte advertência: "Britto e seus 'bons meninos' que se acalmem, pois foram longe demais" (Sindicato..., 1997, p. 15).

1 3 4

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

SECUNDARIAS, INCAPAZES

DE

DéBEIS, CONVERSA

INSIGNIFICANTES, ANJINHOS

FELIZES,

IGNORANTES, DU

DEFESA,

MIúDAS,

INCOMPETENTES, PáRVULOS,

"PAPEL

BLANCO"

Na Terra de Santa Cruz, no século XVI, a Companhia de Jesus privilegiou as crianças indígenas como o papel blanco, a cera virgem, a tabula rasa, para escrever e inscrever-se. O propósito era conquistar as alminhas virgens, onde os pecados destas terras ainda não se tinham instalado: "mau caminho que esta terra leva", dizia Nóbrega em 1559 (Priore, 1996, p.10). Do sucesso dessa missão dependia a afirmação da Companhia perante o papado romano; para realizála, foram trazidas da Europa duas representações infantis: a da criança mística e a da criança que imita Jesus. Com elas, os jesuítas investiram nos "culumins", nos "meninos da terra", nos "indiozinhos, filhos de gentios", "tantos e tão bonitos", formando "um exército de pequenos-Jesus a pregar, e a sacrificar-se entre as 'brenhas' e os 'sertões', para a salvação e conseqüente adestramento moral e espiritual destas índias do Brasil" (Priore, 1996, p. 13). Em 1554, Nóbrega funda em São Vicente o primeiro colégio de catecúmenos que houve no Brasil, ordenando que fosse uma "Confraria do Menino Jesus", formada por órfãos que vieram de Portugal e por alguns mestiços da terra. Valorizando o pequeno indígena como "um inocente, mui elegante e formoso", ou "muchachos que quase criamos a nossos peitos com o leite da doutrina cristã"; ou ainda afirmando que "alguns destes meninos são mui bons e mui bonitos", a Companhia afagava o "meúdo" e o "mínimo" que devia ser castigado, açoitado e também amado por seu aproveitamento, costumes e vida cristã. Amor feito de disciplina severa, castigos e ameaças, seus mecanismos foram os autossacramentais alegóricos, as musicarias e os sermões. A

HISTORIAS DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

1 3

5

fala dos padres jesuítas tinha gosto de sangue: "Como um cirurgião que dá um botão de fogo ao seu filho ou lhe corta uma mão em que entra herpes, o qual ainda que pareça crueldade não é, se não misericórdia e amor, pois com aquela ferida lhe sara todo o corpo", dizia Anchieta em um sermão (Priore, 1996, p. 26). A trajetória desse amor correcional é contemporânea dos textos de Gerson, de Cordier, da literatura pedagógica de Port Royal e, sobretudo, escorada no Ratio Studorium (cf. Ullmann, 1991) inaciano e na sua disposição para a meditação, a concentração, a disciplina do espírito e a subjugação dos sentidos. Observando os preceitos do Ratio, os padres faziam com que todos os meninos morassem com eles em São Vicente, para os instruir otimamente na fé cristã, no estudo dos elementos e no escrever. Para realizar sua tarefa messiânica de doutrinação, através das crianças indígenas de uma humanidade simultaneamente edênica e diabolizada, era preciso evitar os pecados medonhos que "o demônio, seu pai, os ensina" (Priore, 1996, p. 15). A infância era o momento oportuno para a catequese porque era momento de unção, iluminação, revelação e, ainda, momento de renúncia da cultura autóctone, uma vez que certas práticas ainda não se tinham sedimentado. As crianças das tribos tupis e tamoios, por serem infantis, estavam aptas a receber e a responder ao chamado divino e à aculturação. Em 1550 e 1553, duas expedições foram enviadas de Portugal com mais onze padres para trabalhar, no Brasil, em companhia de sete órfãos vindos de uma escola de Lisboa. Estes órfãos foram ensinados a falar tupi-guarani, tendo como tarefa a confissão dos nativos: eram os chamados "meninoslíngua". O registro desses meninos, que iam da Bahia para São Vicente, demonstra a mobilidade espacial das crianças que riscavam o litoral na companhia de irmãos e padres.

1 3 6

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Essa mobilidade deveria alcançar Coimbra, ao menos para aqueles "dos quais tenho alguma esperança que serão de Nosso Senhor e que serão proveitosas para nossa Companhia se lançarem boas raízes em virtudes; e para esse efeito os mando e para aprender", diz uma carta de Nóbrega para Inácio de Loyola em 1555. Era comum ainda que "quatro ou cinco órfãos dos nascidos de pais português mas mãe brasileira que viviam em casa sob regimento do pai" fossem recolhidos por algum tempo ao colégio; enquanto outros tantos eram pedidos ao cacique indígena. Assim, crianças índias e mestiças, chamadas os "órfãos da terra", reuniam-se sob cuidados jesuíticos nas "Casas de Muchachos". Nessas casas, os muchachos em suas atividades desdobravam-se em "recitar juntos na igreja a ladainha e depois do meio-dia, entoado o cântico 'Salve Rainha' se dispersavam"; em cada sexta-feira "disciplinando-se com uma devoção até fazerem sangue" saíam em procissão; cantavam hinos e entoavam o nome de Jesus; tinham aulas de flauta e canto; confessavam-se de oito em oito dias; à tarde, "saíam a caçar e a pescar", pois cada um "precisava prover a sua subsistência, [e] se não trabalharem não comem" (Priore, 1996, p. 17-18). Os corpos desses órfãos tropicais andavam nus. Nóbrega reclamava disso e exigia do Reino "mandar lá muito algodão, para que mandem pano de que se vistam os meninos". No Espírito Santo, ensinavam-se às moças indígenas "o tecer e o fiar" para vesti-los. O lazer acontecia no costumeiro banho de rio; mas, por ser prazeroso demais, a eles ensinavam muitos jogos usados pelos meninos de Lisboa, como o jogo das argolinhas, o canto e a dança, com flautas, gaitas, pandeiros com soalhas, mandados buscar na Metrópole. Muitos eventos coloridos e barulhentos eram organizados para conquistar mais meninos, semear na sua sensibilidade um novo saber e um novo modo de ser cristianizados.

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

1 3

7

Batismo e procissão, dois rituais festivos: nos batismos, os "indiosicos" eram enfeitados com "roupetinhas brancas, com capelas de flores na cabeça" e "palmas nas mãos (...), sinal de vitória que alcançavam contra o demônio"; nas procissões, carregavam as cruzes, candeias acesas, e em coro diziam Ora pro nobis, traziam grinaldas nas cabeças e palmas nas mãos, diademas feitos de penas coloridas, ramais de contas brancas ao pescoço. Tanto um ritual quanto o outro eram acionados em momentos críticos vividos pelas comunidades indígenas, como os dos surtos epidêmicos: "logo os meninos dos lugares se ajuntavam com eles e toda a gente se maravilhava de coisa tão nova". Quando partiam "dos lugares também saíam cantando as ladainhas e alguns dos meninos deixavam seus pais e mães e iam com eles" (Priore, 1996, p. 21). O corpo infantil embelezado nos rituais era, no entender da Companhia, "um monte de estéreo", como preconizava Santo Inácio. Para o constituir, no novo saber ocidental cristão, era necessário impor-lhe uma pedagogia do medo que inspirasse desapreço pela carne e pelas necessidades físicas. Daí a exposição do corpo à "disciplina" não somente nas procissões, mas durante toda a semana, nas sextas-feiras em especial, ou depois de varrer as ruas, no tronco, com palmatoadas, com diversos castigos físicos, privação alimentar. Os que se negavam a participar do processo doutrinai sofriam corretivos pedagógicos para que se salvassem. As cartas jesuíticas registram o desapontamento dos padres ao constatarem que o edênico jardim de infância inicial era invadido pelas ervas daninhas à medida que tais corpos se tornavam maiores: Chegando aos anos da puberdade, começaram a apoderar-se de si, vieram a tanta corrupção que tanto excedem agora a seus pais em maldade, quanto antes em bondade, e com tanto maior

1 3 8

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

vergonha e desenfreamento se dão às borracheiras e lascívias, quanto com maior modéstia e obediência se entregavam dantes aos costumes cristãos e divinas instruções. (Priore, 1996, p. 23) Diante desse corpo crescido, onde as "raízes" falavam mais alto, os jesuítas tinham saudades da criança "meúda", na qual podiam exercitar a figura da criança mística e projetar a criança santa do Menino. Se seguiam a seus pais, por meio de práticas gentílicas, mesmo depois de toda catequese, era hora da Companhia de Jesus investir mais na instrução desses corpos do que apenas em sua formação cristã. Despojados da fantasia de pequenos jesusinhos, os infantis índios, mamelucos, mestiços, estavam prontos para serem educados. No início do século XVII, a Companhia adotou um manual de bons modos, o Galatéo, abandonou o hábito do castigo físico por influência de Port Royal e inspirou-se em João Batista de La Salle que difundira o ensino básico através de escolas dominicais (Priore, 1996, p. 24-5). Nas famílias brancas do Brasil Colonial, a criança-filho ocupava uma posição instrumental como elemento secundário, posto a serviço do poder paterno (Costa, 1989, p. 15362). A família funcionava como um epicentro do direito do pai, que monopolizava o interesse da sociedade, dos/as filhos/as e da mulher. Os registros da época indicam que, muito provavelmente, o número de filhos legítimos nas famílias da elite colonial era grande: nas famílias patriarcais paulistas do século XVI este número variava entre sete e quinze filhos; no XVII, a variação ia de sete à dezoito e, no século XVIII, de oito a 25. Se a taxa de natalidade era elevada, também o índice de mortalidade era alto, bem como a quantidade de filhos "ilegítimos". Em inventários recolhidos, um certo Antônio Pedroso de Barros dizia no testamento: "ficam alguns bastardos que não sei a verdade de quantos são meus". Em

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

1

3 9

outro testamento, lê-se: "uma criança que dizem ser filho dele testador (...) que dizem ser seu filho (...) que dizem ser meus". Pascoal Monteiro, testante, declara: "libertei um moço da casa de Domingos Dias pelo amor de Deus, só por me dizer o dito Domingos que era meu filho e ter ele essa presunção". E João da Costa disse: "F. diz que é meu filho; tudo pode ser; e, se o for, ele dará mostras de si". A criança brasileira, até o século XIX, permaneceu prisioneira do papel social do filho. A família colonial dos três primeiros séculos ignorava e subestimava essa figura, já que seu universo cultural compunha-se do culto à propriedade, ao passado, à religião, no qual "o pai, o homem-adulto, o chefe da casa, condensava "a majestade". Na estrutura econômica da Colônia, a parcela dos homens livres na ordem escravocrata era mínima, sendo que a sociedade dividia-se, basicamente, em senhores e escravos. A luta pela propriedade e pela subsistência social eram indissociáveis. A criação e a preservação do patrimônio capitalizavam a força e a disponibilidade de todos os membros do grupo familiar, levando o pai a ser considerado o único que possuía a energia necessária para explorar escravos, produzir bastardos, destruir opositores e vingar atentados à moral da família da "casa-grande". O patriarca e seu poder, prestígio e honorabilidade não deveriam ser tocados, sob pena de perder-se a vitalidade doméstica. Descritas por cronistas e historiadores da época, ações da autoridade paterna enclausuravam as filhasmulheres desobedientes em casas de recolhimento, onde nenhuma autoridade civil podia entrar para instaurar lá um processo. Um pai matara com uma faca a filha que vira agitando um lenço no ar "tomando o manejo por sinal feito a qualquer namorado". Outro, com ciúme do filho mais novo por causa de uma escrava, "obrigou o filho mais velho a matar o próprio irmão" (Costa, 1989, p. 156).

1 4 D

HISTÓRIA DA INFÂNCIA BEM FIM

Os castigos físicos eram severos: espancamentos com palmatórias, varas de marmelo, às vezes contendo alfinetes na ponta, cipós, galhos de goiabeira e outros objetos punitivos ensinavam os filhos que a escrita obediência era o único modo de escapar às punições. Em Infância, Graciliano Ramos (1994) conta que, aos quatro ou cinco anos, suas "primeiras relações com a justiça" foram dolorosas. Sua mãe o havia surrado com uma corda nodosa que pintara suas costas de manchas sangrentas, deixando-lhe nas costelas "grandes lanhos vermelhos", nos quais depois a avó colocara panos molhados com água de sal; e o pai, dando pela falta de um cinturão, acusara-o: Débil e ignorante, incapaz de conversa ou defesa, fui encolherme num canto, (...). Onde estava o cinturão? Eu não sabia, mas era difícil explicar-me: atrapalhava-me, gaguejava, embrutecido, sem atinar com o motivo da raiva. Os modos brutais, coléricos, atavam-me; os sons duros morriam, desprovidos de significação. (...) Onde estava o cinturão? Impossível responder. Ainda que tivesse escondido o infame objeto, emudeceria, tão apavorado me achava. Situações desse gênero constituíram as maiores torturas da minha infância, e as conseqüências delas me acompanharam. O homem não me perguntava se eu tinha guardado a miserável correia: ordenava que a entregasse imediatamente. Os seus gritos me entravam na cabeça, nunca ninguém se esgoelou de semelhante maneira. Onde estava o cinturão? Hoje não posso ouvir uma pessoa falar alto. O coração bate-me forte, desanima, como se fosse parar, a voz emperra, a vista escurece, uma cólera doida agita coisas adormecidas cá dentro. A horrível sensação de que me furam os tímpanos com pontas de ferro. (...) Junto de mim, um homem furioso, segurando-me um braço, açoitando-me. Talvez as vergastadas não fossem muito fortes: comparadas ao que senti depois, quando me ensinaram a carta de A B C, valiam pouco. Certamente o meu choro, os saltos, as tentativas para rodopiar na sala como carrapeta, eram menos um sinal de dor que a explosão do medo reprimido. Estivera

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

1 4

1

sem bulir, quase sem respirar. Agora esvaziava os pulmões, moviame, num desespero. (...) Solto, fui enroscar-me perto dos caixões, cocar as pisaduras, engolir soluços, gemer baixinho e embalar-me com os gemidos. Antes de adormecer, cansado, vi meu pai dirigir-se à rede, afastar as varandas, sentar-se e logo se levantar, agarrando uma tira de sola, o maldito cinturão, a que desprendera a fivela quando se deitara. (...) Sozinho, vi-o de novo cruel e forte, soprando, espumando. E ali permaneci, miúdo, insignificante, tão insignificante e miúdo como as aranhas que trabalhavam na telha negra. Foi esse o primeiro contato que tive com a justiça. (Ramos, 1994, p. 29-32) A condensação operada na figura do patriarca fazia com que mulheres e crianças vissem nele o patrão e o protetor exclusivo, de um modo que "fora da casa não havia salvação". A imagem projetada pelo meio social da Colônia era, tal como as das mulheres e crianças, de fraqueza diante do senhoriato, e nenhuma outra instituição social propunha-se a abrigar os/as transgressores/as. As "Ordenações do Reino" concediam ao pai o direito de castigar os/as escravos/as, filhos/as e mulheres, "emendando-lhes as más manhas". Junto à ordem jurídica vigente, esse pai-proprietário tinha, no regime sucessório de bens, o mecanismo que assegurava suas riquezas e sua dominação. A instituição do "morgadio" determinava que o primogênito homem, o morgado, fosse o único herdeiro da propriedade. Por meio desse dispositivo legal, as riquezas continuavam sendo indivisas; o morgado herdava e era autorizado a acumular todos os privilégios do pai; as mulheres ficavam excluídas do quadro de herança e decisões familiares. Essa situação persistiu até o século XIX, quando a lei de 6 de outubro de 1835 extinguiu o morgadio, fixando a data da ruptura do pater famílias e de sua dominação - ao menos jurídica - das mulheres e das crianças.

1 4 2

HISTORIADA INFÂNCIA SEM FIM

A posição privilegiada do pai também exercia-se na ordem dos saberes, já que o pai sábio e eficiente era aquele que conseguia reeditar, com a maior fidelidade possível, as fórmulas de dominação de seus antecessores. A solidez material da propriedade dependia desse conhecimento, oriundo da tradição oral e da experiência transmitida. O velho era muito mais importante do que o novo; o atraso cultural do país não permitia a circulação de inovações técnicas; as informações úteis tinham sua fonte exclusiva no passado; a vida em família era uma permanente escuta do que passou e o chefe da casa consistia no tradutor e porta-voz das lições dos ancestrais. Para isso, seus interlocutores deviam estar à altura do que ele, agora, encarregava-se de transmitir: sem ter vivido o bastante para entender o passado e sem responsabilidade suficiente para respeitar a experiência, o "párvulo" não merecia consideração. Do ponto de vista da propriedade, a criança não interessava e sim o filho, homem e adulto, com capacidade para herdar os bens, levar adiante o trabalho e enriquecer a família. A criança tinha uma vida paralela à economia doméstica, donde o fenômeno da "adultização" precoce da infância, registrada por Freyre (1968), em Sobrados e mucambos. Caso chegasse à puberdade, os filhos-homens eram levados a assumir a postura dos adultos, adquirindo então o direito a uma maior participação familiar. Tanto a organização socioeconômica familiar quanto o saber do passado eram cimentados pela visão religiosa da cultura. Segundo o catolicismo colonial brasileiro, o filhocriança era o resultado inevitável da concupiscência humana e, como tal, desprezado. Sua vida marcava o controle religioso sobre os desregramentos da carne e, assim como o próprio casamento, representava a incapacidade do homem em renunciar aos prazeres mundanos. Já que o catolicismo não

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

1 4 3

podia coagir todo adulto ao celibato, o casamento era tido como um "mal menor", e a criança era mostrada e aceita como prova da obrigação do adulto em propagar "o gênero humano". A Igreja somente interessava o adulto, capaz de responsabilizar-se diante de Deus por suas boas ou más obras. Como a imortalidade era o foco principal da catequese e dos cuidados religiosos, o que importava não era a vida durante a existência, mas a vida após a morte, pouco valendo a natureza biológica ou a formação emocional da criança, as quais não influíam em sua salvação, e sim sua função espiritual. A criança só foi relevante para o catolicismo enquanto signo de pureza e inocência. Neste caso, o modelo de perfeição espiritual que ela encarnava servia de exemplo e correção à alma pecadora do homem e mais ainda da mulher. O "anjinho" era venerado e circulava em todos os recantos culturais da Colônia. Nas festas religiosas, meninos e meninas desfilavam vestidos/as de anjos, reativando periodicamente esta imagem de infância. Os missionários protestantes Kidder e Fletcher, em 1835, descrevem uma procissão da Quarta-Feira de Cinzas, que partia da Igreja da Misericórdia, através das principais ruas do Rio de Janeiro, até o Convento de Santo Antônio. Nessa procissão aparecem "as pequerruchas": Antes de cada grupo de imagens vem marchando um "anjinho", conduzido por um padre, e espalhando folhas e pétalas de rosa pelo caminho. (...) Como o leitor pode estar ansioso em conhecer que espécie de anjo é esse que toma parte no espetáculo, devo explicar que há uma classe de anjo? criada para a ocasião, e que agem sob a tutela dos santos exibidos. Pequerruchas de oito a dez anos são geralmente escolhidas para servirem de anjinhos, sendo para isso preparadas com as mais fantásticas vestimentas. O principal objetivo destas vestimentas é exibirem

1 4 4

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

um corpete e duas asas; a saia e as mangas são de grandes dimensões, utilizando-se para isso rodas e armações de vime, nas quais flutuam sedas, gazes, fitas, rendas, lantejoulas e plumas de diversas cores. Na sua cabeça colocam uma espécie de tiara. Seus cabelos caem em anéis pelo rosto e pelo pescoço, e o ar triunfal com que marcham mostra como plenamente compreendem a honra de ser o principal objeto de admiração (Leite, 1997, p. 39-40). Foi sobretudo no culto à criança morta que a força da representação do "anjinho" manifestou-se com mais limpidez. A criança morta mereceu devoção especial, de um modo tal que o inglês Luccock escandalizou-se diante dessa reação à morte, relatando, chocado, uma dessas cenas: Em uma dessas ocasiões foi ouvida uma mãe que assim se exprimia: 'O como estou feliz! O como estou feliz, pois que morreu o último de meus filhos! Que feliz que estou! Quando eu morrer e chegar diante dos portões do céu, nada me impedirá de entrar, pois que ali estarão cinco criancinhas a me rodear e a puxar-me pela saia e exclamando: Entra Mamãe, entra! Ó que feliz que sou'! repetiu ainda, rindo a grande. Se isso fosse um exemplo isolado de sentimentos maternais estranhos, poderia ainda ser considerado efeito de um desvio mental passageiro; o caso, porém, é que a satisfação em tais momentos é geral demais, e por demais ostensiva, para que deixe lugar à desculpa dessa espécie. Não posso ter uma opinião boa sobre o futuro de um Estado onde assim se dissolvem os mais fortes laços dos seres deste mundo (Costa, 1989, p. 160). O norte-americano Burton confirma a difusão desse hábito: "um anjinho ou inocente, criança muito jovem, morre sem ser lamentada pois sua felicidade futura é certa". Seidler e Ewbank fizeram observações semelhantes. Luis Edmundo oferece um testemunho dessa realidade, o da batida dos sinos: no extenso repertório de batidas dos sinos colo-

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

1 4 5

niais, as que anunciavam a morte de crianças tinham a seguinte versão na língua falada: "Feliz anjinho/ Que vai p'ro céu// Feliz anjinho/ Que vai p'ro céu" (Costa, 1989, p. 160-1). Freyre (1969), em Casa grande e senzala, apresenta a hipótese desse tipo de representação haver sido forjada pelos jesuítas: diante do número alarmante de crianças índias mortas no século XVI, eles teriam disseminado, para consolo das mães e interesses catequéticos, que era "uma felicidade" os pequeninos irem para o céu. De todo modo, sabese que o costume de representar, através da pintura, a criança como "criatura angelical", figura sagrada, ou alegoria da alma do adulto, data do catolicismo medieval. Durante todo o período colonial brasileiro, a representação social e religiosa da criança monopolizou "o sentido" de sua vida. Ela foi considerada um "adulto incompetente", um "filho incapaz", mas, um "anjinho feliz". Diferentes dos adultos, portanto, mas sem que a condição infantil moderna de etapa biológico-moral fosse tida como matriz físico-emocional do adulto. Entre o adulto e a criança as ligações existentes eram as da propriedade e da religião somente; fora disto, nenhuma relação, sendo a descontinuidade e a alteridade radicais. Era como se "o infantil" fosse dotado de uma "segunda natureza humana", de tipo imprecisa, expectante, em estado larvar até o despertar da puberdade. Os elos que uniriam a cadeia das gerações só foram criados quando a família colonial pôde dispor de outra representação da criança pelas noções de evolução, diferenciação, gradação, heterogeneidade, continuidade. Viu então na criança e no adulto "o mesmo" e "o outro", e "a criança" passou a determinar a função e o valor do filho e da filha. Tal redistribuição deveu-se, em grande parte, à reação dos higienistas em face da taxa de mortalidade das crianças: por ela, a criança morta deixou de ser vetor da esperança religiosa dos pais para tornar-se um libelo contra o sistema familiar por eles mantido.

1 4 6

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

MULHERES,

ANCIADS,

EFEMINADDS

Analisando os trajes das crianças européias, Aries (1981, p. 69-81; 1986, p. 13-4) afirmou que, a partir do século XVI, nas classes nobres e burguesas, estas começam a ser dotadas de um modo próprio de se vestir: primeiramente, os meninos - e somente eles, já que as meninas, exceto em alguns detalhes, continuaram por muito tempo ainda sendo vestidas como as senhoras -, assim como os anciãos, trajaram um vestido antiquado, uma espécie de sotaina abotoada na frente, tal como a toga dos magistrados da Idade Média, enquanto os homens adultos já haviam adotado o traje curto. A partir do século XVII, os meninos passaram a usar um traje que, cada vez, parecia-se mais com o das mulheres - saia, vestido com gola de rendas e avental. Para Aries, estava ocorrendo um processo de efeminação do menino pequeno: Essa efeminação do menino pequeno, observado já em meados do século XVI, de início foi uma coisa nova, apenas indicada por alguns poucos traços. Por exemplo, no começo, a parte de cima da roupa do menino conservava as características do traje masculino. Mas logo o menino pequeno recebeu a gola de rendas das meninas, que era exatamente igual à das senhoras. Tornouse impossível distinguir um menino de uma menina antes dos quatro ou cinco anos, e esse hábito se fixou de maneira definitiva durante cerca de dois séculos. (...) o hábito de efeminar os meninos só desapareceria após a Primeira Guerra Mundial (Aries, 1981, p. 78). O historiador diz que esse fato é bastante curioso porque, à medida que a sensibilidade para com a infância fazse mais intensa e íntima, esta mesma sensibilidade ressalta os elementos de sua "ternura" e "fragilidade". Como mostrar, indaga ele, essa ternura para com o infantil, senão com uma assimilação deste ao feminino? O surgimento da infân-

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

"| 4 "7

cia parece ter distinguido menos as meninas dos adultos do que os meninos: "Vêem-se, pois, em retratos do século XVII, meninos com traços marcados, sem sinais de efeminamento, vestidos do mesmo modo que as meninas". O historiador indaga: "O que será que pensam disso os psicanalistas com sentido da história"? e formula a seguinte hipótese: "Possivelmente, esta 'moda do vestido' responde a uma mais forte oposição à homossexualidade masculina da época" (Aries, 1986, p. 13). Lynd (s.d., p. 11-2) afirma que à medida que as crianças inglesas cresciam, começavam a usar uma espécie de camisola, comprida até os pés, que era igual para os meninos e as meninas; por baixo, usavam uma espécie de túnica curta, em geral feita de tricô. Aos seis anos, os meninos passavam a usar chausses, ou calças compridas e justas, com os pés numa só peça. Usavam também uma camisa e uma túnica, ou tabardo, com um cinto no qual penduravam o canivete e a bolsa. Quando fazia frio, vestiam por cima disso um capote, e ainda um capuz, com uma ponta nas costas e bastante fazenda, em torno do pescoço, para cobrir os ombros. Usavam luvas e sapatos sem salto, feitos de pano ou de couro; mas, isso não era para os pobres: as crianças pobres andavam descalças. "As meninas tinham menos sorte do que os meninos", diz Lynd, pois passavam a vida inteira metidas em vestidos compridos, ou bliauts, que chegavam até os pés e sob os quais usavam saias também longas. No Brasil do início do século XIX é registrado no "livro de viagem" do inglês Luccock que, em virtude do "clima tão quente", "não se exige do desvelo das mães que se ocupe desde cedo com as roupas das crianças", já que tanto meninos como meninas "vivem a trançar nus pela casa, até que atinjam cerca dos cinco anos", e durante três ou quatro anos ainda, após essa idade, "nada mais usam do que a roupa de

1 4 8

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

baixo". Neste estado só as vêem as pessoas de casa, ou os amigos íntimos, pois, quando, em raras ocasiões, as crianças têm que ir à Igreja ou em visitas "vestem-nas com toda a elegância rígida de uma época que já passou", não existindo diferença, "salvo nas dimensões, entre os trajes de um rapaz que faz pouco adquiriu o garbo viril e os de seu pai, entre os de uma menina e os de sua majestosa mãe" (Leite, 1997, p. 28). As crianças européias eram pensadas em termos hierárquicos e encontravam-se no nível mais baixo da escala social: se fosse nobre, o mais importante era seu sexo e, para governar, dizia-se, "pior do que uma mulher somente uma criança" (Tucker, 1995, p. 257-8). Na nobreza, bem como nas outras classes, a infância masculina é a primeira que se especifica como tal, sendo também a primeira destinatária dos colégios, de modo que a imensa maioria das meninas não tinha infância nem juventude: desde cedo, eram preparadas para o casamento, ou contratadas como serviçais, às vezes, entre os cinco e sete anos de idade; a escola das meninas era o lar, o próprio ou o alheio, onde serviam em troca de alimentação e de uma ajuda para o dote (cf. Vinyoles y Vidal, 1986, p. 99, Varela, 1986, p. 169). Em relação à família, Aries (1981, p. 212-3) examina de que modo, durante o século XIII, as novas formas de economia monetária, a extensão da fortuna mobiliária, a freqüência das transações, os progressos da autoridade do Príncipe - quer fosse um rei capetíngio ou o chefe de um grande principado -, bem como o incremento da segurança pública, provocaram uma independência da família conjugai, estreitando as solidariedades da linhagem e o abandono das indivisões patrimoniais. Contudo, a nobreza não retornou ao mesmo tipo de família do século X, onde havia uma indivisão dos bens dos dois cônjuges, cada um gerindo seus

HISTÓRIAS DE GOVERNO: CRIANÇAS E CIA.

"| ^

g

bens hereditários; ao contrário, a autoridade do pai foi fortalecida e a "capacidade da mulher entrou em declínio", com a introdução do regime da comunhão de bens do casal, administrados pelo homem, e com a adoção do direito de primogenitura, que fortalecia o grupo formado pelo pai e os filhos-homens. Séculos mais tarde, quando "o sentimento de infância" já se evidencia nos retratos, vêem-se as mulheres, meninas e crianças pequenas representadas de um lado da tela, enquanto os homens e meninos maiores de outro, tal como nas pinturas, ex-votos, calendários, nos jazigos funerários.

PLEBEUS,

CAMPONESES,

ESCRAVOS

NEGROS,

AMAS,

CRIADAS

A dependência das crianças em relação aos adultos homens fortes e racionais -, manifestava-se também nos jogos e brincadeiras. Até princípios do século XVII, não existia separação entre as brincadeiras e os jogos reservados às crianças e aqueles dos adultos. Quando tal especificação começou a ocorrer - pela "constituição definitiva da idéia de nobreza" -, de um lado, foram organizados os jogos dos adultos e dos fidalgos e, do outro, os jogos das crianças e dos plebeus. Alguns jogos de salão - os mais simples - ficaram restritos às crianças e ao povo, às "pessoas ignorantes e grosseiras"; enquanto aqueles que dependiam "de um pouco mais do espírito", como o jogo das rimas, eram utilizados apenas pelos "cavalheiros e damas de alta dignidade" (Aries, 1981, p. 115-6). Brincadeiras e jogos de crianças e brincadeiras e jogos dos adultos das classes populares foi uma equivalência que se constituiu também em relação aos jogos de cavalaria e aos de boliche e críquete, abandonados pela nobreza e pela

1 5 D

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

burguesia e passados aos "adultos dos campos e às crianças"; aos jogos de azar, proibidos às crianças, por seu perigo moral - "uma paixão perigosa, um vício grave" -; à dança reprovada pela Igreja - por sua "indecência"; aos disfarces e fantasias - abandonados, a partir do século XVIII, pela alta sociedade - e reservados às crianças, enquanto o carnaval tornou-se popular - "e atravessou o oceano, impondo-se aos escravos negros da América" (ib., p. 108, p. 124). Esse rompimento da antiga comunidade dos jogos - ao mesmo tempo entre as crianças e os adultos e entre os plebeus e a aristocracia - permite verificar a distribuição regional entre o sentimento de infância e a classe social, bem como entre infância e raça, exemplificada pelo carnaval. Também os contos de fadas eram narrados, indistintamente, às crianças e aos adultos, particularmente às damas de Versalhes, ou, como se dizia na França da época: "com os quais elas são mimadas" (ib., p. 119). Na segunda metade do século XVII, a exemplo dos jogos e brincadeiras, começou-se a considerar esses contos "simples demais". As recitações orais "tradicionais e ingênuas" transformaram-se em um gênero literário da moda, por meio de publicações reservadas às crianças - com os contos de Perrault -, e em outro diferente de "publicações mais sérias, destinadas aos adultos, e das quais se excluíam as crianças e o povo". Começou-se a fixar a tradição de dizer acerca de certos contos: - Aqueles que me contaram "quando eu era criança", ou, O conto "que minha ama contava" (ib., p. 120). Jogos, brincadeiras e contos, desde então "infantis", serão transformados por um sentido moralizador e estrategicamente utilizados no processo de escolarização, inicialmente pelos jesuítas e depois pela pedagogia ativa.

HISTóRIAS DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

1 5

1

Aqui começa a dizer algo específico sobre a criança enquanto aquele que escapa a norma. A

LOUCURA

E

INFÂNCIA

Nas histórias da loucura e da doença, realizadas por Foucault (1987; 1991b,e), encontram-se alguns elementos que ajudam a montar esse primeiro conjunto estratégico de subordinação da identidade infantil - seja essa física, racional, social, ou o nome que se lhe puder dar -, estabelecidos historicamente pela sociedade ocidental e expressos nas relações entre infância, loucura e doença e criança, louco e doente. Em História da loucura, a intersecção entre a criança e o louco aparece pela primeira vez com a figura da criança proibida e maldita, encerrada numa barquinha e entregue à errância das águas que a levam para um outro mundo (Foucault, 1991e, p. 12): aproximados pela água e pela navegação, como passageiros, diferenciam-se no momento em que a criança retorna à verdade, enquanto para o louco, prisioneiro perpétuo da passagem renascentista em busca de sua sanidade, este momento não existia. O que interessa destacar é a homologia derivada de tal simbolismo, qual seja, a que possibilita incluir as duas identidades na história do Diferente: como o louco, a criança é o outro em relação com os demais; o outro, no sentido da exceção, entre os outros. Entre o louco, a criança e o sujeito que pronuncia - É um louco./ É uma criança. - abriu-se uma distância: aquela que mantém longe os/as que escapam à regra e à norma, constituindo a legião das identidades rechaçadas, desordenadas, caóticas, impensadas da cultura a serem excluídas, especificadas, distribuídas em outras regiões. Para tais operações, há necessidade de incluir essas identidades na enumeração, classificação, registros, estudos, disciplinas, ciências do indeterminado desse outro: mecanismos que reduzem e dissolvem suas alteridades no "mingau" doce e fluido da domesticação do que é a identidade do Mesmo.

1 5 2

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

É possível encontrar, em História da loucura, outros argumentos que possibilitam aproximar os dois conjuntos - a loucura e a infância, o louco e a criança -, como: 1) a condição de que ambos, antes das práticas de internamente, integraram as figuras fáceis, alegres, cômicas e ligeiras da desrazão; 2) dizem respeito, não tanto à verdade e ao mundo, quanto ao homem/à mulher e à verdade de si mesmo/a que ele/ela acredita distinguir; 3) transformam-se em saberes e por isto fascinam; 4) configuram sutis relacionamentos que o sujeito ocidental mantém consigo mesmo; 5) foram criados pelo universo inteiramente moral do final da Idade Média, no qual o homem/a mulher pôde inventar as irregularidades de sua conduta; 6) fazem parte das medidas da razão e do trabalho da verdade, produzindo tanto o Asilo quanto a Escola para fazer o Elogio da Razão e da Ordem; 7) foram objetos das práticas de internamento do século XVII medida econômica e de saneamento, precaução social, nova sensibilidade que procede a escolhas a fim de banir, preocupação burguesa de pôr a cidade e o mundo da miséria em ordem, dever de caridade, necessidade de excluir, assunto de "polícia", religioso e moral -, que os/as integram em seus estatutos éticos e em suas "casas hospitaleiras", para que tanto o/a louco/a quanto a criança nunca mais entrassem em suas barcas/cestas fugidias por estarem retidos/as e seguros/as (cf. Foucault, 1991e, p. 20-78). No mundo correcional, inicialmente, as crianças e os/ as loucos/as ficaram juntos, formando, com todos "os outros", uma companhia, uma cumplicidade e um parentesco: inocentes malformados e disformes, crianças da correição, filhos ingratos, filhos pródigos, moças incorrigíveis, velhas infantis, velhas senis ou enfermas, mulheres caducas, loucas violentas, prostitutas, epilépticas, alienados e loucos, imbecis, insanos, pais dissipadores, pobres bons, grandes e pe-

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

1 5 3

quenos paralíticos, doentes venéreos, convalescentes, blasfemadores, mendigos, preguiçosos, intrujões e libertinos, doentes e criminosos, debochados, espíritos arruinados, velhos indigentes, crianças (Foucault, 1991e, p. 80, p. 82-3). Nesta Pátria da loucura moderna - fato positivamente uniforme de organização, estranho domínio fechado de experiência silenciosa e original, exílio uniforme do Desatino, flagelo da culpabilidade, forma mista de castigo e remédio -, encontraram-se todas/os as/os desonradas/os da Propriedade, da Razão, da Raça, da Família, da Moral, da Norma. Mais tarde, a quadriculação do poder disciplinar sofistica a partição dessa "Companhia", alterando a consciência da loucura e da infância, fazendo evoluir e progredir as instituições que vão do Hospital Geral à Prisão, ao Hospital Psiquiátrico, ao Quartel, à Clínica, à Escola. Em Foucault (1991e), pode-se encontrar de que modo, tanto nas primeiras experiências uniformes da loucura quanto nas novas divisões, estabelece-se um isomorfismo entre o louco e a criança, a loucura e a infância, do qual são exemplos: 1) As categorias da jurisprudência de Zacchias, do século XVII, acerca da fatuitas, isto é da imbecilidade, que pressagia a classificação de Esquirol. No primeiro posto de uma ordem decrescente, Zacchias designa "os parvos" que podem testemunhar, testamentar e casar-se; porém, não entrar para as ordens nem administrar, "pois são como crianças que se aproximam da puberdade". A seguir, aparecem "os imbecis propriamente ditos" - fatui -, aos quais não se lhes pode confiar responsabilidade alguma, pois "seus espíritos estão abaixo da idade da razão, como as crianças de menos de sete anos" (ib., p. 130).

1 5 4

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

2) O grupo de conceitos aparentados com a demência, que permanecia abstrata e negativa, o qual incluía a estupidez, a imbecilidade, a idiotia, a patetice. Na prática, demência e imbecilidade eram considerados ainda sinônimos: sob o nome de Morosis, Willis designava tanto a demência adquirida quanto "a estupidez que se pode observar nas crianças desde os primeiros anos de vida"; sendo que, nos dois casos, tratava-se de "uma afecção que envolve ao mesmo tempo a memória, a imaginação e o juízo". No século XVIII, a distinção entre as idades já estava firmada e a demência era tida como uma espécie de incapacidade de julgar e raciocinar de modo sadio; tendo recebido diferentes nomes, conforme as diferenças entre as idades em que se manifestava: na infância, era "normalmente chamada de 'besteira', 'patetice'"; chamava-se "imbecilidade" quando se estendia "pela ou surgia na idade da razão"; e quando aparecia na velhice, era conhecida pelo nome de "disparate" ou por "condição infantil" (ib., p. 259-60). 3) Quando o pensamento médico e a prática do internamento cruzaram-se, ao final do século XVIII, havia chegado a hora da sociedade burguesa sentir-se mais inocente diante da miséria e também de reconhecer sua responsabilidade diante da loucura, trabalhando para delas proteger o homem privado. Tuke e Pinei definiram o arquétipo do asilo moderno; Brissot traçou o rigor da geometria de uma correição perfeita, a qual era, a um só tempo, arquitetural e moral; Musquinet estabeleceu as relações da consciência burguesa entre o trabalho, o lucro e a virtude; e o interno passou então a ser um único produto e dois sistemas de ganho: controle moral para si e lucro econômico para os outros. A Revolução Francesa anunciou o extenuamento da internação, e a alienação começou a ser um problema

HISTÓRIAS DE GDVERNO: CRIANÇAS E CIA.

1 5

5

em si e para si, diferenciando-se a loucura internada da loucura tratada, a loucura aproximada do desatino e a loucura aproximada da doença: em suma, foi aqui o primeiro momento da alienação mental no sentido moderno da palavra. A assistência social, como manifestação de uma piedade natural, foi exigida para os loucos, que a mereciam como todos aqueles que não podiam prover as próprias necessidades. Foucault cita um excerto da Instrução impressa por ordem e às custas do governo a respeito do modo de governar e tratar os insensatos, de 1785, a qual afirma: "É aos seres mais fracos e infelizes que a sociedade deve a proteção mais acentuada e os maiores cuidados; assim, as crianças e os insensatos sempre foram objeto da solicitude pública". No entanto - escreveu Foucault -, "a compaixão naturalmente sentida pelas crianças" foi "uma atração positiva", enquanto para os/as loucos/as, a piedade foi compensada e eliminada "pelo horror" que se sentia por "essa existência estranha", votada às suas violências e a seus furores (Foucault, 1991e, p. 424-8, p. 429). 4) Com o nascimento do asilo moderno e o início do "trabalho do olhar", o Medo surgiu como personagem central no tratamento dos/as loucos/as, para constituir a autocontenção. Vigilância e julgamento produziam a loucura no Retiro dos quakers (ib., p. 81-2), dominado pela autoridade de Tuker, o qual, a partir de agora, representava os que estão "do outro lado", com todo rigor de sua razão desarmada de instrumentos de coação e armada apenas do olhar e da linguagem (ib., p. 476-503). Louco e nãolouco defrontavam-se naquilo que interessa a este estudo: a loucura representava uma "Idade Menor", um aspecto de si mesma sem direito à autonomia, e que só pode viver enxertada sobre o mundo da razão. "A loucura é infân-

1 5 6

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

cia", disse então Foucault, pois tudo estava organizado no asilo para que os alienados fossem diminuídos, menorizados. Ali, eram considerados "como crianças com um excesso de força e que a utilizam de forma perigosa". Por isso, necessitavam de castigos e de recompensas constantes e presentes: "tudo aquilo que é um pouco distanciado não tem efeito sobre eles". Era preciso aplicar "um novo sistema de educação, dar um novo curso a suas idéias, subjugá-los de início, encorajá-los a seguir, aplicá-los no trabalho", que deve lhes parecer agradável através de meios atraentes. O estado de menoridade já existia na situação jurídica para proteger os sujeitos de direito, mas não era um modo concreto de relações, um modo de soberania, um estilo de existência como passa a ser para os loucos e seus guardiães. Instituindo-se como uma "grande família", a comunidade asilar, liberta das correntes, entrega o louco, como sujeito psicológico, à autoridade e ao prestígio do homem de razão, "que para ele assumia a figura concreta do adulto, isto é, ao mesmo tempo de dominação e de destinação" (ib., 483). Desnecessário é lembrar que o dispositivo de infantilidade, aqui operando no asilo, conservará para o louco, por um longo tempo, a razão nos traços do Pai. Foucault dirá, mais adiante em seu livro, que "a loucura é uma espécie de infância cronológica e social, psicológica e orgânica do homem" e acrescentará a constatação de Pinei: "Quanta analogia entre a arte de dirigir os alienados e a de educar os jovens!" (ib., p. 512). Sem dúvida, Rousseau já caminhava, talvez com Emílio, nas imediações campestres deste Retiro. Afinal de contas, se a infância possui mesmo correlações com a loucura, as "educações" de que ambas se ocupam podem ser mais "nobres" do que isso?

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

DPENTE,

PRIMITIVO,

1 5 "7

CRIANÇA

Em Doença mental e psicologia (Foucault, 1991b), a relação entre infância e doença surge na primeira parte do livro em que Foucault analisa a descrição puramente negativa que a Psicologia do século XIX fazia da doença mental. Sublinha então o caráter positivo das atividades de substituição que vêm preencher as funções abolidas pela evolução normal da doença: na história da libido, tal como proposta por Freud, por exemplo, "a psicanálise acreditou poder escrever uma psicologia da criança, fazendo uma patologia do adulto". Para a criança da Psicanálise - que, para Foucault, é o adulto patologizado -, os primeiros objetos de alimentação, a organização do sistema de defesa agressiva, o reconhecimento de si no espelho, a escolha objetai que deve implicar uma fixação heterossexual, pela identificação com o pai/a mãe do mesmo sexo, constituem estágios libidinais que formam uma estrutura patológica virtual. Examina o conceito de "força psíquica" de Janet (Foucault ib., p. 29-32) e afirma que tanto essa quanto a libido de Freud criam dois mitos: o primeiro, de tipo científico, diz respeito a uma certa substância psicológica; o segundo, de teor ético, estabelece identidade entre o doente, o primitivo e a criança - "mito através do qual se tranqüiliza a consciência escandalizada diante da doença mental e consolida-se a consciência presa a seus preconceitos culturais". O primeiro mito é logo abandonado, porém o segundo - "porque justifica mais do que explica" - "permanece vivo ainda" (ib., p. 27-9). Foucault indaga sobre o sentido que possa existir em restituir uma identidade entre a personalidade mórbida do doente e a normal da criança ou do primitivo. Seria inútil, do ponto de vista explicativo, dizer que o

1 5 B

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

homem, adoecendo, volta a ser uma criança, mas do ponto de vista descritivo "é exato dizer que o doente manifesta, na sua personalidade mórbida, condutas segmentárias, análogas às de uma idade anterior ou de uma outra cultura", já que a doença descobre e privilegia condutas normalmente integradas. Discute ainda Foucault (1991b, p. 39; 41-53; 74), com base em alguns casos clínicos relatados por Freud, as questões da fabulação infantil, das utilidades terapêuticas dos processos infantis de metamorfose do real, do desvanecimento das condutas adultas diante das condutas infantis, simples e inadaptadas, para perguntar: "Que sentido há em reencontrar os fantasmas terrificantes da vida infantil, em substituir os distúrbios maiores de uma afetividade ainda mal regulada pelas formas atuais de atividade? Por que fugir do presente, se é para reencontrar tipos de comportamento inadaptados"? Na segunda parte do livro, Foucault diz que a doença mental caracteriza-se, na evolução, por seu aspecto regressivo, ocasionando condutas infantis ou formas arcaicas da personalidade. Embora isso ocorra, o evolucionismo engana-se ao ver nesses retornos a própria essência do patológico e sua origem real, já que a regressão à infância manifesta-se nas neuroses somente como um efeito. A conduta infantil é sim, para o doente, um refúgio, em função de que a sociedade instaura entre o passado e o presente do indivíduo "uma margem que não se pode nem deve transpor". Nossa cultura teria, para Foucault, bem-delineada essa marca: a de não integrar o passado, a de não forçá-lo a desaparecer. Quando Rousseau e Pestalozzi preocuparam-se em constituir para as crianças um mundo que estivesse à sua altura, o século XVIII permitiu que se formasse ao redor delas "um meio irreal, abstrato e arcaico, sem relação com o mundo

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

1

5 9

adulto" (ib., p. 91). Desde então, o que fazem as regras pedagógicas é buscar este objetivo: preservar as crianças dos conflitos dos adultos, acentuando "a distância que separa, para um homem, sua vida de criança de sua vida de homem feito". Para poupar às crianças os conflitos, a pedagogia contemporânea as expõe a um conflito ainda maior: "à contradição entre sua infância e sua vida real". Caso se acrescente que, em suas instituições pedagógicas, uma cultura não projeta diretamente a sua realidade, mas "a reflete indiretamente através dos mitos, que a perdoam, justificam-na e idealizam-na numa coerência quimérica", e também caso se acrescente que, numa pedagogia, uma sociedade sonha com sua Idade de Ouro - "lembrem-se daquelas de Platão, Rousseau, da instituição republicana de Durkheim, do naturalismo pedagógico da República de Weimar" -, pode-se compreender que "as fixações ou regressões patológicas" só são possíveis numa cultura na qual as formas sociais multiplicam-se para impedir que se liquide o passado e não se possa assimilá-lo ao conteúdo atual da experiência. Da perspectiva dessa história da infantilidade, pode-se dizer que a equivalência do doente ao primitivo e à criança, sob a forma regressiva, dá-se pelo funcionamento ininterrupto da infantilidade que nos faz buscar na infância a natureza neurótica do adulto e mesmo a substância seminal de nosso Eu, o qual se manifestaria naquelas ocorrências em que estamos fragilizados/as, carentes, dependentes. Para Foucault, as "neuroses de regressão não manifestam a natureza neurótica da infância, mas denunciam o caráter arcaizante das instituições que lhe concernem", o que serviria de paisagem a essas formas patológicas seria o conflito, "no seio de uma sociedade, entre as formas de educação da criança, onde ela esconde seus sonhos, e as condições que [esta sociedade] faz aos adultos, onde se lêem pelo contrário seu presente real, e suas misérias" (ib., p. 92).

1 6Q

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Em O nascimento da clínica, Foucault (1987) inicia o capítulo V, sobre A lição dos hospitais (ib., p. 71-97), falando da "reforma da pedagogia", nas "cadeiras de medicina clínica", que modifica o modo de ensinar e dizer, e que se torna maneira de aprender e de ver. Mesmo que seja em apenas um parágrafo, Foucault escreve alguma coisa acerca da pedagogia como "sistema das normas de formação", o qual, no final do século XVIII, articulava-se diretamente com a teoria da representação e do encadeamento das idéias. Vejamos, por partes, alguns de seus argumentos até que ele retome a questão do passado infantil e do presente do homem, e aqui - na única passagem relativa à infância deste livro - atribua ao "olhar" clínico sobre as doenças e a morte, forjado nos hospitais, a possibilidade do homem reconciliar-se com sua infância: "O que permite ao homem reconciliar-se com a infância e alcançar o permanente nascimento da verdade é esta ingenuidade clara, distante e aberta do olhar" (ib., p.72). Antes disso, a infância e a juventude das coisas e dos homens estavam carregadas de um poder ambíguo: "dizer o nascimento da verdade; mas também colocar à prova a verdade tardia dos homens, retificá-la, aproximá-la de sua nudez"; a criança se tornara "o senhor imediato do adulto", à medida que "a verdadeira formação se identifica com a própria gênese do verdadeiro". Em cada criança, as coisas repetiam sua juventude, o mundo retomava contato com sua forma natal, de modo que ele nunca era adulto para quem o olhava pela primeira vez. Só quando o olhar abandonar seus velhos parentescos (cf. Corazza, 1996c, p. 57-63), é que o olho se abrirá no nível das coisas e das idades e, "de todos os sentidos e saberes, ele terá a habilidade de poder ser o mais inábil, repetindo agilmente sua longínqua ignorância". Por ter um parentesco íntimo com a luz, este "Olhar-Infância"

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

1 6

1

suportará apenas seu presente. Para esse tipo de olhar, a filosofia do século XVIII desejou fundar seu começo em duas grandes experiências míticas: "o espectador estrangeiro em um país desconhecido e o cego de nascença conduzido à luz". Mas, acrescenta Foucault, numa referência à pedagogização das crianças, "Pestalozzi e os Bildungsromane também se inscrevem nesse grande tema do Olhar-Infância", de maneira que "o discurso do mundo passa por olhos abertos, e abertos a cada instante como que pela primeira vez .

D CORPO: SUPERFíCIE DE I N S C R I ç ã O

As transformações da história da infantilidade descritas até aqui - e que constituem a linha de força da identidade infantil subordinada e dependente - implicavam-se na nova tecnologia política que tomava os traços biológicos e mentais de uma população como elementos pertinentes para a gestão econômica e o governo dos indivíduos; além de fazer necessário organizar, em volta desses traços, dispositivos que assegurassem soluções para uma infância tornada um problema econômico, político e moral colocado às coletividades e que elas deveriam tentar resolver no nível de suas decisões de conjunto. Um pouco antes e mesmo durante os tempos históricos, nos quais o corpo dos indivíduos e da população e o corpo dos infantis - enquanto corpo de cada um e parcela dessa população - se tornassem um "problema", exigindo o exercício de um poder encarregado de gerir a vida, bem como determinando um encargo coletivo para que esses corpos fossem mais ou menos utilizáveis, mais ou menos suscetíveis de investimentos rentáveis, com mais ou menos chances

1 6 2

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

de sobrevivência, de morte ou de doença, sendo mais ou menos capazes de aprendizagem efetiva, é preciso ver como tais corpos vinham sendo, pelo disparate da Herkunft, historicamente "assujeitados". Assujeitados pela forma de poder que faz dos indivíduos "sujeitos", nos dois significados atribuídos por Foucault (1991h): 1) sujeito a alguém pelo controle e dependência - tal como é produzido pelo conjunto estratégico examinado até aqui; 2) preso à sua própria identidade por uma consciência ou autoconhecimento - sentido que constitui a segunda descontinuidade na história da infantilidade, a ser descrita a seguir. Tanto um quanto o outro sentido "sugerem uma forma de poder que subjuga e torna sujeito a" (ib., p. 235). É possível desenhar, ainda, desde a paisagem da história da infância, três figuras de corpos infantis que se repetem, em menor ou maior medida, nos estudos, quais sejam: 1) dormindo/morto; 2) imobilizado; 3) afastado. Por meio da descrição dessas figuras, será possível isolar mecanismos de um determinado tipo de poder, o qual, em conjunção com o velho direito de pátria potestas, realiza a torção para uma potestas parentaí: em que o pai e a mãe representam o poder da potestas em suas respectivas famílias e o exercem sobre os filhos de ambos os sexos, sob formas múltiplas, corporifiçado em seu afastamento, doação, mutilação, morte. Todos mecanismos de poder-saber do dispositivo de infantilidade a mostrar que é o "baixo" e o "horror" que são encontrados nos começos da história da infância; os quais, mais tarde, por efeitos do poder disciplinar, irão converter-se em discursos verdadeiros, sérios, respeitáveis, científicos, humanitários, em detrimento desses outros discursos que se perderão nas sombras ou ficarão expostos ao acaso ao menos até passado os meados do século que nos tocou viver.

HISTóRIAS DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

1 6 3

Por enquanto, nos confins habitados por esses corpos, o futuramente chamado "Mundo Infantil" ainda é o mundo das mulheres, dos plebeus, dos rústicos, dos sem-razão, dos pecadores, dos despudorados, dos débeis: um mundo no qual a natureza dessas singularidades e totalizações por pouco não é a mesma dos animais. As técnicas desse poder locuções, trajes, jogos, brincadeiras, contos de fada, que talvez possamos chamar "abstratas" ou "enunciáveis"; bem como as técnicas, que talvez possamos chamar "concretas" ou "visíveis", como o enfaixamento, a lactância, os cortes na língua dos recém-nascidos, os enemas, os espancamentos - colocaram em movimento um tipo de poder que produziu a infância em situação servil de fraqueza e de dependência, sujeitando-a, por controlar seus corpos. Gerados no redemoinho de categorias binárias, aos corpos infantis tocará o lugar do segundo termo, hierarquicamente desqualificado: por sua sujeição desprezível e dependência intolerável, a eles corresponderá a necessidade de humilhação e de castigo, de vigilância e de regulação, de contenção e de morte; isto é, de suplência, ou seja, de Educação.

DDRMINDD/MDRTD

Conta-se que as manifestações de ternura com as filhas e os filhos - dos pais e das mães de outras épocas ocorriam, com maior freqüência, quando a criança não pedia nada, em especial, quando estava dormindo ou morta (cf. DeMause, 1995; Lyman Jr., 1995). Quando não se encontrava em nenhuma dessas duas condições, existia a figura da "criança-estorvo", gerada dentro de práticas culturais para as quais o infanticídio somente foi passível de pena capital no ano de 374 - quando o cristianismo já era uma religião de Estado -, sendo uma prática comum na Grécia e em Roma, particularmente das filhas mulheres, dos filhos ilegitimos e das crianças débeis e aleijadas.

1 6 4

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

As crianças eram sacrificadas aos deuses, emparedadas nos muros e enterradas nas fundações das construções para fortificar suas estruturas, desde as muralhas de Jerico até o ano de 1843 na Alemanha. Os desejos de morte e a morte efetiva das crianças conviveram com a adoção de medidas contra a morte, sendo que os primeiros geraram formas diversas de matar: queimar com ferro quente, com vela acesa, ou deixar pendurado na beira da lareira por vários dias; congelar com banhos frios ou deixar sem agasalho; afogar nos rios, no mar, em tinas de água, nos poços, ou em latrinas; abandonar em lugares desertos, para que os animais as comessem; asfixiar na cama; atirar ao solo ou contra a parede; deixá-las cair, enquanto enfaixadas, passando-as de uma janela a outra, ou jogando-as para o alto, como se fossem bolas; deixá-las morrer de fome. De um levantamento realizado no século XVI, de trinta casos de infanticídio ocorridos em Essex, Inglaterra, obtém-se as seguintes causas das mortes: - estrangulados, cinco; - sufocados, dois; - asfixiados, com almofada, um; - no forno, um; - surrados, três; - em um paiol, um; - afogados, em balsa, quatro (um nascido morto); - em poço, um; - enterrado em buraco, um; - desnucados, três; - encerrado em um baú e depois enterrado em um monte de estéreo, um; - degolados, dois (um foi depois afogado);

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

1 6

5

- atirado contra o pilar da cama, um; - golpeado por um homem, um; - causa não especificada, três. (Tucker, 1995, p. 274-5) No Rio de Janeiro, na sessão de 18 de junho de 1846, a Academia Imperial de Medicina propunha que fossem discutidas por seus membros as seguintes questões: l e ) a que se deve atribuir tão grande mortandade nas crianças nos seis primeiros anos de vida? 2°) Quais as moléstias mais freqüentes nas crianças? A essas perguntas foram dadas as seguintes respostas: - o hábito de mergulhar as crianças em água mais ou menos quente; - modo de cortar o cordão umbilical empregando sobre ele substâncias irritantes; - compressão sobre a cabeça das crianças pelas parteiras ou pelas amas quando estão dormindo; - impropriedade da alimentação e do vestuário; - aleitamento mercenário; - aperto das vestimentas; - maus costumes das amas-de-leite transmitindo sífilis, escrófulas, etc; - abuso de anti-helmínticos; - ausência de tratamento médico no princípio das moléstias; - vermes intestinais; - variações de temperatura; - umidade da nossa atmosfera etc. (Costa, 1989, p. 163). O "berço" foi, por muitos séculos, um dos instrumentos mais largamente utilizados para controlar o corpo das crianças recém-nascidas e, por isto, uma questão de sua

1 6 6

HISTÓRIA DA INFÂNCIA BEM FIM

vida-morte: a técnica era sacudir o berço, até que as crianças tonteassem, ou entrassem em estupor. Embora as primeiras representações pictóricas desse móvel datem do século XIII, em suas formas mais simples foi utilizado antes disto: havia, por exemplo, um berço fundo, do tipo cesto, fácil de transportar, no qual amarrava-se a criança com bandas, e existem muitas referências literárias a berços de diversas classes sociais, entre os quais o berço de prata, referido na vida de Santa Isabel de Hungria (McLaughlin, 1995, p. 149). Nos princípios da Idade Média, a criança inglesa dormia numa cesta de junco e, séculos mais tarde, num berço de osso ou de madeira. Se pertencesse à gente rica, esse berço repousava num chão de pedra; se pertencesse à gente pobre, num chão de argila. Os berços de madeira eram de balanço e tinham uma coberta para proteger a criança das correntes de ar e das cinzas que se espalhavam cada vez que era aceso o fogo de lenha (Lynd, s.d., p. 9-10). A disseminação do uso do berço é atribuída às admoestações das autoridades eclesiásticas para que os pais não colocassem mais as crianças dormindo em suas camas, evitando assim o perigo de asfixia sob o peso dos adultos; embora, nos sermões e escritos religiosos, o que apareça seja a justificativa moral de impedir a manipulação sexual das crianças pequenas, durante a noite: parece que, mais do que sanitaristas, as condições culturais que possibilitaram a criação do berço foram morais. Sua função era a de sujeitar o corpo das crianças de um modo tão excessivo que se pudesse, pelo manuseio, dispor de sua morte, muito mais do que teria vindo libertá-las dela. Outra causa freqüente de morte das crianças era o excesso de pancadas. Em mais de duzentos escritos anteriores ao século XVIII, pelos quais formulavam-se conselhos sobre a criação de crianças, foi observado que, na maioria

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

1 6 "7

deles, o castigo corporal era aprovado e, em todos, era admitido, em determinadas circunstâncias, "com exceção de três, cujos autores são Plutarco, Palmieri e Sadoleto, que estavam dirigidos aos pais e aos mestres, sem referência alguma às mães". No século XI, Santo Anselmo tinha incitado à brandura os professores da juventude: "Não cessais de espancá-los. Quando chegarem à idade adulta, que espécie de homens serão?" Mas, responde-lhe o professor: "São estúpidos e grosseiros." "Qual pode ser a vantagem de gastardes vossas energias preparando seres humanos para se tornarem animais selvagens?", pergunta o santo, e passa a fazer sua conhecida comparação com o ourives, "que não usa apenas golpes violentos para transformar o ouro ou a prata numa bela imagem". Durante os oitocentos anos que se seguiram, ninguém deu atenção aos seus conselhos: "Poupa-se a vara e estraga-se a criança." continuou a ser a máxima educacional até a Idade Moderna. A criança era chamada de "Estrela de minh'alma, lindo amor, querida doçura", enquanto os antigos manuais sobre educação infantil prescreviam: Se teu filho for rebelde e não quiser ceder, Se algum dia agir mal, não o maldigas nem esbravejes. Apanha uma boa vara e dá-lhe uma boa surra Até que peça perdão e reconheça que errou (Lynd, s.d., p. 15). Dentre os instrumentos de castigo corporal, figuravam chicotes de vários tipos, incluídos os de nove pontas, paus, bastões, varas de ferro e de madeira, feixes de varas, instrumentos escolares especiais, dos quais se destacava com insistência a palmatória - de madeira, em formato de pêra, cheia de buracos redondos para levantar bolhas. Um mestreescola alemão calculou que havia dado: "911.527 golpes com a palmatória, 124.000 chicotadas, 136.715 bofetadas e 1.115.800 "cascudos" (DeMause, 1995, p. 72-3).

1 6 8

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Era costume cortar ou espetar as plantas dos pés das crianças, dar-lhes "pescoçadas", beliscões, puxões de orelhas, tapas na boca e pauladas na cabeça. As crianças enfaixadas não eram surradas, mas, assim que saíam do enfaixamento, costumavam sê-lo, diariamente: o delfim Luís XIII, desde os 25 meses, recebia sistematicamente, uma surra pela manhã, ao despertar; no dia de sua coroação, aos oito anos, foi açoitado e disse: - "Preferia prescindir de tantas homenagens e honrarias e que não me batessem". Foi no Renascimento que se começou a aconselhar moderação nos castigos corporais, embora tal moderação fosse acompanhada da aprovação de castigos físicos, desde que sabiamente administrados: os pais não deveriam dar golpes na cabeça ou no rosto de seus filhos, nem açoitá-los como se fossem sacos, já que poderiam morrer em conseqüência dos golpes - "o correto era bater-lhes nas costas, com a vara, porque isso não lhes causará a morte" (DeMause, 1995, p. 75). As mutilações eram freqüentes, particularmente para que as crianças pudessem ser usadas como mendigas nos passeios públicos, o que levava os adultos, logo após o nascimento, a quebrarem suas pernas, braços e colunas vertebrais; tais mutilações provocavam, em muitos casos, a morte iminente, ou um pouco mais tarde, a morte por infecções ou dificuldade para locomover-se e alimentar-se. As primeiras medidas de que se tem conhecimento contra a morte das crianças foram adotadas no terreno da prevenção aos perigos ocultos que as rondavam, na forma de exorcismos, purificações, amuletos, pela aplicação de água fria, fogo, sangue, vinho, sal, urina, da qual é exemplar o seguinte relato:

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

]

g g

O recém-nascido [na Grécia] dorme bem enfaixado em um berço de madeira, envolto de ponta a ponta em uma manta, de modo que a criança jaz em uma espécie de tenda, no escuro e sem ventilação. As mães temem os efeitos do ar frio e dos espíritos malignos. Quando anoitece, a cabana ou a casa é como uma cidade sitiada, os postigos das janelas fechados, a porta trancada e sal e incenso são colocados em pontos estratégicos, como na entrada, para rechaçar qualquer invasão do Diabo (DeMause, 1995, p. 55). Debret, pintor oficial do Primeiro Reinado no Brasil, registrou em 1816 práticas similares: Logo após o parto, os parentes se apossam do recém-nascido e se revezam perto dele, dia e noite, até o dia do batismo, a fim de preservá-lo, dizem, das bruxas ou feiticeiras que se transformam em mariposas ou morcegos e, fazendo-se invisíveis, sugam o sangue da criança paga. A esses guardas cabe também renovar os ramos de arruda colocados nos cantos do berço e conservar religiosamente os talismãs e amuletos logo suspensos ao pescoço da criança (Leite, 1997, p. 28-9).

IMOBILIZADO

Sujeitar as crianças com diversos tipos de faixas foi uma prática de uso disseminado, usada por "quase todos os povos"; inclusive, em gravuras do antigo Egito, observam-se já crianças com "ataduras e faixas" (DeMause, 1 9 9 5 , p. 68). Da Vinci escreveu, em seus Cadernos, sob o título Crianças enfaixadas: Oh cidades do mar, vejo em vós, vossos cidadãos, homens e mulheres, braços e pernas estreitamente atados por vós mesmos, por lástimas chorosas, lamentos e suspiros, vossas dores e vossa tristeza da liberdade perdida. Pois aqueles que vos têm atados não compreenderão vossa língua, assim como tampouco as compreendereis (Lacan, 1988a, p. 223).

1 7 Q

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Assim que nasciam, as crianças tinham todo o corpo imobilizado por ataduras, geralmente feitas de algodão, cuja função consistia em privar totalmente a criança do uso de seus membros, envolvendo-a de modo tal que parecesse uma lenha; a cabeça também era apertada, com faixas e toucas, para dar-lhe a forma desejada. Tal processo de enfaixamento era complicado e demorava, no mínimo, duas horas. As vantagens eram que os recém-nascidos ficavam passivos, o coração batia mais lentamente, choravam menos e dormiam muito mais; além de darem menos trabalho aos adultos, visto que dormiam sempre, ficavam horas encostados atrás do forno aquecido, ou pendurados em ganchos cravados nas paredes, atados com cordas a cabides, metidos em bacias e caixas, manuseados como pacotes que eram colocados em qualquer lugar onde não atrapalhassem. Três razões justificavam o enfaixamento: 1) Era necessário assegurar-se de que a criança adotasse uma postura humana - em alguns lugares, era colocada dentro das faixas uma tabuinha atrás do pescoço que firmava sua cabeça e o tronco -, fixando rigidamente os braços junto ao corpo e esticando suas pernas, para que não dormisse em posição fetal, como se fosse um animal, fato que só reafirmaria a "verdadeira natureza" da criança, isto é, sua regressão a um estado primitivo e inferior. No caso das meninas da nobreza, suas formas eram consideradas mais propensas à deformação, de modo que, durante muitos anos, usavam um espartilho feito com ossos de baleia para manter o talhe ereto. 2) Uma segunda justificativa referia-se à debilidade do recém-nascido, carente de coordenação, fazendo movimentos descontrolados que eram um perigo para si mesmo: poderia arrancar-se os olhos, ou as orelhas, quebrar as pernas, deformar os ossos, assustar-se ao ver seus próprios membros. 3) A influência do clima frio europeu, para o qual as faixas propiciavam que as crianças fossem trocadas apenas duas ou três vezes ao dia, na beira do fogo.

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

1 7

1

O enfaixamento da cabeça dos recém-nascidos era feito com vendas bem apertadas, ou para estreitá-la ou para alargá-la, assim como para proteger a moleira do frio. Este costume começou a ser abandonado no início do século XVII, por críticas estéticas: "as bandelettes que lhes alargam as cabeças e pelas quais todo mundo reconhece as crianças de Paris"; e também por questões médicas, as quais estendiam-se ao enfaixamento do corpo: assaduras, escoriações da pele, picadas de pulgas, ferimentos com alfinetes. Para a limpeza do corpo, era usada uma mistura de vinho e vinagre, às vezes, com adição de água de rosas: "o vinho era considerado um anti-séptico natural e um remédio universal para os males da infância, de uso interno e externo desde o nascimento" (Marwick, 1995, p. 300-2). Como a prática do enfaixamento foi considerada natural, os dados acerca de sua duração são irregulares, antes do começo da Época Moderna: os romanos suprimiam as faixas entre os 40 e 60 dias, embora Platão tenha falado em "dois anos"; e, nos séculos XVI e XVII, o enfaixamento durava de um a quatro meses, deixando depois os braços livres, permanecendo enfaixados o corpo e as pernas por mais seis ou nove meses. O enfaixamento permaneceu como prática de sujeição do corpo infantil até o século XVIII - em virtude da introdução de uma concepção "naturalista" sobre a infância e a criação das crianças - , quando as autoridades médicas passaram a escrever manuais desaconselhando seu uso, em função dos malefícios físicos dele derivados e também em conseqüência de inúmeras mortes motivadas pelo "lançamento do enfaixado", tal como este: Um irmão de Henrique IV morreu porque lhe deixaram cair quando brincavam com ele, passando-o de uma janela a outra. O mesmo ocorreu com o conde de Marle: 'um dos camareiros e a nutriz que cuidava dele divertiam-se atirando-o de lá para cá,

1 "72

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

por cima de uma janela aberta. Às vezes, fingiam que não o pegavam. O pequeno conde de Marle caiu e bateu contra uma escada de pedra'. Os médicos se queixavam que os pais quebravam os ossos de seus filhos pequenos com o 'costume' de jogá-los como bolas. As amas-de-leite diziam que as faixas em que iam enroladas crianças eram necessárias porque, sem elas, não poderiam 'lançá-los de um lado a outro' (DeMause, 1995, p. 57). Depois das faixas, existia uma grande preocupação em evitar que as crianças engatinhassem. Para isto, foram utilizadas diversas técnicas que, ao mesmo tempo, objetivavam ensinar a andar e tolhiam a liberdade motora: o uso dos tirantes ou lisières, presos nas roupas, detrás dos ombros, para que os adultos segurassem a criança na postura erguida; andadores estacionários, em que as crianças ficavam eretas, antes de poder dar os primeiros passos; ou andadores móveis para que caminhassem pelos pátios, como os descritos em 1563: Existem andadores para que as crianças fiquem de pé, nos que podem girar em todos os sentidos; quando as mães ou amas as põem nelas, não cuidam mais das crianças, deixando-as sós, e vão fazer suas atividades, supondo que a criança têm tudo o que necessita, porém não reparam na fadiga e no sofrimento da pobre criança ... a pobre criança ... tem que ficar de pé durante muitas horas, sendo que meia hora de pé já é muito. Queria que todos estes andadores fossem queimados (DeMause, 1995, p. 70). As crianças eram atadas às portas ou às mesas para que não andassem de "4 patas", pois isto também era considerado próprio dos animais; no século XIX, os tirantes eram costurados às roupas, ou presos em coletes e cintos de gesso, madeira e ferro, para que os adultos pudessem levá-las de um lado a outro; quando estavam estudando, eram amarradas às cadeiras e seus pés colocados em cepos; para corrigir a postura, utilizavam-se colares de ferro.

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

1 7 3

Após livrar-se das faixas, tiras e andadores, as crianças ficavam desprotegidas para os castigos corporais: surras, chicotadas, bofetadas. Nos séculos XV e XVI, o castigo corporal generalizou-se, mas havia uma diferença entre o das crianças e o dos adultos, que não existira durante a Idade Média: entre os adultos, nem todos eram submetidos ao castigo corporal, sendo que os fidalgos lhe escapavam, e os modos de sua aplicação diferenciava as condições sociais; ao contrário, todas as crianças e jovens do espaço escolástico eram surradas. Aries escreve que a história da disciplina do século XIV ao XVII permite fazer duas observações importantes: a primeira é a da "disciplina humilhante", promovida pelo chicote e a delação mútua em benefício do mestre; a segunda é a dilatação da idade escolar submetida ao chicote: reservado de início às crianças pequenas, estendeu-se a toda população escolar. Essa "humilhação deliberada" das crianças e jovens englobava-os no regime disciplinar adotado para os plebeus: "O sentimento da particularidade da infância, de sua diferença com relação ao mundo dos adultos, começou pelo sentimento mais elementar de sua fraqueza, que a rebaixava ao nível das camadas sociais mais inferiores" (Aries, 1975, p. 3456). Foi preciso considerar o infantil como um corpo vil, submetido à corrupção do pecado original, vivendo em uma idade servil; ou seja, foi necessário humilhá-lo para distingui-lo.

AFASTADO

Diz-se que as amas-de-leite, ou nutrizes constituem uma personagem central na vida das crianças, desde os tempos bíblicos, aparecendo no Código de Hammurabi, nos papiros egípcios e na literatura grega e romana - organizadas sob a

1 7 4

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

forma da Coluna Lactária -, até mais ou menos o século XVIII, quando os moralistas, médicos e eclesiásticos retomaram os conselhos de Galeno e Plutarco e passaram a criticar as mães que enviavam seus filhos para fora do lar, para serem amamentados por estranhas, ao invés de amamentálos elas próprias. O costume persistiu até o século XVIII, na Inglaterra e nos Estados Unidos, até o século XIX, na França, e até o século XX, na Alemanha. Na França, a abertura da primeira agência de amasde-leite, em Paris, data do século XIII, quando o hábito de contratá-las para os filhos limitava-se às famílias aristocráticas; a partir do final do século XVI é que se generalizou entre a burguesia, enquanto, no XVIII, o envio das crianças para a casa das amas estendeu-se por todas as camadas da sociedade urbana. Conforme Badinter (1985), em 1780, em Paris, "em cada grupo de 21 mil crianças que nascem anualmente (numa população de oitocentos a novecentos mil habitantes), menos de mil são amamentadas pelas mães, mil são amamentadas por uma ama a domicílio. Todas as outras, ou seja, 19 mil, são enviadas para a casa de amas" (DeMause, p. 63; p. 66-72). Pela tradição das classes abastadas, pela grande quantidade de nascimentos nos matrimônios; pela má saúde da mãe; pelo fato de esta não ter leite suficiente; ou mesmo devido às gestações sucessivas que enfraqueciam a mulher; também para que a mulher pudesse acompanhar o marido em festas e viagens; assim que lhe nascia uma criança era enviada à casa de uma ama-de-leite, para que fosse amamentada e ali passasse os primeiros anos. Caso sobrevivesse, aos dois anos de idade voltava para a casa dos pais, sendo cuidada por outros serviçais, geralmente pelas amasde-criação, também chamadas de "amas-secas". Se fosse do sexo masculino, saía da casa paterna aos sete anos, para

H I S T ó R I A S DE G Q V E R N D : CRIANçAS E CIA.

1 7

5

servir em outras casas, aprender um ofício ou ir à escola; se fosse menina, mais ou menos aos nove ou dez anos, entrava em um convento, ou no máximo aos dezesseis, era dada em matrimônio. Em função dos recursos financeiros, podia-se instalar a ama na residência da família; porém, na maioria dos casos, as amas-de-leite moravam distantes da casa de origem da criança, pois provinham das classes camponesas ou de gente do povo; sua contratação era feita pelos pais dos recémnascidos - na maioria das vezes, por intermédio de agentes - e lhes era fornecido um enxoval e uma remuneração regular para pagamento dos serviços. Essa era uma prática considerada natural, uma necessidade, bem como um símbolo de dignidade e decoro, tal como para as classes médias italianas do século XIV (cf. Ross, 1995). Muitas recomendações eram feitas no sentido de que se encontrasse uma nutriz que reunisse as condições devidas e conservá-la - pois a troca de amas-de-leite era freqüente -, tais como: que fosse parecida com a mãe, já que o lactente tendia a assemelhar-se a ela, por força de beber seu leite; que não tivesse maus costumes, porque a criança estaria bebendo sangue contaminado - acreditou-se, por muito tempo, que o leite era sangue batido até tornar-se branco; que se tivesse certeza de que não daria leite de animais, já que a criança ficaria parecida com o animal correspondente, ou débil. Os médicos italianos do século XVI deixaram registrados os seguintes requisitos a serem observados para escolher uma nutriz: De 25 a 35 anos de idade, o mais possívci parecida com a mãe, que tenha boa cor, colo e peito fortes, que não seja fraca, senão de boas carnes, duras e lustrosas, porém não demasiado, que não tenha mau hálito e que traga os dentes limpos. E, quanto a seu caráter, livre-se das soberbas, das coléricas e das melancóli-

1 7 6

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

cas, que não seja medrosa, nem estúpida, nem grosseira. Que seus peitos sejam entre macios e duros, grandes porém não excessivamente grandes; seu leite deve ser moderado no que respeita à quantidade, de cor branca e não amarelo nem verde, e ainda menos escuro, de bom cheiro e de sabor nem salgado nem amargo, e sim doce e sempre uniforme, porém não espumoso, e abundante. E levai em conta que a melhor é a ama que teve um filho homem. Desconfiai daquela que "ande dando maus passos", como as que seus maridos não deixam sozinhas, e da que esteja grávida (Ross, 1995, p. 216). Os filhos dessas amas-de-leite ou tinham morrido logo após nascerem, ou eram criados junto com os filhos das classes abastadas, ou eram abandonados para que a nutriz pudesse exercer a nutrição remunerada, enquanto muitos vinham a morrer, em detrimento dos cuidados que estas deviam prestar aos outros filhos; embora também a mortalidade das crianças ricas enviadas às nutrizes fosse elevada, em função de falta de cuidados higiênicos, por carência de leite, por amamentação artificial, por fome ou frio. As visitas dos pais aos filhos, durante o período da amamentação, eram raras, de modo que quando as crianças retornavam para junto da família deparavam com pessoas que sequer conheciam. Das baíie italianas ficaram registradas músicas do carnaval renascentista, como esta: Aqui viemos, as balie de Casentino, buscando cada uma criança, e aqui estão nossos maridos que nos ensinam o caminho; aquele que tenha uma criança; todo o que tenha uma criança, que nos traga

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

macho ou fêmea, nos dê igual. A cuidaremos bem e estará tão bem alimentada que logo se porá de pé como um altivo cavalheiro. Se a criança adoece ou se enfraquece um pouco a cuidaremos tão bem que logo se recuperará: porém temos que atendê-la mudando-a com freqüência; quando estiver molhada, a secaremos e a lavaremos com um pouco de vinho. Estamos contentes por nossa sorte somos rápidas e eficientes em nosso ofício sempre que a criança chora sentimos que o leite nos vem: com energia e presteza cumprimos nosso dever, a tiramos do berço secando-lhe a carinha. De abundante e bom leite estão cheios nossos peitos. Para evitar toda suspeita, que o médico os veja, porque neles se encontra a vida e o ser da criatura, pois o leite bom alimenta sem doenças e endurece as carnes ... Somos casadas jovens experimentadas em nosso ofício

1 "77

1 7 8

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

podemos envolver a criança em um instante e ninguém precisa ensinar-nos a pôr os panos e as faixas; enquanto a cuidamos, a colocamos bem pois se sente frio a criança sofre e colocam a culpa na balia. Trocamos três vezes ao dia as roupas de lã e de linho e as faixas brancas e nunca nos cansamos nem nos enojamos estando com ela para que não chore (Ross, 1995, p. 216; p. 219-21). Adotada no Brasil, a prática de entregar recém-nascidos a amas-de-leite tornou generalizados o aluguel e a compra de escravas negras para amamentarem os filhos das famílias brancas. Esse costume teve como contrapartida a separação das cativas de seus filhos e os anúncios de jornais do Rio de Janeiro do século XIX indicam isso: Na rua do Espírito Santo há uma ama-de-leite para alugar, parida de 8 dias, sem pensão do filho (Jornal do Commercio, 24 de fevereiro de 1850). Vende-se uma preta da nação, com bastante leite e da primeira barriga, sem cria, mui vistosa e rapariga (Diário do Rio de Janeiro, 4 de julho de 1850). Aluga-se uma preta, para ama com muito bom leite, de 40 dias e do primeiro parto, é muito carinhosa para crianças, não tem vício algum e é muito sadia e também se vende a cria (Jornal do Commercio, 3 de agosto de 1850) (Lima e Venâncio, 1996, p.67-8). Para as crianças expostas, filhos ilegítimos ou legítimos não desejados que eram abandonados nas portas das igrejas, ou nas rodas dos orfanatos, hospitais ou hospícios

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

1 7 9

das grandes cidades, as amas-de-leite costumavam ser escravas compradas pelo prior, ou alugadas pelos donos mediante o pagamento de seus serviços; ou eram integrantes da lista de nutrizes da própria instituição (cf. Vinyoles y Vidal, 1986, p. 99-123). Por exemplo, durante o século XIX, ainda era prática da Santa Casa de Misericórdia, em Porto Alegre, empregar "criadeiras" remuneradas para cuidar das crianças expostas até os sete anos se era menino, até os oito anos se fosse menina: "depois dessa idade, cessavam os pagamentos mensais" (Fonseca, 1989, p. 115). Hobbes escreveu, em meados do século XVII: A menos que se lhes dê tudo quanto pedem, as crianças são irritáveis e choram continuamente e, às vezes batem em seus pais; e tudo isso lhes vêm da natureza. Entretanto, não são culpáveis, e tampouco podemos dizer que sejam perversos ... porque faltando-lhes o livre uso da razão estão isentos de todo dever. Quando chegam a uma idade mais madura ... se continuam fazendo as mesmas coisas, então certamente ... se lhes pode considerar perversos. De modo que um homem perverso é quase o mesmo que uma criança crescida, forte e robusta ... e a malícia é a mesma coisa que um defeito da razão, nesta idade em que a natureza deve estar melhor governada mediante a boa educação e a experiência (Marwick, 1995, p. 286). Este é um tempo em que a sociedade ocidental começa a positivar a "natureza" da criança e a domesticá-la pela via da educação. Não é possível esquecer que estamos nos umbrais da Ilustração e que, por enquanto, as crianças são consideradas, por natureza, irritantes e fastidiosas. Segundo a terminologia médica da época, a natureza temperamental e intelectual, mais do que física - o natureí da criança -, começava em sua constituição e podia ser de quatro tipos: aquosa, melancólica, colérica ou sangüínea. Por exemplo, Luis XIII foi julgado por Héroard como de tipo "fundamental-

1 BD

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

mente sangüíneo, mas com tendência ao colérico", o que lhe dava, "por natureza, rapidez", ao mesmo tempo que o sangue "cumpria uma função moderadora e restritiva" (Marwick, 1995, p. 287). Nesse regime de "sangüinidade" - como Foucault (1988, p. 138) quase ia dizer -, que convivia com os mecanismos nascentes do biopoder, a amamentação realizada pelas amas-de-leite começou a ser criticada porque as autoridades médicas acreditavam que o leite era, literalmente, sangue menstrual, que desaparecia durante nove meses para alimentar o embrião no útero; e, depois de ser desviado e purificado, seguir alimentando a criança. As amas podiam passar às crianças que amamentavam sua melancolia, fantasias, traços de temperamento como preguiça, promiscuidade, impiedade e até mudar seu sexo: se fosse muito quente para um menino, ele resultaria efeminado; se fosse frio demais para a menina, ela poderia ficar masculinizada. Os conselhos dos médicos sobre as técnicas de lactância variavam conforme a classe social: para as aristocratas, recomendavam que o peito devia ser dado após alguns dias ou semanas, pois o leite novo não era aconselhável para crianças de origem nobre - enquanto houvesse o colostro, dotado de uma viscosidade perigosa para os condutos da criança, podia-se colocar um filhote de cachorro para mamar ou retirálo manualmente; para os pobres, estes conselhos não valiam e dizia-se que as mães eram obrigadas a dar o peito desde o primeiro dia. Para o desmame, era recomendável colocar nos seios mostarda, vinagre ou outra substância de sabor desagradável, de modo que a criança não quisesse mais pegálos. Então começava outro tipo de alimentação, em muito similar à dos adultos. Era costume cortar a membrana situada abaixo da língua, pois acreditava-se que ela prejudicava a adaptação à lactância. Isso era feito pelos médicos, com

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

1 B 1

tesouras, ou pelas amas-de-leite e, nas classes populares, pela parteira, com as unhas. Devido às inúmeras infecções provenientes desses procedimentos, foi recomendada sua não utilização, à medida que crescia o número de mães que amamentavam os filhos. A forma de afastamento institucionalizado, pela via da entrega das crianças às amas-de-leite, convivia com outras formas de afastamento, generalizadamente utilizadas pelas diversas classes sociais, tais como: a simples entrega dos filhos a outras pessoas, parentes ou não; a venda direta dos filhos, como escravos, legal na época babilônica, por exemplo, e possivelmente em muitas nações na Antigüidade; o emprego dos filhos como reféns políticos, no lugar do pai, por tempo determinado ou indeterminado; sua utilização como forma de pagamento de dívidas assumidas pelo pai (cf. DeMause, 1995, p. 59-61). Além desses afastamentos, encontram-se outros, tais como os estudados por Pastor (1986), referentes às crianças das linhagens da alta nobreza e de linhagem real, na Espanha medieval: 1) a oblatio puerorum - direito absoluto até o século XII -, pela qual se oferecia o filho e a filha, desde seu nascimento, à Igreja, sem que o/a oferecido/a tivesse qualquer possibilidade, depois de crescido/a, de reverter tal disposição; 2) oferecimento para que outros criassem os filhos, como vassalos, mediante o pagamento de uma quantia anual, até que o menino completasse dez anos, quando então seus trabalhos eram retribuídos pela alimentação e sustento; 3) entrega dos filhos como pupilos a "aios", que podiam ser nobres titulares de outros condados e de alta casta, cuja função era criar o infante, instruindo-o no manejo e uso das armas, para os combates, torneios e caça, e cuidando de sua instrução nas disciplinas liberais e na religião (ib., p. 8797).

1E3Z

H I S T Ó R I A DA I N F Â N C I A S E M FIM

As primeiras crianças inglesas que visitaram os conquistadores normandos fizeram a sua visita em condições que não tinham nada de agradáveis: como reféns. Mais tarde, os filhos de fidalgos foram mandados para os castelos normandos para aprenderem o francês, língua sem a qual nenhuma criança podia ter esperanças de vencer no mundo. Os pobres despachavam suas crianças, o mais cedo possível, para espantar passarinhos, tanger o gado, colher, levar recados; os ricos mandavam-as como pajens para a casa de algum amigo ou parente rico. Alguns séculos mais tarde, Montaigne afirmaria: Quanto a mim, não sinto nenhuma simpatia por essas inclinações que surgem em nós independentemente da nossa razão. Por exemplo, a respeito do que estou comentando, não posso conceber que se beijem as crianças recém-nascidas ainda sem forma definida, sem sentimento nem expressão que as tornem dignas de amor. Por isso foi com desagrado que as tive educadas ao meu lado. Uma afeição sincera e justificável deveria nascer do conhecimento que nos dão de si e com esse conhecimento crescer, a fim de que então, se o merecerem, e desenvolvendo-se de par com o bom senso essa disposição para as amar, cheguemos a uma afeição realmente paternal. Se não forem dignos desta, nós o perceberemos dando sempre ouvido à razão, apesar das sugestões ao contrário da natureza. Amiúde é o inverso que ocorre. Sentimo-nos mais comovidos com os trejeitos, os folguedos e as bobagens das crianças do que mais tarde com seus atos conscientes, e é como se delas gostássemos à maneira de símios e não de homens (Montaigne, 1991, p. 180). A casa de uma família rica era um campo de treinamento, onde a criança, sob as vistas imparciais de estranhos, aprendia boas maneiras e acostumava-se a ser útil, em vez de constituir um incômodo para os mais velhos: "uma criança que já começava a adquirir sabedoria". Aos oito anos de idade, eram mandadas para casas alheias: as meninas,

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

1 B

3

como camarareiras de honra, para aprenderem a falar francês, fazer reverências perfeitas - sem inclinarem-se muito para a frente, nem muito para trás - , fazer conservas de frutas, destilar perfumes, beber cerveja e vinho moderamente, tocar instrumentos de música, dançar, cantar e, se tivessem sorte, encontrar um marido; as donzelas que não aproveitassem dessa forma o período de treinamento acabavam voltando para casa, onde as esperava a roca e o fuso; como pajens, os meninos aprendiam a manejar toda espécie de armas, montar a cavalo, caçar, nadar, lutar e praticar diversos jogos. Um jovem fidalgo, que estivesse numa casa-grande, tinha direito a dois criados para servi-lo. Por sua vez, ele e outros meninos serviam o dono da casa. Se fosse apenas um filho mais moço, ou o filho de um grande proprietário rural, só teria direito aos serviços de um criado, conjuntamente com outro menino da mesma classe social, e ele, por sua vez, serviria um menino de classe superior. Havia príncipes que serviam reis, ou irmãos mais moços que pajeavam os irmãos mais velhos; nesse caso, usavam o escudo do irmão, no gorro ou na manga. O pajem aprendia a pôr uma mesa, trinchar assados e servir de copeiro - devendo, ao apresentar os pratos na mesa, curvar o joelho -, vestir e despir o senhor e, se necessário, lavá-lo e preparar o seu banho; devia saber fazer uma cama, servir o vinho e assim por diante. Quanto à sua própria pessoa, o pajem devia andar sempre limpo, lavar o rosto e as mãos, pentear o cabelo e usar sempre o lenço no bolso; não podia arrastar os pés, fazer barulho com os calcanhares, gesticular, falar ou beber com a boca cheia, nem brincar com a colher e o garfo nas refeições. A principal regra de cortesia para os pajens era: silêncio, imobilidade e fisionomia impenetrável. As crianças

1 B 4

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

inglesas aprenderam a ficar imóveis como estátuas, durante horas, junto das mesas normandas. Algumas instruções para a educação nas cortes eram: Não coces a cabeça ou as costas, como se estivesses procurando uma pulga, nem passes a mão pelo cabelo, como se estivesses catando um piolho. Não faças contrações, nem cuspas longe demais, nem fales alto demais. Cuidado para não fazer caretas nem caçoar dos outros. Não mintas. Nem lambas um prato para limpar a poeira. A cortesia, dizia um manual do século XIV, "desceu dos céus quando Gabriel saudou a Virgem e Maria e Izabel se encontraram". Por isso, "contra vosso senhor", prosseguia, "nunca luteis com urna palavra sequer", nem "aposteis com quem apostar quiser", nem "jogueis dados com qualquer jogador"; com alguém de posição superior "nunca vos igualeis em acordo ou discussão" (Lynd, s.d., p. 17-8).

AFRGNTAMENTD DA

EMERGêNCIA

A pesquisa da emergência - Entestehung -, neste estudo, tem por encargo não dar conta da emergência "do infantil" por seu "termo final", afirmando, de modo metafísico e muito fácil, que o dispositivo de infantilidade desde o primeiro momento emergiu para infantilizar, mas mostrar o jogo das forças deste dispositivo que historicamente infantilizam: as maneiras como estas lutam umas contra as outras; seus combates frente a circunstâncias adversas; as tentativas que fazem, redistribuindo-se, para escapar do que, contemporaneamente, é chamado de "fim" ou "desaparecimento" da infância - força que recobra o vigor a partir de seu próprio enfraquecimento.

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

1 S

5

Isso tudo porque acontece de uma força lutar também contra si mesma, não apenas para dividir-se no momento em que apresenta um excesso, mas no momento em que se enfraquece: contra "sua lassidão ela reage, extraindo sua força desta lassidão que não deixa então de crescer, e se voltando em sua direção para abatê-la, ela vai lhe impor limites, suplícios, macerações, fantasiá-la de um alto valor moral e assim por sua vez se revigorar" (Foucault, 1990d, p. 23-4). Revigoramento da força da infantilidade que produziu "a-vida-a-morte" da infância, seu excesso e enfraquecimento, expressa na "mais-valia de uma infância sem fim", como se terá oportunidade de presenciar.

CENAS

CENA

ZERO.

PONTO

DE

SURGIMENTO:

CRIANçA-MãE

Uma vez nascidas, as crianças convertiam-se em "pai de sua mãe e de seu pai", sem que se levasse em conta sua idade (DeMause, 1995, p. 38-45). Eram vestidas não apenas como adultos em miniatura, mas como "mulheres em miniatura" (cf. Varela, 1986, p. 179-191), independentemente do sexo: suas roupas eram as da "mãe do pai" - não apenas um vestido largo, mas antiquado, ao menos de uma geração anterior - de modo que a criança funcionasse como adulto - um "adulto-mãe": a idéia de que a avó renascia na criança era comum na Antigüidade, a qual parece estar expressa pela semelhança entre as palavras inglesas baby (criança) e baba, Babe (avó). O filho perfeito era aquele que dava de mamar aos pais, sendo que os adultos costumavam lamber, beijar, chupar e apertar os peitos dos recém-nascidos e o pênis dos

1 8 6

HISTÓRIA DA INFÂNCIA BEM FIM

meninos; por exemplo, a Luis XIII, as pessoas que o rodeavam beijavam seu pênis e seus peitos. Uma crença comum era a de que havia leite nos peitos dos recém-nascidos, o qual era preciso extrair. Derivada desta "criança como peito", existia o costume de permitir que a criança chupasse os lábios dos adultos, como registrou um pediatra do século XIX: "Tive oportunidade de observar como definhou um formoso menino, em conseqüência de ter estado chupando os lábios de sua avó enferma durante mais de seis meses". Também havia o costume de lamber os recém-nascidos, como escreveu um pai do século XVIII a respeito de sua filha: "A nutriz a traz toda manhã na cama para que eu possa lambêla com a 'língua de engraxar'. Gosto tanto disto, que seguirei fazendo até que ela chegue à idade do juízo". As crianças cuidaram dos adultos, sob formas muito concretas: desde a Época Romana, serviam seus pais à mesa, durante as refeições e festividades, e, na Idade Média, todas as crianças, exceto as de sangue real, atuavam como serventes, em suas casas ou em casas alheias, fazendo os trabalhos domésticos; cuidavam dos adultos, particularmente das mães, também na "interação emocional", acalmandoas, acariciando-as, secando seu pranto. Essa atitude figurada foi encontrada, por DeMause (1995, p. 41), em mais de quinhentos quadros de mães e filhos de todos os países: "comprovando que os quadros em que as crianças olham, sorriem e acariciam as mães são anteriores e, além disto, mais numerosos do que aqueles em que as mães olham, sorriem e acariciam as crianças, atitudes raras nas mães em qualquer pintura". "Crianças-adultas" brasileiras foram descritas pelo inglês Edgecumbe, em 1886, o qual concluiu que aqui "não existiam crianças" no sentido inglês:

IISTóRIAS DE GOVERNO: CRIANçAS E O A .

1 B "7

A menor menina usa colares e pulseiras e meninos de 8 anos fumam cigarros. Encontrei um bando de meninos voltando da escola, uma tarde. Um pequeno de aparentemente sete anos tirou do bolso um maço de cigarros e ofereceu a cada um de cada vez. Ninguém demonstrou qualquer desaprovação de um menino tão pequeno estar fumando. A linguagem desses meninos é terrível, embora eu precise admitir que, como os cocheiros de Londres, não percebem que estão usando expressões chulas (Leite, 1997, p. 37).

CENA

UM.

INFâNCIA

BEM-EDUCADA

A prática discursiva e não-discursiva de institucionalização da educação centrou seus esforços iniciais na infância e mesmo que, progressivamente, tenha se estendido por todo o conjunto da população, pareceu persistir a idéia e a demanda de que é da infância que preferencialmente deve ocupar-se. Vê-se quão repetidamente esse enunciado sobre a escolarização ainda funciona, política e socialmente, como uma das "saídas" - solução, recurso, meio de superação e resguardo, expediente - mais importantes contra o avanço dessa nova visibilidade e enunciabilidade de fim-da-infância, sendo significada como uma das garantias para que a infância possa continuar a ser produzida e tenha seus direitos assegurados (cf. Corazza, 1998, p. 38-191). Examinemos como a mesma instituição social que organizou o começo histórico do infantil na Modernidade é enunciada como uma das instituições, senão a única, que ainda pode operar como salvaguarda contra sua morte anunciada. Boom e Narodowski (1996) indicam a possibilidade que se teria hoje de observar a revalorização da função da educação em torno de novos pólos de atração e de novas finalidades sociais, das quais derivariam diversas estratégias

1 B B

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

que marcam a transformação de formas de direção e governo das populações, a partir de diferentes modalidades de vida social e de utilidade pública. A escola é significada como o espaço privilegiado que possibilita a "formação do cidadão" e, por isto, as populações devem passar pela escola, já que ela "é garantia de uma língua comum, de uma identidade nacional, de hábitos de comportamento e de uma racionalidade determinada". A proliferação dos discursos sobre o educativo institucionalizado distribui-se de um modo tal que a escola passa a ser considerada como um bem em si mesma e, por isto, uma necessidade de primeira grandeza, a qual é exigida pelas populações ocidentais, em nome da mobilidade social e do vínculo internalizado entre educação e desenvolvimento social. Inúmeros estados nacionais reorientam recursos e créditos para atender a essa demanda, de maneira a colocar a educação como instrumento básico para obter maiores níveis de produtividade, bem como para superar a pobreza, a ignorância e o atraso (ib., p. 11-2). Se a instrução pública do século XIX estava vinculada ao exercício político de formar o cidadão e de constituir as nações, a chamada "mundialização da educação" vincula-se a um determinado projeto econômico que tem como um de seus postulados inserir os países da América Latina e do Terceiro Mundo na modernidade neocapitalista, pela via da escolarização-educação. Desde que foi constituída como instituição moderna, a escola tornou-se um ponto de referência de diferentes setores sociais, enquanto "espaço de disputas que concentra os olhares, gera discursos especializados e expressa campos de força, tensões e enfrentamentos" (ib., p. 13). Espaço contestado que, ao lado de outros, põe em jogo a governamentalidade da população, especialmente a infantil, e seu

HISTÓRIAS DE GOVERNO: CRIANÇAS E CIA.

1 5 9

disciplinamento em termos da conformação de um corpo dócil e utilitariamente funcional às diversas estratégias da dinâmica social. Entre algumas de suas linhas invariáveis, ao lado das dissimilitudes regionais, nacionais ou locais, a escola - com seus mecanismos e táticas de normalização, implantação de hábitos e rotinas, transmissão de conteúdos uniformes, horários, distribuição espacial, execuções disciplinares, operacionalização de formas determinadas de racionalidade e de subjetividades, criação de interesses, necessidades, afetos e desejos - produz a infância, por meio do discurso pedagógico que, no infantil e em seu desenvolvimento, encontra razões sociais, culturais, econômicas e políticas que justificam sua necessidade cultural, existência política e subsistência institucional. Ao lado do dispositivo de familiaridade, a Época Moderna implementou também a escolarização abrangente da sociedade ocidental, direcionando essas duas práticas sociais para, entre outros efeitos, constituir a infância. Os poderes e os saberes efetivados pelo dispositivo de infantilidade fizeram com que a Pedagogia, cada vez mais concebida como uma disciplina cientificamente orientada, se encarregasse dessa tarefa política, de modo que a infância representasse "o ponto de partida e o ponto de chegada da pedagogia", "motivo de quase todos seus cuidados e fonte de boa parte de suas preocupações", "conditio sine qua non da produção pedagógica" (Narodowski, 1994, p. 23). A infância tornou-se, por efeitos de tal mecanismo pedagógico, uma infância-escolar: segregada de modos diversos - por idade, raça, etnia, gênero, cl^óse e grupo social, religião e crenças, diferença e escolha sexual, capacidade intelectual ou física e identidade nacional -, nos guetos que integraram os sistemas assistenciais, de recuperação, tutelares, de capacitação, educação, reeducação e terapêuticos.

1 9 Q

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Sistemas que, para funcionar, utilizam-se do Exame, em suas diversas formas, seguido de qualificativos, das normas e de violências disciplinar es, dos currículo oficiais e daqueles "em ação", de planos racionalizados e burocratizados, da defesa dos direitos e da exigência de cumprimento dos deveres infantis. A infância-escolar veio a dar em uma infância minuciosamente pedagogizada, em seus corações e mentes, pelas disciplinas educativas, de modo que todo seu comportamento passa por ser codificado em conceitos de normalidade, através de métodos de normalização cada vez mais exatos e criteriosos. A "conquista da criança pela ciência" fez-se acompanhar de uma pedagogia que "cerca o caminho da vida humana com cartazes de sinalização" (Brinkmann, 1986, p. 16-7); mas que também trata da vida infantil desviada, deficiente e patológica com recursos farmacológicos, quimioterápicos, ortopédicos e psicoterapêuticos.

CENA

DOIS.

INFâNCIA

EM AFANISE

NO

TELéGRAFO

Contemporaneamente, essa infância - nascida e criada no surplus escolar e pedagogicista, no afeto e na dedicação da família burguesa, no espaço urbano, nas instituições educacionais - depara-se com uma outra enunciação enquanto categoria social e individual: a infância não é mais produzida somente pela família e pela escola, como quiseram inicialmente Aries e quase todos/as os/as historiadores/as da infância que o seguiram, já que começam a ser descritos outros espaços e práticas sociais que produzem uma infância - ou uma "não-infância" - em quase tudo diferente daquela formada desde a Época Clássica até mais ou menos os anos 50 do século XX.

HISTÓRIAS DE G O V E R N ü : CRIANÇAS E C I A .

1 9

1

Aquela infância - pequenina, distinta, dependente, subordinada, inocente, culpada, má, selvagem, amoral, irracional, temente, maleável, racionalizável, moralizável, aterrorizável, imobilizável, controlável, libertavel, conscientizável, regulável; numa só palavra, educável - estaria em processo de afanise, de desaparecimento, de scomparsa. Todas as características que colocaram sua natureza em posição de ser cuidada, disciplinada, formada, educada pelos indivíduos adultos e suas instituições foram dadas por Johanes Gensfleich Gutemberg e perdidas por obra de Samuel Finley Morse. Outra não é a posição do livro de Postman (1984), o qual, dentre outros analistas da infância contemporânea (cf. Corazza, 1998, p. 305-36), aponta que a infância já é passado: nascida, desde quando Gutemberg inventou a impressão do livro com caracteres móveis; falecida, desde quando Morse inventou o sistema alfabético, que leva seu nome, e o telégrafo de escrita eletromagnética. A invenção da imprensa, em 1450, teria feito aparecer a idéia de infância, enquanto o telégrafo, criado em 1844, precursor dos contemporâneos meios eletrônicos, teria colocado em jogo o recente processo de seu desaparecimento e o fim dessa idéia. Para Postman, a necessidade social de aprender a ler e a escrever, e a conseqüente incapacidade das crianças para fazê-lo, produziram uma nova idéia de adultez, esta sim capaz dessas ações: criava-se uma nova figura adulta, a do literatus, isto é, do "homem culto" que sabia ler e escrever; figura que, "ao fazer-se presente, havia deixado atrás de si a infância". Anteriormente a esse mundo circundante, a infância encerrava-se aos sete anos e o homem entrava diretamente na idade adulta. Com o surgimento dessa nova literalidade social, promovida por um outro mundo simbólico, no qual existe assédio e repressão à cultura oral pela

1 <3Z

HISTÓRIA DA INFÂNCIA BEM FIM

escrita, o adulto deixaria de ser criança quando acedesse a tal literalidade e a criança seria criança somente até que o fizesse: "A imprensa produziu uma nova definição de adultez, fundada na capacidade de ler e, de modo correlato, criou uma nova concepção de infância, sustentada na incapacidade de ler". Dessa "revolução" que deu origem à infância podem ser indicados quatro efeitos pedagogicamente importantes: 1) fazem-se necessárias organizações especializadas que tenham o propósito de exercitar as crianças nas artes de ler e escrever, já que elas não são mais adultos pequenos, mas crianças-escolares; sendo que sua participação na aprendizagem escolar organizada converte-se em nova característica essencial do infantil, por estabelecer a escola como centro de sua vida; 2) resulta possível, em uma medida antes desconhecida, um controle do ambiente simbólico das crianças pelos adultos, e estes concebem, ao mesmo tempo, fundamentos pedagógicos para introduzir as crianças em uma parte da cultura escrita, retirando-as de outros espaços culturais; 3) o livre acesso aos mistérios culturais do mundo dos adultos e de seus conhecimentos converte-se em critério de demarcação central para a infância, já que o adulto possui os saberes que se julgam pouco indicados para as crianças (cf. Brinkmann, 1986, p. 12); 4) pelo aprendizado da leitura, reestrutura-se a mente da criança, colocando-se diante dela um novo mundo de experiências, que lhe exige um aumento da compreensão e a utilização de símbolos abstratos que enriquecem seu imaginário (cf. Trisciuzzi e Cambi, 1989, p. 143). Paradoxalmente, entre os anos de 1850 e 1950, quando a infância teria vivido, como categoria social, um período denso de plenitude - por assim dizer, "o clímax de sua jornada" (Postman, 1984, p. 68) -, aí mesmo, a idéia social de

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

1 9 3

infância teria começado a perder-se, a entrar em declínio, a cair no ocaso, a desaparecer, por efeitos da transformação das condições de comunicação, dos mass media e da informação. A idéia central da tese de Postman, acerca do desaparecimento da infância, é que "a época discursiva da controvérsia e da cultura literária, simbolizada pela imprensa, é substituída pela época narrativa do show-business e da cultura visual, sob a tirania dos meios eletrônicos" (Brinkmann, 1986, p. 14). A qualidade da notícia industrializada teria provocado os deslocamentos do discursivo ao não-discursivo, do lingote tipográfico à imagem, do intelectual ao afetivo. Enquanto a linguagem do período da palavra impressa era uma abstração a partir da experiência, agora as imagens seriam representações concretas da experiência. Em conseqüência, esses "Novos Meios" fraturam o monopólio parental e escolar dos controles informativos, bem como desajustam suas medidas psicológicas e pedagógicas de transmissão seletiva dos saberes e da ilustração sobre os mistérios do mundo e da vida. A infância eclipsa-se porque os mass media, especialmente a televisão, não distribuem seu público, fornecendo as informações indistintamente tanto aos adultos quanto às crianças. "Olhar" televisão, diferentemente do "ler" moderno, não pressupõe nenhuma capacidade analítica nem reflexiva e não requer instruções porque não formula exigências elevadas ao pensamento nem à ação, não existindo dificuldade alguma em decodificar as imagens. Esse "meio de revelação total" mostra tudo, sem ocultar nenhum segredo; e, sem mistérios adultos, não pode existir uma coisa tal como a infância. Diante da televisão, as crianças e os adultos são iguais, abastecem-se na mesma fonte de notícias e de entretenimento. A televisão faz com que termine a distinção his-

1 9 4

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

toricamente construída: entre duas culturas, uma infantil, outra adulta, e entre dois tipos de conhecimento, como a leitura e a escrita haviam promulgado. A televisão é fácil: "oferece uma alternativa bastante primitiva, mas irresistível, à lógica linear e conseqüente da palavra impressa e tende a eliminar a dificuldade própria de uma educação formal"; não requer nenhuma instrução anterior para ser compreendida em sua forma; não impõe questões difíceis de natureza intelectual ou ética (Postman, 1984, p. 102-3). Dando cabo da distinção moderna adulto/criança, a televisão - assim como todo o restante da vida social, midiatizado - opera na direção de acelerar o desenvolvimento infantil, adultizando a criança e infantilizando o adulto, por incorporá-los conjuntamente a uma mesma moral de c o n s u m o e a uma m e s m a d e p e n d ê n c i a da sociedade tecnológica e dos milagres da técnica. Respondendo a uma das questões que ele mesmo formula - "Existirá alguma instituição suficientemente forte para resistir ao declínio da infância?" - , Postman (1984, p. 1502) afirma que apenas duas instituições têm interesse em praticar tal resistência: a Família e a Escola. Quanto à primeira, em função de sua estrutura atual, a autoridade familiar apresenta-se sensivelmente diminuída em seu controle sobre as informações proporcionadas às crianças. Se a televisão é a "Segunda Mãe " / o "Segundo Pai", como dissera Margaret Mead, dentro da Television Age, os pais podem ser considerados como os "Quarto" ou "Quinto Pai/Mãe", em lugar subalterno atrás da televisão, do rádio, dos filmes, das músicas, do telefone, que funcionam hoje como seus substitutos. Se a mídia diminui e enfraquece o papel das famílias na produção e mudança dos valores e das sensibilidades infantis, costuma ser tomada por essas mesmas famílias como

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

1 9

5

a fonte de verdade sobre suas crianças: os pais atribuem aos médicos, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas familiares, psicanalistas, professores e jornalistas um saber mais confiável e demandam que eles/as lhes digam o que devem fazer e como se relacionar com seus filhos. Essa necessidade de aconselhamento e de orientação implica uma perda da intimidade, da dependência filial-patemo e da confiança que caracterizaram as antigas relações pais-filhos. Tais relações são agora significadas como essencialmente "neuróticas" e os filhos são melhor entendidos e atendidos pelas instituições especializadas do que por suas famílias. Ainda "mais devastador", diz Postman, para o poder da família é o movimento de liberação das mulheres: sua ocupação nos negócios, artes, indústrias, profissões, implica um acentuado declínio dos padrões tradicionais de cuidado e educação dos filhos. Se foram elas quem, preferencialmente, observaram, cuidaram e protegeram as crianças, hoje encontram-se espalhadas pela sociedade. Tanto para essas mulheres, quanto para os homens, o melhor mesmo é "o fim da infância" e que termine o mais cedo possível. Por todos esses motivos, "a família americana não faz forte oposição ao desaparecimento da infância". Restaria a Escola como a instituição que ainda funciona, baseada no pressuposto de que existem diferenças importantes entre a infância e a adultez e que, por isso, os adultos têm coisas de valor a ensinar às crianças. Essa instituição que, talvez, tivesse interesse e forças suficientes para resistir ao fim da infância, ainda produz pedagogos otimistas que escrevem livros para mostrar como os professores devem conduzir a si mesmos e, sobretudo, como eles podem conservar as funções de educadores e os empregos que têm. Contudo, o declínio da autoridade escolar tem sido fartamente demonstrada, especialmente em termos de sua supe-

1 9 S

HISTÓRIA DA INFÂNCIA 3EM FIM

ração por mudanças radicais na estrutura das comunicações, como mostrou Marshall McLuhan: as escolas, hoje, são muito mais "casas de detenção" das crianças do que "casas de atenção" às crianças. Acrescente-se a essa situação o fato de que os educadores e educadores encontram-se confusos quanto a saberem se estão lidando com telespectadores ou com crianças: em muitas escolas, essas são tratadas como adultos em miniatura. Não poderia ser diferente, já que as escolas refletem as tendências sociais muito mais poderosamente do que conseguem opor-se a elas. Tendo sido criada pela necessidade social de ensinar a ler e a escrever, a instituição escolar não é um joguete facilmente manipulado pela mídia, tal como o é a instituição familiar. Embora não tenha como diluir os efeitos midiáticos, a Escola ainda é a última defesa contra o desaparecimento da infância. Sem esquecer, afirma Postman, das dificuldades advindas do fato de que tanto seus professores quanto seus administradores são também produtos dos mass media.

CENA

TRêS.

INFâNCIA

A-EDIPICA

Trisciuzzi e Cambi (1989) ressaltam a continuidade do reconhecimento do valor da infância no século XX e o deslocamento do "sentimento de infância" ao "direito da infância", como o aspecto mais significativo de tal reconhecimento, atribuindo-o a fatores como: 1) o crescimento econômico que, ao distribuir melhor a renda, levou também as famílias pobres a colocarem as crianças no centro de suas vidas; 2) o sentido burguês dominante das sociedades de massa, que individualizou a criança e seus cuidados e fortaleceu um sistema de valores, para o qual a Família e o Estado foram considerados como formas essenciais de vida social, bem

HISTORIAS DE GOVERNO: CRIANÇAS E CIA.

1 9 "7

como a produtividade e o sucesso foram tomados como princípios da vida moral individual; 3) o modo de funcionamento e organização da sociedade industrial que generalizou a mudança da instituição familiar para o modo de família nuclear (ib., p. 127-8). Essa posição gira ao redor do pressuposto central de que, enquanto as teorias reconhecessem os direitos da infância, as práticas sociais mudaram muito pouco. A sociedade de consumo coloca em primeiro plano a figura de "uma criança falsa e ideológica", incitando a ternura e envolvendonos a todos em uma forte corrente sentimental com um "falso de infância", com uma "infância falsa": aí se conforma uma criança bela, simpática, inocente, sorridente, obediente, sem problemas, feliz diante de um prato de batatas fritas, bem-sucedida na escola. A personalidade infantil é configurada na mídia como dependente do mundo adulto, porém, contente por essa dependência: uma infância como os adultos desejam - afetuosa e maleável, sem anseios de autonomia e sem gestos de rebelião, sem traumas e sem angústias. Desse modo, o homem contemporâneo vê e pensa a infância dentro de uma irrealidade: como uma idade serena e inocente, que possui um valor em si mesma e que deve ser protegida e gratificada. A publicidade precisa seduzir o adulto consumidor para levá-lo a um produto, é certo; mas, para realizar isso, representa a infância de maneira ilusória, tornando-se nefasta ao criar na própria criança falsos desejos e, no adulto, modelos ideológicos de infância que prejudicam suas relações com as crianças concretas, de carne e osso. Em conseqüência, a infância perde sua autonomia por ser interpretada e codificada de forma universal, definitiva e enganosa. Se o Novecentos atribuiu à infância um lugar central na sociedade, exaltando-a, nosso século não terminou com a antiga violência contra as crianças; ao contrário, inventou

1 9 8

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

novas formas de abandono e de exploração infantis, das quais são exemplares o confinamento e o isolamento a que as crianças são submetidas diante da televisão: "a infância e a adolescência são domínios da ideologia dos meios de comunicação de massa". O século XX melhorou as condições materiais e psicológicas de vida das crianças, mas a exploração comercial e o abandono e isolamento que inventamos para elas fazem com que a identidade social dessa infância seja contraditória: encontramo-nos diante de uma infância que se prolonga no tempo e, paradoxalmente, exigimos dela um desenvolvimento acelerado. Se, por um lado, a condição privatizada da infância coloca-a por um longo tempo sob a tutela dos pais e a infância vive, na escola, uma situação de constante subalternidade, por outro, a idade infantil contrai-se, através da linguagem, do conhecimento das coisas, das experiências adultas. A infância dilata-se em seu tempo de duração, porém contrai-se em sua própria estrutura. Tais movimentos dão vida a um ser híbrido que é muito infantil e muito adulto, muito dependente e muito autônomo: "Um híbrido, de fato, contraditório" (ib., p. 130-3). Aceitando a tese principal de Postman, Trisciuzzi e Cambi afirmam que, através da televisão, a criança se adultiza, tendo acelerado seu desenvolvimento de maneira a ficar privada da própria fantasia e da capacidade de parar para refletir: morte em gestação, a qual, se não está totalmente realizada, encontra-se em curso de produção por efeitos do mundo tecnológico. Quando se fala em direitos das crianças, de sua identidade psicológica e cognitiva, não se estaria falando de um sujeito em vias de extinção?, perguntam eles. Pode-se pensar, respondem, que agora existe uma "outra criança", que não aquela da revolução burguesa, constituída por duas identidades sociais: a "criança violentada" e "a criança expropriada" (ib., p. 134-43).

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

1 9 9

A "violentada" é a criança que aparece nas páginas policiais dos jornais, inserida numa condição marcada pela violência, miséria e abandono: desnutrição, abandono em massa, violência familiar, prostituição, comércio sexual, pornografia, incesto. A insuficiência econômica, a neurotização da vida familiar, a exploração comercial, o enfraquecimento do tabu do incesto explicariam tal condição, embora sejam causas ambíguas: se, por um lado, ao demonstrar isso, a imprensa torna a opinião pública mais sensível ao problema dessas crianças, criando instrumentos de vigilância e intervenções corretivas e de sustento, por outro, configura uma disposição mental coletiva para prosseguir aceitando que a infância possa ser tratada dessas formas. Para Trisciuzzi e Cambi, deve-se continuar trabalhando "para implantar, no tecido social, uma norma moral que regule as relações com a infância. Uma norma que obrigue, se não a amá-la, ao menos a respeitá-la". A outra criança, a "expropriada", é aquela criança real, produto de ações conjuntas da mídia e do consumo; expropriada de um direito fundamental: "a possibilidade de viver plenamente e segundo seu tempo uma idade importante que deve conduzi-la em direção a uma maturidade baseada no equilíbrio". Uma criança que é produto da família e da sociedade até mesmo em seu inconsciente, e para quem a escola torna-se menos importante e bem menos incisiva, já que passa mais tempo e com maior densidade imersa em universos que antes eram próprios do mundo adulto: está em qualquer parte do mundo pela televisão, sua linguagem evolui rapidamente, sua lógica é formal e dedutiva precocemente, usa o computador. Todas essas ações, agora infantis, funcionam para "racionalizar a infância", originando a criança cognitiva de nossa época: "sedentária e contemplativa, que espera, que não manipula nem explora em pri-

Z D D

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

meira pessoa. É uma criança capturada em um universo de imagens, mas que não o cria, somente o recebe e incorpora". A escolarização não consegue corrigir a tendência que cria essa criança expropriada; ao contrário, aceita-a e mesmo a estimula: aceita-a quando delega o papel de maior importância ao crescimento cognitivo da criança, limitandose a ordenar o processo de apropriação precoce do esquema cognitivo do adulto; estimula-a quando se torna uma escola exclusivamente cognitiva e instrutiva, na qual a Ciência e seus métodos são centrais, tal como exigem a sociedade e a cultura, delegando a posições secundárias os desejos da criança, seus elementos sociais e afetivos. Ao atribuir maior atenção à relação entre a criança e a Ciência, direcionando-se para a criança cognitiva, a Escola dá vida a uma criança nova e diferente daquela do passado: "Uma criança mais adulta e mais racional, sobretudo adulta e racional muito cedo, uma criança da e para a civilização da técnica" (Trisciuzzi e Cambi, 1989, p. 140). Essa é a mais recente revolução cognitiva da infância: pela via do conhecimento, não temos mais a criança que manipulava, que operava concretamente, como postulou Piaget; não temos mais a criança que lidava e brincava com os animais, mas aquela que "sabe" sobre eles. Nessa escola contemporânea, os aspectos racionais subsumem a raiva, o medo, o desejo; as fantasias e os heróis são agora reinterpretados pelo mito tecnológico dos desenhos animados. Dessa criança cognitivo-tecnológica, também o inconsciente é transformado - afirmam Trisciuzzi e Cambi -, não em sua pulsão ou dinâmica fundamentais, mas em sua manifestação histórica. Pode-se pensar na relação edípica, em que o modelo freudiano não funciona mais, já que as figuras do pai e da mãe são menos opostos e menos rígidos: o pai

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

2 D

1

não é mais autoridade e a mãe é menos protetora e gratificante; tanto um quanto a outra estão distantes da criança, já que a mãe trabalha fora de casa; em casa, o pai opera como a mãe, cuidando, dialogando, jogando: ambos fabricam a nova criança a-edípica.

CENA

FINAL.

CAI

U

PAND

A infância, dizem Trisciuzzi e Cambi, em condições sociais pós-modernas tende a desaparecer "não de todo", mas a transformar-se, a empobrecer-se, a anular-se como mundo à parte, como valor específico e como etapa singular: declina, extingue-se, está quase morrendo. Teria entrado em eclipse uma idéia de infância que teve uma caracterização precisa e uma identidade histórica particular. Perguntam, inicialmente: "Quais os elementos que desapareceram daquela infância que já é passado"? Postman respondera a essa questão sublinhando a diferenciação em relação ao adulto e o distanciamento advindo por um uso mais sofisticado da mente, realizada através da leitura, hoje substituída pela imagem. Os historiadores italianos concordam e acrescentam: a perda, ou o redimensionamento da fantasia e da operatividade do plano cognoscitivo; a racionalização precoce; o modo de fazer experiências concretas; o imaginário que é suprimido; o inconsciente que se modifica radicalmente; as personalidades e os sentimentos infantis que s ão hoje empobrecidos. Como será a infância pós-moderna que nasce do desaparecimento daquela infância criada pela sociedade e pela cultura modernas? Se, hoje, aquela infância desapareceu, encontrando-se em processo de afanise, o que fazer? Não pretender voltar ao passado ou viver em sua nostalgia, respondem Trisciuzzi e Cambi, e sim repensar a infância de

Z D 2

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

ontem e a de hoje, dando vida a uma "cultura da infância", que seja "consciência histórica, psicológica e filosófica da criança", com o objetivo de esclarecer essa complexa identidade; partir daqui para "corrigir ou integrar, tanto quanto seja possível, a situação na qual a criança atual vive" (Trisciuzzi e Cambi, 1989, p. 143). O que se vai fazer diante dessa morte? Compreender acima de tudo; aceitar sim, mas sem rendição total, se possível (ib., p. 147-8): fazendo agir, seja a recordação do passado daquela infância que está desaparecendo, seja a denúncia do totalitarismo do presente - da criança tecnológica -, para deixar aberta alguma possibilidade de esperança na condição atual da criança violentada, "à qual cabe prevenir e defender, criando mecanismos oficiais ou voluntários para uma operação articulada de educação" (ib., p. 136). E necessário criar condições políticas para que nosso futuro se realize: "ou como triunfo da técnica, ou como gradual enfermidade do homem, de quem a criança é a matriz e o anúncio" (ib., 148). Postman conclui seu livro dirigindo-se aos pais, publicitários, comunicadores, jornalistas, educadores e a todos os profissionais que trabalham com a infância para que promova-se "a resistência ao espírito da época": "Não é concebível que nossa cultura esqueça que necessita das crianças. Mas parece estar se esquecendo que também as crianças necessitam da infância. Aqueles que insistirem em lembrar disto, estarão prestando à sociedade um nobre serviço" (Postman, 1984, p. 153). Como ele próprio, certamente.

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

2 O

3

INICIIA AQUIII

A

NATIMDRTA

ND

CAMARIM-TRINCHEIRA

Embora até os séculos XVII e XVIII ainda fosse encontrada uma rarefação dos mecanismos contínuos, reguladores e corretivos do infantil, o início de seu funcionamento que penetrava nos corpos, nos gestos e nos comportamentos de grupos e de individualidades, sinalizava, na consecução de seu próprio princípio de dispersão, para o posterior direito das crianças à vida em um mundo especificamente infantil. Mundo que seria produzido e fortalecido pelos mecanismos disciplinares, dedicados a operar, por meio de diversas tecnologias, outro tipo de controle de um corpo que, por longos séculos, fora prioritariamente imobilizado, afastado, castigado, adoecido, enlouquecido. Estranhamente, não é que esse "Mundo Infantil", por efeitos da própria identidade que nele habitaria, foi sendo produzido como um "Mundo Adulto"? Pois não é surpreendente que essa figura do infantil-adulto não seja exatamente tão contemporânea, tal como os enunciados do discurso crítico contra o "fim da infância" podem talvez sugerir, mas apenas o atual episódio de uma série de submissões bem mais antigas? Pois não é de espantar que o infantil, sujeitado, sob múltiplas formas, pelo dispositivo de infantilidade, como dependente ao Outro, foi adultizado justamente pelo tipo de sujeição que lhe objetivou? A análise genealógica de alguns mecanismos disciplinares de saber e de poder permitiu a este estudo distinguir, a partir da Época Clássica até o presente, a ruptura no dispositivo de infantilidade d'a-vida-a-morte, constituída pelos dois conjuntos estratégicos que se empenharam em fabricar tal dispositivo: a submissão da identidade infantil ao Outro e sua adultização. Conjuntos que, através de relações de

Z D 4

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

dominação e de técnicas de sujeição polimorfas, municiaramse de instrumentos de intervenção material, eventualmente violentos, e levaram as forças das figuras por eles produzidas - a do infantil-dependente e a do infantil-adulto - a prolongarem-se, penetrarem nas instituições, corporificarem-se em políticas públicas, em leis e regulamentos, e também em fazer uma das forças enfraquecer e a outra recobrar todo seu vigor a partir desse mesmo enfraquecimento. Se o indecidível a-vida-a-morte pôde ser articulado sem nenhum espaço "de maturação" entre seus termos, é conveniente perguntar se a história da infantilidade não estaria terminada, nada mais havendo a contar nem a escrever, por inscrever-se, ali, nos hífens que ligam suas palavras, toda a história que a vem ocupando. Acontece que a análise tanto da Herkunft quanto da Entestehung, em seu disparate e afrontamento, levam este indecídivel a antagonizar com qualquer evolucionismo ou desenvolvimentismo, por operarem não ao modo de uma história-relato e sim ao modo de uma história-problema, para a qual não existe nenhum "problema" se uma identidade, um sentimento, uma idéia, um indivíduo ou um sujeito não tem de passar pelo etapismo do tipo " nasce-cresce-morre ". O tempo desse indecidível é um tempo sem cronologia, sem sucessões, sem calendário. Sua história não apresenta uma recorrência linear, que trace o processo histórico em termos de etapas necessárias para o "bom fim", em que as coisas vão do inferior ao superior. Sua epistemologia histórica desfaz a concepção evolucionista, por acentuar a diversidade e a descontinuidade, assinalar as singularidades e as fissuras na continuidade, atribuir ao tempo uma duração diferencial e provocar a quebra na homogeneidade temporal: em poucas palavras, produzir fenômenos de ruptura.

HISTóRIAS

DE GOVERNO:

CRIANçAS

E CIA.

2



5

A-vida-a-morte não é uma evidência epistemológica, nem cronológica, por certo. Consiste numa série histórica, estabelecida mediante o ordenamento dos conjuntos "a vida" e "a morte", que se formou pela repetição do valor "infantil", seu enlace seqüencial. Frente a causalidades lineares e estruturais, o acontecimento dessa série substitui o positivismo dos fatos "a vida" e "a morte", bem como o idealismo de seus signos; indica suas durações dissímeis, estritamente de acordo com a heterogeneidade do tipo de acontecimento referido e com a série de relações, ambos marcados na materialidade múltipla do tecido documental examinado: relatos, registros, instituições, regulamentos, técnicas, objetos, costumes. Suas mudanças emergiram, no campo enunciativo, quando apareceram novos problemas, enunciados de composição inédita, variações dos modos de enunciação e transformações no estilo de tratamento do infantil. Se é razoável pensar que a linha originária da história da infância - a inocência infantil - somente pôde ser ativada pela matriz geral do sacramento do Batismo (cf. Corazza, 1998, p. 192-290), a linha de força por onde seguiu a educação escolarizada situa-se do lado daquele outro "sentimento" descoberto por tal história: do lado de uma identidade primordialmente culpada, transformada na dependência desprezível própria dos irracionais e na submissão necessária dos imorais. Foi este acidente, pequeno desvio, e também inversão completa, que deu proveniência ao corpo infantil; e não uma dinâmica cultural, nem longa nem gradual, ligada à maior privacidade da família conjugai e à melhoria do processo de escolarização. Se, nos tempos presentes, a infância vem desaparecendo, sendo perdida, negada, ultrajada, morta, exterminada, a inclusão do fim-de-infância no mesmo eixo d'a-vida-a-

2 D 6

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

morte, justifica-se pela condição de emergência do infantil ocidental, o qual, desde que "nasceu", foi significado como uma identidade "natimorta": ou seja, como uma identidade que nasceu morta ou que, tendo vindo à luz com sinais de vida, logo morreu (Aurélio, 1974, p. 971). A unidade estratégica da adultização, que produz a morte do infantil, pôde constituir-se porque essa identidade dependente, distribuída junto às outras também nascidas subordinadas, não nasceu nada bem: unidade produzida, como vimos, pelo dispositivo da Roda e por seu sucedâneo, o da escolaridade. Embora considerando as infâncias "concretas", tratadas social e politicamente de formas diferenciadas, interessa marcar que esse deslocamento atual no discurso "abstrato" da infância, sobre seu desaparecimento ou negação, implicaria que a transformação das condições sociais modernas é que teria produzido o chamado "fim-da-infância"; assim como nos veríamos subtraídas/os aos encantos da pedagogização, já que a pedagogia moderna ficaria excluída "como esquema normal de explicação e predição das ações empreendidas sobre e pela infância escolarizada", virando somente "uma peça de museu que deve ser visitada em busca da compreensão de um fenômeno - a infância moderna - que já deixou de existir" (Postman, 1984, p. 199). Isto é, estaríamos implicadas/os, não somente no fim da infância, como em outros "fins", a este articulados: da adultez, da Pedagogia, da Escola, de todas as práticas discursivas e não-discursivas em que são exercidos processos educativos pelas/os adultas/os sobre as crianças e todos os infantis. Deixando de lado o "tom" nostálgico e apocalíptico com que esse enunciado de "fim" introduz-se na história das/os historiadoras/es, cabe dizer que nem tudo e nem

HISTÓRIAS DE GOVERNO! CRIANÇAS E C I A .

2 D "7

sempre pode ser dito apenas desse modo. Por enquanto, talvez, se possa dizer o "fim-da-infância", sim; porém, simplesmente como "o nome" do enunciado mais atual de incitamento da infantilidade, promovido pelo jogo de poder e pela explosão do jogo discursivo acerca do infantil. Jogos que, ao acenarem com o "desaparecimento" da infância, revestem-na de um mais alto valor moral; fazem com que a força d'a-vida lute contra a força d'a-morte, dentro do próprio dispositivo de infantilidade; redistribuindo todas as forças, levam tal dispositivo a revigorar suas forças, por extraílas daquelas que são apresentadas como enfraquecidas; impõem limites, suplícios, macerações a este movimento de lassidão-fortalecimento, levando-nos a continuar obsessivamente falando e praticando "uma infância", mesmo que perdida, a ser resgatada, defendida, e perpetuamente produzida. Chega-se assim ao ponto crucial do presente, no que se refere ao infantil: àquela encruzilhada de onde este estudo partiu para escavar as camadas possíveis e desemaranhar algumas linhas da infantilidade, de onde deriva "a infância" - esta idéia, este imaginário, esta ficção, se se quiser; de todo modo, esta instância de poder-saber-verdade. Daqui para a frente, resta, não a análise do "resíduo infantil", como gostaria a Psicanálise, mas o prosseguimento da tarefa analítica que buscará, ainda outra vez, visualizar e descrever o revigoramento das novas forças do dispositivo de infantilidade; por surpreendê-lo funcionando em outros dois conjuntos estratégicos, que talvez sejam as últimas trincheiras da infantilidade deste século: a pedagogização e a sexualização do corpo e da alma infantis.

2 D B

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Falta responder ainda às seguintes perguntas pertinentes ao infantil de nosso presente: por que uma identidade como esta, emergindo como uma identidade natimorta, prossegue requerendo operações sociais, culturais, políticas de governo de nós mesmas/os e das/os outras/os, cuja urgência e carga de sobretrabalho apontam para a extração de uma mais-valia do infantil? Quais os interesses de nossas instituições, costumes, condutas, técnicas, necessidades, práticas, que justificam uma extração de formas e forças de tal identidade? Por que prosseguimos falando do infantil não para expressar pensamentos - traduzindo o que já sabemos, fazendo jogar as estruturas da língua - , mas para "fazer algo"? Qual "o preço" que pagamos para poder dizer a verdade sobre nós mesmas/os como sujeitos-infantis? A que custo falamos "sinceramente" sobre nós, levando em conta que se foi, se é, ou será "um/a infantil"? Qual o preço pago pela relação de eu-a-eu, cujo ponto de aplicação concerne ao infantil como "outro", e pelo qual se paga não somente o preço teórico, mas também o institucional e o econômico, como determina a organização escolar, por exemplo? Vejamos como as peças continuam a ser montadas para instituir a segunda ruptura na história da infantilidade e equipar de verdade o terceiro e o quarto conjuntos estratégicos; os quais, se ainda dotam o infantil de alta coerência, permitem-lhe atingir mais do que certa eficácia na ordem do poder e produtividade na ordem do saber: o lucro sobre uma mercadoria que, esta sim, apresenta-se como bem mais contemporânea: "a-intàr.cia-sem-fim".

MAIS-VALIA

Mais-valia pensada com algumas ferramentas conceituais de Economia Política elaboradas por Marx (1978a,b; 1980; 1987) e usadas, neste trabalho, em suas unidades mais simples, de forma seletiva e resumida: 1) sob a rubrica " 1 " , ao modo como Marx as desenhou; 2) sob a rubrica "2", em termos das relações analógicas já configuradas por este estudo e também como problemáticas ainda em exame; após o asterisco [*], remetendo o que foi analogizado ao texto da rubrica " 1 " , para ser lido à luz dos ditos de Marx. Poder e não vontade "Sem sombra de dúvida, a vontade do capitalista consiste em encher os bolsos, o mais que possa. E o que temos a fazer não é divagar acerca da sua vontade, mas investigar o seu poder, os limites desse poder e o caráter desses limites" (Marx, 1978b, p. 59). Ferramentas A mercadoria 1. A mercadoria é um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estômago ou da fantasia. Não importa a maneira como a coisa satisfaz a necessidade humana, se diretamente, como meio de subsistência, objeto de consumo, ou indi-

Z1 •

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

retamente, como meio de produção. Cada coisa útil pode ser considerada sob duplo aspecto, segundo qualidade e quantidade. Cada objeto é um conjunto de muitas propriedades e pode ser útil de diferentes modos. Constituem fatos históricos a descoberta desses diferentes modos, das diversas maneiras de usar as coisas, e a invenção das medidas, socialmente aceitas, para quantificar as coisas úteis. A mercadoria 2. O infantil - a infância, as crianças & Cia. -, tal como produzido pelo dispositivo de infantilidade.* Valor-de-uso 1. A utilidade de uma coisa faz dela um valor-de-uso. Esta utilidade não é algo aéreo, mas determinado pelas propriedades materialmente inerentes à mercadoria, somente existindo através delas. A própria mercadoria é um valor-de-uso, um bem. Esse caráter da mercadoria não depende da quantidade de trabalho empregado para obter suas qualidades úteis. O valor-de-uso só se realiza com a utilização ou o consumo. Os valores-de-uso constituem o conteúdo material da riqueza, qualquer que seja a forma social dela. Na forma de sociedade capitalista, os valores-deuso são, ao mesmo tempo, os veículos materiais do valor-detroca. Valor-de-uso 2. Qual a utilidade do infantil, identidade natimorta, na forma da sociedade ocidental do presente?* Valor-de-troca 1. O valor-de-troca revela-se, de início, na relação quantitativa entre valores-de-uso de espécies diferentes, na proporção em que se trocam: relação que muda constantemente no tempo e no espaço. Por isso, o valor-detroca pareceria algo casual e puramente relativo: um valorde-troca imanente à mercadoria. Mas, duas mercadorias somente podem ser trocadas se forem iguais a uma terceira, que por sua vez delas difere. Cada uma das duas, como valor-de-troca, é reduzível, necessariamente, a essa terceira.

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

2

11

Essa coisa comum não é a propriedade material das mercadorias, a qual só interessa pela utilidade que dá à mercadoria e não para estabelecer suas relações de troca. Os valoresde-troca das mercadorias não passam de funções sociais delas e nada têm a ver com suas propriedades naturais: a substância criadora de valor, comum a todas as mercadorias, é o trabalho. Vaíor-de-troca 1. Quais as funções sociais da mercadoria infantil, que determinam seu valor-de-troca, hoje?* Trabalho 1. Para produzir uma mercadoria tem-se de inverter nela ou a ela incorporar uma determinada quantidade de trabalho; e não simplesmente trabalho, mas trabalho social. Aquele que produz um objeto para seu uso pessoal e direto cria um produto, mas não uma mercadoria. Como produtor que se mantém a si mesmo, nada tem com a sociedade. Mas, para produzir uma mercadoria, não só tem de criar um artigo que satisfaça a uma necessidade social qualquer, como também o trabalho nele incorporado deverá representar uma parte integrante da soma global de trabalho invertido pela sociedade. Tem de estar subordinado à divisão de trabalho dentro da sociedade e dar origem a valor-deuso social. Tempo de trabalho socialmente necessário é o tempo de trabalho requerido para produzir um valor-de-uso qualquer, nas condições de produção socialmente normais, existentes, e com o grau social médio de destreza e intensidade do trabalho. A quantidade de trabalho necessário para produzir uma mercadoria varia constantemente, ao variarem as forças produtivas do trabalho aplicado. Quanto maiores são as forças produtivas do trabalho, mais produtos se elaboram num tempo de trabalho dado, e quanto menores o são, menos se produz na mesma unidade de tempo. As forças produtivas do trabalho dependem das condições naturais do trabalho: fertilidade do solo, riqueza das jazidas minerais etc;

2 1 2

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

do aperfeiçoamento progressivo das forças sociais do trabalho por efeito da produção em grande escala, da concentração do capital, da combinação do trabalho, da divisão do trabalho, maquinaria, melhoria dos métodos, aplicação dos meios químicos e de outras forças naturais, redução do tempo e do espaço graças aos meios de comunicação e de transporte e todos os demais inventos pelos quais a ciência obriga as forças naturais a servir ao trabalho e pelos quais desenvolve o caráter social ou cooperativo do trabalho. Trabalho 2. O tempo de trabalho socialmente necessário incorporado ao infantil é constituído pelo trabalho histórico de quase quatro séculos. Quais são as forças produtivas do infantil do presente, pelas quais se desenvolve o caráter social do trabalho do dispositivo de infantilidade?* Valor 1. Uma mercadoria tem valor por ser a cristalização de um trabalho social. A grandeza de seu valor, ou seu valor relativo, depende da maior ou menor quantidade relativa de trabalho necessária à sua produção. Portanto, os valores relativos das mercadorias se determinam pelas correspondentes quantidades ou somas de trabalho invertidas, realizadas, plasmadas nelas. As quantidades correspondentes de mercadorias que foram produzidas no mesmo tempo de trabalho são iguais. Ou, dito de outro modo, o valor de uma mercadoria está para o valor de outra, assim como a quantidade de trabalho plasmada numa está para a quantidade de trabalho plasmada na outra. Todo trabalho é, de um lado, dispêndio de força humana de trabalho, no sentido fisiológico, e, nessa qualidade de trabalho humano igual ou abstrato, cria o valor das mercadorias. Todo trabalho, por outro lado, é dispêndio de força humana de trabalho, sob forma especial, para um determinado fim, e, nessa qualidade de trabalho útil e concreto, produz valores-de-uso.

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

2

1 3

Valor 2. O valor da mercadoria infantil em relação com a mercadoria adulta está na razão direta dos tempos de trabalho invertidos em suas produções e na razão inversa das forças produtivas dos trabalhos empregados.* O preço 1. É uma forma particular tomada pelo valor. Em si mesmo, o preço outra coisa não é senão a expressão em dinheiro do valor de uma mercadoria. O preço 2. O valor do infantil se determina, como o de qualquer mercadoria, pela quantidade de trabalho humano necessário à sua extração. Na conversão do valor em preço, trata-se de um processo por meio do qual se dá ao valor dessa mercadoria uma forma independente e homogênea, por que se exprime esse valor como quantidade de trabalho. Que relação guardam o valor do infantil e seu preço do mercado? As oscilações de seu preço no mercado, em determinadas épocas, excederam o valor, ou preço natural, e em outras ficou abaixo dele, dependendo das flutuações da oferta e da procura. Se a oferta e a procura se equilibram, os preços do infantil no mercado correspondem a seu preço natural, isto é, a seu valor, o qual é determinado pela respectiva quantidade de trabalho necessário para a sua produção. Agora, abarcando o período de tempo longo, que vem da Época Clássica até o presente, encontramos que a flutuação do preço do infantil no mercado, seus desvios de valor, suas altas e baixas, se compensam umas com as outras e se neutralizam de tal maneira que, postas à margem a influência exercida pelos monopólios e algumas outras restrições que aqui temos de passar por alto, vemos que esta espécie de mercadoria se vendeu pelo seu respectivo valor ou preço natural. Acontece, analisando um período de tempo curto, como o de meados do século XX até hoje, que o lucro do infantil brotou de uma majoração do preço desta mercadoria, ou do fato de que se vendeu por um preço que

2 1 4

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

excedeu consideravelmente o seu valor. Ora, o absurdo desta idéia evidencia-se desde que a generalizamos: o que alguém ganhasse constantemente como vendedor, haveria de perder constantemente como comprador. Força de trabalho 1. O que o operário vende não é diretamente o seu trabalho, mas a sua força de trabalho, cedendo temporariamente ao capitalista o direito de dispor dela. Podemos determinar o valor do trabalho, como o de todas as outras mercadorias. Força de trabalho 2. O que o infantil vende não é diretamente o seu trabalho, mas a sua força de trabalho. O valor do infantil é, como para todas as outras coisas, o seu preço; quer dizer, o que se pagaria pelo uso de sua força. Podemos determinar o valor do trabalho do infantil, nas sociedades ocidentais, como o de todas as outras mercadorias. Mas, antes de fazê-lo, poderíamos perguntar: de onde provém esse fenômeno singular de que no mercado nós encontremos um grupo de compradores, que possuem coisas, produtos de trabalho, e, por outro lado, um grupo de vendedores que nada têm a vender senão sua força de trabalho, os seus braços laboriosos e cérebros? Como se explica que um dos grupos compre constantemente para realizar lucro e enriquecer-se, enquanto o grupo dos infantis vende constantemente para ganhar "o pão de cada dia"? A investigação desse problema deve chamar-se "expropriação originária", mas ela cai fora da órbita de nosso tema atual. Que é, pois, o valor da força de trabalho? Como o das outras mercadorias, o valor da força de trabalho do infantil se determina pela quantidade de trabalho necessário para produzi-la. A força de trabalho do infantil consiste, pura e simplesmente, na sua individualidade viva. Para poder crescer e manter-se como infantil, uma criança, por exemplo, precisa consumir uma determinada quantidade de meios de subsistência; a

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

2

1 5

criança, como a máquina, se gasta e tem de ser substituída por outra criança. Além da soma dos artigos de primeira necessidade exigidos para o seu próprio sustento, ela precisa de outra quantidade dos mesmos artigos para que sejam criadas outras crianças, que hão de substituí-la no mercado de trabalho e perpetuar a raça dos infantis. Ademais, tem de gastar outra soma de valores no desenvolvimento de sua força de trabalho e na aquisição de certa habilidade, a necessária para continuar sendo um infantil produtivo. O valor da força de trabalho é determinado pelo valor dos artigos de primeira necessidade exigidos para produzir, desenvolver, manter e perpetuar a força de trabalho do infantil nas culturas ocidentais. O fetichismo da mercadoria 1. À primeira vista, a mercadoria parece ser coisa trivial, imediatamente compreensível. Analisando-a, vê-se que ela é algo muito estranho, cheia de sutilezas metafísicas e argúcias teológicas. Seu caráter misterioso não provém dos fatores determinantes do valor, mas da própria forma que o produto do trabalho apresenta ao assumir a forma de mercadoria. A mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as características sociais do próprio trabalho dos homens, apresentando-as como características materiais e propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho; por ocultar, portanto, a relação social entre os trabalhos individuais dos produtores e o trabalho total, ao refleti-la como relação social existente, à margem deles, entre os produtos de seu próprio trabalho. Através dessa dissimulação, os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sociais, com propriedades perceptíveis e imperceptíveis aos sentidos. 0 fetichismo da mercadoria 2. O fetichismo do infantil esteve sempre grudado nos produtos do trabalho histórico, desde quando o infantil - a infância, as crianças & Cia. - foi

2 16

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

gerado como mercadoria. O fetichismo é inseparável da produção dessa e de outras mercadorias. O objeto útil "infância" se tornou mercadoria, por ser produto de trabalhos privados, independentes uns dos outros. O conjunto desses trabalhos particulares, realizados por meio de mecanismos de terror, de controle visceral, de sexualização, de escolarização, de infantilização e também por outros mecanismos que não são tratados neste estudo, mas que podem ser descritos por outros trabalhos analíticos, formou a totalidade do trabalho social. Processando os contatos sociais entre os produtores, por intermédio da troca de seus produtos de trabalho, só dentro desse intercâmbio se patentearam as características especificamente sociais de seus trabalhos privados com o infantil. Só com a troca, os produtos do trabalho com o infantil, como valores, adquiriram uma realidade homogênea, distinta da sua heterogeneidade de objetos úteis, perceptíveis aos sentidos. Essa cisão do produto desse trabalho em coisa útil e em valor somente atuou na prática, depois de ter a troca atingido tal expansão e importância que se produziu o infantil útil para ser permutado, considerando seu valor já por ocasião de ser produzido. O produtor particular do infantil percebeu o caráter socialmente útil de seu trabalho sob o aspecto de que o produto do trabalho tem de ser útil, e útil aos outros, e o caráter social da igualdade dos diferentes trabalhos apresentou-se a ele sob o aspecto da igualdade de valor que se estabeleceu entre os produtos do trabalho, essas coisas materialmente diversas. Por exemplo, as forças individuais de trabalho com o infantil na Família operaram como órgãos de força comum e, por isso, o dispêndio das forças individuais de trabalho, medido pelo tempo de sua duração, manifestou-se, aqui, simplesmente, em trabalhos socialmente determinados. A Economia Política analisou, de fato, embora de maneira incompleta, o valor e sua magnitude e descobriu o conteúdo que ocultavam. Mas

HISTORIAS DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

2

1 "7

nunca se perguntou por que ocultavam esse conteúdo, por que o trabalho era representado pelo valor do produto de trabalho e a duração do tempo de trabalho pela magnitude desse valor. Fórmulas que pertenciam, claramente, a uma formação social em que o processo de produção dominava o homem e não o homem o processo de produção, foram consideradas pela consciência burguesa uma necessidade tão natural quanto o próprio trabalho produtivo. Por isso, deram às formas pré-burguesas de produção social o mesmo tratamento que os santos padres concederam às religiões précristãs. Uma parte dos economistas está iludida pelo fetichismo dominante no mundo das mercadorias ou pela aparência material que encobre as características sociais do trabalho. A forma infantil mercadoria é a mais geral e mais elementar da produção burguesa, razão por que surgiu nos primórdios, embora não assumisse a maneira dominante e característica de hoje em dia. Pela mesma razão parece ainda relativamente fácil penetrar em seus atributos fetichistas. Nas formas mais desenvolvidas se desvanece essa aparência de simplicidade. Donde provieram as ilusões dos mercantilistas? Segundo eles, o ouro e a prata, na função do dinheiro, não representavam uma relação social de produção, mas eram objetos naturais com peculiares propriedades sociais. Sem maior avanço nessa análise, ilustramos com mais alguns elementos o fetichismo do infantil. Se essa mercadoria pudesse falar, diria: "Meu valor-de-uso pode interessar à humanidade. Não é meu atributo material. O que me pertence como meu atributo material é meu valor. Isto é o que demonstra meu intercâmbio como coisa mercantil. Só como valor-detroca estabeleço relações com outras mercadorias". A produção da mais-ualia 1. O processo de produção das mercadorias deve exprimir simultaneamente o processo de trabalho e o processo de criação do valor, o qual pressu-

2 1 B

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

põe também a produção de um certo excedente de valor, em nome do qual o capitalista organiza a produção; ou seja, o capitalista quer produzir não apenas um valor de uso, mas uma mercadoria, não apenas valor-de-uso, mas valor, e não apenas valor mas também mais-valia. A produção da mais-valia 2. O produto, de propriedade do capitalista, é um valor-de-uso, fios, calçados, infantis, etc. Mas, embora infantis sejam úteis à marcha da sociedade e nosso capitalista seja um decidido progressista, não fabrica infantis por paixão aos infantis. Na produção de infantis, nosso capitalista não é movido por puro amor a seu valor-de-uso. Produz esse valor-de-uso apenas por ser e enquanto for substrato material, detentor de valor-de-troca. Tem dois objetivos. Primeiro, quer produzir o valor-de-uso, que tenha valor-de-troca, o artigo destinado à venda, a mercadoria infantil. Segundo, quer produzir a mercadoria de valor mais elevado que o valor conjunto das mercadorias necessárias para produzi-la, isto é, a soma dos valores dos meios de produção e força de trabalho, pelos quais antecipou seu bom dinheiro no mercado. Além do valor-de-uso do infantil quer produzir mercadoria infantil, além de valor-de-uso do infantil, valor infantil, e não só valor infantil, mas também valor excedente (mais-valia do infantil). Focalizemos sua produção do ponto de vista do valor. Sabemos que o valor da mercadoria infantil é determinado pela quantidade de trabalho materializado em seu valor-de-uso, pelo tempo de trabalho histórico socialmente necessário à sua produção. Isso se aplica também ao produto que vai para as mãos do capitalista, como resultado do processo de trabalho. De início, temos de quantificar o trabalho materializado nesse produto. Supondo que a quantidade média diária do artigo infantil exija seis horas de trabalho para sua produção, e que essas seis horas eqüivalham a três reais, três reais é o preço do valor diário

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

2

1 9

da força de trabalho da criança que produz o infantil. Mas, a criança é uma obreira assalariada na sociedade capitalista. Portanto, vende sua força de trabalho a um capitalista. Se a vende por três reais, vende-a pelo seu valor. Mas, nesse caso, não iria para o capitalista nenhum sobreproduto algum. Ao comprar a força de trabalho da criança e ao pagála pelo seu valor, o capitalista adquire, como qualquer outro comprador, o direito de consumir ou usar a mercadoria comprada, no caso o infantil como mercadoria. A força de trabalho de uma criança é consumida, ou usada, fazendo-a trabalhar, assim como se consome ou se usa uma máquina fazendo-a funcionar. O capitalista adquire o direito de fazê-la funcionar durante todo o dia ou toda a semana. O valor da força de trabalho se determina pela quantidade de trabalho necessário para a sua conservação, ou reprodução, mas o uso dessa força só é limitado pela energia vital e a força física da criança. O valor diário da força de trabalho difere do funcionamento diário dessa mesma força de trabalho, como a quantidade de ração e o tempo que o cavalo pode carregar o cavaleiro. A quantidade de trabalho que serve de limite ao valor da força de trabalho da criança não limita a quantidade de trabalho que sua força de trabalho pode executar. Em nosso exemplo, para recompor sua força de trabalho, com o valor diário de três reais, a criança precisa trabalhar seis horas por dia, mas isso não lhe tira a capacidade de trabalhar dez ou doze horas diárias. O capitalista, ao pagar o valor diário da força de trabalho da criança, adquire o direito de usar essa força durante todo o dia ou toda a semana. Fará a criança trabalhar doze horas diárias, além das seis horas necessárias para recompor o seu salário, ou o valor de sua força de trabalho. Essas horas produzem o sobretrabalho, o qual irá traduzir-se em uma mais-valia e em um sobreproduto. Como a criança vendeu sua força de trabalho ao capitalista, todo o valor, ou todo o produto por ela criado pertence ao

Z Z D

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

capitalista. Por conseguinte, desembolsando três reais, o capitalista realizará o valor de seis, pois com o desembolso de um valor para seis horas, receberá em troca um valor no qual se cristalizam doze horas. Repetindo diariamente essa operação, o capitalista desembolsará três reais por dia e embolsará seis, cuja metade inverte no pagamento de novos salários, enquanto a outra metade forma a mais-valia, pela qual o capitalista não paga equivalente algum. Esse tipo de intercâmbio entre o capital e o trabalho é o que serve de base à produção capitalista, ou ao sistema do salariado, e tem de conduzir à reprodução da criança como infantil e do capitalista como adulto. Mais-valia absoluta e relativa 1. A produção da maisvalia absoluta gira exclusivamente em torno da duração da jornada de trabalho; a produção da mais-valia relativa revoluciona totalmente os processos técnicos de trabalho e as combinações sociais. Mais-valia absoluta e relativa 2. Sob certo ponto de vista, parece ilusória a diferença entre mais-valia absoluta e mais-valia relativa. A mais-valia relativa é absoluta por exigir a prolongação absoluta da jornada de trabalho além do tempo necessário à existência do infantil. A mais-valia absoluta é relativa por exigir um desenvolvimento da produtividade do trabalho que permita reduzir o tempo de trabalho necessário a uma parte da jornada de trabalho do infantil. Mas, quando focalizamos o movimento da mais-valia, desvanece-se essa aparência de identidade. Assim que se estabelece o modo de produção capitalista e se torna o modo geral de produção do infantil, sente-se a diferença quando o problema é elevar a taxa da mais-valia da infância. Taxa de mais-valia 1. Inicialmente fazemos o capital constante = 0. O capital desembolsado se reduz assim de c + v a v, e o valor do produto (c + v) + m ao valor gerado (v + m). Dado o valor gerado = 1 8 0 libras em que se representa

HISTÓRIAS DE GOVERNO! CRIANÇAS E C I A .

2 2

1

o trabalho operante durante o processo de produção, temos de deduzir o valor do capital variável = 90 libras, para obter a mais-valia = 90 libras. A quantia 90 libras = m expressa aqui a magnitude absoluta da mais-valia criada. Sua magnitude relativa, isto é, a proporção em que aumenta o valor do capital variável, é evidentemente determinada pela relação entre a mais-valia e o capital variável, expressando-se pela fórmula m / v. No exemplo acima, ela é 90 / 90 = 100%. A esse aumento relativo do valor do capital variável ou a essa magnitude relativa da mais-valia, chamo taxa da mais-valia. Taxa de mais-valia 2. A taxa de mais-valia da infância depende da proporção existente entre a parte da jornada que a criança tem de trabalhar para reproduzir o valor da força de trabalho do infantil e o sobretempo ou sobretrabalho realizado para o capitalista. Dependerá, por isso, da proporção em que a jornada de trabalho se prolongue além do tempo durante o qual a criança, com o seu trabalho, se limita a reproduzir o valor de sua força de trabalho ou a repor o seu salário. Lucro 1 2. A mais-valia, ou seja, àquela parte do valor total da mercadoria que incorpora o sobretrabalho, ou trabalho não remunerado, nós chamamos "lucro". Lucros normais e médios se obtêm vendendo as mercadorias não acima do que valem e sim pelo seu verdadeiro valor. No melhor dos mundos possíveis 1 2. O sistema capitalista surge sobre um terreno econômico que é o resultado de um longo processo de desenvolvimento. A produtividade do trabalho que encontra e que lhe serve de ponto de partida é uma dádiva não da natureza mas de uma história que abrange milhares de séculos. A metamo' íuae que o capitalista faz ao transformar seu dinheiro em capital, se sucede na esfera da circulação e não se sucede nela. Por intermédio da circulação, por depender da compra da força de trabalho no mercado. Fora da circulação, por essa servir apenas para

2 2 2

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

chegar à produção da mais-valia, que ocorre na esfera da produção. E assim, "tudo que acontece é o melhor que pode acontecer no melhor dos mundos". Ao converter dinheiro em mercadoria infantil, que serve de elemento material de novo produto ou de fator do processo de trabalho, e ao incorporar força de trabalho viva à materialidade morta desses elementos, transforma valor, trabalho pretérito, materializado, morto, em "capital infantil", em valor que se amplia, um monstro animado que começa a "trabalhar", como se tivesse o diabo no corpo. Gerações 1 2. Uma sucessão rápida de gerações raquíticas e de vida curta manterá abastecido o mercado de trabalho tão bem como uma série de gerações robustas e de vida longa. Puerüidade 1. Um homem não pode voltar a ser criança sem cair na puerüidade. Mas não acha prazer na inocência da criança e, tendo alcançado um nível superior, não deve aspirar ele próprio a reproduzir sua verdade? Em todas as épocas, o seu próprio caráter não revive na verdade natural da natureza infantil? Por que então a infância histórica da humanidade, precisamente naquilo em que atingiu seu mais belo florescimento, por que essa etapa para sempre perdida não há de exercer um eterno encanto? Há crianças maleducadas e crianças precoces. Muitos dos povos da Antigüidade pertencem a essa categoria. Crianças normais foram os gregos. O encanto que a sua arte exerce sobre nós não está em contradição com o caráter primitivo da sociedade em que ela se desenvolveu. Pelo contrário, está indissoluvelmente ligado ao fato de as condições sociais insuficientemente maduras em que essa arte nasceu, e somente sob as quais poderia nascer, não poderão retornar jamais. Puerüidade 2. Como se pode demonstrar a "verdade natural" e o "eterno encanto" da mais-valia de uma infância sem fim?*

HISTORIAS DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

O

PROCESSO

DE

PRODUZIR

Z23

MAIS-VALIA

Foucault (1990a, p. 198-9) afirma que a saúde e a doença foram problematizadas no século XVIII como fato de grupo e de população a partir de instâncias múltiplas, em relação às quais o Estado desempenhou papéis diversos. Essa noso-política apresentou duas características: 1) a primazia da higiene e o funcionamento da Medicina como instância de controle social; 2) o privilégio da infância e a medicalização da família. Nesse segundo domínio, o aparecimento do problema político e econômico da população acrescentou ao "problema das crianças" - isto é, do número de seus nascimentos e da relação natalidade-mortalidade - "o problema da infância", qual seja: a sobrevivência até a idade adulta, as condições físicas e materiais dessa sobrevivência e os investimentos necessários e suficientes para que tal período de desenvolvimento se tornasse útil; em suma, a organização dessa fase da vida humana, entendida como específica e finalizada, que devia então ser redistribuída e gerida de forma conveniente. A importância das novas regras, que modificaram as relações pais-filhos e as relações adultos-crianças, residiu na tarefa imprescindível de fazer da infância algo problemático, tratando-a como um problema, visto que, sem pensá-la e praticá-la, como coordenar e integrar a população à regulamentação econômica, às medidas de ordem, às regras gerais de higiene, de saúde, de urbanização? Sem o infantil, transformado pelo dispositivo de infant;,'dade em um dos problemas centrais dessa noso-política, teria sido impraticável esquadrinhar e regular a população no que se referia, por exemplo, à melhor idade do casamento, nascimentos legítimos e ilegítimos, práticas contraceptivas, natalidade e

2 2 4

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

antinatalidade, morbidade, fecundidade e esterilidade, freqüência de relações sexuais, estados de saúde e de doença, formas de moradia, locomoção, alimentação, legados por herança, organização e governo da família. A partir de tal perspectiva, pode-se afirmar que a infância não foi constituída como prática discursiva e nãodiscursiva por efeitos de mudança na "mentalidade" das famílias, a qual teria originado uma atitude de cumplicidade sentimental com as crianças, levando-as a evoluir do primeiro sentimento de mignotage, reservado às crianças pequenas, para tornar-se um lugar de afeição necessária, organizar-se ao redor da criança, colocar no centro de suas preocupações os estudos dos filhos e seu futuro, fazer a criança sair de seu antigo anonimato; nem foi uma mudança nas estruturas educativas em que a escola substituiu a aprendizagem como meio de educação, chamando as crianças à razão, através de um grande movimento de moralização promovido pelos reformadores católicos e protestantes, ligados à Igreja, à Lei ou ao Estado - tal como enuncia a chamada "segunda tese" de Aries (1975; 1981; 1986) acerca do nascimento da infância moderna. Não se tratou de uma "revolução escolar e sentimental familiar", como aquela que a história da infância encontrara na origem da correlação entre o valor da infância e um tipo de família e de escola, empenhadas em sua educação e manifestas anteriormente na Roma dos primeiros séculos da era cristã e nos monastérios da Idade Média, sendo reativada no século XVIII; não foi a "renovação psicológica" promovida pela escolarização da educação, nem "a descoberta" da infância por efeitos psicológicos de qualquer sensibilidade conjugai, familiar, educacional; mas tratou-se, isto sim, das novas práticas do biopoder, ligadas aos emergentes mecanismos de governamentalidade das populações e dos indiví-

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

Z Z

5

duos: poder que pôde ser captado em suas extremidades, em suas últimas ramificações, lá onde seus pontos se tornaram capilares, nas instituições e formas mais regionais e locais; e onde ele se difundia e se exercitava sobre um ser infantil cada vez menos jurídico: ser que se instituía, cada vez mais, como um problema econômico-político, uma preocupação médico-moral, uma inquietude religiosa e um encargo pedagógico. A família e a escola entraram em nova série descontínua - assim como outras instituições disciplinares e sua correlata "epistemologia social" (cf. Popkewitz, 1984) -, articulada por múltiplas táticas e estratégias, porque um novo poder se trançava neste período histórico. Os agenciamentos concretos deste poder trabalharam em torno de um foco principal que, aliás, não foi específico das crianças, mas a elas atingiu fortemente: o domínio de si mesmas. O jogo de forças do biopoder agia pela capacidade dos/as adultos/as em conduzir as ações das crianças, de um modo que a modalidade de seu poder não fosse mais despótico, não se desse mais pelo castigo público do corpo infantil, mas em que a coerção passasse pela norma e pela disciplina, e também pelas penalidades, que podiam ser ou não corporais. Assistia-se a uma passagem do antigo corpo submetido pelo castigo a um corpo controlado e autocontrolado: o castigo agora deveria cair sobre a "alma" da criança, mais do que sobre seu corpo; só que, como à alma chegava-se através do corpo, os agenciamentos operavam sobre o corpo desse novo "bio-infantil", imerso em relações disciplinares, que povoaram outro campo político. As práticas foram as mais diversas, umas gerais, outras específicas: controle da evacuação de fezes e urina, em nome da limpeza e da higiene; controle da masturbação, com a objetivação da sexualidade e a perseguição dos cor-

2 2 6

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

pos, em nome da saúde física, mental e moral do indivíduo e da espécie; governo pelo medo e pelo terror, para que as crianças fossem m e n o s imprudentes e ingovernáveis; escolarização e pedagogização, em nome da racionalidade, da moralidade e dos bons costumes; em suma, ações sobre ações infantis, cuja idéia norteadora era enunciada pelo seguinte adágio oitocentista: "Com o açúcar se pegam mais moscas do que com o vinagre"; embora, neste caso, tanto o açúcar quanto o vinagre tenham sido utilizados com a mesma eficácia produtiva. Com a entrada em cena da infância, patrocinada pela subordinação de sua identidade social e individual, a colocação do infantil em discurso foi submetida a um mecanismo de crescente disseminação e implantação e a vontade de saber-poder acerca das crianças obstinou-se em constituir novas ciências e novas instituições que dessem conta de reparar tal identidade, nascida dependente. Estabeleceu-se, por essa via, o segundo conjunto estratégico de forças que encontrou seu ponto máximo de revigoramento justamente em nosso presente: a adultização do infantil, cuja positivação propiciou instâncias de produção discursiva, produção de poder e vontade de saber acerca da verdade de uma identidade constituída ao modo especular. Nessa história da infantilidade, combinar esses dois conjuntos na mesma série histórica leva a pensar na montagem de uma e n g r e n a g e m, cuja ênfase totalizadora de regulação da infância distribuiu os corpos infantis sob as formas individualizadora e combinatória, instituiu a utilização controlada de seu tempo e montou esquemas de vigilância total, repartindo-os ordenadamente, ao lado da família, no espaço regional da escola. Embora permanecesse ativa e operante em todo o campo cultural, a conjunção "identidade dependente-necessidade de adultização" extraiu da prática

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

2

2*7

escolar os ensinamentos capazes de aprimorar seus próprios mecanismos, pelo registro contínuo dos saberes aí produzidos; bem como daí extraiu técnicas de poder capazes de aperfeiçoar a intencionalidade de suas relações: ensinamentos e técnicas que se fixaram como peças materiais do dispositivo de infantilidade. Tal conjunção criou também a necessidade de outra engrenagem, cuja ênfase fosse mais individualizadora para o governo da infância: a sexualização do corpo e da alma infantis, na qual os dispositivos de infantilidade e de sexualidade combinaram-se, sexualizando o infantil e infantilizando o sexo. Promovido, com grande intensidade, pelo campo discursivo da Psicanálise, este ponto de cruzamento das linhas de força dos dois dispositivos pôde funcionar como o lugar de articulação de uma verdade central ao sujeito ocidental: a verdade sexual de seu ser infantil, ou a verdade infantil de seu ser sexual. As estratégias de poder e os saberes aí produzidos insistiram na proliferação de mil acontecimentos que pareciam perdidos: produziram o necessário mistério e a conseqüente intensificação dos prazeres adultos; a estimulação desmedida pelo controle dos corpos infantis; a incitação ao discurso acerca da infância; a formação de conhecimentos sobre a sexualidade e seu infantilismo; o reforço dos controles e das resistências conscientes e seus encadeamentos inconscientes; a busca de cada um/a de nós, seres falantes, enquanto "a criança magnífica da Psicanálise"; isto é, o sujeito que fala e pensa com palavras do Pai atraído pelo gozo da Mãe: "a criança que não sabe aquilo que diz sem mesmo poder gozar" (Nasio, 1988, p. 47). Se, pela análise da dinâmica dos conjuntos estratégicos constitutivos d'a-vida-a-morte, que permitiram mover o estancamento da sincronia histórica da infância, foi possível afirmar que o infantil encontra-se em permanente processo

Z 2 S

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

de produção, também é possível analisar o excedente de valor do infantil, sua mais-valia, justamente na bifurcação dos conjuntos estratégicos da pedagogização e da sexualização do corpo e da alma das crianças, os quais criam, respectivamente, as figuras do infantil-educado e do infantil-sexuado. Na produção de um infantil desse tipo, o processo exprime, de modo concomitante, o trabalho do biopoder e a criação do valor-de-uso do infantil, do valor-de-troca da infância e de um certo excedente de valor: esse valor suplementar para além do valor da sua força de trabalho, considerado, por este estudo, como o "domínio de si", pelo qual o infantil é investido. Não pelo domínio de si da tradição filosófica grega do estoicismo, dos períodos helenísticos e imperiais, enquanto consideração progressiva do Eu, obtida pela aquisição e assimilação da verdade, a qual era resgatada ao fim de cada dia por meio de recursos mnemotécnicos sobre o que alguém fez e deveria ter feito, e da comparação entre estes dois tipos de ações; recursos e técnicas estóicas do Eu para formular regras de conduta encontrados por Foucault (1991h) nas cartas aos amigos e na revelação do Eu, no exame de si e de consciência, como métodos para fazer algo corretamente, por se ter aceito a realidade deste mundo; e sim, com muito mais motivos, na linha de força do domínio de si cristão, calcado não mais sobre regras de conduta para se ocupar de si mesmo e da cidade, mas sobre as leis da religião de salvação que deviam funcionar na preparação de outra realidade, sua meta final (cf. Fischer, 1996, p. 81). Para a infância e as crianças, Rousseau e o Século das Luzes instituíram um novo cuidado de si, através da grande "Tecnologia do Eu-Educado", constituída pela pedagogização do infantil, cuja centralidade é a renúncia ao próprio Eu que,

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

2 2

9

para isso, deve ser decifrado e, em estado de julgamento permanente, revelar seus segredos naturais, racionais e morais mais importantes. Para a infância e as crianças, Freud e a Psicanálise instituíram um novo cuidado de si, através da grande "Tecnologia do Eu-Sexuado", constituída pela sexualização do infantil, cuja centralidade é a assunção do Eu-originário inconsciente que, para isto, deve sofrer um deciframento permanente da própria sexualidade, ser julgado em seus sintomas, interpretado nos sonhos, nas confusões, esquecimentos, atos falhos; e, em estado de decodificação permanente, revelar-se como o núcleo consciente da criança, do homem e da mulher ocidentais, enquanto sujeitos de desejo. Ressignificadas na escolarização, pelas "pedagogias psicológicas" (cf. Corazza, 1 9 9 4 ; 1995a,b ; 1996a,c,d; Donald, 1992; Hunter, 1994; Larrosa, 1994, 1996, 1998; Narodowski, 1996; Palamidessi, 1996; Popkewitz, 1998; Rose, 1989; Silva, 1993, 1994a,b, 1998; Varela, 1 9 9 1 , 1994, 1996; Walkerdine, 1988, 1998; dentre outros/as), bem como nas práticas analíticas e terapêuticas, as técnicas da confissão, seguida da penitência, implicarão que esses simesmos infantis ocupem-se de suas más intenções, empenhem-se em descobrir os pecados e as culpas, as verdades e as falsidades, os desejos mais recônditos, de modo a poder renunciar cada um a si-mesmo e à realidade; já que aquele é parte desta à qual se deve renunciar para aceder a outro nível de realidade; já que aquele é o verdadeiro Eu pedagogizado e sexuado -, pelo qual somos determinados/ as e identificados/as e o qual temos o dever de reconhecer pela assunção do "Princípio de Realidade". Por ação desses dois conjuntos estratégicos de individualização, o processo cultural de produção da mercadoria infantil produz não apenas um valor-de-uso, mas também va-

2 3 D

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

lor, não apenas valor-de-troca, mas também a mais-valia de uma infância que não deve ter fim: para que a imagem adulta possa continuar obtendo os lucros de ser especularizada, esbatendo a promessa ameaçadora de sua própria desaparição e anunciando sua futura aparição, governando o infantil e a si-mesma. Tanto o "trabalho pedagógico" quanto o "trabalho diurno/noturno de sexualização" do infantil realizam o segundo sentido - o primeiro, como vimos na descontinuidade d'a-vida-a-morte, refere-se à submissão ao outro pelo controle e pela dependência -, atribuído por Foucault à subjetivação do indivíduo moderno, no domínio da história da infantilidade: o apego de cada infantil à sua própria identidade, mediante a consciência e o conhecimento de si, promovido pelas ciências morais e humanas que formam o saber do sujeito-infantil.

TRABALHO

TEMER

a

PEDAGóGICO

DEMôNIO

E A

SI-MESMA

Uma das justificativas utilizadas na Idade Média para assustar as crianças era a de que elas eram menos capazes do que os adultos e, portanto, deveriam ter seu espírito fortalecido para que fossem mais corajosas e se comportassem de acordo com as restrições da moral (cf. Lyman Jr., 1995). Figuras fantasmáticas, religiosas e míticas, bruxas, demônios, monstros, animais e cadáveres foram convenientemente presentifiçados às crianças, até o século XIX, para fazer-lhes sentir o terror de que, à noite, viriam raptá-las, comê-las, picá-las em pedaços e chupar-lhes o sangue, o cérebro ou a medula dos ossos.

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

2 3

1

Após a Reforma, o próprio Deus foi a principal figura usada como fantasma e escreveram-se muitos opúsculos, em linguagem infantil, que descreviam um sem-número de torturas aplicadas no Inferno: "A criança está queimando na fogueira. Escuta como grita querendo sair (...) Bate com seus pezinhos no chão" (DeMause, 1995, p. 30). Quando a religião deixou de ser o foco das campanhas de terror, foram utilizadas figuras mais próximas da casa: o Homem-Lobo comerá as crianças desobedientes; o Barba Azul levará as meninas e as prenderá junto com suas mil mulheres; a Cigana roubará os meninos para vender; o Homem-do-Saco levará as crianças embora e as picará em pedacinhos; ficarão presas no sótão e os ratos roerão até seus ossos; o Homem de Areia jogará punhados de areia nos olhos, de modo que estes saltem sangrando da cabeça, os colocará num saco e levará para a meia-lua, para alimentar seus filhos. As amas confeccionavam máscaras para assustar as crianças, a fim de que estas dormissem à noite ou para que pudessem sair. Susan Shibbald recordava os fantasmas como um elemento real de sua infância, no século XVIII: Os fantasmas aparecendo era um acontecimento muito freqüente. Recordo perfeitamente de uma noite, em que duas amas de Fowey queriam sair. Ficamos calados quando ouvimos lúgubres gemidos e uivos do outro lado da porta, junto à escada. A porta se abriu de par em par e, oh, horror!, entrou um personagem, alto e vestido de branco, que parecia lançar fogo pelos olhos, nariz e boca. Estivemos a ponto de sofrer um ataque e nos sentimos mal durante vários dias, mas não nos atrevíamos a contar o que ocorrera (DeMause, 1995, p. 31). Em 1882, uma mãe conta o caso de uma menina de dois anos, filha de uma amiga sua, cuja ama, querendo sair à tarde com as demais empregadas, enquanto os pais estavam fora, tomou medidas para não ser molestada, dizendo à

2 3 2

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

menina que um horrível fantasma estava escondido na casa, para pegá-la no momento em que se levantasse da cama ou fizesse algum barulho. Construiu um grande boneco com aspecto de fantasma, com olhos amedrontadores e uma boca enorme, e o colocou aos pés da cama, onde a menina dormia. Quando terminou o passeio, a ama voltou, abriu a porta do quarto e viu a menina sentada na cama, as mãos crispadas, os olhos esbugalhados, no paroxismo do terror, fixos no espantoso monstro que se achava diante dela: "Estava morta!" (DeMause, 1995, p. 32). No século XVII, essas imagens de perigos externos deslocam-se, sem desaparecer totalmente, para imagens de perigos internos: o ascetismo religioso tratava de reformar a consciência e o caráter, no interior da criança, em vez de conseguir sua obediência formal às exigências do adulto. As figuras dos anjos-da-guarda cumprirão dois papéis intermediários, mediando os perigos externos e os internos, bem como os controles feitos pelos adultos e a já cobiçada autorestrição; referidos em sua onipresença amorosa e protetora, esses seres fantásticos ocupam o lugar dos adultos na regulação das atitudes e dos desejos, não tendo ainda cedido lugar ao medo e à vergonha de si mesma. Daqui para a frente, não se tratará mais de lutar contra o Demônio ou contra o Inferno, nem mesmo contra os anjos que tanto amam as crianças: o novo mecanismo privilegia a implantação do sentimento de culpa e de vergonha, mais do que a intensificação do terror ou a vergonha diante dos anjos. Era agora contra o Eu, que os açoites vinham, como escreveu Santa Chantal: "Temos que aceitar os açoites que Nosso Senhor nos dá e beijar ternamente as verges, pois Ele nos castiga por amor" (Marwick, 1995, p. 314).

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

2 3

3

Por efeitos do dispositivo de escolarização, as alunas de Port-Royal - convento e escola para meninas - experimentarão, em seus corpos, ao mesmo tempo, o "vinagre" misturado com o "açúcar" de pegar mais moscas, que os alunos dos jesuítas já tinham provado: derivada da disciplina eclesiástica e religiosa, uma disciplina laica, constante e orgânica, em muito diferente da violência de uma autoridade, calcada em uma vigilância constante, que tudo via e tudo escutava, de dia e de noite; a qual, aliada à vergonha, funcionava para obter a obediência estrita e para internalizar motivações religiosas e morais no sentido de se portar bem, de se tornar uma menina ou uma moça bem-educada. Jacqueline Pascal, a diretora, deixou uma literatura extensa, repleta de normas pedagógicas, tais como: pendurar cartazes nos pescoços das meninas pequenas e médias, em que estivesse escrita a falta cometida em letras garrafais - "basta uma ou duas palavras", ensinava ela, "como 'preguiçosa', 'negligente', 'mentirosa'" (Marwick, 1995, p. 311). Às meninas maiores podia-se predispor a obrar diretamente por amor de Deus, salvo em algumas ocasiões em que era recomendável impor-lhes penitências humilhantes, tais como ir à missa sem o véu na cabeça ou rezar suas orações no refeitório, ao invés de na capela, já que, acreditava-se, mais do que os açoites, os meios eficazes de controle eram as orações. Desde os quatro anos de idade, as meninas tinham horários determinados para colocar a consciência individual a serviço de Deus e, desde que levantavam da cama, todas as normas tinham relação com essa finalidade, tal como pentear-se e se vestir depressa "a fim de dedicar o menor tempo possível para enfeitar um corpo que há de servir de comida aos vermes" (ib., p. 312). Uma vigilância perfeita e uma atenção totalitária e paciente ao comportamento das crianças estavam presentes também nas normas de João Batista de La Salle, que reco-

2 3 4

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

mendava aos educadores censurar a linguagem do corpo e a palavra falada: o menino - no caso dos colégios lassalistas deveria permanecer quieto, porém não com uma postura rígida demais, ou mesmo lânguida, que parecesse insolente; tampouco deveria revelar suas emoções, com movimentos faciais ou de cabeça; ao deitar, deveria fazê-lo de tal modo que aquele que se aproximasse não pudesse distinguir as formas de seu corpo. Deste modo, o aperfeiçoamento moral e espiritual adviria durante o próprio processo de escolarização de uma educação séria, a qual, pouco a pouco, substituía as sanções externas pelos controles internos da própria criança sobre seu corpo e sua alma. Controles que, uns dois ou três séculos mais tarde, seriam enunciados, pelo discurso (psico)pedagógico, como a triunfante passagem da heteronomia para a autonomia.

EDUCAR(-SE)

PARA

LIBERTAR(-SE)

Como diz Lerena (1983), com o termo "Educação" não estamos diante de um conceito e sim de um preceito: o preceito humanista com o qual as classes burguesas do Século das Luzes inauguram a legitimação de uma nova estratégia política. Essa jurisdição de poder, por efeitos da secularização, cobre, com o manto do espiritualismo naturalista, a concepção cristã da formação dos indivíduos, ao tomar os sujeitos como objetos de produção em sua singularidade, individualidade e liberdade. Pela natureza prometéica das novas classes, o poder que as investe agora deve apagar as arbitrariedades daquele antigo e heterônomo poder masculino e colocar em seu lugar o da Mãe-Natureza: "a educação mais pura deve ser natural, negativa e liberadora e, rigorosamente falando, 'educar' deve ser um verbo e uma operação conjugados de forma pronominal: auto-educação, em suma" (ib., p. 11).

HISTóRIAS DE G D V E R N D : CRIANçAS E C I A .

2 3

5

Passado o tempo do pastoreio errante do Mestre que, por delegação do Criador, criava, guardava, cuidava, guiava e governava, a "família Rousseau" - constituída pelos opostos do binômio reprimir-liberar: "Mamãe Rousseau, Papai Comte, e no meio e mediando - tirando e colocando, administrando cientificamente as doses da repressão e da liberação, como sábio médico das almas dos modernos sigmundos - o primogênito Sigmund Freud" (ib., p. 15) - poderá dar início à sua cruzada de salvação civil, utilizando-se de sutis operações de dominação, através da rede de aparatos posta em marcha por asilos, prisões, quartéis, hospitais, partidos, sacristias, oficinas, fábricas, escolas. Os construtores das escolas-quartéis e das escolas-jardins são cúmplices da mesma lógica que fez proliferar a nova educação para produzir novos hábitos, novas estruturas mentais em novos indivíduos, com especial atenção para a produção de novas crianças da emergente população. Nessa tarefa de produção dos indivíduos, ganha importância a "descoberta" da debilidade da criança e as possibilidades e responsabilidades do adulto em sua educação, a "descoberta" da educação da mulher, a "descoberta" do valor estratégico da disciplina. Pode-se encontrar dois exemplos, no que se refere à primeira dessas "descobertas": o de Vitor e o do Dr. Schreber. Em 1800, foi encontrado, em uma floresta da região de Aveyron, na França, um menino de doze anos: de nome atribuído Vitor, cognominado "o Selvagem de Aveyron". Ele não era a primeira criança encontrada em estado de total abandono; casos similares, registrados a partir do século XIV, provocaram a curiosidade, o assombro e a crueldade dos captores. Entretanto, será Vitor quem mobilizará, em torno de si e de sua educação, um grande aparato científico de observação, validação de hipóteses, produção de teorias.

2 3 6

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Logo após ser encontrado, Vitor é levado a um instituto de Rodez, onde um professor de História Natural escreve suas observações que são publicadas em Paris, fazendo com que o Selvagem torne-se alvo da preocupação generalizada de filósofos, naturalistas, médicos, pedagogos, dentre os quais, Pinei, Sicard, Itard, Virey. Meses depois, quando Vitor chega, acorrentado, a Paris, "toda a sociedade da época desfilou perante sua cela, ávida de observação de dados positivos" (Lajonquière, 1992, p. 40). Três instituições pós-revolucionárias debruçaram-se sobre o corpo e a alma de Vitor - a Société des Observateurs de }'Homme, o asilo de Bicêtre e a Escole pour l'Education des Enfants Sourdes (ib., p.39) -, para indagar e resolver questões que envolviam a idéia do Homem Natural (ib., p. 42-3) e a primitiva constituição do ser humano. A estratégia central de investigação consistia em demorar, retardando, o processo de civilização de Vitor, controlando e regulando as intervenções, de modo que se pudesse avaliar a influência do meio social sobre a naturalidade física dos sentidos, conferindo os prejuízos de abandonar-se a condição humana a si mesma. Cedo, Pinei confirma "a semelhança entre o menino selvagem e seus idiotas asilados" (Avanzini, 1987, p. 235); e Vitor causa crescente repugnância àqueles que, nele, tentavam encontrar "o virtuosismo de Emílio" (Lajonquière, 1992, p. 41). Depois de um ano, só alguns poucos cientistas continuaram ocupando-se de Vitor, e, destes, o mais persistente foi o Dr. Jean Marc Gaspard Itard que se intitulava "médico-pedagogo" (Maistre, 1987, p. 235). Sustentando a primazia do social sobre o natural e confirmando a inexistência de lesões congênitas em Vitor, Itard dedicou-se durante dez anos à sua reeducação. Integrando a Société des Observateurs de l'Homme, Itard e seus colegas acreditavam que esse exemplar filho da natureza não pode-

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

2

3*7

ria ser o mais natural, já que, somente no seio da Sociedade, o homem encontra o nível eminente que a Natureza lhe destinou. Eles não confundiam Vitor com Emílio: "O primeiro é tão somente uma monstruosidade cultural e o segundo, se por acaso se tornasse real, encarnaria o Homem Natural" (Lajonquière, 1992, p. 42). No Prólogo a suas memórias acerca dos primeiros progressos de Vitor, Itard escreveu: Lançado a este mundo sem forças físicas e sem idéias inatas, apesar de obedecer por si mesmo às leis constitucionais de sua organização, que lhe chamam a ocupar o primeiro lugar do sistema dos seres, o homem só pode encontrar no seio da sociedade o lugar eminente que lhe foi estabelecido pela Natureza, e seria, sem a civilização, um dos animais mais débeis e menos inteligentes. Na horda selvagem mais errante, assim como na nação européia mais civilizada, o homem não é senão o que se lhe faz ser; necessariamente educado por seus semelhantes, adquire seus costumes e necessidades; suas idéias não são suas; goza da melhor prerrogativa de sua espécie, a possibilidade de desenvolver seu entendimento através da imitação e da influência da sociedade (Maistre, 1987, p. 236). Se, nas florestas francesas, a natureza humana não fora encontrada, Itard deveria demonstrar que, através da "Medicina Moral" - nome que Itard dera a seu trabalho com o Selvagem - , seria possível: 1) vincular Vitor à vida social, fazendo com que esta fosse mais agradável do que aquela que conheceu na floresta e mais semelhante à vida que abandonou; 2) despertar sua sensibilidade nervosa através de estímulos energéticos e provocar, às vezc-, os afetos mais vivazes do espírito; 3) ampliar o campo das idéias, provocando em Vitor novas necessidades e multiplicando seus relacionamentos com os seres a seu redor; 4) induzi-lo à utilização da palavra, determinando o exercício da imitação, através

2 3 B

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

da imperiosa lei da necessidade; 5) exercitar, durante algum tempo, as operações mais simples do espírito sobre os objetos de suas necessidades físicas, para depois aplicá-las sobre objetos que pudessem instruí-lo (Lajonquière, 1992, p. 41). De todos os lados, parecia que o médico-pedagogo tinha encontrado um "aluno ideal": aquele que lhe permitiria esculpir, na integralidade, sua natureza. As narrativas mostram que o Dr. Itard encontrou muitas dificuldades em sua obra, e mesmo o "fracasso" de seus objetivos, embora tivesse inventado diversas táticas para aculturar Vitor (cf. Maistre, 1987, p. 237). O segundo exemplo é o do médico alemão do século XIX, Daniel Gottlieb Moritz Schreber (Freud, 1974a, p. 71) - que se dizia um "déspota esclarecido" em "missão civilizadora" -, escritor de livros de Anatomia, Fisiologia, Higiene, Cultura Física e Pedagogia, cujos princípios aplicou na criação de seu filho, Daniel Paul Schreber, resultando em uma disciplina impecável e totalizadora que cobria todos os atos do menino de todas as horas do dia e da noite. O Dr. D. G. M. Schreber era um homem "de autoridade", sendo escutado por educadores, médicos e pais, acerca de "regras de vida", como as chamava, "fundadas numa disciplina impecável". Essa autoridade moral era exercida plenamente em sua família: a mulher, declarava ele, deve-se manter "inexistente, apagada, não deixando o seu lugar a não ser pela voz de comando do pai". Sua autoridade era duplicada pelas circunstâncias de ser um médico eminente; encarnava assim um saber médico, com poder de curar, e também um saber educacional, com poder de corrigir a maldade natural da criança: "Um educador, dizia ele, é um homem que tem resposta para tudo" (Mannoni, 1977, p. 28). Para que pudesse exercer os dois poderes, precisava de "pacientes" capazes de submissão total, de "abandono radical do seu corpo e do seu ser". Esse tipo de submissão,

H I S T ó R I A S DE GDVERND: CRIANçAS E C I A .

2 3 9

"que se adquire mediante um treinamento físico e moral dos mais precoces" - desde os primeiros meses de vida -, é o único a permitir que, no caso de doença, a criança seja salva da morte por um pai, nas mãos de quem ela confia a sua vida. Aquela que renunciasse à obediência nada mais estaria fazendo do que renunciar à própria vida. Uma "moral e uma pedagogia do terror" serviriam de fundamento aos pais, educadores e médicos como método científico para educar as crianças. Os princípios educativos do Dr. Schreber eram os seguintes (ib., p. 28-9): 1) a criança é má de nascença: é necessário separá-la de sua natureza e submetê-la a um adestramento moral e físico - alternação de abluções de água fria e quente desde os três meses de idade, alternação de terror e sedução; 2) a criança deve adquirir precocemente a arte da renúncia, deve-se "tomar posse" do ser da criança para garantir o domínio do mesmo. Todo problema da criança que chora, dos humores que vêm em seguida e da teimosia, pode ser assim resolvido, no primeiro ano de vida. Esse é o melhor momento para exercitar a criança na "arte da renúncia". Trata-se de fazer com que a criança sinta o desejo de alguma coisa, para lhe recusar em seguida aquilo que ela não deixará de pedir. A ama, com a criança em seu colo, é convidada a comer e beber, com o único propósito de opor em seguida uma recusa ao pedido oral ou gestual da criança. Cumpre suprimir o desejo infantil para deixar somente subsistir os automatismos - "a fome a horas certas"; 3) o controle que o adulto adquire sobre as tendências da criança deve poder adquirir igualmente sobre r corpo dela; daí o desenvolvimento de uma "ideologia corretiva do corpo" que encontra a sua expressão na ginástica médica e em diversas aplicações ortopédicas para o corpo infantil (cf. Mannoni, 1977, p. 54-5).

2 4 0

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

D. P. Schreber - o filho - foi educado para sentir um afeto e uma liberdade "autênticas", as quais só se tornaram possíveis por meio da "boa educação", que se dispunha a controlar totalmente sua mente e seus atos; de um modo que, por exemplo, levava-o a apertar a mão do pai e sorrirlhe, de forma agradecida, depois que este lhe surrava (cf. Robertson, 1995, p. 454). O menino foi uma criança tranqüila, um rapaz dócil e um magistrado de grande renome nos tribunais da Saxônia; o que teria, de todas as maneiras, mostrado o êxito das práticas educativas do pai, não fora por um detalhe: depois de ter publicado o livro, Memórias de um neurótico, em 1903, tornou-se conhecido como o mais famoso psicótico da literatura psicanalítica. Como na vida monástica, era de uma obediência total ao Mestre de que se tratava nesta Tecnologia do Eu; a única permissão que Daniel Paul não solicitou a seu médico-educador foi a de enlouquecer (cf. os "delírios" de Schreber-adulto em Freud, 1974a, p. 14-108). Para este estudo, o que conta nesses dois exemplos não é o "sucesso" ou o "fracasso" dos objetivos ou princípios apresentados, mas o que tais práticas produziram na história dos sentidos das concepções e dos mecanismos pedagogizadores, com os quais o Emílio de Rousseau virá duelando, até nossos dias, para conformar, no binômio reprimir-libertar, o que hoje praticamos como a educação escolarizada. De um lado, postam-se o Dr. Itard e Vitor, bem como o Dr. Schreber-pai e o Dr. Schreber-filho, como figuras paradigmáticas de uma pedagogia intelectualista e racionalista, com estatuto científico, moral e cognitivo a um só tempo: utopia, templo e prática dos enciclopedistas; do outro lado, perfilam-se Rousseau e Emílio - numa posição subordinada, Sofia - , como emblemáticos de uma pedagogia do sentimento, da emoção e da estética, que persegue o afeto e a ade-

HISTóRIAS DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

2 4-1

são, caçando a infância sem trégua. Lados que somente interessam porque fazem parte do mesmo exercício de poder e produção de saber infantilizadores. Vitor não era o Homem Natural, porque o destino natural do homem é o de viver em sociedade. Extraviando-se do social, Vitor afastara-se do estado de natureza. O médico-pedagogo não podia confiar na natureza de seu alunopaciente, já que, nele, o princípio da Natureza encontravase inativo. Itard desenvolve então um método científico para interceder sobre o corpo deformado e as ações repugnantes de Vitor. Schreber-filho tinha por única natureza concebida a de obedecer, já que era mau de nascença. O pai não se perguntava sobre a ausência ou a presença de qualquer outra natureza que não esta. Logo, o único caminho rápido era o do disciplinamento total por meio de um método de controle integral. Uns e outros não tinham a paciência de escutar a natureza, conforme Rousseau recomendara que se fizesse com Emílio. Vitor não a tinha, era uma monstruosidade. Schreber-filho a tinha em excesso, de um modo que não valia a pena ser escutada. A de Emílio era um enigma misterioso e ao mesmo tempo uma natureza-falante que deveria ser decifrada. O que os três meninos possuíam em comum era a necessidade de serem educados, sua "educabilidade" - como diz Narodowski (1994, p.33) -, sua capacidade "natural" de ser formado por uma ação educativa: domínio moral, físico, cognitivo e sentimental a ser executado por uma empresa de exame, de controle e de disciplina. Escultor da natureza, educador que tem resposta para tudo, operador de autoeducação: três combinações de formas de um mesmo caleidoscópio, o do discurso pedagógico. Um cientista observador do Homem, um pai-pedagogo, um pequeno-burguês contrário ao espírito enciclopédico: três passagens de areia

2 4 2

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

da mesma ampulheta, a que confina a vida infantil. Uma natureza deformadamente inativa, outra natureza má, e a terceira de um bom-selvagem: três cartas de um mesmo baralho, cujo coringa é a infância essencializada. Um menino-lobo, um filho bem-educado, um menino-homem natural: três personagens de uma mesma agonística, o processo de infantilização. Asilo, família, comunidade rural: três desenhos para um mesmo projeto institucional, a escola. Itard, D. G. M. Schreber, Rousseau; Vitor, D. P. Schreber, Emílio: três homens, três meninos-educados, e uma mesma exclusão, Sofia. Emílio ou da educação (Rousseau, 1992) é a pedra sobre a qual se edifica essa particular igreja da cultura ocidental que chamamos sistema de ensino: é ela que descobre a infância, nomeando-a e normatizando sua existência; situando-a naquela posição das coisas que merecem um nome e, portanto, serem estudadas e respeitadas. A pedagogização da infância não é, definitivamente, "coisa de crianças" (cf. Lerena, 1 9 8 3 , p. 35). Igreja que tem por ritual o Exame Escolar; por catecismo a Disciplina; por mística a Teoria Burguesa da Educação e da Cultura; por primeiro Papa (Mama?) Rousseau; e por deontólogo (cf. Muricy, 1988, p. 482-3) mais importante o criador do sistema pan-ótico, Jeremy Bentham, que foi quem formulou a seguinte doutrina a ser sacralizada: A educação não é outra coisa que o resultado de todas as circunstâncias em que uma criança está colocada. Velar sobre a educação de um homem é velar sobre todas as suas açõec. é colocar-lhe em uma posição tal que se possa influir sobre ele como se queira, pela escolha dos objetos que se lhe apresentem e das idéias que se fazem nascer nele (Lerena, 1983, p. 129).

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

2 4 3

Com Bentham, chega-se ao ponto de dizer - se é que ainda não tinha sido dito com a devida ênfase - que tanto avida-a-morte, quanto a mais-valia de infância somente puderam ser produzidas pela prática educativa institucionalizada. A taxa do surplus - ou taxa de exploração, diria Marx - do infantil pedagogizado é obtida não pelo que Aries denominou de "ternura", que teria prevalecido sob influência de Rousseau e do Século das Luzes, e sim pelo autodomínio desse indivíduo assim constituído. A demanda incessante da burguesia - calcada sobre a mortificação cristã de renunciar ao mundo e a si mesmo - para que a educação funcionasse como antídoto contra a influência corruptora do mundo não foi um "ideal"; foi isso e também práticas bem concretas de alquebrar as vontades, controlar as emoções, disciplinar os intelectos. As faixas de algodão ou linho que imobilizavam as crianças de antigamente foram substituídas pelas "faixas" da consciência do Eu, de cuja produção a escola e a família se encarregaram. Desigualdade entre os indivíduos; a educação concebida como busca e desenvolvimento de atitudes inatas ou adquiridas ou construídas; o processo educativo concebido como processo de diferenciação e de hierarquização; o princípio de seleção segundo as atitudes e os comportamentos; a educação considerada uma cruzada que atende interesses e necessidades infantis; a investigação das leis naturais ou cognitivas que regem o desenvolvimento infantil; a criança universalizada e trans-histórica; a mulher como a educadora por excelência da infância (cf. Pestalozzi, 1967); as disciplinas; a religião do coração e a da personalidade; o alargamento do tempo da infantilização; o fortalecimento da infantilidade para amplos segmentos dos "outros" e "outras": tudo isso fez crescer a mais-valia absoluta e relativa da infância, enriqueceu o processo de produção do infantil e aumentou o valor moral das crianças no interior do dispositivo de infantilidade.

2 4 4

HISTORIADA INFÂNCIA SEM FIM

PEDAGGGIZAR MORALIZAR

A

A

SEXUALIDADE.

PEDAGOGIA

No Prefácio à Quarta Edição, escrito em 1920, ao texto de 1905, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud (1972; 1981a) reafirma "a importância da sexualidade em todas as realizações humanas e a tentativa que [este livro] faz para ampliar o conceito de sexualidade". Acusada de "pan-sexualismo" e de tudo explicar pelo sexo, a Psicanálise, escreve Freud, poderia espantar-se caso fosse possível esquecer "como os fatores emocionais tornam as pessoas confusas e esquecidas". Há muito tempo, Schopenhauer já havia mostrado à humanidade o quanto suas atividades eram "determinadas pelos impulsos sexuais, no sentido comum da expressão"; e teria sido impossível que um grande número de leitores tivesse banido de suas mentes uma afirmação de tal importância. Quanto à "extensão" do conceito de sexualidade tornou-se necessária "pela análise de crianças e dos que se chamam os pervertidos"; assim, quem quer que olhe com desdém a Psicanálise do alto de sua superioridade, "deveria recordar quão intimamente essa idéia da sexualidade ampliada da Psicanálise coincide com o Eros do divino Platão" (Freud, 1972, p.134). O texto inicia-se sob o título As aberrações sexuais, onde é afirmada a inadequação da opinião popular a respeito da natureza e das características do instinto sexual; o qual, acredita-se, "está ausente na infância", somente manifestando-se na puberdade, por ocasião da "chegada da maturidade", e revelado "nas manifestações de uma atração irresistível exercida por um sexo sobre o outro", que seu fim "está constituído pela cópula sexual ou por aqueles atos que a ela conduzem". O conceito popular do instinto sexual é refletido na lenda segundo a qual os primeiros seres humanos foram divididos em duas metades - o homem e a mulher

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

2 4 5

- que estão, eternamente, procurando unir-se pelo amor. O que espanta à Psicanálise é descobrir que "há homens cujo objeto sexual é outro homem e não uma mulher, e mulheres cujo objeto sexual é outra mulher, e não um homem". Os indivíduos desta espécie, diz Freud, são chamados homossexuais; "ou melhor, ' invertidos', por terem sentimentos sexuais contrários e o fato é conhecido por 'inversão'" (Freud, 1972, p. 135-6, 1981a, p. 1.172-3). É analisado o comportamento dos invertidos, quer sejam "absolutos" ou "invertidos anfigênicos"; e também, em relação ao tempo, "invertidos ocasionais", "pouco antes ou depois da puberdade", "depois de um longo período de atividade sexual normal", "após ter tido uma experiência penosa com um normal"; examina-se também a natureza da inversão, em relação à degenerescência e a seu atribuído caráter congênito, para afirmar que ela não pode ser explicada por esses fatores; assim como não é suficiente buscar explicações na bissexualidade, isto é, em um "hermafroditismo psíquico", associado com um hermafroditismo anatômico. Em uma Nota de rodapé, acrescentada em 1910, acerca da "natureza bissexual do indivíduo", Freud refere-se, pela primeira vez, à infância, nesse texto, escrevendo ser verdade que a Psicanálise ainda não apresentou uma explicação completa da origem da inversão; entretanto, descobriu o mecanismo psíquico de seu desenvolvimento e prestou colaboração essencial à exposição dos problemas em questão. Sendo assim, em todos os casos examinados, expusemos o fato de que os futuros invertidos, nos primeiros anos de sua infância, atravessam uma fase de fixação muito intensa, mas muito curta, em uma mulher (geralmente sua mãe) e que, depois de ultrapassada esta fase, identificam-se com uma mulher e se consideram, eles próprios, seu objeto sexual. Isto é, partem de uma base narcísica e procuram um rapaz que se

2 4 6

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

pareça com eles próprios e a quem eles possam amar como eram amados por sua mãe. [...] Seu desejo compulsivo de homens acabou sendo determinado por sua incessante fuga das mulheres (Freud, 1972, p. 145-6). Em Nota de 1915, é escrito que a pesquisa psicanalítica opõe-se a que se dê destaque aos homossexuais, colocando-os "em um grupo à parte do resto da humanidade", já que, estudando as excitações sexuais, descobriu "que todos os seres humanos são capazes de fazer uma escolha-de-objeto homossexual" e, na realidade, o fazem em seu inconsciente. A Psicanálise considera que a escolha de um objeto, independentemente do sexo do indivíduo - "tal como ocorre na infância, nos estágios primitivos da sociedade e nos primeiros períodos da história" -, é a base original a partir da qual desenvolvem-se tanto os tipos normais como os invertidos. Entre os fatores acidentais que influenciam a escolha de objeto, descobriu-se a frustração - "na forma de uma inibição prematura da atividade sexual, pelo medo"; bem como a presença de ambos os pais - "a ausência de um pai forte na infância não raro favorece a ocorrência de inversão" (ib., p. 146-7). Após apresentar diversos casos de "aberrações esporádicas", manifestas por "indivíduos sãos, e em raças inteiras ou meios sociais", como a escolha de pessoas sexualmente imaturas enquanto objetos sexuais - "abusar sexualmente das crianças é prática inquietantemente freqüente entre professores e simplesmente porque são eles que têm mais oportunidade de fazê-lo" -; relações sexuais com animais - "o que não é absolutamente raro, principalmente entre os camponeses, em que a atração sexual parece derrubar as barreiras da espécie" -, enquanto os loucos demonstram tais aberrações de forma mais intensificada; Freud examina Os desvios em relação ao objetivo sexual, tais como: a supervalori-

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

2 4 7

zação do objeto sexual; o uso da membrana mucosa dos lábios e da boca; o uso sexual do orifício anal; a significância de outras regiões do corpo, como o pé ou os cabelos; o tocar e o olhar; sadismo e masoquismo; e t c , para concluir este primeiro ensaio sob o título: Indicação do infcmtilismo da sexualidade, afirmando: a constituição suposta que mostra os germes de todas as perversões não pode ser revelada melhor do que nas crianças, embora nelas não apareçam todos estes instintos mais que em modesta intensidade. Desta forma chegamos à fórmula de que os neuróticos conservam sua sexualidade em estado infantil, ou regridem de volta a ele. Portanto, nosso interesse se dirigirá para a vida sexual das crianças, e iremos agora investigar nelas o funcionamento das influências que governam o processo evolutivo da sexualidade infantil até que ela se converta em perversão, neurose ou vida sexual normal. (Freud, 1972, p. 175; 1981a, p. 1194) O segundo ensaio leva por título A sexualidade infantil e inicia-se pela atribuição de "erro" à idéia popular de que o instinto sexual está ausente da infância: um erro que "não é puramente um erro simples", mas "que tem tido graves conseqüências", pois a ele "devemos nossa atual ignorância das condições fundamentais da vida sexual". Para Freud, "um penetrante estudo das manifestações sexuais infantis nos revelaria provavelmente os traços essenciais do instinto sexual", além de nos fazer descobrir seu desenvolvimento e sua composição por elementos procedentes de diversas fontes. Lamenta que, até o momento, os autores tenham se ocupado muito mais com a investigação e a explicação das qualidades e reações do indivíduo adulto em relação com a vida de seus antepassados, do que com "a época infantil do sujeito", atribuindo maior influência à hereditariedade do que à infância. Em Nota de rodapé, de 1 9 1 5 ,

2 4 8

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

acrescenta: "Não é possível, além disso, determinar acertadamente a parte correspondente à hereditaridade, sem haver estudado antes a correspondente à infância" (Freud, 1981a, p. 1.195). Embora constate que "o exame científico das manifestações tanto físicas quanto psíquicas da sexualidade infantil" ainda esteja "em seus simples começos", a Psicanálise pretende corrigir tal situação. São analisados então os seguintes pontos: 1) Amnésia infantil: esquece-se a infância como "resultado da educação" e, em parte, devido "à repressão" de tipo histérica - "sem amnésia infantil não haveria amnésia histérica" (cf. Freud, 1976a, 1976b, p. 328-54). A amnésia infantil que "transforma a infância de todos em algo semelhante a uma época pré-histórica" e lhes "oculta o início de sua própria vida sexual" é responsável "pelo fato de, em geral, nenhuma importância se atribuir à infância no desenvolvimento da vida sexual". 2) O período de latência sexual na infância e suas interrupções: as inibições sexuais; a formação reativa e a sublimação; interrupções do período de latência (Freud, 1972, p. 181-4). 3) As manifestações da sexualidade infantil: chupar o dedo; o auto-erotismo (Freud, p. 187). 4) O objetivo sexual da sexualidade infantil: características das zonas erógenas; o objetivo sexual infantil (Freud, 1972, p. 188-9). 5) Manifestações sexuais masturbatórias: atividade da zona anal; atividade das zonas genitais; segunda fase da m a s t u r b a ç ã o infantil; r e t o r n o da primeira masturbação infantil; disposição perversa polimorfa; instintos componentes (Freud, 1972, p. 192-9). 6) As pesquisas sexuais da infância (cf. Freud, 1981c): o instinto de saber; o enigma da esfinge; complexo de castração e inveja do pênis; teorias do nascimento; o conceito sádico das relações sexuais; malogro típico das pesquisas sexuais infantis (Freud, 1972, p. 199-203). 7) As fases de desenvolvimento da or-

HISTÓRIAS DE GDVERND: CRIANÇAS E CIA.

2 4 9

ganização sexual: organizações pré-genitais; ambivalência; escolha difásica de objeto (Freud, 1972, p. 203-6). 8) As fontes da sexualidade infantil: excitações mecânicas; atividade muscular; processos afetivos; trabalho intelectual; variedades de constituição sexual; caminhos da influência mútua (Freud, 1972, p. 207-12). Em 1907, na Carta aberta ao doutor M. Fürst, Freud (1981b) responde à questão acerca da conveniência em prestar esclarecimentos sexuais às crianças e, em caso afirmativo, qual a idade mais adequada e de que modo fazê-lo. Inicia sua resposta afirmando não compreender por que "as explicações sobre a vida sexual humana" vêm sendo negadas. Encontra, nas cartas familiares do pensador e filantropo Multatuli, razões mais do que suficientes para a "dissimulação", levada a efeito pelos pais e educadores, as quais cita: Em meu modo de pensar, algumas coisas são, em geral, exageradamente encobertas. Age-se com acerto procurando conservar pura a imaginação das crianças; mas não é a ignorância o melhor meio para preservar essa pureza. Ao contrário, acredito que a ocultação conduz a criança a suspeitar mais do que nunca da verdade. A curiosidade nos leva a esmiuçar coisas que teriam pouco ou nenhum interesse para nós, se tivéssemos sido informados com simplicidade. Caso fosse possível manter a criança em absoluta ignorância, eu poderia aceitá-la, mas isso é impossível. O convívio com outras crianças, as leituras que induzem à reflexão, e principalmente a dissimulação de seus pais e educadores intensifica a vontade de saber. Este desejo, satisfeito apenas parcialmente e em segredo, excita seu sentimento e perverte sua fantasia, de forma que a criança começa a pecar em períodos nos quais seus pais acreditam que ainda ignora o que seja o pecado (Freud, 1981b, p. 1.244-5). Freud aconselha que o sexual seja tratado, desde o início da vida da criança, da mesma forma que qualquer outra ordem de conteúdos dignos de serem sabidos, para

2 5D

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

que sua curiosidade nunca atinja uma intensidade exagerada. Afirma ser dever da escola esclarecer a sexualidade, iniciando com os grandes fatos da reprodução no estudo do mundo animal e fazendo constar, logo após, que o homem compartilha o essencial de sua organização com os animais superiores. A explicação das características especificamente humanas da vida sexual e de sua significação social poderiam dar-se ao final da educação básica, aos dez ou onze anos. Por ocasião da Confirmação deveriam ser "explicadas as obrigações morais que estão associadas à satisfação real do instinto sexual". Assim, um esclarecimento gradativo, sem interrupções e por iniciativa da própria escola primária parece a Freud ser "o único adaptado ao desenvolvimento da criança e que consegue evitar os perigos que estão envolvidos" nessa tarefa. Considera um avanço significativo na educação infantil que, na França, o Estado tenha introduzido, em lugar do catecismo, um manual que dá à criança as primeiras noções "de sua situação como cidadão e dos deveres éticos que deverá assumir mais tarde". No entanto, afirma Freud, essa educação continuará com "sérias deficiências enquanto não abranger o campo da sexualidade" (Freud, 1981b, p. 1.247-8). No texto de 1913, O interessse científico da psicanálise, na parte intitulada O interesse educacional da psicanálise, Freud (1974b) diz que a importância que a Psicanálise apresenta para a teoria da educação baseia-se no fato de que somente alguém que "possa sondar as mentes das crianças será capaz de educá-las"; e nós, pessoas adultas, "não podemos entender as crianças porque não mais entendemos a nossa própria infância". A amnésia infantil prova o quanto "nos tornamos estranhos à nossa infância". A Psicanálise trouxe à luz os desejos, as estruturas mentais e os processos de desenvolvimento da infância. Todos os esforços anterio-

H I S T ó R I A S DE GOVERND: CRIANçAS E CIA.

2 5

1

res feitos foram incompletos e enganadores por terem desprezado por inteiro "o fator inestimavelmente importante da sexualidade em suas manifestações físicas e mentais". A incredulidade com que têm sido acompanhadas as descobertas estabelecidas com maior grau de certeza pela Psicanálise sobre o tema da infância - "o complexo de Édipo, o amor a si próprio (ou 'narcisismo'), a disposição para as perversões, o erotismo anal, a curiosidade sexual" - é uma "medida do abismo que separa nossa vida mental, nossos juízos de valor e, na verdade, nossos processos de pensamento daqueles encontrados mesmo em crianças normais". Quando os educadores familiarizarem-se com essas descobertas da Psicanálise, escreve Freud, será mais fácil se reconciliarem com "certas fases do desenvolvimento infantil", além de não correrem o risco de "superestimar a importância dos impulsos socialmente imprestáveis ou perversos que surgem nas crianças". Ao contrário, abster-se-ão de qualquer tentativa de suprimir esses impulsos pela força, por terem entendido que esforços desse tipo produzem resultados menos indesejáveis que a alternativa "de dar livre trânsito às travessuras das crianças". A Psicanálise tem observado "a perda de eficiência e capacidade de prazer" derivada de uma severidade inoportuna ou exagerada. Também pode demonstrar que preciosas contribuições para a "formação do caráter são realizadas por esses instintos associais e perversos" na criança, se não forem submetidos à repressão e sim "desviados de seus objetivos originais para outros mais valiosos, através do processo conhecido como 'sublimação'". Nossas mais elevadas virtudes desenvolveram-se como "formações reativas e sublimações de nossas piores disposições". A educação deve abster-se de submeter tais fontes de ação e restringir-se a incentivar os processos pelos quais essas energias são conduzidas, ao longo de trilhas seguras. Freud conclui

2 5 2

HISTÓRIA DÁ INFÂNCIA SEM FIM

escrevendo: "Tudo o que podemos esperar a título de profilaxia das neuroses no indivíduo encontra-se nas mãos de uma educação psicanaliticamente orientada" (Freud, 1974b, p. 224-6). Na Lição XX. A vida sexual humana - integrante das Lições introdutórias à psicanálise, uma série de conferências pronunciadas em Viena e Leipzig, nos anos de 1915-6 e 1916-7 -, Freud (1981e) afirma que a investigação psicanalítica dirigiu sua atenção sobre a vida sexual infantil em virtude de que as recordações e as associações surgidas "na imaginação dos enfermos, durante a análise de seus sintomas", relacionaram-se sempre com os primeiros anos infantis. As hipóteses formuladas por esse método foram confirmadas, ponto a ponto, na "observação direta de sujeitos infantis". Comprovou-se também que todas "as tendências perversas têm suas origens na infância", e que as crianças trazem dentro de si uma "predisposição geral às perversões", manifestando-as de modo compatível com a fase imatura de vida em que se encontram; ou seja, "a sexualidade perversa não é outra coisa senão a sexualidade infantil ampliada e decomposta em suas tendências constitutivas". Embora exista ainda a tendência em negar que as crianças possuam uma vida sexual, bem como a exatidão das observações psicanalíticas que encontram na conduta das crianças uma afinidade com aquilo que, a título de perversão, é condenado nos adultos, Freud diz ser necessário analisar a causa dessa resistência, para então apresentar a totalidade de suas conclusões. Segundo ele, a sociedade considera, como uma de suas principais missões educativas, obter que o instinto sexual encontre uma vontade individual obediente à coerção social que o refreie, limitando e dominando tal instinto. Ao mesmo tempo, interessa-se em garantir que o desenvolvimento completo da necessidade sexual

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

2 5

3

fique retardado até que a criança alcance um certo grau de maturidade intelectual, já que, com a total aparição do instinto sexual, fica colocado um fim a toda influência educativa. Caso a sexualidade infantil se manifestasse precocemente, romperia todos os limites e anularia toda a obra da civilização, fruto de um penoso e prolongado trabalho. Essa missão de conter a necessidade sexual não é nada fácil e, ao realizála, peca-se por excesso ou por insuficiência. A base da sociedade é de natureza econômica; não possuindo meios suficientes de subsistência para permitir a seus membros viver sem trabalhar, a sociedade acha-se obrigada a limitar o número destes e a desviar sua energia da atividade sexual para o trabalho. A experiência mostrou aos educadores que a tarefa de submeter a vontade sexual das crianças não é realizável senão quando se começa a influir sobre elas "desde muito cedo", fazendo sua vida sexual obedecer a uma rigorosa disciplina, já que é "uma preparação para a vida sexual do adulto". Essa prática acabou por atribuir uma falta de sexualidade às crianças, a qual transformou-se em teoria científica. A criança é considerada, sem exceção alguma, "como a mais completa representação de pureza e inocência", e tudo aquilo que se atreve a julgá-la diferentemente é acusado de "sacrilégio e de atentado contra os mais ternos e respeitáveis sentimentos da Humanidade". As crianças são as únicas a quem essas concepções não enganam, pois, apesar delas, "fazem valer com toda ingenuidade seus direitos animais", mostrando a cada instante que a pureza é algo de que não possuem a menor idéia. É significativo v-i: como os educadores e pais, que negam totalmente a existência de uma sexualidade infantil, nem por isso renunciam à educação, e condenam com severidade as manifestações daquilo mesmo que se recusam a admitir. Também é interessante, desde o

2 5 4

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

ponto de vista teórico, que os cinco ou seis primeiros anos de vida, isto é, a idade na qual o juízo de uma infância assexuada resulta mais equivocado, sejam os anos envoltos, para uma imensa maioria de adultos, por uma nebulosa amnésia, que somente a investigação analítica consegue dissipar, embora já se tenha mostrado permeável em certas formações oníricas (Freud, 1981e, p. 2.316-7). Ao contrário do que se diz sobre o fato de que a Psicanálise atribuiu uma extensão exagerada à sexualidade para manter suas afirmações sobre a causalidade sexual das neuroses, o que a investigação analítica tem feito nada mais é do que ampliar a noção de sexualidade na medida necessária "para incluir nela a vida sexual dos perversos e das crianças; ou dito de outra maneira, não fizemos outra coisa que restituir a este conceito sua verdadeira amplitude". Aquilo que se entende por "sexualidade" fora da Psicanálise "é uma sexualidade extremamente restrita e posta a serviço da procriação; ou seja, apenas aquilo que se conhece com o nome de vida sexual normal" (ib., p. 2.321). O pastor, psicanalista e pedagogo de Zurique, Oskar Pfister - o primeiro reconhecido por Freud (1974c, p.50) como formulador de uma "pedagogia analítica", ou de uma "educação psicanalítica" - escreve no livro El psicoanálisis y Ia educación (Pfister, 1943) que a Psicanálise, como um método da Pedagogia, pode ser praticada "com qualquer fundamento ético, pelos maometanos, judeus, cristãos, pagãos e ateus, pelos bons e pelos maus". O educador, afirma Pfister, persegue, com sua análise pessoal, um "fim determinado completamente moral": supressão das inibições produzidas por forças psíquicas inconscientes e submissão dessas forças ao domínio da personalidade moral. Quando esse fim é comprovado, conclui-se que a educação psicanalítica

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

2 5

5

"deve incluir-se na pedagogia geral". Se Freud não quer proporcionar os fundamentos éticos da educação analítica, por sua situação de médico, bem como nunca pretendeu fazer da Psicanálise uma WeJtanschauung, os educadores não podem esquecer sua "orientação moral". São conscientes de sua grande responsabilidade: para eles, "não é homem são apenas aquele que se curou de seus sintomas patológicos, senão o que é sadio moralmente". Por isso, os educadores devem dedicar-se à Psicanálise: "porque detrás dos sintomas neuróticos ocultam-se relações morais" e devem os educadores realizar seu "trabalho educativo" (Pfister, 1943, p. 161-2). Seria útil, assinala Pfister, que todos os especialistas em disciplinas pedagógicas tivessem os conhecimentos mais fundamentais no campo da Educação Psicanalítica: "Seria de grande valor para a higiene e a direção da escola" (ib., p. 192-3). O inconsciente é "o reino dos espíritos subterrâneos. Muitas vidas psíquicas estão sepultadas ali e gritam pedindo liberdade". O educador que tiver uma visão penetrante em questões psicanalíticas verá um enorme contingente dessas "vítimas da repressão", o qual ameaça fazer-se maior porque "o pedagogo, quase sem exceção, carece de recursos* contra as causas repressoras". Nem todos são chamados para "penetrar no país das sombras e libertar as almas presas"; porém, aquele que, apesar de tudo, reconheça-se capacitado para essa grande tarefa, deve dedicar-se a ela com todas as suas forças, "sem preocupar-se com as perseguições de seus inimigos". A maior satisfação que pHem experimentar é, sem dúvida nenhuma, "conseguir a liberdade dos homens acorrentados" (ib., p. 194).

2 5 6

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

INFANTILIZAR(-SE)

O filme de Francis Ford Coppola (1996), Jack, conta a história de um menino, acometido de uma doença genética que faz as células de seu corpo envelhecerem quatro vezes mais rápido do que as dos meninos normais. Somente quando Jack deixa a reclusão do lar - adaptada à sua condição especial por uma mãe e um pai solícitos, protetores e amorosos -, e vai para a escola, é que seu corpo de 40 e seu desenvolvimento mental de dez anos começam a apresentar e a criar problemas. O corpo de Jack cresce sem que a mente o acompanhe e o filme mostra "o quanto existe de criança em cada adulto", bem como "o quanto pode haver de adulto em uma criança" (Araújo, 1996, p. 5). Deixo de lado as análises de que o filme seria uma parábola sobre a sociedade norte-americana, onde os corpos crescem sem que a mente os acompanhe; ou de que a problemática tratada seria a de um mundo composto por pessoas sempre diferentes em relação a si mesmas; ou mesmo que Jack encarnaria um dos tantos "desviados" que o cinema norte-americano gosta de construir para fortalecer a normalidade dos indivíduos e de uma população modelar; ou de que é mais um filme da safra atual dos "politicamente corretos"; ou como os personagens normais vão aos poucos escandindo sua anormalidade, sendo então que se desajustam em função de Jack: não por considerar tais análises isentas de interesse, mas porque quero marcar a função da escola nessa trama. Sublinhar que não foi à toa que Coppola fez Jack ir para a escola, ponto central do roteiro a partir do qual desencadeia-se toda a trama envolvendo os outros meninos, as duas meninas que o atormentam, a professora e o diretor da escola, as aprendizagens e os exames; marcar que, diante de nossa cultura, era necessário que Jack freqüentasse a escola, que se inserisse no processo de escolarização para se socializar, educar-se, infantilizar-se, em suma.

HISTóRIAS DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

2

5 7

No processo de infantilização de uma parte da sociedade, a escola ocupa um papel central. Baquero e Narodowski (1994; Narodowski, 1994), a partir de uma resenha feita em autores da história da infância, afirmam que escolarização e infantilização parecem ser dois fenômenos paralelos e complementares. Por processo de infantilização entendem aquele mediante o qual a sociedade começa a amar, proteger e considerar as crianças como agentes heterônomos; é nesse sentido que a Pedagogia, ou melhor, o discurso pedagógico, apresenta-se como a produção discursiva destinada a normatizar e explicar a circulação dos saberes nas instituições escolares, constituindo-se como o relato que conceberá, através da escola, uma infância desejada - às vezes, uma "infância normal" -, em uma sociedade desejada. Dessa perspectiva, seria impossível compreender - e para Coppola desenvolver - toda a dramática condição de Jack sem acioná-la por meio de sua pedagogização, já que é impossível compreender o processo de construção de uma infância moderna se não se leva em conta o discurso pedagógico, o qual propõe uma analítica capaz de dotar de certos sentidos os enunciados sobre a infância (ib., p. 62-3). Ou seja, era preciso transformar Jack em "aluno" para que o filme fosse produzido, para que as relações, antes harmoniosas e pacíficas, com seus pais entrassem "em crise" e, inclusive, para que, vivendo mais intensamente sua infância e, como infantil, emocionando-se mais densamente, Jack tivesse acelerado o processo de seu envelhecimento e antecipado a hora de sua morte. A se acreditar nessas relações, isso não é pouca coisa. O personagem interpretado por Robin Willians pode ser tomado como emblemático da "infantilidade" porque suas ações e ditos próprios de crianças, presentes em um corpo adulto, causam estranhamento e irritam aqueles que com

2 5 8

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

ele se relacionam. Se a escolarização deve promover seu desenvolvimento, pelo processo de infantilização, também a escola, embora se esforce em direção contrária, fica irritada diante da puerilidade e do "infantilismo" de Jack. Para Aries (1981), esse sentimento de irritação diante da infantilidade das crianças tem, pari passo com o sentimento da infância, uma história que data do século XVII, quando a literatura pedagógica destinada aos pais e educadores começou a falar da fragilidade e da debilidade da infância (ib., p. 13840). O historiador entende essa ênfase dada ao "lado desprezível" da infância como conseqüência do espírito clássico e de sua insistência na razão; mas, acima de tudo - diz ele foi uma reação contra a importância que a criança havia adquirido dentro da família e dentro do sentimento da família: os adultos de todas as condições sociais gostavam de brincar com as crianças pequenas - em função do primeiro sentimento de infância, o de paparicação -, e foi esse hábito que passou a provocar irritação diante da infantilidade, a qual é considerada como "o reverso moderno do sentimento de infância". A esse sentimento de irritação somava-se o desprezo que a sociedade do XVII, constituída por "homens do ar livre" e por "homens mundanos", sentia pelo professor, pelo mestre do colégio, pelo "pedante". A antipatia pela infantilidade das crianças demonstrada pelos "espíritos sérios e preocupados" é mais um testemunho - acredita o historiador do papel, a seu ver demasiadamente importante, que estava sendo reservado à infância. É nessa instância de exasperação que se forma "uma concepção moral da infância", a qual insistia em sua fraqueza mais do que em sua "natureza ilustre", associando sua "fraqueza à sua inocência" - "verdadeiro reflexo da pureza divina" - e colocando a educação "na primeira fileira das obrigações humanas".

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

2

5 9

Para Aries, a obrigação de educar a infantilidade irritante e exasperante da infância - reagia contra: 1) a indiferença medieval pela infância; 2) o sentimento terno e egoísta de tomar a criança como brinquedo; 3) o desprezo do homem racional. Para este estudo, é justamente aqui, nainstância hostil à "infantilidade infantil" - se esta expressão não fosse demasiado redundante -, que é preciso andar mais uma vez na contramão do pensamento da história da infância, buscando analisar - não o sentimento de irritação diante da infantilidade c o m o o reverso do m o d e r n o sentimento de

infância, mas, isso mesmo que ela chama de "reverso", ou seja, o próprio dispositivo de infantilidade que cria suas figuras, como a infância, a criança, o aluno, a aluna, o infantil, o infantilismo, a infantilização, justamente nas práticas escolares e pedagógicas. Em síntese, para a história da infantilidade, se não fosse "a descoberta" da infantilidade e os sentimentos sociais e culturais de irritação, exasperação e hostilidade contra tal qualidade, estado, propriedade, modo de ser infantil, nem a Escola nem a Pedagogia teriam sido criadas. Além das necessidades práticas de regulação das populações e dos indivíduos (cf. Foucault, 1990g), pode-se assim retirar, da história da infância, mais esse elemento que situa a escolarização e a pedagogização não como bens per se, valorados positivamente e significados como acima de qualquer suspeita, no que tange à sua natureza humanizadora e socializadora, mas como mecanismos insidiosos que se instalaram e aperfeiçoaram-se para borrar e apagar a infantilidade, qualidade do infantil: um desses tantos outros, um desses tantos diferentes que são inaceitáveis pelas identidades-padrões e que devem ser negados, redistribuídos, repartidos, transformados em outra coisa que não eles próprios, para que recorrentemente tais identidades continuem fabricando um mesmo, um idêntico, um si-próprio. Não foi

2 6 0

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

para produzir a infância que a escola institucionalizou-se; foi para fazê-la cada vez menos infantil, para acelerar - sempre mais, individual e massivamente, - o processo de afanise do infantilismo do infantil, conjurando e renegando sua infantilidade. O curioso talvez seja encontrado na circunstância seguinte: se o processo de escolarização das crianças reagiu sempre contra sua infantilidade, pode ser pensado que, concomitantemente, ele institucionalizou-se e vem funcionando por todos esses séculos unicamente para produzir essa mesma infantilidade, um modo de ser infantil, a qualidade de infantil, o estado de infantil, a propriedade do infantil. Pois não foi o próprio Aries que, em diversas circunstâncias, mostrou que os colégios, a escola provocaram o alargamento da infância, o prolongamento da idade da infância? Porém, a infantilização própria do processo de escolarização não é aquela que o primeiro sentimento de infância relevou - no caso, a distração e a brincadeira -, mas a infantilização que vem logo em seguida: a dos moralistas e dos educadores que formaram esse "outro sentimento de infância, que inspirou toda a educação até o século XX, tanto na cidade como no campo, na burguesia e no povo", manifesta através do "interesse psicológico e da preocupação moral" (Aries, 1 9 8 1 , p. 162). Como mostrei, em A-vida-a-morte, foi a subordinação da identidade social das crianças à primeira maquinaria de produzir afetos, técnicas e instituições que conformaram a infância moderna. A infantilidade, a puerilidade das crianças, se aceitas e incrementadas, produziam "crianças maleducadas"; o "erro antigo" fora o dos adultos acomodaremse "à leviandade das crianças"; a criança não devia ser vista nem como "divertida nem agradável": era preciso "antes conhecê-la melhor para corrigi-la, e os textos do fim do sé-

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

2 6

1

culo XVI e do século XVII estão cheios de observações sobre a psicologia infantil" (Aries, 1981, p. 162-3). Aries afirma que, no século XVIII, encontra-se na família os dois "elementos antigos": o primeiro sentimento de infância - a paparicação - e o segundo, destinado a preservar e a disciplinar a racionalidade e os costumes morais, associado com um elemento novo "a preocupação com a higiene e a saúde física" (ib., p. 164). O que Aries não pôde dizer é que esses "sentimentos", seja o antigo seja o novo, mais do que sentimentos, foram práticas discursivas e não-discursivas produzidos pelo mesmo dispositivo, o de infantilidade, dispositivo que estava em operação antes de fazer sua aparição no campo da infância, encontrando-se numa espécie de vigência que se utilizava das mesmas estratégias e táticas para produzir formas de subjetivação similares: locupletando-se sobre identidades subordinadas, corpos assujeitados, almas de indivíduos dependentes, a serem governados pela pedagogização e pela sexualização de seus eus.

TRABALHO DIURNO E NOTURNO. D

TRABALHO DAS MULHERES

CDNTROLAR A URINA

E AS

E DAS

CRIANçAS

FEZES

A pedagogização e a sexualização dos corpos e almas das crianças começava cedo: no berço, pode-se dizer. Além dos horários regulares para alimentar os recém-nascidos, higienizá-los, fazê-los dormir, etc, em seu corpo eram introduzidos supositórios, purgantes e clisteres, os quais constituíram a primeira forma dos adultos relacionarem-se com o interior do corpo das crianças. Estando sãs ou doentes, elas

2 6 2

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

eram submetidas a esses mecanismos para controle urinário e da evacuação, limpeza geral do intestino, eliminação das lombrigas. Também tomavam suadores - banhos escaldantes com infusões de camomila ou matricária. No século XVII, acreditava-se que era conveniente ministrar purgantes de ruibarbo às crianças antes de dar-lhes de mamar, a fim de que o leite não se misturasse com as fezes. As crianças do povo faziam suas necessidades nos pátios, dentro das moradias, nas escadas, nas vias públicas. Nas residências aristocráticas, existiam urinóis, colocados sob cadeiras com buracos, em que as crianças eram deixadas por muitas horas: pelo menos desde os dezesseis meses de idade, escreveu Héroard, o Delfim permanecia sentado neste petit séant durante horas, com seus jogos diante de si em uma mesa (Marwick, 1995, p. 303). O diário de Héroard está cheio de descrições minuciosas do que entra e do que sai do corpo do futuro rei: sua urina matinal era recolhida e conservada em temperatura moderada e ao abrigo da luz; após sete horas, era avaliada em termos de cheiro, cor, transparência, gosto, etc.; todas as variações eram interpretadas como expressando estados físicos e emocionais do Delfim. Também suas evacuações eram examinadas com freqüência para que fosse determinado seu estado interior: supunha-se que os intestinos do menino continham uma matéria dirigida ao mundo dos adultos, ora com insolência, ora, em tom ameaçador, ou com malícia e insubordinação; caso seus excrementos tivessem um aspecto e um odor desagradáveis significava que, no mais profundo de seu corpo, residiam más inclinações; tanto o excremento quanto a urina eram considerados como mensagens de um demônio particular que indicava os maus humores que ocultava em seu interior (Hunt, 1972, p. 144).

HISTóRIAS DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

2 6

3

O controle esfincteriano não era ainda motivo de luta entre adultos e crianças, e nem os médicos estavam de acordo entre si sobre a necessidade de provocar ou não a evacuação: a luta entre pais e filhos sobre o controle da urina e das fezes, bem como o consenso médico sobre a necessidade dessa regulação serão inventos do século XVIII. As discussões que se seguiram sobre a idade de tirar as fraldas, a melhor estação do ano, o clima propício, as técnicas mais eficazes a empregar para iniciar o controle esfincteriano, os investimentos emocionais aí depositados, ocuparão muitas páginas de manuais, gerarão muito debate entre os profissionais e na vida cotidiana, palmadas, gritos, choros, recompensas. Entre as modalidades do novo poder, encontramos mais esta: a exigência de uma sociedade civilizada para que crianças de poucos meses controlassem os produtos escatológicos de seu corpo, seguida do progressivo estabelecimento de "uma idade ótima" para o fazer. Inclusive, em determinados espaços sociais do século XIX, a criança ideal era aquela que não podia suportar nenhuma sujeira em seu corpo, em sua roupa, ou no que a rodeava, em momento algum (cf. DeMause, 1995, p.72). Mais uma vez, tratava-se de dominar a si-mesmo/a, por razões higiênico-sanitárias neste caso.

FALAR(-SE)

DD

SEXD-SOBERANO

As crianças, durante muitos séculos, foram manipuladas e utilizadas sexualmente: os escolares, pelos pedagogos e mestres; os filhos, pelo pai e mãe; os jovens, pelos homens livres e criados; os bebês, pelas amas; as crianças entre si e consigo mesmas. Suetonio censurava Tibério porque este ensinava a crianças de tenra idade, a quem chamava seus "peixinhos", a brincar entre suas pernas enquanto se banha-

2 6 4

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

va. Àquelas que não haviam ainda sido desmamadas, mas eram fortes e sãs, lhes metia o pênis na boca. Contudo, a prática sexual preferida não era a estimulação oral do pênis, senão a cópula anal. Marcial diz ser preciso abster-se de excitar a glande manuseando-a, pois a Natureza dividiu o corpo do menino: uma parte foi feita para as mulheres, outra, para os homens. "Usai a vossa parte" (DeMause, 1995, p. 80), recomendava. Nos vasos que registram cenas eróticas de jogos sexuais com meninos impúberes, o pênis destes nunca é mostrado em ereção, embora um dos conselhos de Falopio aos pais consistia em que estes deviam empenharse em aumentar o pênis do menino, pela manipulação diária da glande. A castração dos meninos, logo depois de nascidos, funcionou como um motivo a mais para a excitação sexual: um dos sistemas usados era o de compressão, que consistia em mergulhá-los durante algum tempo em uma bacia com água quente; depois, quando os testículos amoleciam, eram apertados com os dedos até que desaparecessem. O outro sistema era colocá-los em um banco ou mesa e cortar-lhes cs testículos. Existiam pedagogos, mestres, prisioneiros, serviçais, cantores castrados; mas nem todos tinham sido castrados para fins sexuais: os meninos também eram castrados para a cura de diversas enfermidades ou para sua utilização em rituais mágicos (DeMause, 1995, p. 8 1 ; Lynd, s.d., p. 21-2). A concepção da inocência infantil, reconfirmada pelo sacramento cristão do Batismo, fortalecia o entendimento de que a criança era imune à corrupção sexual, por não ter sensibilidade para sentir prazer nem dor; que era pura e bem-aventurada por não ter pensamentos nem faculdades carnais, sendo por isso incontaminável. No século XV, Gerson surpreende-se que os adultos lhe digam que nunca ouvi-

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

2 6 5

ram falar que a masturbação fosse pecaminosa e instrui os confessores para que perguntem diretamente aos adultos: "Irmão, tocas ou manipulas o pênis como é costume fazer com os meninos"? Tal pergunta difere muito do que Héroard relata (cf. Aries, 1 9 8 1 , Hunt, 1972) de Luis XIII antes de um ano: "Ele dá gargalhadas quando sua ama lhe sacode o pênis com a ponta dos dedos"; "chama um pajem com um 'Hei!' e levanta a túnica, mostrando-lhe o pênis"; "Muito alegre, ele manda que todos lhe beijem o pênis"; "Ele riu muito para as visitas, levantou a roupa e mostrou-lhes o pênis, mas sobretudo à menina; então, segurando o pênis e rindo com seu risinho, sacudiu o corpo todo"; "Diante de uma pequena senhorita, levantou a túnica, e mostrou-lhe o pênis com tal ardor que ficou fora de si. Ele se deitou de costas para mostrá-lo melhor"; quando lhe perguntam: "Onde está o benzinho da Infanta [de Espanha, prometida em casamento, quando Luis XIII tinha pouco mais de um ano de idade]? Ele põe a mão no pênis". O Renascimento principia a disseminar a reprovação do auto-erotismo e da utilização das crianças para fins sexuais; o século XVII dá continuidade a essa campanha e o XVIII promove um giro totalmente novo: castiga o menino e a menina por tocarem suas próprias genitálias. Como na exigência de controlar a evacuação, os pais punem severamente os filhos por masturbarem-se e codificam a masturbação em um sistema de sinais incessantemente buscados: olheiras, espinhas, insônias, agressividade, pêlos nas mãos - todos denotativos dessa condenável atividade antes isolada e solitária, deixada à margem da atenção social. É difundida a idéia de que a masturbação provoca a epilepsia, a cegueira, a loucura e até a morte, além de prejudicar, de modo irremediável, a mente e o corpo do futuro adulto, sujeito à debilidade, a abortos e à esterilidade.

2 6 6

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Os colégios transformam-se em agências de detecção, caça e repressão aos inocentes do crime onanista e os médicos utilizam, para o tratamento de suas conseqüências, bromuretos de potássio, cânfora, sódio, amônia, lúpulo e calmantes, e para sua prevenção, meios mecânicos como camisola de força, neurotomia esquio-clitoridiana e aderência dos grandes lábios. São exercitados mecanismos de controle como médicos e padres ameaçando cortar os genitais, com facas e tesouras; a circuncisão (cf. Aries, 1981, p.131), a clitoridectomia e a infibulação como prevenção e castigo; dispositivos restritivos, como moldes de gesso e gaiolas com dentes. As intervenções cirúrgicas chegam ao clímax de utilização entre 1850 e 1879 e os mecanismos para impedir a masturbação entre 1880 e 1904 (cf. DeMause, 1995, p. 84). Os médicos especializados em onanismo indicavam as seguintes lesões nos sistemas: 1) digestivo - meteorismo, vômitos, gastrites, gastralgias, enterites, diarréias, constipações, absorção intestinal imperfeita -; 2) circulatório hipertrofias dos músculos cardíacos, dilatações musculares, aneurismas, síncopes, apoplexias, etc. -; 3) respiratório dicção difícil, gagueira, discordância nos sons, voz fraca, rouquidão, tosse seca, ansiedade torácica, falta de desenvolvimento do tórax, respiração difícil, sufocação, catarro crônico, tuberculose, etc; 4) nervoso - coréia, epilepsia, histeria, nervosismo, insônia, hipocondria, hiperestesia, vertigens, etc.; 5) os mais diversos malefícios que trazia ao aparelho gênitourinário. Um higienista do Rio de Janeiro escreveu sua Tese de Medicina em 1886 acerca d' O onanismo na mulher: sua influência sobre o físico e o moral. Nela, lê-se a detecção dos seguintes sinais apresentados pelas meninas:

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

2 6

7

Emagrecem quase rapidamente, os olhos tomam-se turvos, cercados por uma fita lívida, tristes, as pálpebras ingurgitadas, vermelhas, pesadas, sobretudo as superiores, coladas ao despertar, olhar fixo e atoleimado, dirigido para o chão, fisionomia triste e taciturna, estado de languidez, aumento do apetite para compensar as despesas da economia, andar cambaleante, falta de coordenação nos movimentos, fraqueza muscular na região lombar, tremor nos membros, suores noturnos, urina turva e sedimentosa, calafrios quase contínuos, voz rouca, palidez (Costa, 1989, p. 187). Relatos dos "onanistas" brasileiros referiam: Tive ocasião de ver uma infeliz mãe que pediu-me que fosse ver sua filha vítima do hábito funesto, objeto de sua maior dor. Estava-se no inverno, era noite; conduzido por esta senhora a uma janela de uma saleta, que se abria para o jardim; vede, disse-me ela, afastando um dos postigos da sala, se não me devo lastimar! Vejo com efeito uma pessoa, de 30 anos, no máximo, sentada junto de uma mesa com um castiçal; o pescoço e o peito mal cobertos, as mãos automaticamente abandonados sobre as coxas, pés nus, cabelos desgrenhados, face descarnada, espáduas e extremidades de seus membros salientes sob as vestes e enfim esta pessoa se achava em imobilidade completa. Entrou neste ano para o Hospital da Santa Casa de Misericórdia um menino epiléptico e já idiota pelos efeitos do onanismo; sua face estampava o vício e o padecer; teria ao muito doze anos; seu corpo era franzino e atrofiado, mas os órgãos genitais eram prodigiosos e tão completamente desenvolvidos como se fossem de um homem (Costa, 1989, p. 188). Se o tratado de Erasmo, do século XVI, teve por função cultivar sentimentos de vergonha diante de outras pessoas das cortes, os anjos-da-guarda foram referidos, por longo tempo, como seres onipresentes para condicionar as crianças a afastarem-se da satisfação dos prazeres; as razões hi-

2 6 B

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

giênicas e de saúde, acopladas àquelas de natureza religiosa e moral, recebem, a partir do século XVIII, mais ênfase na obtenção de um elevado grau de controle dos impulsos e das emoções sexuais: nas famílias e nos colégios, especialmente nos internatos, serão implementados, junto aos conselhos dos confessores, modificações nos mecanismos de coabitação e de educação, bem como o estabelecimento de um novo comportamento dos adultos com relação às crianças, tais como: aumentar o número de recreios e durante sua realização fazer muitos exercícios ginásticos para distrair as crianças da masturbação; não dormir na mesma cama, nem com outras crianças, nem com adultos; não se tocar, principalmente se os corpos estiverem desnudos, seja nas brincadeiras ou em outras situações; tomar banho, vestido com uma fina e longa camisola; não deixar as crianças serem beijadas ou acariciadas; denunciar outros colegas ou irmãos se cometerem alguma falta contra a decência e o pudor; conservar uma lamparina acesa no dormitório durante a noite (cf. Aries, 1981, p. 143); evitar as amizades íntimas; não fornecer livros duvidosos, expurgando os clássicos das cenas ou alusões sexuais e amorosas, e escolhendo aqueles que tenham bons temas e pureza de linguagem; não tirar as calças das crianças quando estas forem surradas; cuidar da linguagem, evitando palavras "feias"; proibir o baile, a comédia, o romance, as canções modernas, que falam de paixões desregradas, equívocos indecentes e obscenidades; não deixar as crianças sozinhas com os criados; evitar o tratamento por "tu" e usar "vós" que marca distância; tomar banhos frios, ao se sentir "em tentação"; atar as mãos daqueles e daquelas mais renitentes; encaminhá-los/as aos médicos quando houver excesso do "vício higiênico"; etc. Em 1855, o médico José Bonifácio Caldeira de Andrada Júnior, nas conclusões de sua tese, Esboço de uma higiene dos colégios aplicável aos nossos, apresentada na Faculda-

IISTóRIAS DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

2 6

9

de de Medicina do Rio de Janeiro, aconselhava aos responsáveis pelas crianças internas nos colégios "extrema vigilância moral", seguida de outras medidas: Todos os meios de investigação deverão ser postos em prática a fim de surpreender-se o segredo, em geral difícil de ser ocultado aos olhos do observador perspicaz, e, descoberto este, restará empregar os meios que a razão nos dita e que a ciência nos aconselha para desenraizarmos o mal, se possível for, ou pelo menos atenuarmos a acrimônia das suas conseqüências; nestas investigações, porém, deve reinar a maior circunspecção, para que não se vá despertar em uma alma cândida e pura a idéia de um desvario a que até então tenha sido inteiramente estranha. Não só o estado da constituição dos alunos será observado e seguido em suas diversas modificações, mas perscrutar-se-á também as suas disposições morais por meio de questões astuciosamente redigidas e os seus leitos e vestes serão todos os dias examinados, quando houver suspeitas sobretudo; da fiel execução destes e de outros preceitos de igual simplicidade depende muitas vezes o futuro de uma vida inteira. As regras tendentes a prevenir os estragos e a disseminação do mal entre os freqüentadores serão pouco mais ou menos as seguintes: 1Ê) Não admitir no seio da comunidade mancebos de costumes e hábitos suspeitos. 2a) Proibir aos alunos a conservação e a leitura de livros eróticos, as palestras levianas, e tudo o que possa excitar para mal a sua imaginação ardente. 3a) Repartir completa separação de idades. 4Ê) Proibir uma comunicação muito livre entre os pensionistas e os alunos externos, quando os hajam de uma e outra classe. 5a) Prevenir o despertar precoce da sensualidade por meio de c u r a d o s bem dirigidos, pela abolição de alimentos excitantes, etc. 6a) Punir o culpado repreendendo-o asperamente, ou, segundo a gravidade do crime, expelindo-o do colégio. 7a) Medicá-lo se carecer dos socorros da arte médica (Costa, 1989, p. 189-90).

Z 7 D

HISTÓRIA DA INFÂNCIA BEM FIM

Aries diz que, nesses séculos, estava ocorrendo a passagem do despudor à inocência - "uma noção essencial se impôs: a da inocência infantil" (Aries, 1981, p. 136) -, que tentava, por vários meios, preservar a castidade de quem, através desta passagem, começava a nascer. Pode-se pensar, com Foucault, que todas essas medidas, ao invés de contribuírem para o nascimento da infância em um registro de inocência, o que faziam era colocar em movimento o dispositivo de sexualidade, aliado ao da infantilidade, pelo qual todos os indivíduos ocidentais deviam reconhecer-se como sujeitos de desejo. Na relação dos adultos com as crianças e dessas consigo mesmas, a incitação de dizer a verdade da sexualidade infantil, por meio desse dispositivo, operou como uma linha de força derivada da primeira conexão da infância com a carne pecadora, da qual as sociedades cristãs criaram a necessidade do batismo, da confissão e do exame de consciência. Dessa perspectiva, os colégios incitavam uma ampliação das formas de sexualidade onanistas e também homossexuais, como pode ser encontrada na descrição de um médico brasileiro: Os colégios, os internatos, as casas de educação são, não poderse-á dissimular, focos de contágio moral que se estendem aos recém-admitidos de toda idade; e se o vício endêmico desses estabelecimentos poupa uma criança, ela não tarda a sucumbir às solicitações espontâneas dos órgãos genitais que se despertam e lhe criam um novo sentido. O onanismo reina como senhor entre a mocidade dos colégios e casas de educação. Com efeito, a maior parte dos alunos dos internatos tem atingido a idade de 14 anos; começa para eles a época da puberdade. A aparição da viriüd^.de causa-lhes tristeza e melancolias que os faz procurar a solidão; e aí a natureza lhes inspira desejos que os leva muitas vezes a descobertas tão contrárias à sua saúde como aos bons costumes. Com a reclusão, a instigação diária e muitas vezes quase contínua da excitação vai, pouco a pouco, embo-

HISTÓRIAS DE GOVERNO: CRIANÇAS E CIA.

2 "7 1

tando as faculdades intelectuais, o seu desenvolvimento orgânico não continua; há mesmo parada do desenvolvimento geral do organismo, enquanto que os dos órgãos solicitados se faz com assustadora precocidade. Vício quase tão velho como o mundo, praticado por todos os povos da antigüidade histórica, nasce do isolamento ou da vida comum de indivíduos do mesmo sexo e de parentesco distinto. Ora é a pederastia, fazendo esgotar todas as energias funcionais pelo exercício de uma função que a novidade das sensações convida a pôr em prática, sujeitando os meninos às moléstias dependentes desta ordem de causas cujas conseqüências apresentar-se-ão mais cedo ou mais tarde. O intemato é deplorável a todos os respeitos e particularmente antipático ao higienista, mais ainda para os rapazes do que para as raparigas, cujo regime sedentário é a vocação. O internato é nulo para a educação e torna-se odioso para os pensionistas (Costa, 1989, p. 191). Foucault (1993) descreve como a Época Clássica transformou a conduta sexual da população em objeto de análise e alvo de intervenção, montando uma teia de observações sobre o sexo, analisando as condutas sexuais, suas determinações e efeitos, nos limites entre o biológico, o econômico e o político, como coisa pública e questão de Estado. O sexo das crianças entra na mesma rede discursiva, ao invés da ocultação da qual se acreditava que os Três ensaios para uma teoria sexual ([1905]Freud, 1981a), em sua segunda parte, A sexualidade infantil, ou As teorias sexuais infantis ([1908] Freud, 1981c), seguidas da Análise da fobia de um menino de cinco anos ([1909] Freud, 1981d) - ou o caso do pequeno Hans - haviam desvelado, liberando-o da "negligência do infantil", como Freud escreve. Não é que se falasse menos do sexo: falava-se de outra maneira; eram outras pessoas as que falavam, a partir de outros pontos de vista e para obter outros efeitos. Não é que as relações de poder exercidas com o sexo infantil tivessem

2 7 2

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

por estratégia central a repressão antimasturbatória; ao converter o onanismo em uma das categorias nosológicas do sexo desregrado e transgressivo dele foi feito um objeto de atenção dentro dos aparatos disciplinares e um objeto importante na organização social. Dentro da unidade recémcriada entre sexo, amor, matrimônio e procriação, o / a masturbador/a era tido como u m / a irresponsável, incapaz de avaliar a incidência social de sua mesquinha prática de prazer, prática tão ilícita quanto a sexualidade fora do casamento: amor livre, coito pré-conjugal ou extraconjugal; a sexualidade sem amor, como a prostituição, e a sexualidade sem procriação: homossexualidade, sexualidade infantil, sexualidade do climatério (Ussel, 1974, p. 58). Gerson e Luis XIII são dois discursos expressivos da descontinuidade do dispositivo antimasturbatório: se um menino não podia mais dizer, impunemente e como motivo de riso para os adultos, como Luis XIII, "meu pênis parece uma ponta levadiça: levanta e abaixa" (Aries, 1981, p. 127); os pais, parentes, padres, professores, conselheiros, psiquiatras, pediatras, médicos, seriam aqueles que falariam, analisariam, interpretariam um dito desse tipo, acrescentando, como fez Gerson, que o peccattum molhcei "tira a virgindade da criança, mais do que se o menino, com a mesma idade, tivesse freqüentado mulheres" (ib., p. 132); ou, em outras palavras, transformando as crianças em "perversas polimorfas", como disse Freud, mostrando que, desde o berço, o que movimenta seus corpos e suas almas e seu desejo é sua/nossa sexualidade. Foucault chama a atenção para a disposição arquitetônica, os regulamentos de disciplina e a organização interior dos colégios do século XVIII, onde todos esses arranjos tinham um único propósito - o de alerta perpétuo: o espaço da sala, a forma das mesrs, o arranjo dos pátios de recreio,

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

2

7 3

a distribuição dos dormitórios (com ou sem separações, com ou sem cortina), os regulamentos elaborados para a vigilância do recolhimento e do sono: "tudo fala da maneira mais prolixa da sexualidade das crianças". Palavras e silêncios foram redistribuídos e determinaram-se o que podia ser dito e o que não podia, que tipo de discurso estava autorizado, quem podia falar e quem devia calar, que modos de discrição e de prolixidade eram exigidos. Cuidar da sexualidade dos filhos não foi somente um problema moral para os pais, mas também uma fonte de prazer: excitação e satisfação sexual adultas. Foucault (1996, p. 91-3) afirma ter encontrado textos que chegam a "uma sistematização da violação da atividade sexual dos filhos realizada por seus pais". A intervenção em uma atividade pessoal, secreta, como a masturbação, não representava uma posição neutra: não era somente uma questão de poder, de autoridade ou ética; também era um prazer - o prazer de intrometer-se. O fato de que a masturbação estivesse tão estritamente proibida para as crianças era causa de ansiedade; mas também era um motivo para intensificar essa atividade, para a masturbação mútua e para o prazer de manter uma comunicação secreta entre as crianças sobre esse tema. Isso deu uma determinada forma à vida familiar, à relação entre as crianças e seus pais e às relações entre as crianças. Os efeitos foram não somente repressão, mas uma intensificação de ansiedades e de prazeres e toda a trama emocional e erótica gerada ao redor dessa atividade. A medicalização da família e o privilegiamento da infância, promovidas pelo século XVIII, não produziram somente a inoculação e a vacinação das crianças, mas elaboraram preceitos, pareceres, advertências médicas, casos clínicos, esquemas de reforma e planos de instituições ideais,

2 7 4

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

em torno do sexo do filho, da filha e do/a colegial, cujos objetivos eram os mesmos que o dispositivo da sexualidade tinha para todos os indivíduos e para a população: inoculálos contra o mutismo acerca do sexo. Falar do sexo das crianças, fazer falarem dele em abundância, falar de sexo com as crianças, fazê-las falar de seu sexo, encerrando-as numa teia de discurso que ora se dirigem a elas, ora falam delas, impondo-lhes conhecimentos canônicos, ou formando, a partir delas, um saber que lhes escapa - "tudo isso permite vincular a intensificação dos poderes à multiplicação do discurso". Através da sexualidade infantil, tornada importante e misteriosa, o fim era constituir uma rede de poder sobre a infância, na encruzilhada do corpo e da alma, da saúde e da moral, da educação e do adestramento, da confissão e do exame de consciência sobre os segredos e as armadilhas do sexo; desde que revelados até a humilhação, no escuro pegajoso e excitante do confessionário, em que o padre pedia mais e mais detalhes do ato, excitando-se ele mesmo; ou sussurrados aos ouvidos atentos dos especialistas, em que se devia falar de todos os pensamentos, palavras e atos envolvendo a mãe, pai, irmãos, irmãs, amigos, amigas e a simesma. De algum modo, seria como se a criança tivesse sido "batizada" de uma outra maneira, ficando finalmente liberta do que a submetia, degradava, frustrava, alcançando assim a purificação pelo acesso à verdade do sujeito e a salvação da espécie humana; quando o que esse discurso fazia era aprisionar as crianças em um tipo de "insularidade sexual" (Foucault, 1990f, p.235), onde crescia a necessidade de dominar a si próprias, pelo domínio da emergência histórica de sua sexualidade.

H I S T ó R I A S DE GDVERNO; CRIANçAS E CIA.

SEXUALIZAR

A

PEDAGOGIA.

2 7

MORALIZAR

a

5

SEXO

Feito um deus-pedagógico, com palavras similares àquelas com as quais Deus, no Gênesis, anunciara a criação da mulher - "E o Senhor Deus disse: 'Não é bom que o homem esteja só. Vou-lhe dar uma auxiliar que lhe corresponda'" (Bíblia, 1982, p. 30) -, Rousseau (1992, p. 423-581) inicia o Livro Quinto do Emílio ou da educação, dizendo: "Não é bom que o homem fique só. Emílio é homem e nós lhe prometemos uma companheira. É preciso dar-lha". Na página que abrira o Livro Quarto (ib., p. 233-422), havia chegado o momento de dispor o problema da educação sexual de Emílio. Este momento, requerido pela Natureza, é, para Rousseau, o de um segundo nascimento: "Nascemos, por assim dizer, em duas vezes: uma para existirmos, outra para vivermos; uma para a espécie, outra para o sexo". Antes desse nascimento, "o pequeno-homem" é, de certa forma, assexuado: "Até a idade núbil, as crianças dos dois sexos nada têm de aparente que as distinga; mesmo rosto, mesmo porte, mesma tez, mesma voz, tudo é igual; as meninas são crianças, os meninos são crianças; a mesma palavra basta para seres tão semelhantes" (ib., 1992, p. 233). Essa palavra, "criança", teria, desse modo, marcado a posição relativamente nova em sua época, mas que seria adotada por quase todo o século XIX: o lado naturalmente assexuado da criança; embora fosse aí, nessa "ausência de sexo", que a sexualidade infantil se constituía. Como veremos, o Livro Quinto, consagrado à educação das meninas, contradiz em parte a posição assexuada da infância, ao estabelecer a necessidade de sexualizar a pedagogia, pela via da moralização "do sexo" - que é o modo como Rousseau refere-se às mulheres.

Z 7 S

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

No início do Emílio, Rousseau afirma que a educação da criança começa desde o seu nascimento - "antes de falar, antes de compreender", já ela se educa -; e esta educação consiste em assujeitar a criança de todas as maneiras possíveis: todos os nossos costumes não passam de "sujeição, embaraço e constrangimento" (ib., 1992, p. 17). O homem civil nasce, vive e morre na escravidão: ao nascer, envolvemno em faixas; ao morrer, encerram-no em um caixão. Sem a educação, as crianças não seriam nada. Propõe que imaginemos que uma criança ao nascer tivesse a estatura e a força de um homem feito: este "homem-criança seria um perfeito imbecil, um autômato, uma estátua imóvel e quase insensível"; não veria nada, não compreenderia nada, não conheceria ninguém, "não saberia voltar os olhos para o que tivesse necessidade de ver". Tal homem não perceberia nenhum objeto fora de si, nem levaria nenhum ao órgão do sentido para percebê-lo: as cores não estariam nos seus olhos; os sons não estariam nos seus ouvidos; os corpos que tocasse não estariam no seu, nem saberia que tem um corpo; o contato de suas mãos não estaria no seu cérebro; todas as sensações se reuniriam em um só ponto, no sensorium comum. Ele teria uma só idéia: a do "eu" a que atribuiria todas as sensações; e essa idéia e sentimento seriam as únicas coisas que teria a mais do que "uma criança comum". Ele não saberia erguer-se sobre os próprios pés, talvez nem mesmo o tentasse: "verieis esse grande corpo forte e robusto não sair do lugar como uma pedra ou arrastar-se rastejando como um cachorrinho". O homem-criança sentiria o incômodo das necessidades, mas não imaginaria um meio de atendê-las. Não existe nenhuma comunicação imediata dos músculos do estômago com os dos braços e pernas e mesmo que estivesse cercado de alimentos, o homem-criança não daria um passo sequer para pegá-los: "morreria de fome antes de se mexer, a fim de procurar sua subsistência" (ib., p. 41).

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

2 7 7

O abade de Saint-Pierre chamava os homens de "crianças-grandes" e, diz Rousseau, poder-se-ia, reciprocamente, chamar às crianças "pequenos-homens". Quando Hobbes dizia de um homem mau que era uma "criança robusta", afirmava uma coisa contraditória: toda maldade vem da fraqueza, "a criança só é má porque é fraca"; mas, para Rousseau, se a fortalecermos, pela educação, ela será boa, pois, somente "a razão nos ensina a conhecer o bem e o mal". Antes da idade da razão, fazemos o bem e o mal sem o saber, "e não há moralidade em nossas ações, embora haja por vezes no sentimento das ações de outrem em relação a nós". O sentimento de sua fraqueza torna a criança ávida de perpetrar atos de força e de provar a si mesma seu próprio poder. Mas, se o "Autor da Natureza" dá às crianças esse princípio ativo, ao mesmo tempo, cuida que seja pouco nocivo outorgando-lhes pouca força para que a ele se entreguem. Para manter a educação que lhes damos dentro do "Caminho da Natureza", devemos seguir as seguintes "máximas": l â ) deixar que as crianças empreguem todas as forças que têm, sem abusar delas; 2-) ajudar as crianças a suprir do que carecem, seja em inteligência, em força, em tudo que diz respeito às necessidades físicas; 3~) restringirmo-nos, no auxílio que se lhes dá, ao útil real, sem nada conceder à fantasia ou ao desejo sem razão; 4â) estudar sua linguagem e seus sinais, a fim de que, numa idade em que não sabem dissimular, possamos distinguir em seus desejos o que vem da Natureza do que vem da opinião. O espírito dessas regras concentra-se em "conceder às crianças mais liberdade verdadeira e menos voluntariedade, em deixá-las com que façam mais por si mesmas e exijam menos dos outros" (ib., p. 48-9). O dever dos homens é o de serem humanos: isso em todas as idades, em todas as situações sociais. Pois, que sabedoria haveria fora da humanidade? Para não sacrificar o

2 7 B

HISTORIADA INFÂNCIA SEM FIM

presente da criança a um futuro incerto; para não cumulá-la de cadeias de toda a espécie, fazendo-a miserável a fim de prepará-la para uma pretensa felicidade, da qual não gozará nunca; mesmo sabendo que muitas vozes se erguerão contra ele, Rousseau recomenda: Amai a infância; favorecei seus jogos, seus prazeres, seu amável instinto. Quem de vós não se sentiu saudoso, às vezes, dessa idade em que o riso está sempre nos lábios e a alma sempre em paz? Por que arrancar desses pequenos inocentes o gozo de um tempo tão curto que lhes escapa, de um bem tão precioso de que não podem abusar? Por que encher de amarguras e de dores esses primeiros instantes que a natureza lhes dá; desde o momento em que possam sentir o prazer de serem, fazei com que dele gozem; fazei com que, a qualquer hora que Deus as chame, não morram sem ter gozado a vida (Rousseau, 1992, p. 61). O caráter assexuado das crianças, bem como essa exortação não valem para todas as crianças, como é o caso da menina-mulher Sofia. Emílio é homem e lhe fora prometida uma companheira. Onde se abriga? "Para encontrá-la é preciso conhecê-la", diz Rousseau. Sofia ou a mulher é o título do Livro Quinto. Sofia deve ser mulher como Emílio é homem, isto é, ter tudo o que convém à constituição de sua espécie e de seu sexo "para ocupar seu lugar na ordem física e moral". É preciso examinar as conformidades de seu sexo com o do homem e as diferenças entre ambos. Em tudo o que não se prende ao sexo, a mulher é homem. Tudo o que têm de comum é da espécie, e o que têm de diferente é do sexo. Tais relações e diferenças influem na moral e comprovam a futilidade das discussões acerca da igualdade dos sexos. No que têm de comum, são iguais; no que têm de diferente, não são comparáveis. Na união dos sexos, cada qual concorre para o objetivo comum,

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

2*7 9

mas não da mesma maneira. Dessa diversidade nasce a diferença entre as relações morais de um e de outro. Um deve ser ativo e forte, o outro passivo e fraco: é necessário que um queira e possa, basta que o outro resista um pouco. A mulher é feita especialmente para agradar ao homem. O mérito do homem está na força; se este deve agradar à mulher é necessidade menos direta pela simples razão de ser forte. Isso é lei da Natureza anterior à do amor. Sendo a mulher feita para agradar e ser subjugada, ela deve tornarse agradável ao homem em vez de provocá-lo. Sua violência está nos seus encantos; é por eles que ela deve constranger o homem a encontrar sua força e empregá-la. A arte segura de animar essa força consiste em fazê-la necessária pela resistência. Daí nascem o ataque e a defesa, a ousadia de um sexo e a timidez de outro, a modéstia e o pudor com que a natureza armou o fraco para escravizar o forte. Com tão grande desigualdade na conduta comum, se a reserva não impusesse a um a moderação que a Natureza impõe a outro, ocorreria a ruína de ambos e o gênero humano pereceria. Com a facilidade que as mulheres têm de impressionar os sentidos dos homens, o que seria da espécie se o pudor não as contivesse? O Ser Supremo deu ao homem inclinações sem medida, mas também deu-lhe a lei que as regula, a fim de que seja livre e senhor de si; deu-lhe paixões imoderadas e a razão para governá-las; entregando a mulher a desejos ilimitados, juntou a estes desejos o pudor para contê-los. Além disso, acrescentou uma recompensa ao bom emprego das faculdades da mulher: o gosto que adquirem pelas coisas honestas quando faz delas a regra de suas ações. A Natureza proveu o mais fraco de força suficiente para resistir quando quer aos desejos do mais forte: por isso, queira ou não satisfazê-los a mulher defende-se sempre, mas

ZBO

HISTORIA DA INFÂNCIA SEM FIM

nem sempre com a mesma força e com o mesmo êxito. A conseqüência dessa constituição dos sexos é que o mais forte, aparentemente senhor, depende, na realidade, do mais fraco. Isso decorre de uma lei invariável da Natureza: dando à mulher maior facilidade de excitar os desejos do homem, do que a este de satisfazê-los, faz depender o homem da boa vontade da mulher e o leva a agradar-lhe para conseguir que ela consinta em deixá-lo ser o mais forte. O mais doce para o homem em sua vitória está em duvidar se é a fraqueza que cede à força ou se é a vontade que se rende; a malícia habitual da mulher está em deixar esta dúvida entre ambos. Assim o físico leva inevitavelmente ao moral e da grosseira união dos sexos nascem as doces leis gerais do amor. Quanto à conseqüência do sexo, não há nenhuma paridade: o macho só é macho em certos momentos, a fêmea é fêmea durante a vida toda, ou, ao menos, durante sua mocidade. Tudo leva a mulher a seu sexo e necessita de uma constituição que a prenda a ele: precisa cuidados durante a gravidez; repouso quando do parto; vida fácil e sedentária para amamentar os filhos; paciência e doçura, zelo e afeição para bem os educar. Os deveres dos dois sexos não são nem poderiam ser os mesmos. A desigualdade não é uma instituição humana, e sim da razão: cabe a quem a Natureza encarregou do cuidado dos filhos a responsabilidade disso perante o outro. Todo marido infiel que priva a mulher da única recompensa aos deveres de seu sexo é um homem injusto e bárbaro; mas a mulher infiel vai além, ela dissolve a família e rompe os laços da Natureza. Não basta que a mulher seja fiel e sim que assim seja julgada por seu marido, por seus próximos, por todo mundo; importa que seja modesta, atenta, reservada e que apresente aos olhos de outrem, como aos seus próprios, o testemunho de sua

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

2 3

1

virtude. Cabe às mulheres, pela diferença moral dos sexos, o dever e a conveniência que prescreve especificamente o cuidado mais escrupuloso de sua conduta, de suas maneiras, de sua atitude. Já que o homem e a mulher não são constituídos da mesma maneira, nem de caráter nem de temperamento, segue-se que não devem receber a mesma educação. Seguindo as diretrizes da Natureza, devemos agir de acordo com ela, mas não fazer as mesmas coisas: a finalidade dos trabalhos educativos é o mesmo, mas eles são diferentes e também os gostos que os dirigem. Depois de ter formado Emílio, o homem natural, para não deixar imperfeita sua obra, Rousseau indica como se deve educar também a mulher que convém a este homem. Para isso temos de seguir as características que a natureza atribuiu a cada sexo. As mulheres queixam-se de que os homens as educam para serem fúteis e coquetes, que as divertem com puerilidades para permanecerem os senhores. Primeiro, não são os homens que educam as mulheres. Segundo: que impede as mães de as educarem como lhes agrade? Lamentam que não existam colégios para as meninas, mas, diz Rousseau: "Grande desgraça! Oxalá não os houvesse para os rapazes! Seriam mais sensata e honestamente educados" (Rousseau, 1992, p. 431). Caso se queira educar as mulheres como homens, menos os governarão e então é que eles serão os senhores. A mulher vale mais como mulher e menos como homem; em tudo em que faz valer seus direitos, ela leva vantagem; em tudo em que quer usurpar os dos homens fica abaixo deles. Cultivar nas mulheres as qualidades dos homens e negligenciar as que lhes são peculiares é trabalhar contra as mulheres. Disso deduz-se que devam ser educadas na ignorância de tudo e adstritas às tarefas do lar? Não, assim não o mandou a Natureza, que deu às mulheres um espírito agradável

2 8 2

HISTORIADA INFÂNCIA SEM FIM

e versátil; "ao contrário, a natureza quer que elas pensem, julguem, amem, conheçam, cultivem seu espírito como seu rosto"; são estas as armas que lhes dá para suprir a força de que carecem e para dirigir a dos homens. As mulheres devem aprender muitas coisas, mas as que lhes convém saber. Tanto a destinação particular do sexo da mulher quanto suas inclinações e deveres apontam para a forma de educação que lhe convém. A mulher e o homem são feitos um para o outro, mas sua dependência é diferente: os homens dependem por seus desejos; as mulheres dependem dos homens por seus desejos e necessidades; os homens subsistiriam mais sem as mulheres do que elas sem os homens. Elas dependem dos sentimentos dos homens, do valor que eles dão a seus méritos, da importância que atribuem a seus encantos e virtudes. Pela lei da Natureza, as mulheres, tanto por elas como por seus filhos, estão à mercê do julgamento dos homens: não basta que sejam estimáveis, cumpre que sejam estimadas; não basta que sejam belas, é preciso que agradem; não basta que sejam bem comportadas, é preciso que sejam reconhecidas como tal; sua honra não está apenas na sua conduta, está na

sua reputação, e não é possível que a que consente em passar por infame seja um dia honesta. (...) a mulher, agindo bem, só cumpre metade de sua tarefa, e o que pensam dela lhe importa tanto quanto o que é efetivamente (Rousseau, 1992, p. 432). Segue-se daí que o sistema de educação das mulheres deve ser o contrário do dos homens: se a opinião dos outros é o túmulo da virtude para os homens é o trono entre as mulheres. Toda sua educação deve ser relativa ao homem: serem úteis e agradáveis a eles, honradas, educá-los jovens, cuidar deles quando forem grandes, aconselhá-los, consolálos, tornar-lhes o viver mais doce - "eis os deveres das mulheres em todos os tempos e o que lhes devemos ensinar já

H I S T ó R I A S DE GQVERNO: CRIANçAS E C I A .

2 8 3

na sua infância". Toda mulher quer agradar aos homens, e deve querer isso, embora exista diferença entre querer agradar ao homem de mérito e aqueles "pequenos divertidos que desonram seu sexo e a quem imitam". Nem a natureza nem a razão podem levar a mulher a amar nos homens o que a ela se assemelha, nem é assumindo as maneiras deles que ela deve procurar fazer-se amar. Se o corpo nasce antes da alma a primeira cultura deve ser a do corpo: esta ordem é comum aos dois sexos. Mas o objeío dessa educação é diferente: no menino é o desenvolvimento de suas forças, na menina o da sedução. As mulheres não devem ser robustas como os homens, mas para que eles, que nascem delas, o sejam também. Como as jovens de Esparta, as meninas devem ter jogos ao ar livre, exercícios, muito movimento: para terem filhos fortes. Suas roupas devem ser confortáveis, não aquelas que cortam a mulher em dois como uma vespa. A delicadeza da cintura tem, como o resto, suas proporções, as quais, se ultrapassadas, chocam a vista e fazem a imaginação sofrer. Um seio caído, um ventre saliente, etc. desagradam muito numa pessoa de vinte anos, mas isso não impressiona mais aos trinta. E, como estamos, queiramos ou não, "sempre de acordo com a Natureza, e como o olho do homem não se engana, tais defeitos são menos desagradáveis em qualquer idade que a tola afetação de parecer uma mocinha de quarenta anos". As meninas preferem, para brincar, o que dá na vista e serve de adorno: espelhos, jóias, trapos, sobretudo bonecas. A boneca é o principal divertimento desse sexo: seu gosto é determinado por sua destinação natural. Na boneca, a menina põe seu coquetismo. Eis o primeiro gosto específico: basta segui-lo e regrá-lo. Quase todas as meninas "aprendem com repugnância a ler e a escrever, mas manejar a agulha

2 3 4

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

elas o aprendem sempre de bom grado". Essa deve ser sua primeira lição para que se imaginem grandes e pensem, com prazer, que tais talentos poderão servir um dia para se enfeitarem. Primeiro, a costura, o bordado, a renda, e daí até o desenho. Não para desenhar figuras ou paisagens e sim folhagens, frutas, drapejamentos, tudo o que pode servir para dar um contorno elegante a seus trajes, ou para fazer um cartão de bordado. As mulheres não podem entregar-se a nenhum talento em prejuízo de seus deveres, já que sua vida, embora menos laboriosa, deve ser mais assídua a suas tarefas corriqueiras. As jovens são em geral mais dóceis do que os jovens, mas isso não quer dizer que se deva exigir delas algo cuja utilidade não possam perceber. A inteligência das meninas é mais precoce do que nos meninos, mas, nem por isso, devese sobrecarregá-la com estudos ociosos, cuja utilidade a criança não pode prever. Se não se deve forçar um menino a aprender a ler, com muito mais razão, a menina não deve ser forçada a aprender a ler antes que possa sentir para que serve a leitura. Qual a necessidade de ler muito cedo? Terá ela muito logo um lar a governar? Existem muitas que abusam dessa ciência fatal, mais do que a usam. As meninas deveriam aprender a calcular antes de tudo; pois não existe utilidade mais sensível em todos os tempos, que apresenta maior emprego e dá menos margem a erros. É preciso justificar sempre as tarefas que impusermos às jovens, mas devemos sempre impor-lhes tarefas. A ociosidade e a indolência são os dois defeitos mais perigosos para elas e de que dificilmente se curam após contraí-los. As jovens devem ser vigilantes e laboriosas desde cedo e também contrariadas desde cedo. Essa desgraça, se é que é uma desgraça, é inseparável do sexo das mulheres. Estarão a vida inteira escravizadas a constrangimentos contínuos e

HISTORIAS DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

2 B

5

severos, os do decoro e das conveniências. Devem ser exercitadas a tais constrangimentos, a fim de que não lhes pesem; a dominarem suas fantasias para submetê-las às vontades dos homens. Para isso, devemos ensinar-lhes sobretudo a se dominarem. A existência de uma mulher honesta é um combate perpétuo contra si mesma; "é justo que este sexo partilhe as penas dos males que causam aos homens". Importa impedir que as jovens se aborreçam com suas ocupações e se apaixonem por seus divertimentos. Elas são aduladoras, dissimuladas e sabem muito bem disfarçar; por isso, devem ser estudadas para que se possa julgar os seus verdadeiros sentimentos, não confiando no que dizem. O apego, as atenções, o hábito farão com que a filha ame sua mãe, a menos que esta faça tudo para provocar o ódio. A severidade com que a dirigir, bem-orientada, longe de enfraquecer a afeição, há de aumentá-la, "porque sendo a dependência condição natural das mulheres, as jovens se sentem feitas para obedecer" (Rousseau, 1992, p. 439). Pela mesma razão que têm ou devem ter de gozar de pouca liberdade, elas se excedem na que lhes deixam. Essa paixão deve ser moderada, porque a inconstância, própria das mulheres, faz com que se entusiasmem por um objeto que desprezará amanhã. "Não lhes tireis a alegria, os risos, o ruído, as brincadeiras loucas, mas impedi que se fartem de uns para correr aos outros; não admitais que num só momento da vida elas não conheçam freio". Resulta desse constrangimento habitual uma docilidade de que as mulheres necessitam a vida toda, porque nunca deixarão de estar submetidas ou a um homem ou ao julgamento dos W—Tiens, e não lhes será permitido colocarem-se acima de tais juízos. A primeira e mais importante qualidade de uma mulher é a doçura: "feita para obedecer a um ser tão imperfeito quanto o homem, ela deve desde cedo aprender a sofrer até injustiças e

Z S 6

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

a suportar os erros do marido sem se queixar; não é por ele, é por ela mesma que deve ser doce". Cada qual deve conservar o tom de seu sexo. Que as filhas sejam sempre obedientes, mas que as mães não sejam sempre inexoráveis. Para tornar doce uma jovem cumpre não fazê-la infeliz; para torná-la modesta, cumpre não embrutecê-la. Não se trata de tornar-lhe sua dependência penosa, basta que a sinta. A astúcia é talento natural "do sexo" e portanto deve ser cultivada; trata-se apenas de evitar o abuso. Essa habilidade particular dada "ao sexo" é uma compensação justa da força que tem a menos; sem isso a mulher não seria companheira do homem, seria sua escrava. Em virtude dessa superioridade de talento, ela se mantém igual a ele: governa-o obedecendo-lhe. A mulher tem tudo contra si: sua timidez, sua fraqueza, os defeitos do homem; tem por si unicamente sua arte e sua beleza. A beleza perece; somente o espírito é o verdadeiro recurso "do sexo": o espírito de sua condição de mulher, ou seja, a arte de tirar proveito dos homens e de prevalecer sobre suas vantagens. Essa arte da mulheres é útil aos homens e acrescenta encantos à relação dos dois sexos: "quanto ajuda na repressão à petulância das crianças, quanto contém os maridos brutais; quanto mantém a felicidade nos lares que a discórdia perturbaria sem ela". A mulher pode brilhar pelo adorno, mas só agrada pela pessoa. A jovem realmente bela dispensa os diamantes, os enfeites pretensiosos, as rendas. As mulheres que têm a pele bastante branca para dispensar as rendas provocariam muito despeito nas outras em não as usando. São quase sempre as pessoas feias que inventam as modas a que as demais têm a tolice de se submeter. O verdadeiro cuidado de se apresentar exige pouco toucador. Deve-se dar uma educação de mulher às mulheres, fazendo com que gostem

HISTÓRIAS DE GOVERNO! CRIANÇAS E C I A .

2 B "7

das tarefas de seu sexo, que sejam modestas, que saibam cuidar de seu lar, ocupar-se com sua casa; o rebuscamento então cairá por si mesmo e elas estarão vestidas com bom gosto. Os educadores severos querem que não se ensine canto às jovens, nem dança, nem nenhuma arte agradável. Cumpre atentar para o que convém à idade, tanto quanto ao sexo. O cristianismo exagera os deveres e os torna impraticáveis e vãos. Proibindo às mulheres o canto, a dança e todos os prazeres da sociedade, ele as torna insossas, rabugentas, insuportáveis em seu lar. Perguntam se as jovens devem ter professores ou professoras. Rousseau diz: "Não sei; gostaria que não precisassem nem de uns nem de outras, que aprendessem livremente aquilo por que têm tão grande inclinação em querer aprender e que não víssemos sem cessar deambularem pelas nossas cidades tantos bailarinos enfeitados" (Rousseau, 1992, p.446). Não devemos oferecer-lhes lições, as jovens é que precisam pedi-las. Pela habilidade e os talentos o gosto se forma; pelo gosto o espírito se abre às idéias do belo "e, finalmente, às noções morais com que se relacionam". O sentimento da decência e da honestidade se insinua mais cedo nas jovens do que nos rapazes. O talento de falar ocupa o primeiro lugar na arte de agradar. As mulheres têm a língua fácil, falam mais cedo, mais desembaraçadamente e mais agradavelmente do que os homens. O homem diz o que sabe, a mulher o que agrada; ele, para falar, tem necessidade de conhecimento, ela de gosto; um deve ter por principal objeto as coisas úteis, outra as anr:a laveis. Seus discursos não devem ter formas comuns senão as da verdade. Não cabe refrear a parolagem das jovens como a dos rapazes com esta interrogação dura: "Para que serve isto"? e sim com: "Que efeito terá isto"? As jovens devem ser verdadei-

2 8 8

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

ras sem grosseria. A educação lhes ensina a evitá-la. O homem procura mais servir e a mulher agradar. Segue-se daí que sua cortesia é menos falsa do que a dos homens. Nada custa às jovens serem polidas e o são inclusive umas com as outras. É comum que se beijem e se acariciem com mais graça diante dos homens, orgulhosas por aguçarem o desejo deles pela imagem dos favores que sabem fazer com que os desejem. Devemos proibir às jovens perguntas indiscretas. Porém, sem admitir suas interrogações, é importante que as interroguemos muito, que as façamos conversar, que as aticemos para que falem, para torná-las vivas nas respostas, para desatar-lhes a língua e libertar-lhes o espírito. Tais conversações constituiriam um divertimento delicioso para essa idade e poderiam levar "aos corações inocentes dessas jovens as primeiras e talvez as mais úteis lições de moral que tomariam em sua vida", ensinando-lhes, com a "isca do prazer e da vaidade, a que qualidades os homens dão verdadeiramente sua estima e em que consiste a glória e a felicidade de uma mulher honesta". Como a razão das mulheres é uma razão prática, devese falar o mais cedo possível da religião, pois se fôssemos esperar que estivessem em condições de discutir metodicamente esses problemas profundos, correr-se-ia o risco de nunca falar-lhes deles. A relação social dos sexos é admirável: dessa sociedade resulta uma pessoa moral de que a mulher é o olho e o homem é o braço, mas com tal dependência um do outro, que é com o homem que a mulher aprende o que é preciso ver e com a mulher que o homem aprende o que é preciso fazer. Pelo fato da conduta da mulher se achar submetida à opinião pública, sua crença submete-se à autoridade. Toda jovem deve ter a religião de sua mãe e toda mulher a de seu marido. Ainda que essa religião

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

2 8 9

seja falsa, a docilidade que prende a mãe e a família à ordem da Natureza elimina, junto a Deus, o pecado do erro. Incapacitadas de serem juizes elas próprias, devem receber a decisão dos pais e dos maridos como sendo a da Igreja. Desde que a autoridade deve regular a religião das mulheres, trata-se menos de explicar-lhes as razões de crer que de lhes expor claramente o que se crê. Importa pouco que as jovens saibam logo sua religião, importa que a saibam bem e sobretudo que a amem. Para explicar-lhes artigos de fé, é bom fazê-lo em forma de instrução direta e não por perguntas e respostas. Elas não devem responder senão o que pensam, nunca o que lhes foi ditado. "A que reduziremos as mulheres se não lhes damos por leis senão os preconceitos públicos"? Existe para toda a espécie humana uma regra anterior à opinião: o sentimento interior. A inflexível direção dessa regra devem ater-se todas as outras. O sentimento sem a opinião não dará às mulheres a delicadeza de alma que adorna os bons costumes com a honra da sociedade; a opinião sem o sentimento não fará senão mulheres falsas e desonestas que põem a aparência no lugar da virtude. Importa cultivar uma faculdade que sirva de árbitro entre os dois guias, que não deixe a consciência perder-se e que corrija os erros do preconceito. Essa faculdade é a razão. A razão que leva o homem ao conhecimento de seus deveres não é complexa; a razão que leva a mulher ao conhecimento dos dela é mais simples ainda: a obediência e a fidelidade que deve a seu marido, a ternura e os cuidados que deve a seus filhos. Sujeita ao julgamento dos homens, a mulher deve merecer a estima deles; deve sobretudo alcançar a de seu esposo; não deve apenas fazê-lo amar sua pessoa como fazer com que aprove sua conduta; ela deve justificar perante o público a escolha que ele fez e tornar o marido honrado com a honra outorgada à mulher.

2 9 D

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Procurar verdades abstratas e especulativas, princípios, axiomas nas ciências, tudo o que tende a generalizar as idéias não é da competência das mulheres: seus estudos devem voltar-se para a prática. Cabe às mulheres fazer a aplicação dos princípios que o homem encontrou e cabe a elas fazerem as observações que levam o homem ao estabelecimento de tais princípios. As obras de invenção ultrapassam o alcance das mulheres; elas não têm precisão e atenção para brilhar nas ciências exatas e, quanto aos conhecimentos físicos, cabem a quem dos dois é mais atuante, mais ativo e vê mais objetos; cabem a quem tem força e a exerce mais em julgar as relações dos seres sensíveis e das leis da natureza. A mulher, que é fraca e não vê nada exterior, aprecia e julga os móveis que pode empregar para suprir sua fraqueza e esses móveis são as paixões do homem. Cumpre que a mulher estude a fundo o espírito do homem, e não por abstração o espírito do homem em geral, mas os espíritos dos homens que a cercam, dos homens a que está sujeita, ou pela lei ou pela opinião. E preciso que aprenda a penetrar os sentimentos deles pelos seus discursos, ações, olhares, gestos. Os homens filosofarão mais brilhantemente sobre o coração humano, mas ela verá melhor no coração dos homens. Cabe às mulheres encontrarem "a moral experimental", aos homens, o cuidado de sistematizá-la. A mulher tem mais espírito, o homem mais gênio; a mulher observa, o homem raciocina. O mundo é o livro das mulheres; quando o lêem mal, cabe-lhes a culpa ou alguma paixão as cega. Para gostar da vida doméstica, as jovens precisam conhecê-la e ter sentido sua doçura desde a infância. É somente na casa paterna que se adquire o gosto por sua própria casa e toda mulher que não tenha sido educada por sua mãe não gostará de educar seus filhos. Tudo consiste em

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

2 9

1

conservar ou restabelecer os sentimentos naturais. Não se trata de aborrecer as jovens com longos discursos, nem de declamar secas moralidades. As moralidades para ambos os sexos são a morte da boa educação. Tudo que deve ir ao coração deve sair do coração; expor às jovens seus deveres de modo preciso e fácil, sem carrancas, sem arrogâncias; o catecismo de moral deve ser tão curto e claro quanto o de religião, mas não deve ser tão grave. É preciso mostrar nos próprios deveres a fonte de seus prazeres e o alicerce de seus direitos. Qualquer que seja o século as relações naturais entre os sexos não mudam, a conveniência ou a inconveniência que delas resulta permanece a mesma, os preconceitos só modificam sua aparência. Será sempre belo e grande reinar sobre si mesmo. A castidade deve ser uma virtude deliciosa para uma mulher que tem beleza de alma. Inspirar às jovens o amor aos bons costumes implica fazê-las sentir o valor do bom comportamento e levar a amálo. Pintar o homem de bem, o homem de mérito; ensinar a reconhecê-lo, a amá-lo; provar que amigas, esposas ou amantes, somente esse homem pode torná-la felizes. Mostrar a virtude pela razão; fazer com que sintam que o império de seu sexo e todas as suas vantagens não se prendem somente a seu bom comportamento, a seus costumes, como também aos dos homens. Fazer nascer nelas a ambição de reinarem sobre as almas grandes e fortes: a mulher honesta, amável e circunspecta força os seus a respeitá-la; a que tem reserva e modéstia manda-os, com um simples gesto, ao fim do mundo, ao combate, à guerra, à morte, se quiser. Esse império é belo e vale a pena adquiri-lo. Dentro desse espírito, afirma Rousseau, Sofia foi educada, seguindo seu gosto mais do que o contrariando. Pondo de lado os prodígios, Emílio não é um, nem Sofia tampouco: "Emílio é um homem e Sofia uma mulher; eis

2 9 2

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

toda a sua glória. Na confusão dos sexos que reina entre nós, já é quase um prodígio ser do seu próprio" (Rousseau, 1992, p. 471). Com a inclusão de Sofia no discurso pedagógico, realiza-se a sexualização da Pedagogia, pelo acréscimo de sua duradoura tarefa moralizadora "do sexo" infantil.

S E X U A L I ^ ; :

c »**,sf':v ...

Para^^bfítipfuar seu exercício, o poder moralizador que pedagogiza,. jpfantilizando - e, o que dá no mesmo, o que infantiliza,%jedâgogizando -, pode ser relacionado com outro dos dispositivos estudados por Foucault: o da sexualidade. Para existir um discurso sobre o sexo, que revelasse a verdade do sujeito ocidental e sobre o qual se formulasse uma demanda incessante de verdade foi necessário colocar o sexo no centro de uma petição de saber. Estabelecendo as coordenadas para realizar a história dessa vontade de verdade, dessa obstinação e tenacidade, que, por tantos séculos, íez brilhar o sexo, Foucault diz ser preciso tomar os mecanismos positivos, produtores de saber, e segui-los nas suas condições de surgimento e de funcionamento, além de definir as estratégias de poder imanentes a essa vontade de saber, constituindo sua economia política. Para realizar tal tarefa é necessário dirigir-se menos para uma teoria do que para uma analítica do poder, ou seja, "para uma definição do domínio específico formado pelas relações de poder e a determinação dos instrumentos que permitem analisá-lo" (Foucault, 1993, p. 86; 1990c). Tecendo argumentos que diferenciam a análise histórica pretendida da história das idéias, Foucault indica que vai analisar a formação de um certo tipo de saber sobre o sexo, não em termos de repressão ou de lei, mas em termos de poder, buscando a multiplicidade de correlações de força

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

2 9 3

imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização; descrevendo o jogo que transforma, reforça, inverte as multiplicidades, as forças; evidenciando os apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas, ou, ao contrário, ressaltando as contradições que as isolam entre si; enfim, analisar as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou fixação institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais (Foucault, 1993, p. 88-9). Apresenta então cinco proposições sobre o poder: 1) o poder se exerce a partir de inúmeros pontos e em meio a relações desiguais e móveis; 2) as relações de poder têm um papel diretamente produtor com respeito a outros tipos de relações - processos econômicos, relações de conhecimentos, relações sexuais que lhes são imanentes; 3) o poder vem de baixo, não existindo nem matriz geral, nem oposição binaria e global entre dominadores e dominados; 4) as relações de poder são intencionais e não subjetivas, são atravessadas de fora à fora por um cálculo que visa a uma série de miras e de objetivos; 5) onde há poder há resistência e esta nunca está em posição de exterioridade em relação àquele, sendo o outro termo nas relações de poder (ib., p. 89-92; s.d.b., p. 26-31). Pensar estratégias imanentes à correlação de forças leva Foucault a estabelecer - "preliminarmente", ele escreve - quatro regras, as quais podem ser deslocadas para a problemática específica deste estudo, do seguinte modo: 1) Regra de imanência: se a infantilidade constituiu-se como um domínio a conhecer foi a partir de relações de poder que a instituíram como objeto possível; em troca, se o poder do dispositivo de infantilidade pôde tomar o infantil como alvo, foi porque se tornou possível investir sobre ele

2 9 4

HISTORIADA INFÂNCIA SEM FIM

através de técnicas de saber e de procedimentos discursivos, entre os quais as técnicas e os procedimentos (psico)pedagógicos e psicanalíticos. 2) Regra das variações contínuas: indicar não se os adultos têm o poder ou o direito de saber na ordem da infantilidade, nem se as crianças são privadas dele ou mantidas à força na ignorância, mas, ao contrário, buscar o esquema das modificações que as correlações de força da infantilidade implicam através de seu próprio jogo, por meio das matrizes de transformações constituídas pelas relações de poder-saber de tal dispositivo. 3) Regra do duplo condicionamento: não procurar nenhum foco local de poder do dispositivo de infantilidade - como poderia ser pensado em relação à escola/ Pedagogia ou ao consultório/Psicanálise -, opondo-o a uma injunção de nível macroscópico, já que entre eles não existe nenhuma descontinuidade e também nenhuma homogeneidade, mas pensar em um duplo condicionamento, em uma estratégia global, através da especificidade das táticas de infantilidade possíveis e, destas, aos invólucros estratégicos que a fazem funcionar. 4) Regra da polivalência tática dos discursos: o que se diz sobre o infantil não deve ser analisado como a tela de projeção dos mecanismos de poder, mas reconhecer que o discurso da infantilidade, concebido como uma série de segmentos descontínuos e cuja função tática não é uniforme nem estável: a) articula poder e saber; b) que nele não existem o discurso admitido e o excluído, mas uma multiplicidade de elementos discursivos que podem entrar em estratégias diferentes; c) para que se possa recompor sua distribuição, é necessário atentar para as coisas ditas e ocultas; para as enunciações exigidas e interditas; para o que se supõe de invariantes e de efeitos diferentes se-

HISTÓRIAS DE GOVERND: CRIANÇAS E C I A .

2 9

5

gundo quem fala, sua posição de poder, o contexto institucional, os deslocamentos e as reutilizações das fórmulas idênticas para objetivos opostos; d) assim como o silêncio não é submetido de uma vez por todas ao poder, nem oposto a ele, mas entra em um jogo complexo e instável em que pode ser instrumento e efeito de poder e também obstáculo, ponto de resistência e de partida de uma estratégia discursiva oposta; e) não existe de um lado, como discurso de poder e, diante dele, um outro que se lhe contrapõe, mas podem existir discursos diferentes e até contraditórios dentro da estratégia da infantilização; assim como podem circular sem mudar de forma entre estratégias opostas; e) não cabe perguntar a este discurso sobre o infantil de que teorias implícitas deriva, ou que divisões morais introduz, ou que ideologia representa; e sim interrogá-lo nos níveis de sua produtividade tática que efeitos recíprocos de poder e saber proporciona -, e de sua integração estratégica - que correlação de forças torna necessária sua utilização em tal ou qual episódio dos confrontos produzidos. Ao tomar o modelo estratégico, como sugere Foucault (s.d.c), em vez do modelo de direito jurídico, constituidor da soberania - já que é um dos traços das sociedades ocidentais as correlações de força terem sido investidas na ordem do poder político - , deixa-se de privilegiar as interdições para enfocar o ponto de vista da eficácia tática; abandona-se o privilégio da soberania pela análise de um campo múltiplo e móvel de correlações de força; opta-se pelo ponto de vista do objetivo em vez do da lei, já que naquele se produzem efeitos globais, mas nunca totalmente estáveis de dominação (Foucault, s. d. c , p. 97; p. 191). Posto isso, Foucault distingue, a partir do século XVIII, quatro grandes conjuntos estratégicos que operam dispositivos específicos de saber e poder a respeito do sexo. Como

2 9 6

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

este estudo se permite pensar, todos eles possuem relações com o dispositivo de infantilidade, embora de modos múltiplos; mas todos, sem exceção, integram e implicam, em seus processos, o infantil, tal como produzido pelo dispositivo de infantilidade. A coerência que assumem, a eficácia na ordem do poder e a produtividade na ordem do poder que atingem podem ser descritas pela presença constante do elemento infantil, da infância e das crianças. Vejamos como pode ser feito este exercício de pensamento. No primeiro conjunto estratégico, Histerização do Corpo da Mulher - em que o corpo da mulher foi submetido a análises, pelas práticas médicas, e diagnosticado como sexualmente saturado -, as relações que a partir desse corpo são estabelecidas ocorrem com: 1) o corpo social, cuja fecundidade devia ser regulada; 2) com o espaço familiar, no qual devia ser elemento substancial e funcional; 3) com a vida das crianças que produzia e devia garantir, por meio de uma responsabilidade biológico-moral existente durante o período da educação; dessas relações resulta "a Mãe", com sua imagem em negativo da "Mulher Nervosa", a forma mais visível da histerização das mulheres (Foucault, 1993, p. 99). Sem a infância e as crianças constituídas pelo dispositivo de infantilidade, tal conjunto poderia estrategicamente ter sido definido? No segundo, Pedagogização do Sexo das Crianças, é a própria criança que é definida como ser sexual liminar, ao mesmo tempo, aquém e já no sexo, sobre uma perigosa linha de demarcação: germe sexual precioso e arriscado, perigoso e em perigo, dele deviam encarregar-se continuamente os pais, as famílias, os educadores, os médicos, psiquiatras e, mais tarde, os psicólogos e psicanalistas. Essa pedagogização ampliada manifestou-se na guerra contra o onanismo (cf. Fischer, 1996, p. 92-3), atividade ao mesmo

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

2 9 7

tempo "natural" e "contra a natureza", que trazia consigo perigos físicos e morais, coletivos e individuais (Foucault, 1993, p. 99). Sem as crianças, o sexo infantil - também o sexo dos adolescentes, dos homens, das mulheres, distribuídos por oposição à condição do sexo das crianças - poderia ter sido pedagogizado? O terceiro conjunto estratégico que desenvolveu dispositivos de saber e poder a respeito do sexo, Socialização das Condutas de Procriação, incidiu sobre o quê? Sobre o maior ou menor número de filhos que os casais deviam ou não ter: socialização econômica, através de medidas sociais ou fiscais que incitavam ou freavam a fecundidade dos casais; socialização política, mediante a responsabilização dos casais diante de todo corpo social; socialização médica, pelo valor patogênico atribuído às práticas de controle de nascimentos das crianças, com relação ao indivíduo ou à espécie (ib., p. 100). De quem se trata, mais uma vez, aqui centralmente, senão das crianças? O quarto conjunto, Psiquiatrização do Prazer Perverso, diz respeito à análise clínica de todas as formas de anomalia que podiam afetar o instinto sexual, tendo antes sido devidamente isolado como instinto biológico e psíquico autônomo; a este instinto foi atribuído um papel de normalização e patologização de toda a conduta, buscando-se então tecnologias corretivas para tais anomalias (ib., 1993, p. 100). Neste conjunto estratégico, poderá parecer que as relações entre o dispositivo de sexualidade e o de infantilidade ficam mais difusas; porém, não tardará quase nada - 1905 - para que a Psiquiatria, a Psicanálise e a Psicologia busquem as causas do prazer perverso justo aonde? Na infância dos anormais, dos desviados, dos invertidos; ou seja, no infantil do adulto, patologizado pelo infantilismo de sua sexualidade.

2 9 S

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Nessas estratégias de que se trata? Da própria produção da sexualidade e da infantilidade como dispositivos históricos. A sexualidade seria esta grande rede cuja superfície encontra-se com outra grande rede de superfície, que esta história busca traçar: a da infantilidade. As estratégias de poder e de saber que produzem a sexualidade - estimulação dos corpos, intensificação dos prazeres, incitação ao discurso, formação dos conhecimentos, reforço dos controles e das resistências e seus encadeamentos - teriam, desde este enfoque, sido impossíveis historicamente se já não houvesse emergido e estivesse em funcionamento a infantilidade, produzida pelas seguintes estratégias de poder e de saber: subordinação e assujeitação da identidade infantil, adultização das crianças, pedagogização de seus corpos e almas, sexualização do infantil, e infantilização do sexo. No século XIX, as quatro figuras que se esboçaram como alvos privilegiados de saber do sexo - a mulher histérica, a criança masturbadora, o casal malthusiano e o adulto perverso - não poderiam ser pensados, percorridos e utilizados pelo poder da sexualidade se não viessem sendo pensadas, percorridas e utilizadas pelo poder da infantilidade, estas outras quatro figuras do infantil: o dependente, o adulto, o educado, o sexuado. Também a história das problematizações éticas, feita a partir das práticas de si, que Foucault vai buscar no comportamento sexual, tal como refletido pela cultura grecoromana, enquanto campo de apreciação e de escolhas morais - feita nos volumes 2 e 3 da História da sexualidade (Foucault, respectivamente 1990b; 1985)- como poderia ter sido realizada sem que já se anunciassem essas figuras infantis? Como analisar o "sujeito de desejo" (cf. Fischer, 1996, p. 78), encontrado na intersecção entre uma arqueologia das problematizações e uma genealogia das práticas de si,

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

2 9 9

sem que as crianças-filhos/as estivessem em jogo, por exemplo, na Econômica d'A sabedoria do casamento, e mesmo na Erótica das relações com os rapazes (Foucault, 1990b, respectivamente p. 127-36; p. 165-98)? Como problematizar as formas de relação consigo e analisar os procedimentos e técnicas, os exercícios pelos quais o sujeito se deu como objeto a conhecer, as práticas de si que permitiram transformar seu modo de ser, sem ter as crianças - ao menos como sombra chinesa - atuando nas relações de conjugalidade, cujas mudanças serviam para definir um modo de existência? Operando n ' 0 papel matrimonial, na prática e n'Os prazeres do casamento? Na arte da maternidade e da paternidade, partes integrantes da cultura de si? No amor pelos rapazes que entra em debate com o amor pelas mulheres? N'A mulher (Foucault, 1985, respectivamente p. 7987; p. 177-92; p. 187-224; p. 147-76), nas artes de se conduzir no casamento e na estilística do vínculo individual implicada pelos cuidados com a casa e sua gestão, pelos nascimentos e a procriação dos/as filhos/as? Nas relações entre a atividade sexual e a morte, a procriação e o desaparecimento da espécie ou a imortalidade, ao deixar "os filhos dos filhos" (Foucault, 1990b, p. 121)? Como não encontrar - se essa história pudesse aqui ser escrita - a criança, desde a Antigüidade, como um dos elementos especulativos do jogo que articula o sexo, a morte e a vida como obra que sobreviverá à existência passageira do humano moderno? Pode-se pensar que o poder que infantiliza é correlato àquele mesmo que sexualiza e que se a infância não fosse um dos pontos de fixação do exercício do poder que sexualiza, ela talvez não se efetivasse enquanto tal; ou seja, como este apoio encontrado pelas correlações de força do dispositivo de sexualidade. E que se o sexo não fosse um dos pontos de fixação do exercício do poder que infantiliza, ele talvez não

3 D O

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

se efetivasse como tal; ou seja, como o apoio encontrado pelas correlações de força do dispositivo de infantilidade. No sentido que essas relações criam, este estudo terá terminado de enunciar o quarto conjunto estratégico do dispositivo de infantilidade, qual seja, exatamente este: a sexualização do infantil e seu correlato, a infantilização do sexo. Conjunto que, entrecruzado com a pedagogização do infantil e a infantilização da pedagogia, constitui a segunda ruptura da história da infantilidade, sua mais-valia, cuja materialidade pode ser dita e vista em espelho.

NOS

ESPELHOS

DD

G R A N D E - D LITRO

A ética da Modernidade radica na exclusão da alteridade (cf. Abraham, 1989, p. 105-32), obcecada como foi pelo tema do Duplo. Sua maior tarefa consistiu em modificar o humano: o homem e a mulher que vivem, trabalham e falam; e, com mais motivos, seus infantis. A forma desta ética foi, logo de entrada, e na sua própria espessura, um certo modo de ação. Desde então não houve moral possível, porque a partir do século XIX, o pensamento já não é teoria; assim que pensa, fere ou reconcilia, aproxima ou afasta, mas não pode coibir-se de libertar e de subjugar aqueles que surgiram em uma vida que lhes era dada, foram instrumentos de uma produção que os antecedeu, e veículos para palavras que tinham uma existência prévia. Antes de prescrever, de traçar um futuro, de dizer o que se deve fazer, de exortar ou apenas de alertar, o pensamento moderno, somente por existir, é em si uma ação, um ato perigoso (cf. Foucault, 1968, p. 426-7).

HISTÓRIAS DE GOVERNO: CRIANÇAS E CIA.

3 D 1

No que foi pensado por esse pensamento, dentro do quadro da finitude desenhado por Foucault, pode-se inventar a figura de um grande-outro: o "Sujeito- Verdadeiro", cuja existência é postulada para fundar o endereçamento de cada indivíduo temporal. Ele é quem nos sabe e nos governa até a minúcia. Em tal época histórica, os saberes humanos dedicaram-se à previsão das condutas e os poderes à adaptação destas à Norma. O fundamental era a possibilidade de constituição e fabricação do "pequeno-outro", de todos os pequenos-outros. A maleabilidade de suas subjetividades é, por isto, infinita. Necessário e possível formar o homem e a mulher, começa-se por seus Duplos: os outros-infantis. Formação composta de características especulares, cujo reflexo de iguais acontece na busca nunca concluída da Diferença, e que faz imago - na qual os latinos entenderam primeiramente a estátua, a imitação, o retrato do ancestral, e depois o espectro, a aparição - em dois espelhos bem familiares. Um deles, o de Velázquez: aquele de 1656 que "aparece" (cf. Marías, 1995b, p. 15; p. 280) em Las Meninas. Colocado no cerne da representação clássica, este espelho mostrava o que estava representado; mas como um reflexo longínquo, imerso num espaço irreal, estranho a todos os olhares que se voltavam para o outro lado. Sua generosidade talvez fosse simulada; talvez ocultasse tanto ou mais do que manifestava. A função de seu reflexo era a de atrair para o interior do quadro o que lhe era estranho: o olhar que o organizou e aquele para o qual ele se desenrolava. O pintor e o visitante não se alojaram aí; da mesma maneira que aqueles que apareciam no fundo do espelho apenas o fizeram porque encontravam-se fora do quadro, sendo representados. Las Meninas mostrou a lei prévia do jogo especular moderno: a representação tentava representar-se a si mesma, em toda exuberância de seus elementos. Porém, existia

3 D 2

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

um vazio: suas linhas interiores, sobretudo as que vinham do reflexo central, apontavam àquilo que era representado, mas que estava ausente. As linhas que atravessam o quadro são incompletas: falta-lhes uma parte de seu trajeto. Nele ocorreu a desaparição necessária daquele a que a representação se assemelhava e daquele aos olhos do qual ela não passava de semelhança. Lacuna devida à ausência do Rei, diz Foucault, artifício de pintor. Este artifício recobriu e designou um espaço vazio imediato: o do pintor e o do espectador quando compunham ou olhavam o quadro. Estes sujeitos mesmos foram elididos. Liberta da relação de semelhança que a acorrentava, a representação pôde então oferecer-se como pura representação. Com este quadro a Época Clássica interrompeu, na prosa do mundo, as relações de semelhança com o modelo, com o soberano, com o autor, com o espectador, e também com as Meninas, como veremos, substituindo-as pelas relações com o Duplo. Simultaneamente objeto e sujeito da tela, o hóspede deste lugar ambíguo é o espectador cujo olhar o transforma num objeto. Aquele que tece os fios entrecruzados da representação em quadro jamais se encontra lá presente, ao menos antes de terminar o século XVIII. As/Os espectadoras/ es, nós mesmas/os, o nosso corpo, os nossos olhos, estamos a mais nele, e nunca pudemos estar inteiramente presentes. Fomos, certamente, acolhidas/os pelo olhar do pintor, mas, ao mesmo tempo, expulsas/os e substituídas/os pelo modelo, que sempre esteve ali, antes de nós. Os olhos de Velázquez nos colocaram no campo de seu olhar, nos captaram, obrigaram-nos a entrar no quadro, determinando o lugar privilegiado e obrigatório que ali deveríamos ocupar. Fomos feitos visíveis a esses olhos pela mesma luz com que o víamos. No momento em que í?mos ser apreendidas/os, transcritas/os pela sua mão, como num espelho, deste não conseguimos surpreender mais do que o reverso sombrio: seu outro lado.

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

3 D

3

Defronte de nós, na tela, há uma série de quadros suspensos; dentre eles, um brilha com singular fulgor: o espelho das Meninas. Sua claridade vem de um espaço que parece interior. Nele, as/os espectadoras/es deveriam mirar-se, ou o pintor, ou as meninas. Mas, ali encontram-se duas silhuetas e uma pesada cortina púrpura. Este espelho é o único, dentre todos os elementos que oferecem representações, que deixa ver aquilo que deve manifestar: nada contesta, nem oculta, nem dissimula. Oferece o encanto do Duplo, que as pinturas afastadas recusam e o jogo de luz no primeiro plano da tela ironiza. De todas as representações, o espelho é a única visível; mas ninguém o olha, ninguém frui de seu espetáculo de espelho desolado no fundo da sala: pequeno retângulo brilhante, a mais pura visibilidade, regime de luz. Ele nada diz do que já foi dito, nada mostra do quadro, embora sua posição seja central: é um espelho que se recusa a refletir o Duplo perfeito. Ele capta o além do quadro, sua face exterior, as personagens que aí estão dispostas. Despreza o que poderia facilmente apreender, atravessa todo campo da representação, restitui visibilidade ao que se encontra fora do alcance do olhar. São os modelos que ele faz brilhar, as figuras que o pintor olha, e que olham, por sua vez, para o pintor. Nesse jogo trata-se de conduzir cada uma destas duas formas da invisibilidade ao lugar da outra, numa sobreposição instável, atirando-as para a extremidade oposta do quadro: para esse pólo que é o de uma profundidade de reflexo no interior de uma profundidade de quadro. E a Infanta faz o quê ali? Por que o i^culo XIX intitulou o quadro deste modo: Las Meninas (cf. Marías, 1995a, p. 248; 1995b, p.13; Emmens, 1995, p. 66; Searle, 1995, p. 103; Brown, 1995, p. 68; Elias, 1995, p. 216-7)? Como é possível articular a criança com o espelho? O conjunto de

3 0 4

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

personagens constitui, conforme a atenção que se presta ao quadro, ou o centro de referência que se escolhe, duas figuras: uma, no cruzamento de duas linhas, que formam um "X", tem em seu centro o olhar de Margarita (Searle, 1995). O rosto da menina está a um terço da altura total do quadro, e uma linha mediana que dividisse a tela ao meio passaria entre seus dois olhos. A outra figura é a de uma vasta curva, em que os seus dois limites são determinados, à esquerda, pelo pintor, e, à direita, pelo cortesão; o recôncavo coincide com o rosto da Princesa. Esta linha desenha uma espécie de concavidade que ao mesmo tempo delimita e projeta, no meio do quadro, o espaço refletido pelo espelho. Existem dois centros: no do X, o movimento é imóvel. Imobiliza-se um espetáculo que seria invisível se as personagens, de súbito, imóveis, não oferecessem como que no interior de uma taça a possibilidade de ver no fundo do espelho o duplo de sua contemplação. No sentido da profundidade, a criança sobrepõe-se ao espelho; no da altura, é o reflexo que se sobrepõe ao seu rosto. A perspectiva torna o espelho e a criança muito próximos; tanto de um como de outra sai uma linha inevitável: a que sai do espelho transpõe toda a espessura representada; e a outra é mais curta, pois parte do olhar da Infanta e apenas atravessa o primeiro plano. Estas linhas sagitais são convergentes, formando um ângulo agudo, e o seu ponto de encontro situa-se diante do quadro, aproximadamente no ponto de onde nós o vemos. Ponto duvidoso, visto que não o vemos; e, no entanto, perfeitamente definido, pois é determinado por essas duas figuras principais, e confirmado por outras linhas adjacentes que nascem do quadro e também saem dele (Foucault, 1968, p. 17-33). Que há ne«te ponto? Que lugar é este? Qual é o espetáculo que aí se oferece? Las Meninas está pintado em perspectiva: é a perspectiva do Rei e da Rainha, e também do

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

3 D

5

espectador e do pintor (cf. Snyder, 1995, p. 135-6; p.146; Stoichita, 1995, p.308-9). Para eles e seu olhar no espelho é que a Infanta mostra o cabelo côr-de-ouro enfeitado de flores e o vestido de festa ataviado de rendas. Aparentemente desprezado, esse olhar ordena o quadro e faz surgir seu centro, simbolicamente soberano. A este olhar adulto soberano, ordenador, distributivo, educador - o olhar da criança e a imagem do espelho estão, no fim das contas, submetidos: a princesa em relação a seus pais pode ser caracterizada como em "situação pedagógica" (Emmens, 1995; Snyder, 1995). Aí reside o tema central da composição, o próprio objeto da pintura, e aquilo mesmo que interessa enfatizar. Quando, ao extinguir-se o discurso clássico em que o ser e a representação encontravam o seu espaço comum, surgindo então "o homem", em sua posição de objeto para um saber e de sujeito que conhecia; quando o soberano foi deslocado e nós, espectadores/as olhados/as, surgimos aí, nesse lugar do Rei e da Rainha, que Las Meninas antecipadamente atribuíram; quando todo o espaço da representação ficou referido ao olhar de carne do humano: com seu ser próprio; com o poder de se atribuir representações; princípio e meio de toda a produção; determinado pelas forças do corpo, do desejo e da linguagem; descobridor da finitude e dos limites que ela lhe impunha; quando tudo isso aconteceu, fraturando a Época Clássica, o espetáculo novo de uma linguagem que não mais alcançava as coisas, deixou um resíduo para ser analisado no âmbito deste estudo: a função das Meninas em seu espelho, ou o espelho das Meninas como função no interior do dispositivo de infantilidade. Ocorre que o pensamento moderno, desde o primeiro passo da analítica da finitude, desviou-se para um certo pensamento do Mesmo, onde a Diferença passou a ser a mes-

3 D 6

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

ma coisa que a Identidade. Nossa modernidade principiou quando o humano começou a existir, antropologizado pelo conhecimento; ou dito de outro modo, quando sua finitude deixou de ser pensada como o negativo de um infinito, e passou a ser pensada numa referência interminável a si mesma: no coração dos conteúdos dados pelo saber finito, como as formas concretas da existência finita do humano. O limiar da Modernidade situa-se no dia em que se constituiu, para este ser, seus Duplos. Pode ser dito que, para não ser nada mais do que um objeto da natureza ou um rosto que se desvanecesse na história, a finitude anunciou-se na positividade de um saber acerca do Infantil, já que sabia que o humano tinha desaparecido, prisioneiro como ficara das leis da Biologia, da Filologia e da Economia Política. Estar na origem, ao modo clássico, era ser vizinho de algo bom, natural, simples. Para o pensamento moderno, a Origem não está no começo, mas se pode ter um vínculo com ela, articular-se com outra coisa. Entre o ser e o humano estabeleceu-se uma fissura: o mundo da vida, da linguagem e do trabalho ocuparam este vazio. Pensado não mais pela metafísica do infinito e sim por estas temporalidades particulares, o humano atribui então seu originário àquele em quem reencontra o começo de si e que, ao mesmo tempo, espanta seu próprio fim. Somente sendo possível nas margens de uma vida que o transcendia, de uma economia que não o pressupunha, e de uma linguagem que ele não gerara e que persistiria para além dele, o humano busca o nível do originário no que estava mais próximo: na delgada superfície de seu Duplo-Infantil. Superfície que ele percorre, descobrindo figuras tão jovens como o seu olhar, pois pertencem a um tempo que não tem as mesmas medidas nem os mesmos fundamentos do que ele; imagem invertida de um espelho; forma complementar e, ao mesmo tempo, necessidade de que seja si-mesmo.

H I S T ó R I A S DE: GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

3 D 7

Na analítica da finitude, o humano é um Duplo: um ser no qual se toma conhecimento do que faz possível todo conhecimento. Neste "par" Empírico-Transcendental, a que se chamou "o homem", o segundo elemento fica dotado de significação infantil, desde quando se passou a analisar o vivido. O infantil assim antropologizado funciona como o mais novo Transcendental do humano, que durará até depois de sua morte. No Duplo formado pelo Cogito-Impensado, o humano dirige seu pensamento ao Impensado infantil e com ele se articula, fazendo-o um seu "gêmeo": um outro, nascido dele e nele; e também a idêntica novidade sexual, numa dualidade irreversível. Se o Impensado pôde ser dito, pelo discurso psicanalítico, como as formas do inconsciente, o infantil é, sem dúvida, dentre elas, enunciado como central: região abissal, sombra projetada no adulto, mancha cega a partir da qual é possível conhecer a estrutura desejante inconsciente. O infantil: elemento insistente desses inesgotáveis duplos que se oferecem ao saber reflexivo do humano moderno; projeção confusa do que ele é na sua verdade; fundo prévio a partir do qual deve unificar a si mesmo e reportar-se à sua verdade; como o louco, o infantil é o reflexo do que o humano ignora de si. De posse dessa significação as/os modernas/os avançam na direção de que o DuploInfantil se faça e prossiga sendo o Mesmo. A historicidade do ser finito deixou delinear-se a necessidade de uma origem que lhe seria a um só tempo interna e estranha: como o vértice virtual de um cone em que todas as diferenças, todas as dispersões, todas as descontinuidades fossem estreitadas até formarem apenas um ponto de identidade, na impalpável figura do MesmoInfantil: a qual teria no entanto o poder de explodir sobre si mesma e de se tornar outra. Na relação do ser do humano com o tempo, sua Identidade foi buscada em algo que era

3 OS

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

outro em relação a si, mas que não deixava de ser ele mesmo, apenas distanciado no tempo, que fora o de sua vida e também o de sua morte. A finitude radical do humano, essa dispersão que o afastava da origem e lhe prometia a distância insuperável do tempo, teve a função de mostrar como o Outro, o Longínquo, era também o Próximo e o Mesmo. O pensamento moderno dirigiu-se para o trabalho de efetuar o Mesmo, sempre a conquistar o seu oposto (Foucault, 1968, p.395-502). E esse Duplo no espelho de Velázquez? Ainda era cedo para que as "meninas" fossem diretamente refletidas em sua imagem. No espelho, estavam sendo representados os soberanos, organizando as Meninas, trocando olhares com elas, que para eles se voltavam, assistindo a seu jogo. No entanto, não esqueçamos que o espelho e a criança ocupavam o mesmo ponto, no centro de todas aquelas representações: era como se assinalasse para a/o "Visitante da Modernidade" que, daí a algum tempo, ela/ele poderia tanto em outra criança como em outro espelho, definitivamente, se mirar. Deverão passar-se quase três séculos para que tal espelho - integrante do fundo de um outro tempo, envolvido por outra moldura de relações de poder-saber, disposto em um campo diferente de visibilidades luminosas e de dizibilidades enunciativas - permita situar aquele antigo visitante em um lugar já não tão ambíguo, e realizar a junção das "meninas", enquanto duplos-infantis do humano moderno, com o Grande-Outro; para aí então, refletindo-as, constituílas em seu novo reino: o espelho de Lacan (cf. 1985a,b; 1986; 1988b,c; 1990; 1992a,b,c; s.d.a.b). Sendo a questão deste espelho formulada em oposição a toda filosofia saída diretamente do Cogito, sua presença desenha-se na disposição singular que aquele Impensado do século XIX

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

3 D 9

assume no XX, em que as palavras e as coisas já se terão, há muito, separado; e cuja ordem, agora disciplinar, disciplinante e disciplinadora, reserva a esses duplos o lugar "dramático" da interiorização do lado de fora, pela reduplicação do Outro e pela repetição do Diferente (cf. Deleuze, 1991, p. 105). O "Estágio do Espelho", como é chamado, unifica a teoria lacaniana do sujeito (Ogilvie, 1988, p. 105); e, nesta, é pensado para a "função do 'Eu'[Je]", como posição simbólica, que se distingue do Eu [Moi], como construção imaginária. No espelho, "a cria do homem" - como Lacan a chama -, "em uma idade em que se encontra por pouco tempo, porém por algum tempo, superada em inteligência instrumental pelo chimpazé", reconhece sua imagem, fixando-a em um aspecto instantâneo. Esta atividade é reveladora, para Lacan, "menos de um dinamismo libidinal que de uma estrutura ontológica do mundo humano". O estágio do espelho é uma "identificação", no sentido dado a esta operação pelo trabalho de análise, qual seja, "a transformação produzida no sujeito quando assume uma imagem". A assunção de sua imagem especular manifesta a matriz simbólica na qual o Eu se precipita numa forma primordial, antes de objetivar-se na dialética da identificação com o Outro, e antes que a linguagem lhe restitua no universal sua função de sujeito. Esta forma deveria designar-se como Eu [Moi]Ideal (cf. Corazza, 1995c; 1996e), pois situa a instância do Eu, desde antes de sua determinação social, em uma linha de ficção. A forma total do corpo é dada ao sujeito como Gestalt, ou seja, em uma exterioridade onde esta forma é mais constituinte do que constituída; mas onde, acima de tudo, "aparece-lhe com uma relevância de estatura que a coagula e sob uma simetria que a inverte, em oposição à turbulência de movimentos com que o sujeito-infantil se experimenta a si mesmo, animando-a" (Lacan, 1990, p. 86).

3 1 D

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Esse espelho é ordenado a partir de uma experiência de identificação fundamental, durante a qual o infans faz a conquista da imagem de seu próprio corpo. A identificação da criança com esta imagem promove a estruturação do Eu, terminando com a vivência psíquica singular designada como "fantasma do corpo esfacelado". Antes de se visualizar neste espelho, a criança não experimenta seu corpo como uma totalidade unificada, mas como alguma coisa dispersa. A experiência fantasmática do corpo esfacelado é realizada nessa "dialética do espelho", cuja função é neutralizar a dispersão angustiante do corpo, favorecendo a unidade do corpo próprio (Lacan, 1990, p.90). Considerado, pela teoria psicanalítica, como um "drama", enquanto estágio, o espelho lacaniano conjura os fantasmas da imagem fragmentada do corpo atribuindo-lhe a forma ortopédica de uma totalidade. Precipitando-se da insuficiência à antecipação, a dialética temporal do espelho projeta na história do sujeito a formação do indivíduo, dando a este a armadura de uma identidade alienante, que vai marcar com a rigidez de sua estrutura, todo o seu desenvolvimento mental e identitário. Ao se olhar neste espeiho, forja-se a formação do Eu, que constitui subjetivamente o pequeno infante e a pequena infanta. A experiência do infans no espelho organiza-se em torno de três tempos, que pontuam a conquista progressiva da imagem de seu corpo. Inicialmente, tudo se passa como se a criança percebesse esta imagem como a de um ser real de quem ela procura aproximar-se ou apreender. Este primeiro tempo testemunha em favor de uma confusão primeira entre si e o outro; confusão confirmada pela relação que a criança tem com seus semelhantes, atestando, que é sobretudo no outro que ela se vivência e se orienta no início: a criança que bate diz ser batida, a que vê a outra cair, chora.

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

3

11

Se esse primeiro momento do espelho torna visível o assujeitamento da criança ao registro do imaginário, o segundo momento constitui uma etapa decisiva no processo identificatório: aqui, a criança descobre que o outro do espelho não é um outro real, mas uma imagem. Não procurando mais apoderar-se da imagem, parece distinguir a imagem do outro do real do outro. O terceiro momento dialetiza os outros dois, porque a criança não somente está segura de que o reflexo do espelho é uma imagem, mas, sobretudo, porque se convence de que não é nada mais que uma imagem, e que é a dela. Reconhecendo-se através desta imagem, a criança recupera a dispersão do corpo esfacelado numa totalidade unificada, que é a representação do corpo próprio. A imagem do corpo é deste modo estruturante para a identidade do sujeito, que através dela realiza sua identificação primordial. Porém, esta conquista da identidade é sustentada pela dimensão imaginária, expressa na condição de que a criança identifica-se a partir de algo virtual - a imagem ótica que não é ela enquanto tal, mas onde ela se reconhece. Não se trata, pois, de nada mais do que um reconhecimento imaginário; e se a fase do espelho simboliza uma espécie de pré-formação do Eu, ela pressupõe em seu princípio constitutivo o destino de alienação deste Eu no imaginário. O re-conhecimento de si a partir da imagem do espelho efetua-se, por razões óticas, a partir de índices exteriores e simetricamente invertidos (cf. Dor, 1989, p. 77-80). A unidade do corpo infantil esboça-se como exterior a si e invertida. A dimensão deste re-conhecimento prefigura, para o sujeito que advém, na conquista de sua identidade, o caráter de sua alienação imaginária, de onde delineia-se o desconhecimento crônico que não cessará de alimentar em relação a si mesmo. Por isto, tal "identidade" é contradito-

3 12

HISTORIADA INFÂNCIA SEM FIM

ria, pois é como se fosse uma identidade reunida, acabada, unificada, resolvida, embora exista como uma identidade imaginária, cuja inteireza fantasia-se de unidade plena. Nessa alienação, o sujeito-infantil "se perde" nas formas identificatórias através das quais imagina estar sendo visto por outros. Psicanaliticamente, continua buscando "A identidade" e construindo biografias que tecem as diferentes partes de seus eus divididos numa unidade porque procura recapturar esse prazer fantasiado de plenitude (Hall, 1997, p.42-3). Diante da própria imagem no espelho, o infantil se "fixa-se" na síntese aí realizada, voltando a dela se ocupar a cada vez que "um espelho" lhe informe: - "Eu te vejo assim", tentando tocar outra e outra vez a imagem idealizada pela designação e pelo desejo alheios. O "júbilo", diz Lacan, desse momento especular é identificado pela criança que se olha e, ao mesmo tempo, voltase para um olhar adulto que autentifique sua descoberta. Olhar e palavra adultas que dizem: - "Sim, tu és Maria, minha filha". Esse olhar imaginário e essa nomeação simbólica incluem a criança na linguagem, na sociedade, na cultura, na diferença sexual, enfim, no registro simbólico. A "mãe" - entendida como uma função, a função-materna, a ser exercida por um/a adulto/a - a instaura em sua identidade particular, lhe dá um lugar, a partir do qual o mundo poderá ser organizado, poderá incluir o real e, ao mesmo tempo, formá-lo. Interessa fixar esse momento em que o adulto, presente no espelho, juntamente com a criança, aponta-a e, neste gesto, também ele se identifica, numa assunção de sua própria identidade, ao indicar a imagem invertida e dizer: - "Tu és ...". O que acontece aí? O problema do Outro, a questão da alteridade. O espelho de Lacan organizaria a diferenciação Eu/não-Eu, sob a forma de discriminação do núcleo

HISTÓRIAS DE GOVERNO! CRIANÇAS E CIA.

3

1 3

aglutinado inicial, mãe-filho/a, necessária à relação Eu-objeto (cf. Lacan, 1986; 1992c; 1993; Millot, 1989; Souza, 1985). Em outra linguagem, diz-se que, existindo um indivíduo denominado a em relação com outro indivíduo denominado a', observa-se a seguinte tendência constante: que a procure o atributo (linha), que define diferencialmente a', de modo a transformar-se à imagem e semelhança do Outro, em cuja relação se achava inscrito, produzindo, à maneira de efeito, uma supressão da diferença. Este efeito possui um caráter ilusório, porque a (o infantil), havendo incorporado um atributo (linha) de seus maiores, termina sentindo-se em tudo igual a eles (a'). No registro imaginário, acontece um efeito de analogia que, no nível simbólico, é legível como o efeito de apropriação de um emblema e, por fim, uma tendência à supressão de uma diferença. Mas, esse "Outro" é um indivíduo ou é um lugar? O Outro tem duas condições: trata-se de um lugar e, neste sentido, é anônimo, importando pouco que indivíduo o ocupa; o que importa é o cumprimento de uma função, a de ser um referente estável - o Sujeito-Verdadeiro. A função é um lugar, a ser preenchido ou ocupado por alguém concreto, no caso, os/as adultos/as. A linguagem é a operação por excelência desse lugar, pelo qual o sujeito será falado, exercitado pela língua. O Outro é um lugar simbólico - como era o lugar do Rei, ou melhor, a função deste lugar no quadro de Velázquez -, e é também um código, enquanto tal, impessoal. Tudo isso concerne à problemática da identificação infantil. A identificação da criança no espelho da Psicanálise converte-a, enquanto se identifica - ou seja, enquanto captura os atributos do Outro -, em um significante para os outros. Para se identificar, é preciso apoiar-se em um duplo movimento: de aceitação e repúdio da falta [da castração,

3 1 4

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

dirá este discurso]. No espelho, a fragmentação corporal não é problemática enquanto a criança ainda não logrou a concreção da unidade de seu corpo. Após esta concreção, é que a percepção de um corpo despedaçado, de uma identidade fragmentada, parecerá terrorífica. O sujeito temerá perder a unidade, uma vez conseguida a distinção - imaginária - Eu/não-Eu. Assim limitado o campo do sujeito, este aceita que o Outro lhe falta, e repudia seu despedaçamento, ancorando-se no que o Outro lhe mostra e diz. Pela identificação, esta operação pela qual um sujeito transforma-se à imagem e semelhança de um objeto, o infantil pareceria traduzir a frase de Freud - Wo es er, soll ich werden (Freud, 1981f) - para: "Onde o Outro era, ali o Eu há de vir". A identificação conduz como resultado à discriminação Eu/não-Eu, e, como efeito desse esboço de discriminação, forma-se o seguinte dualismo (Freud, 1981g): a constituição da identidade exige do infantil a tarefa de metabolizar certos atributos que são registrados como alheios, visto que o ponto de apoio para aquela constituição do Eu está localizado no Outro; o Eu aparece então como uma estrutura álter ou alheia, como uma instância de alteridade instalada no próprio sujeito. O sujeito relaciona-se, deste modo constituído, sob a condição de ser re-conhecido, com quem esteja disposto a reconhecer, antes de tudo, que se trata de "alguém" e, além do mais, de "alguém importante". Por isso, pode-se dizer que o sujeito é sujeito enquanto o Outro o alimenta como tal (cf. Cabas, 1982, p. 169-231): esta afirmação nada mais seria do que a repetição da fórmula lacaniana, segundo a qual "o Inconsciente é o discurso do Outro". O infantil então formula: -"Há um outro que já sabia algo sobre mim que eu só vim a saber agora - que eu sou esta imagem do espelho"; há alguém que pode dizer sobre ele coisas que ele desconhece, ver nele o que ele não vê, saber dele a partir de fora, desejar nele o que ele não sabe o que é, possuir o código para decifrá-lo (cf. Kehl, 1989, p. 412-3).

HISTÓRIAS DE GOVERNO: CRIANÇAS E C I A .

3

1 5

Para a problemática que nos implicou nesses dois espelhos - a mais-valia extraída da identidade infantil -, sublinhemos que tal identidade apenas se forja na captação e na relação de poder-saber com o Grande-Outro. Pois, também em face do espelho de Velázquez, o infantil-humano não é infantil (cf. Alpers, 1995, p.160), nem humano, se o Outro não o alimentar como tal; em outras palavras, se o Rei e a Rainha não estiverem fazendo com que Las Meninas exista pela função de seu lugar, no espelho, vendo como Margarita se pavoneia e como suas damas-de-honra lhe prestam serviços, oferecendo água em uma jarra de barro, e lhe rendem homenagens, fazendo reverência. Constituinte de uma situação pedagógica, tal espelho - "espelho de princesas" reflete mais do que a aparência da infanta, reflete sua "educação" (Snyder, 1995, p.151): o estudo da verdade, da prática e da exibição de ideais. No segundo espelho - "espelho de famílias"? - outras "meninas" [e meninos] se olham, mas elas [eles] apenas continuam se vendo, se re-conhecendo, se identificando e se educando, pelo olhar de outros "reis" e de outras "rainhas": nós, indivíduos modernos, apenas anunciados enquanto espectadores/as, hóspedes, visitantes do quadro de 1656, mas já convidados a entrar e a tomar parte no que ali estava ocorrendo; hoje, integrantes do quadro, a ocupar a mesma função de lugar pedagógico que então era ocupada pelos soberanos. Nesses espelhos [os quais, para simplificar, vimos chamando pelos nomes próprios de "Velázquez" e "Lacan"], a parelha - constituída, no primeiro, pelo pai e pela mãe reais; e, no segundo, preferencialmente, pela mãe não mais real, mas, nos dois casos, função de parelha-adulta-parental - é, para as crianças e para os "quadros" correspondentes, sua raison d'être. Vistas pelo olhar dos outros, as crianças vêem-se a si mesmas do modo como os outros as vêem: em

3 16

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

ambos os espelhos o espelho do infantil é o próprio olhar adulto. A capacidade de ver-se através dos olhos dos outros, e também o desejo de ver-se desta forma (Elias, 1995), implica em que, em ambos espelhos, onde o infantil é mirado e somente pode mirar-se no e pelo olhar do Outro, a pluralidade infantil assuma a forma de uma unidade cultural, com determinados matizes ilusórios e visuais. Para a consecução desta unidade há duas exigências: a exigência "Um", onde reside a exigência de ser um, de ser único: ideal de máxima perfeição, de plenitude, de onipotência - que, para a Psicanálise, assume a forma material do "falo", este objeto imaginário suscetível de preencher a falta do outro; exigência "Dois": como nenhum sujeito se constitui senão mediante um referente, o paradoxo se lhe apresenta à medida que todo referente é bifrontal; se o infantil quer ser único, deve ocupar simultaneamente dois lugares: ser ele mesmo, e ser o Outro - para Freud e Lacan, na problemática fálica: ser aquele que interessa à mãe, do qual deriva a exigência de ser ele mesmo e ser seu pai. Por esta exigência "a dois", instala-se a clivagem fading, eclipse, desdobramento, Spaltung, a refenda do sujeito - que alicerça o fenômeno do Duplo. À criança o Outro indica que ocupe uma dualidade de lugares, por apresentarlhe a exigência de ser uma criança; ao mesmo tempo que a olha e faz com que olhe para o Grande-Outro, para que respeite e siga o seu modelo, com ele identificando-se. Em ambos os espelhos, a conquista da identidade infantil é obtida através de uma imagem, vivida como imagem de um outro, assumida como imagem própria. Por ser a partir da imagem deste outro que o infantil acede à sua identidade, ele entra num movimento de subjetivação correlativo em relação ao Outro. Sob a forma do outro especular é que o sujeito percebe igualmente o Outro.

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

3

1 7

Talvez essa possa ser uma descrição dos mecanismos subjetivadores pelos quais nossas crianças, há alguns séculos, vêm sendo convertidas em infantis e em adultas, pelas estratégias da pedagogização e da sexualização: "espelhos da consciência" (Steinberg, 1995, p. 100-1) do sujeito ocidental moderno, podemos chamá-los? Tanto um quanto o outro é um speculum morale, um speculum doctrinale? Se não, vejamos: o sujeito-infantil - educado e sexuado - somente pode dizer "eu" porque o Outro, presente na superfície plana e brilhante do espelho, o interpelou para que se olhasse, chamando-o: - "Ei, você aí!" (cf. Althusser, 1983). Neste movimento de se voltar - o movimento físico de 180 e , na cena teórica de rua de Althusser - , ou, o que resulta no mesmo efeito, no movimento de olhar de frente para a imagem na cena teórica do espelho de Lacan - , quando a mãe aponta e diz - "Tu és ..." -, o indivíduo torna-se "sujeito", apegando-se à própria identidade pelo reconhecimento de si. Em sua primeira relação consigo mesmo, o sujeitoinfantil estabelece-a como uma relação com um outro. O Eu-sujeito aí se "precipita" - como no sentido químico, em que um corpo se deposita por precipitação quando nasce, sólido e insolúvel, numa fase líquida - , não preexistindo a si mesmo. Sendo sempre já sujeitos, antes mesmo de nascer, os infantes e as infantas trazem "o Outro em seu coração"; não podendo ser "alienados", no sentido filosófico do termo, na forma ou na linguagem, já que não existem em nenhum outro lugar, não sendo absolutamente nada. No jogo dos espelhos amarra-se o nó de servidão imaginária de sua identidade, o qual situa a instância do Eu rv na linha de ficção irredutível para este indivíduo "único". Quando o sujeito se procura, encontra-se em alguma coisa radicalmente outra: a forma antecipada daquilo que não é, mas que não tem outra possibilidade senão a de crer que é (cf. Lacan, 1986, p. 96).

3 1 B

HISTÓRIA DA INFÂNCIA BEM FIM

Eu [Je? Moi?) quero girar os dois espelhos: pensá-los não somente desde sua função para o infantil, muito menos, enquanto o Eu-Ideal da Psicanálise; pensá-los não na intrigante "inconveniência" de que ao quadro de Velázquez tenha sido atribuído o nome que recebeu no século XIX; mas pensar a imago infantil, que ambos refletem em sua superfície de aço, desde a função de lugar do Grande-Outro, ocupado pelos/as adultos/as em tais espelhos; inquirir a fascinação dual que sobre eles/as ocupa esse jogo especular; para isto, é preciso convidar a um tipo de leitura invertida do que nesta seção foi escrito acerca da constituição do Euinfantil; para então saber porque é preciso que o Outro se faça majestosamente presente nos espelhos, antes mesmo que lhe nasça o pequeno infantil. Pelo que foi visto e dito neste estudo, na direção de descrever, analisando, as operações históricas feitas pelo dispositivo de infantilidade na sociedade ocidental, pode-se pensar a função de lugar do Grande-Outro nos espelhos dos quais nos ocupamos, a partir da "relação dual" (Lemaire, 1986) que, no visível de seu olhar e no enunciável de suas interpelações, estabelece e mantém com o infantil. Ora, nesses espelhos, aparecem as formas de reduplicação do infantil, em que se materializam e vigoram a anterioridade e a preeminência do Outro sobre o sujeito. A forma de sua representação estrutura um cara-a-cara: o mundo do recíproco, do olhar, nega o espaço e afirma o lugar e o tempo do Outro. O sujeito identifica-se com o outro, de tal forma que fica em dúvida sobre quem é o seu eu, ou o substitui por "um estranho". Há aqui urna duplicação, divisão e intercâmbio de "eus". A perfeita reciprocidade das miradas que ali se cruzam e seu momento máximo de felicidade designa a morte de uma identidade, que não pode ser tal, sem desaparecer antes mesmo de haver nascido: a natimorta.

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

3

1 Ç?

O homem e seus duplos, lembremos, é como Foucault intitula a antropologia da Modernidade. O Duplo, para Foucault, não é uma projeção do interior, mas uma interiorização do lado de fora; não é um desdobramento do Um, mas uma reduplicação do outro; não é uma reprodução do Mesmo, é uma repetição do Diferente (cf. Deleuze, 1991, p. 91). Neste sentido, o espelho que reflete o infantil, reflete também o adulto, e é máscara mortuária, fotografia, eidos ou aparência? Um Duplo não é dois: é um em dois, e dois em um. Possui ingredientes multiplicadores e sua função é só uma: identificar o sujeito. A dupla presença de uma mesmidade traça um labirinto de espelhismos. A morte identitária é dupla nestes espelhos. O Originário, o Impensado, o Transcendental, aparecem sob a forma de um outro, às vezes fraternal e gêmeo, às vezes, inimigo e fraco: imagens invertidas de um espelho, que certamente não é o da Natureza. O Duplo é uma medida de segurança contra a destruição do Eu - tinha dito Freud (cf. 1981f, p. 2494) -, uma enérgica negação da onipotência da morte. Se a alma imortal foi o primeiro duplo de nosso corpo, o Duplo-Infantil, esta dobra inventada pela Modernidade, destina-se primeiramente a conjurar a aniquilação, embora depois inverta seu aspecto, transformando-se em um estranho e sinistro mensageiro da morte. Esta figura do Duplo incorpora-se ao Eu, constituindo um "outro-Eu", o qual vai adquirindo novos conteúdos ulteriormente; mas que, de todo modo, prossegue sendo o fator de repetição daquele outro que encontro em mim, pela instauração da imanência de um Sempre-Outro ou de um Não-Eu. Invenção de reduplicar como defesa contra a extinção; ligações que o Duplo tem com reflexos em espelhos; relação dual entre infantis e adultos: isso começou com uma perda, a de infinito, e prosseguiu com duas mortes, a do humano e

3 2 0

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

a de seus duplos. Nas fronteiras da transcendência e da finitude, constituídas pelo trabalho, pela linguagem e pela vida, antropologizadas pelas Ciências Humanas, uma das identidades que o Grande-Outro fez nascer, nasceu morta. Mas, nela reside uma fonte inesgotável de sua verdade e de seu poder. Na identidade infantil, aquele rosto de areia à beira-mar do humano moderno - com que Foucault encerra As palavras e as coisas - deve se espelhar, para aglutinarse e não desaparecer no movimento das ondas: o infantil seria assim o "sonho" do humano moderno educado e sexuado ainda sonhado no sono antropológico que ainda dormimos. Buscar a verdade histórica do infantil como atividade analítica, usar a ética como tecnologia de investigação, tratar o poder como estratégia, e o saber como prática, autorizam este estudo a, neste ponto, dizer o seguinte: necessitamos de uma infância sem fim para não desaparecer enquanto sujeitos queridos da Modernidade. Na ontologia histórica de nós mesmas/os em relação à verdade, como sujeitos de saber, ainda necessitamos da infância, para nos explicar e nos visualizar como educadas/os e sexuadas/os? Na ontologia relativa a um campo de poder, como sujeitos de ação sobre os outros, necessitamos das crianças, sobre cujas ações agir, para regular nossas ações como sujeitos adultos/ as? Na ontologia histórica de nós mesmos em relação à ética, como sujeitos morais, precisamos nos radicar no infantil para ancorar a imago de todas as possibilidades de nossa existência pedagogizada que não realizamos, e que o imaginário se recusa a abandonar? para armazenar todas as aspirações libertárias de nosso Eu sexuado que não puderam cumprir-se por circunstâncias adversas? para amarrar todas as nossas decisões volitivas cortadas que produziram a ilusão de uma autonomia fraudada?

HISTÓRIAS DE GOVERNO: CRIANÇAS E C I A .

3 2

1

A "infantilidade" é uma expressão negativa, indesejável, uma ofensa no sentido moral, sentimental, cognitivo? Ainda nos irritamos com ela, hoje tanto quanto no século XVII, no mesmo compasso das forças de exasperação do Grande-Outro que impelem a continuidade de produção do infantil? Pois, se ao que é infantil, desprezamos, é porque existe; se existe este modo de ser infantil, é porque nós existimos, enquanto infantis que fomos, e hoje já não somos mais, não queremos e não devemos ser mais; se fomos infantis, a eles nos identificamos para ver realizados os sonhos antropológicos de nossos desejos. Enquanto sujeitos-supostos-adultos somos subjetivados pela infantilidade justo nessa exasperação, pois "O Infantil" confirma a existência do humano: aquele ser da Modernidade, unitário, centrado, que pretendia pensar seu destino apoiado na razão adulta. Aquele mesmo que morreu quando a Modernidade agonizou; agonia que Nietzsche preparara, no interior de sua linguagem, no século XIX, quando matara o homem, feito à imagem e semelhança de Deus, e Deus ao mesmo tempo, assim anunciando o múltiplo e renovado cintilar dos deuses e enterrando a Metafísica (Foucault, 1968, p. 399); cruzada sacrificial encetada pela figura emblemática do Marquês de Sade, modelo do homem moderno sem Deus, condenado a escapar de sua prisão como o sujeito de sua razão, a fim de gozar dos objetos do desejo, destruindo-lhes a presença real, numa abolição soberana de si mesmo; agonia preparada também por Foucault, no século XX, quando deu novo golpe naquele que matara Deus, examinando sua própria morte enquanto homem que pensava, e substituindo as Ciências Humanas pela desantropologização dos saberes. O infantil conjura essas mortes múltiplas. Das operações de poder-saber do dispositivo de infantilidade necessitamos para nos confrontar, não com nossa incompletude, mas com a unificação totalizadora, que anu-

3 2 2

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

laria a eterna diferença. Partidos entre o empírico e o transcendental, o cogito e o impensado, a origem que retorna e que está por chegar, fabricamos o Um-Todo, pleno e desenvolvido, que nega, por sua própria existência, qualquer finitude e limites do Grande-Outro. Assim, podemos usufruir de uma certa felicidade infinita, olhando para nossas "crianças-esperanças" (Lajonquière, 1996, p. 31-6; Criança ..., 1997); as quais, como vimos, encarnam-se também na figura contemporânea da Criança-Desesperança, que mesmo assim funciona para nos incitar à sua salvação, e para que possamos nos identificar com ela. As outras figuras infantis - a "Companhia das Crianças", podemos dizer - , como as mulheres dependentes, as/os negras/os que cantam e dançam, as/os loucos, as/os doentes, as/os regressivos, as/os prisioneiros, os homens que não cresceram, as/os pobres heterônomos, os poetas, as artistas, os/as revolucionários/ as, os/as irreverentes, as/os que brincam, todas estas espécies de infantes-infames, fazem com que o Grande-Outro não tenha dúvida alguma sobre sua própria grandeza, nobreza, dignidade: ele necessita dessas figuras para se constituir e se exercer enquanto Sujeito-Verdadeiro que verdadeiramente é. Este é seu espelho preferencial, onde se mira, para recuperar as forças, formas, linhas, contornos, língua. Os pequenos-outros, tão carentes, subordinados, sexuados, educáveis, moralizáveis, necessitam de sua grande vontade de educar, de psicanalisar, de governar, de sua Biídung, numa palavra; pois não foi ele quem secularizou os mandamentos divinos? não foi ele quem inverteu a imagem, ao fazer a afirmação de si tornar-se a negação do outro? não foi ele quem, afinal, começou por negar o que é diferente, opondo-se àquele que não faz parte dele próprio? E, como disse Nietzsche (1991b,c), não é verdade que diferença engendra ódio?

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA.

3 2

3

Daí, da relação especular dual com os Duplos-Infantis é que o Grande-Outro extrai o valor-de-uso do infantil, o incremento das funções sociais sempre renovadas que determinam o seu valor-de-troca, as forças produtivas pelas quais se desenvolve o caráter social do trabalho do dispositivo que incessantemente deve infantilizar, mesmo que as práticas culturais contemporêneas neguem o infantil e lamentem o fim da infância e chorem a incapacidade que tem nosso aqui-e-agora de infantilizar mais e melhor. É preciso instrumentalizar os corpos infantis para deles extrair sua maisvalia, excedente de valor pelo qual o Outro não paga nenhum equivalente ao pequeno-outro; já que desta identidade depende que, ao se olhar, o Grande se renove, pense ainda que vive, para além de seu fim. E, se este pequeno ainda não é o Idêntico, em todas as suas dobras, tantas vezes buscado, deverá vir a ser, de-vindo como tal. Assim, trata-se de pôr em operação tantos mecanismos e microfísicas de poder, tantas vontades de saber, tantos usos dos prazeres, tantos cuidados de si: é preciso que o pequeno natimorto viva ainda e sempre; embora, pela particularidade de sua força de trabalho viva, lhe seja permanentemente recusada a diferença, a alteridade, a dessemelhança. Seu Eu, afinal, é o Outro, e o Outro só é Outro por ser seu Eu. Toda essa "história da infâmia infantil" é uma história, ao mesmo tempo, nobre e vil, baixa e elevada. Isso porque estes são os elementos genealógicos (cf. Deleuze, s.d., p. 7) desta história da infantilidade; também porque do infantil queremos só "o bem", e dele fazer "um bem", como mercadoria que é. Do corpo deste bem - "benzinho" -, ao qual parecemos ser mais apegadas/os do que ao próprio corpo, nossa economia política extorque coisas enigmáticas, como o lucro de exigir que assim que surja, desapareça, engendrando seu Eu nas bordas e no fluxo de nosso próprio olhar e

3 2 4

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

palavra. Um corpo-Estrangeiro, de qualquer modo, não é possível, já que o corpo-Duplo não desdobra o Um, mas reduplica o Outro; não reproduz o corpo-Mesmo, mas repete o Diferente; não faz emanar o corpo-Eu, mas instaura o de um corpo de um-sempre-outro; não é nunca o corpoOutro que é duplo, mas Eu é que se vê como o corpo-Duplo do Outro. Por isso, o trabalho-a-mais, nosso mais-de-trabalho de subjetivar o infantil; o que quer dizer que este sujeito se constitui, tem lugar num outro sujeito: o Grande-Outro, o Sujeito-Verdadeiro, o Uno: função-lugar de linguagem onde o infantil é antes falado do que falante deste lugar; funçãolugar de visibilidade, cuja luz distribui o infantil e os que o vêem, as trocas adultos-infantis e infantis-infantis e os reflexos dos espelhos. Para o Grande, a mais-valia é o pequenooutro, ou melhor, seu corpo, que é o lugar do Outro. Afinal o infans é um sujeito que não conhece, efetivamente, outra miragem que não a de nossos espelhos, e outra sociedade que não a de nossas interpelações. Quando olhamos nos olhos de uma criança, nos vemos refletidos às avessas, como outrora, quando éramos pequenos-outros, e também vimos nossa imagem refletida nesses espelhos, e nos apontaram, e nos falaram "Tu és ..."; e assim por diante. Até quando? Talvez, até quando as forças do tempo usarem o Múltiplo para afirmar o Uno, o Ser, já que a afirmação múltipla é a maneira pela qual o Uno se afirma. Com efeito, como é que o Múltiplo sairia do Uno, e continuaria saindo, se o Uno justamente não se afirmasse no Múltiplo? O Uno, é o Múltiplo (Deleuze, s.d., p. 37-40; p. 85-8). Com tais operações de mais-valia, no jogo do Múltiplo e do Uno, a resultar em uma-infância-sem-fim, estaria o dispositivo de infantilidade ainda maquinando, para o Grande e os pequenos-outros, a resposta negativa ao problema

H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

3 2

5

nietzscheano, qual seja: a morte de Deus não pressupõe, igualmente, o fim de seus assassinos? Em outras palavras: o fim da metafísica clássica não teria suposto o fim de toda metafísica e, inclusive, daquela que colocou o humano no centro da cultura ocidental a partir do final do século XVIII (cf. Cotesta, 1993, p.36-7)? No caso de tal maquinação poder ser demonstrada, pelos mecanismos da pedagogização e da sexualização, como espero ter feito com o dispositivo dos espelhos - que alicerça o Duplo-Infantil e amarra o nó de sua identidade à sombra de sua justificação, redenção, reconciliação -, haveria ainda: a) algum Pequeno Príncipe (Saint-Exupéry, 1987) a nos aparecer no deserto, vindo de um planeta distante - onde existem dois vulcões, o sol se põe até quarenta e três vezes em um dia, o solo é infestado de sementes de baobá, onde nasceu uma flor com quatro espinhos e com horror das correntes de ar -, e, com uma vozinha estranha, pedir: - "Por favor, desenha-me um carneiro"? b) uma espécie de Gênio Astucioso (Derrida, 1994b) do infantil: diabo manco, situado entre Deus e o humano; anterior ao Cogito, cartesianamente meditante, excluidor da loucura, e também da infância; ameaça perpétua ao acesso à Verdade, obstáculo à Razão; que nunca se deixa surpreender porque aprendeu, com Nietzsche, a fazer filosofia - não como um funcionário que se contenta em inventariar os valores em curso, nem como um juiz de tribunal, um juiz de paz, que vigia simultaneamente a distribuição dos domínios e a repartição dos valores estabelecidos - com dois golpes de um martelo: o da criação e o da alegria, princípios essenciais do ensino de Zaratustra? um Gênio que faz filosofia somente para afligir? c) um audaz cavaleiro andante de nosso presente - um Cavaleiro da Fé -, ao modo do Engenhoso Fidalgo Dom

3 2 6

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Quixote de La Mancha (Cervantes, 1984) que, com seu fiel escudeiro Sancho Pança, recria a natureza das coisas e dos seres sem deteriorar a realidade; indica o caminho da salvação pessoal; pelo humor, sublima as angústias existenciais; levanta-se contra a pobreza e a mesquinhez do homem e da sociedade; eleva os casos da vida infantil à dignidade da epopéia; leva a bom termo tal aventura por nos ensinar a não ir de encontro à ordem da Natureza, de vez que, nesta, cada coisa engendra outra que lhe é semelhante? d) a taumaturgia, dionísiaca, dos Moinhos de Vento que já obteve o efeito de opor a atividade da crítica à vingança, ao rancor e ao ressentimento, conjurando assim essa justa de forças infantis, que já dura tanto tempo e tantas páginas? Tendo analisado como a subjetivação do infantil é transformada em sujeição, pela submissão ao Outro e pelo apego de cada um à sua identidade - isolando os quatro conjuntos estratégicos, que constituem as duas rupturas da história da infantilidade -, esta história da infantilidade somente responderá [?] a essa questão se, em seu final, puder identificar os modos como as figuras do infantil, dela mesma extraídas, encontram-se diagramatizadas nas relações consigo (cf. Foucault, 19911; 1994).

A ÉTICA DA INFANTILIDADE

A ÉTICA DA INFANTILIDADE

3

2 9

Esta história da infantilidade poderia ter-se detido antes; e, de certo modo, o fez. Considera que tudo está jogado desde as primeiras páginas; ou, dito de outro modo: a partir de agora, não fará mais do que repetir sua parada, seu passo já marcado. Mas, a tarefa final é justamente a repetição, isto é, a possibilidade formal (especulativa?) do inteiramente outro. Porém, esse jogo não é óbvio, por certo. Precisa-se de mais de um ângulo que atravessem as páginas e as bordas da história: esta é a razão pela qual ainda se atarefa. Embora, como escreveu Nietzsche, ninguém possa ouvir nas coisas, inclusive nos textos, mais do que já sabe: "Para aquilo a que não se tem acesso pela vivência, não se tem ouvido" (Nietsche, 1991a, p. 383). De qualquer modo, propõe um "retrato" das figuras infantis que apareceram nas páginas anteriores. "Figuras" que não devem ser entendidas no sentido retórico, mas no sentido ginástico ou coreográfico, ou seja, no sentido grego: não como um esquema, mas, de uma maneira mais viva, como o gesto do corpo captado na ação, e não contemplado no repouso, como o corpo dos atletas, dos oradores, das estátuas: aquilo que for possível imobilizar do corpo tensionado do livro. Assim, ele é apressado por suas figuras de infantil: ele se debate num esporte meio louco, desgastandose como o atleta; fraseia como o orador; é captado num desempenho, como uma estátua (cf. Barthes, 1989). A figura é o livro ainda em ação, siderado no momento de sua suspensão, de seu final. As figuras do infantil destacam-se, conforme se possa reconhecer, do discurso que passou. Elas são delimitadas, como os signos, e memoráveis, como as imagens ou os con-

3 3 D

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

tos. Cada uma é estabelecida se pelo menos alguém puder dizer: "Como isto é verdade"! "Reconheço esta cena de linguagem"! "Lembro disto que foi escrito"! Para essa operação de constituir as figuras, não foi preciso nada mais nada menos que este guia: o sentimento de ter chegado ao pontode-basta da história da infantilidade. E então perguntar: por que se fez da infantilidade uma experiência moral? como ocorreu a problematização moral da infância? como o sujeito-infantil, suas condutas, seus desejos, seus cuidados e educação tornaram-se objeto de preocupação moral do Ocidente? As formações culturais de cada época histórica podem ser comparadas com figuras, e também com um conjunto de figuras de caleidoscópio: segundo o corpus analisado e a diagonal traçada para seu estudo tudo muda. A partir de práticas discursivas e não-discursivas conforma-se, no centro do caleidoscópio, uma figura, que não é uma invenção a partir de uma figura anterior, mas que foi objetivada em sua pluralidade pela história da infantilidade. O que interessa, para objetivar cada figura, são as técnicas do eu, as formas de relação moral consigo mesma, a ética da infantilidade e seus jogos de verdade: práticas de si pelas quais o infantil constitui a si mesmo como sujeito moral de suas próprias ações. A pergunta a ser respondida por cada figura-infantil é: "Que sou eu, neste tempo tempo presente da história da infantilidade"?

SER-SI: SUJEITO NA DDBRADURA

Sujeitar(-se). Maneira pela qual os indivíduos são chamados a se constituir como sujeitos de conduta moral, através de: 1) modelos propostos para instauração e desenvolvimento das relações para consigo, reflexão sobre si, conhecimento, exame e decifração de si por si; 2) transformações que procura efetuar sobre si. O continente da ética. Para analisar o que é designado como "o sujeito" - isto é, as formas e as modalidades da relação consigo através das quais o indivíduo se reconhece como sujeito - Foucault (1990b) distingue, nas histórias das morais: 1) os atos, ou condutas que são o comportamento dos indivíduos em relação ao código moral (as prescrições) a eles imposto; 2) o código moral que determina os atos permitidos ou proibidos, bem como o valor positivo ou negativo dos diferentes comportamentos possíveis; 3) as prescrições morais que, na maioria das vezes, não estão isoladas como tal, as quais determinam o tipo de relação que se deve ter consigo; ou, em outras palavras, rapport à soi, que chama de "ética", e que determina a maneira pela qual o indivíduo deve constituir-se a si mesmo como o sujeito moral de suas próprias ações. Para as morais da Antigüidade grega e romana, o elemento dinâmico e forte fica do lado das formas de subjetivação e das práticas de si, cuja ênfase é dada: 1) às formas das

3 3 2

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

relações consigo; 2) aos procedimentos e às técnicas pelas quais são elaboradas as formas de relações consigo; 3) aos exercícios pelos quais o sujeito se dá como objeto a conhecer; 4) às práticas que permitem transformar seu próprio modo de ser. Essas morais "orientadas para a ética" são importantes ao lado das morais "orientadas para o código": entre elas há justaposições, por vezes, rivalidades e conflitos, e, por vezes, composição. A opção de "método" é a seguinte: isolar os elementos de ascese - entendida não como a moral de renúncia, mas como o exercício sobre si mesmo, mediante o qual o indivíduo busca elaborar, transformar e aceder a um certo modo de ser - dos elementos do código de uma moral, não esquecendo sua coexistência, suas relações, sua relativa autonomia, nem suas diferenças de ênfase; então, privilegiar as práticas para o cuidado de si, o interesse que elas podem ter, e o esforço que é feito para desenvolvê-las, aperfeiçoálas, ensiná-las, bem como o debate a seu respeito. "Cuidado de si" é, para o mundo greco-romano, o modo mediante o qual a liberdade individual passa a ser pensada como ética. Realizar a genealogia do "'homem' (sic) do desejo" consiste em historicizar as formas de subjetivação moral e as práticas de si que se destinam a assegurá-las. Isto implica em uma análise do tipo de relação que cada um deve manter consigo mesmo, a qual permite descrever como o indivíduo se constitui a si mesmo como sujeito moral de suas próprias ações. Para analisar a maneira pela qual o comportamento sexual é refletido como campo de escolhas morais, Foucault parte da noção então corrente entre os gregos de "uso dos prazeres" e distingue os modos de subjetivação aos quais ela se refere: substância ética, tipos de sujeição, formas de elaboração de si, e de teleologia moral.

A ÉTICA DA INFANTILIDADE

3 3

3

Forças e pregas. A novidade dos gregos foi que eles inventaram "o sujeito", como uma derivada, como o produto de uma subjetivação. O sujeito é constituído em práticas verdadeiras, ou seja, em práticas historicamente analisáveis. A idéia importante é a de uma dimensão da subjetividade que deriva do poder e do saber, mas que não depende deles. A relação consigo é uma dimensão irredutível às relações de poder e às relações de saber: entra nestas relações, se reintegra nesses sistemas dos quais começaram por derivar (cf. Deleuze, 1991; 1992). Os gregos não apenas inventaram a relação consigo, eles a ligaram, compuseram e desdobraram na sexualidade. Pergunta-se: "Como a relação consigo tem uma ligação eletiva com a sexualidade?" A resposta: "Tal como as relações de poder só se afirmam se efetuando, a relação consigo só se estabelece se efetuando. E é na sexualidade que ela se estabelece e se efetua". O indivíduo interior é diagramatizado, de um modo que a subjetivação do homem livre se transforma em sujeição: 1) por um lado, é a submissão ao outro pelo controle e pela d e p e n d ê n c i a , com todos os p r o c e d i m e n t o s de individualização e de modulação que o poder instaura; 2) por outro, é o apego de cada um à sua própria identidade, mediante a consciência e o conhecimento de si, com todas as técnicas das ciências morais e humanas que formam o saber do sujeito. A subjetivação é a relação consigo que não pára de renascer, em outros lugares e sob outras formas. Tendo a atuação da força dobrada, vergada, afc*'.uido a si mesmo/a, a fórmula mais geral da subjetivação consiste em produzir efeitos sobre si mesmo/a. Como os "quatro rios do Inferno", diz Deleuze, existem quatro dobras, quatro pregas de subjetivação:

3 3 4

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

1) A substância ética, ou a parte material de nós mesmos que vai presa na dobra, a parte visada pelos ditames morais: para os gregos, o corpo e seus prazeres, os aphrodisia; para os cristãos, a carne e seus desejos; para nós, modernos, o desejo, como uma modalidade substancial diferente. 2) O modo de assujeitamento, ou modo pelo qual reconhecemos a força dos ditames morais: esta segunda dobra é a da relação de forças no seu sentido mais exato; é sempre segundo uma regra singular que a relação de forças é vergada para tornar-se relação consigo: certamente não é a mesma coisa quando a regra eficiente é natural, ou divina, ou racional, ou estética. 3) Os procedimentos ascéticos e ensinantes da ética, ou os meios acionados para os controles e as transformações desejadas: é a dobra do saber, ou da verdade, por constituir uma ligação do que é verdadeiro com o nosso ser, e de nosso ser com a verdade, que servirá de condição formal para todo saber, para todo conhecimento: subjetivação do saber que não se faz da mesma maneira entre os gregos e os cristãos, entre Platão, Descartes ou Kant. 4) A quarta constitui a teleologia de todo este processo, ou a dobra do lado de fora, que Blanchot chamou "a inferioridade de espera": é a dobra que define o tipo de indivíduo perseguido nos processos de subjetivação; dela, derivam os ideais normalizadores e norteadores de todos os processos de transformação; dela, o sujeito espera, de diversos modos, a imortalidade, a eternidade, a salvação, a liberdade, a moiLe, o desprendimento. Essas dobras não são reflexos passivos das experiências humanas, mas têm, articuladas aos códigos, uma eficácia constitutiva. São dobras históricas, sujeitas a amplas va-

A éTICA DA INFANTILIDADE

3 3 5

riações e múltiplas combinações, dão-se em ritmos diferentes, e suas variações constituem modos irredutíveis de subjetivação. Elas operam por sob os códigos e regras do saber e do poder, arriscando-se a juntar a eles e se desdobrando, fazendo outras pregas. O Ser-Si é determinado pelo processo de subjetivação, isto é, os locais por onde passa a dobra. As condições do processo de dobradura não variam historicamente, mas variam com a história; por isto, as condições não são apodíticas, mas problemáticas. O que elas apresentam é a maneira através da qual o problema se coloca em tal formação histórica: 1) que posso eu saber? o que posso eu ver e enunciar em tais condições de luz e de linguagem? 2) que posso fazer, a que poder visar e que resistências opor? 3) que posso ser, de que dobras me cercar, ou como me produzir como sujeito? Nestas três questões o "Eu" não designa um sujeito universal, mas um conjunto de posições singulares ocupadas num " Fala-se /Vê-se", "Combatese", "Vive-se". Nós esquecemos os velhos poderes que não se exercem mais, os velhos saberes que não são mais úteis; mas, em matéria moral, não deixamos de depender de velhas crenças, nas quais nem cremos mais, e de nos produzir como sujeitos em velhos modos que não correspondem aos nossos problemas. Tudo se passa como se os modos de subjetivação tivessem vida longa e continuássemos a brincar de gregos, de cristãos ... Saber, política e direito. Não se faz uma história dos sujeitos, mas dos processos de subjetive ' ^ o , sob as dobras que ocorrem em um campo ontológico tanto quanto social. As práticas de si mesmo não são "inventadas" pelo indivíduo: constituem esquemas que ele encontra em sua cultura e que lhe são propostos, sugeridos, impostos por sua cultura,

3 3 6

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

sua sociedade e seu grupo social. Conceber a ética desde o ponto de vista de si mesmo permite um enfoque histórico; enfatizar a ética e não a moral significa formular a questão das práticas formadoras do indivíduo na relação com o saber, com a política e com o direito modernos. Modos de subjetiuação. Uma das grandes lições é que a ontologia é suscetível de uma história. Na imanência de um mesmo e único nível de análise, instituições, poderes e saberes vinculam-se com "formas de reconhecimento", isto é, com um certo tipo de subjetivação. O sujeito não é uma substância: é uma forma, e esta forma não é sempre idêntica a si mesma. Existem relações e interferências entre as diferentes formas de sujeito, mas não estamos diante do mesmo tipo de sujeito. Em cada caso - na relação sexual, institucional, econômica, etc. -, jogamse, estabelecem-se em relação a si mesmo formas de relações diferentes. E precisamente a constituição histórica destas diferentes formas de sujeito, em relação com os jogos de verdade, o que interessa. O sujeito se constitui; ele é efeito de experiências reais que o experimentam, e esta constituição depende de uma forma: a forma que assume no "jogo de verdade" em um momento histórico dado. O conceito de sujeito é um dos efeitos dos procedimentos de verdade pelos quais ele se fez necessário. Há sujeitos porque certo tipo de relação com o si-mesmo foi constituído em uma cultura, e também porque os indivíduos prestam a si uma determinada forma de atenção, reconhecendo-se como sujeitos. As técnicas de si, necessárias para a constituição do sujeito, podem ser encontradas em todas as culturas de formas diferentes. F>çve-se questionar as técnicas de si do mesmo modo como é necessário estudar e comparar as diferentes técnicas de produção de objetos e de direção dos homens

A ÉTICA DA INFANTILIDADE

3 3

7

pelos homens através do governo. É difícil estudar estas técnicas por dois motivos: primeiro, as técnicas de si não exigem o mesmo aparelho material que a produção de objetos e são, portanto, técnicas freqüentemente invisíveis; segundo, são freqüentemente ligadas às técnicas de direção dos outros. As relações existentes entre sujeito e verdade: como o sujeito faz parte de uma determinada interpretação, representação, da verdade? Como o sujeito humano entra nos jogos de verdade? quer sejam jogos de verdade que adotam a forma de uma ciência, ou um modelo científico; quer sejam aqueles que podem ser encontrados em instituições ou em práticas de controle. Como, no interior de uma determinada forma de conhecimento, o sujeito se constituiu em sujeito louco ou são, delinqüente ou não-delinqüente, infantil ou adulto, através de um número determinado de práticas que são jogos de verdade, práticas de poder, etc? E necessário rechaçar qualquer teoria a priori de sujeito para poder realizar esta análise das relações que podem existir entre a constituição do sujeito e os jogos de verdade, as práticas de poder, etc. Foucault, em seus textos, analisou tais relações a partir de práticas coercitivas, como nos sistemas psiquiátrico e penitenciário; a partir de jogos teóricos ou científicos, na análise das riquezas, da linguagem e do ser vivo; e a partir da prática de si mesmo, na prática de autoformação do sujeito. As pesquisas genealógicas visam responder à seguinte questão: "Como constituímos nossa identidade por meio de certas técnicas éticas de si que se desenvolveram desde a Antigüidade até nossos dias"? Os 3 seres. Foucault realizou uma ontologia histórica de nós mesmos/as em relação com: A verdade: interessa a produção histórica da verdade, através da qual nos convertemos em sujeitos de conhecimento - falantes, produtivos/as,

3 3 8

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

viventes -, configurados/as segundo a epistéme de cada época: o Ser-Saber. O poder: imersos em relações de poder através das quais nos convertemos em sujeitos que interatuam com outros sujeitos. Sujeitas/os às relações de poder nos configuramos segundo os dispositivos de forças nos quais estamos inseridas/os. O Ser-Poder, nós sujeitos modernos, surge de práticas individualizantes. A ética: vinculados/as à ética, através das práticas e dos discursos, nos convertemos em sujeitos morais, a partir de certa relação de cada um/a consigo mesmo/a e, em conseqüência, com os/as outros/ as. O indivíduo interior, o Ser-Si, acha-se codificado/a, recodificado/a, num "saber moral" e, acima de tudo, tornase o que está em jogo no poder: é diagramatizado/a. Sujeito moral. O sujeito sujeitado ao/pelo saber e ao/ pelo poder de seu tempo é, por isto mesmo, um sujeito moral.

FIGURAS DE INFANTIL

SOFIA

A mulher. Para Sofia, figura infantil-sexuada da História da Infantilidade, a pergunta ética é a seguinte: "Qual o aspecto, ou a parte de mim mesma, que está relacionado à conduta moral"? Problematização. Qual a substância ética que é presa na parte material da infantil-sexuada, Sofia, e das crianças por esta dobra subjetivadas? Ontologia. A ontologia da infantilidade descreve a maneira pela qual Sofia, tendo em conta sua pertença ao grupo pedagógico de Rousseau, dá forma a si-mesma: a

A ÉTICA DA INFANTILIDADE

3 3

9

matéria-prima de sua conduta moral, surgida do valor moral da sexualidade conjugado com o da educabilidade que ela aceita como tais. A matéria trabalhada pela ética da infantilidade é aquilo que um ser-infantil não pode deixar de ser: a essência sexuada necessária ou a necessidade de ser sexuado; sendo que sua sexualidade consiste no atributo que todo ser-infantil possui e não pode deixar de possuir. O infantil sexualizado é uma das formas de subjetivação do sujeito ocidental moderno; uma instância de poder-saber em que o indivíduo afeta-se a si mesmo; uma forma de relação consigo: com o infantil de seu desejo, com o infantil da sexualidade. A matéria-prima da conduta moral de Sofia - e das subjetivações que a seguirão, a partir do século XVIII - é o infantilismo de sua sexualidade. Substância ética. Sofia, como figura da Ontologia-Infantil, implica-se nos dispositivos da sexualidade e da infantilidade, na Época Moderna, pelos seguintes modos de relação consigo: 1) sujeitada por técnicas de si que sexualizam sua experiência de infância; 2) integrando a scientia sexualis ocidental que promove transformações sobre si; 3) pela atribuição de primazia a seus atos, desejos e prazeres ligados à sexualidade infantil, a qual instaura e desenvolve modelos morais de relações consigo, além de ser significada como forma de acesso à verdade da identidade humana ocidental. Tutti sistemati. Ruptura da História da Infantilidade: mais-valia de uma infância sem fim. Conjunto estratégico: sexualização do infantil. Forma predominante de sujeição: apego do infantil à sua identidade. Técnicas de si: autocontrole; auto-analise; auto-educação; auto-contenção; autovigilância moral; normalização da sexualidade; delação; confissão; exercícios físicos; banhos frios; abdicar do narcisismo e de seus direitos animais; dissipar a amnésia infantil; conscientizar-se e libc-ta?- se da repressão sexual; trabalho

3 4 D

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

intelectual; sublimar o instinto sexual; ser moralmente e psiquicamente sadio; etc. Figura do conjunto estratégico: infantil-sexuado. Figura da Ontologia-Infantil: Sofia. Hermenêutica de si: a infantil-sexuada, Sofia, multiplica os efeitos de verdade acerca do sujeito ocidental a partir de sua própria sexualidade, significando e decifrando tal sujeito como um "sujeito-infantil de desejo".

EMíLIO

O bom selvagem. Emílio, a figura infantil-educada da História da Infantilidade, transmuda-se em figura deliberativa quando se coloca problemas de conduta: diante de tal alternativa, que fazer? como agir? Para esta figura, a pergunta ética é: "Como sou incitado a reconhecer minhas obrigações morais"? Ou, numa variação: "A qual regra me reconheço ligado e como estabeleço relação com ela"? Ou ainda: "A qual lei devo obedecer"? Ou: "Qual o modo de sujeição que faz com que eu seja sujeito"? Probíematização. Qual a maneira pela qual Emílio e os infantis que o seguirão são chamados ou incitados a reconhecer suas obrigações morais? Deontologia. A deontologia da infantilidade indaga sobre qual deve ser o ente-infantil para que seja perfeito. A resposta dada é: o ente-infantil perfeito é o educado; ou então: lugar da infância é na escola. O ente-infantil perfeito é o escolarizado. Educabilidade: modo de sujeição pelo qual Emílio, tendo reconhecida sua infantilidade, deve obedecer às leis da Educação para ser um menino bem-educado: condição sine qua non para que seja feliz como um homem-adulto normal. O infantil é um produto das normalidades de diferentes significações exemplares, espessuras,

A ÉTICA DA INFANTILIDADE

3 4

1

posturas e importâncias; o qual, para ser realizado, deve necessariamente passar por um trabalho infanticida que ultrapasse sua natureza infantil, iniciando-o na "vida séria" das/os cidadãs/cidadãos de bem. Efeito, sobretudo, de um conjunto de regras pedagógicas, que prescrevem os mesmos atos nas mesmas circunstâncias, o infantil-educado incorpora um dos lados do dispositivo ordem-desordem, sagradodemoníaco, racional-irracional, civilizado-bárbaro, humanobestial, familiar-estranho, verdade-erro, adulto-infantil, etc. A moralização infantil é o processo encetado pelo dispositivo da escolaridade, aliado ao de infantilidade, através do qual é constituído na criança um temperamento moral, obtido pela internalização em sua subjetividade do Grande-Outro: interiorizando a voz imperativa de comando do outro maiúsculo, cresce no infantil aquilo que se denomina sua "alma". O infantil deseja a norma do Outro, pois é graças a seu amor e ao seu saber que o/a adulto/a normal realiza plenamente sua identidade e sua verdadeira natureza: a de ser a criatura normalizada do Outro - este Mestre ao qual o sujeito se lhe torna obediente com conhecimento de causa. O Outro só é internamente encarnado se atuante na conduta infantil: manifesta-se como a voz que dita ordens, mandatos, deveres; como o olhar que vigia sua observância; como a mão, a voz e o olhar que punem as transgressões à Norma, os desvios ao metro da moralidade, bem como as desmedidas paixões anti-disciplinares. Modo de sujeição. Emílio, como figura da DeontologiaInfantil, integra o dispositivo da infantilidade, na Época Moderna, pelos seguintes modos de relação consigo: 1) sujeitado por técnicas de si que pedagogizam sua experiência de infância, fazendo-o aprender a obedecer e desejar a normalidade; 2) integrando a scientia educacionalis ocidental que promove transformações sobre si e seu desenvolvimen-

3 4 2

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

to; 3) pela atribuição de primazia a seus atos, desejos e prazeres ligados à sua condição de infantil-educável, a qual somente se realiza no trabalho de educare - trabalho que endireita o que é torto ou malformado do infantil -, de modo que a moralidade se transforme em questão pedagógica. Tutti sistemati. Ruptura da História da Infantilidade: mais-valia de uma infância sem fim. Conjunto estratégico: pedagogização do infantil. Forma predominante de sujeição: apego do infantil à sua identidade. Técnicas de si: auto-disciplinamento; auto-educação; auto-avaliação; autodomínio; auto-regulamento; auto-vigilância moral; auto-normalização de seu infantilismo; delação; confissão; exercícios físicos; abdicar do narcisismo e de sua patologia infantil; controlar as paixões, os caprichos e os apetites; educar-se para racionalizar-se, para conscientizar-se de que o amor do Outro só quer o seu bem, para libertar-se das trevas do erro e da ignorância; trabalho intelectual para sublimar o instinto sexual; amadurecer rapidamente, transfigurando-se de criança em homem/mulher, adultos/as e normais; tratar-se terapeuticamente, quando necessário; obedecer as autoridades; ser o mestre de si mesmo; fortalecer sua fraqueza constitucional; constituir-se como um ser autônomo que conhece seus deveres e as razões de seus deveres; ser moralmente normal e sadio; etc. Figura do conjunto estratégico: infantil-educado. Figura da Deontologia-Infantil: Emílio. Hermenêutica de si: o infantil-educado, Emílio, multiplica os efeitos de verdade acerca do sujeito ocidental a partir de sua própria infância; significando e decifrando tal sujeito como um "sujeito-infantil de pedagogia", o qual deve efetivar sua vida, obras e pensamentos sob o registro de um permanente processo de educação.

A ÉTICA DA INFANTILIDADE

3 4 3

GRACILIAND

O pequeno escolar. Para Graciliano, o infantil-dependente da História da Infantilidade, a pergunta ética é: "Quais são os meios, as práticas, pelos quais posso modificar a mim mesmo para me tornar um sujeito ético"? Ou: " O que devo fazer para ser o sujeito ético que devo ser"? Probíematização. Quais as práticas de si pelas quais Graciliano e os infantis que o precederam e aqueles que o seguirão se elaboram a si mesmos de modo a se comportarem eticamente? Ascética. O trabalho de transformação que o infantil realiza em si mesmo: uma askésis moderna por meio da qual se transforma em sujeito moral de conduta. O infantil decifra sua alma como dependente, e realiza uma hermenêutica de si enquanto identidade subordinada. A ascese realizada pelo infantil aponta e confirma a diferença entre o infantil e a/o adulta/o para, nesta designação, afirmar sua carência e insuficiência: a diferença é assim transformada em desigualdade e, esta, em inferioridade. Os exercícios ascéticos da infantilização são operados nas relações de adultos/as com governantes; filhos/as com pai/mãe; mulheres com homens; negros com brancos; doentes com sãos; loucos/as com normais; inferiores com superiores; menores com maiores; etc. Em sua subalternidade naturalizada, o infantil se re-conhece como objeto de afeto e de conhecimento a ser auto-governado: um pouco ao modo do habitante de um mundo primitivo: semelhante às mulheres, aos loucos e aos poetas: adultas/os infantilizadas/os. Pura negatividade em espelho, o infantil-dependente possui duas faces díspares: uma parte útil, de "animal domesticável", que serve de alavanca ao trabalho pedagógico; a outra parte, "bicho selvagem", a qual cabe manter sob vigilância,

3 4 4

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

transformar em faltas, submeter à punição da sexualidade e da dependência, enquanto produz o remorso e a vergonha por ser o que é. Atitude para si mesmo. Graciliano, como figura da Ascética-Infantil, integra o dispositivo da infantilidade, através dos seguintes modos de relação consigo: 1) sujeitado por técnicas de si que promovem sua experiência de infância como um "ser da falta"; 2) integrando a scientia infantilis ocidental que promove transformações sobre sua natureza maleável, moldável, educável; 3) pela atribuição de primazia a seus atos, desejos e prazeres ligados à sua condição de infantil-dependente: ameaças de um estrangeiro e de um desconhecido que ele próprio e o Outro temem, e cujas forças são deslocadas, corrigidas, e postas a perder pelas práticas culturais. Tutti sistemati. Ruptura da História da Infantilidade: a-vida-a-morte. Conjunto estratégico: subordinação da identidade infantil. Forma predominante de sujeição: submissão ao Outro. Técnicas de si: auto-disciplinamento; autoeducação; auto-avaliação; auto-domínio; auto-regulamento; auto-vigilância moral; auto-normalização de seu infantilismo; delação; confissão; exercícios físicos; abdicar do narcisismo e de sua patologia infantil; controlar as paixões, os caprichos e os apetites; educar-se para racionalizar-se, para conscientizar-se de que o amor do Outro só quer o seu bem, para libertar-se das trevas do erro e da ignorância; trabalho intelectual para sublimar o instinto sexual; amadurecer rapidamente, transfigurando-se de criança em homem/mulher, adultos/as e normais; tratar-se terapeuticamente, quando necessário; obedecer as autoridades; fortalecer sua fraqueza constitucional; constituir-se como um ser autônomo que conhece seus deveres e as razões de seus deveres; ser moralmente normal e sadio; subjetivar-se como o ser carente que

A ÉTICA DA INFANTILIDADE

3 4

5

é; etc. Figura do conjunto estratégico: infantil-dependente. Figura da Ascética-Infantil: Graciliano. Hermenêutica de si: o infantil-dependente, Graciliano, multiplica os efeitos de verdade acerca do sujeito ocidental a partir de sua própria condição infantil a ser erodida; significando e decifrando tal sujeito como um primitivo "sujeito-infantil dependente", a atitude deste infantil para consigo consiste em fazer de sua vida um laborioso processo de transformação da diferença em mesmidade.

EL NINO/ LA

NINA

A-Menina-0-Menino-e-O-Monstro. Para El Nino/La Nina, figura - intrometida por força das significações circulantes neste final de história (cf. Alcântara, 1997; Anomalias..., 1997; Bonalume Neto, 1997; El Nino..., 1997; Os efeitos ..., 1993; Os perigos..., 1997; Rios..., 1997; Sai El..., 1993; Stefanelli, 1997; Tufão..., 1997) - do infantiladulto na História da Infantilidade, a pergunta ética é: "O que quero ser como sujeito moral realizado"? Problematização. Qual é o tipo de ser a que El Nino/ La Nina e os infantis que lhe são contemporâneos aspiram quando se comportam de acordo com a moral? Como se dá a constituição de sua conduta moral que os levam não só a realizar ações de acordo com os valores produzidos pela infantilidade, como também ao modo de ser um infantilmoral? Teleologia. A teleologia tem a ver com a inserção de cada ação no conjunto das condutas infantis. A ação moral do indivíduo-infantil inscreve-se em um código ao qual se refere e em uma conduta, e tende a seu próprio cumprimento, além de realizar a constituição da conduta moral. O

3 4 6

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

infantil tem necessidade de reconhecimento de si: ele é, antes de tudo, relação consigo mesmo; por isto, são imprescindíveis a imagem e as palavras do Outro, que podem ver, saber e dizer o que ele não pode, nem vê, nem sabe de si mesmo. O telos do infantil da infantilidade - seu modo de realização ética, a maneira como se constitui a si mesmo enquanto sujeito moral de suas próprias condutas infantis pode ser dito assim: Dom Quixote desenhou o negativo do mundo da Renascença, e seus devaneios e encantos entraram em nossos conhecimentos do infantil tornados razoáveis. Hoje, quando o saber do Ocidente já não trata das similitudes, mas das entidades e das diferenças, são os "moinhos de vento" do El Nino/La Nina que demarcam, na prosa e nos limites do mundo e na escrita das coisas, a fratura do presente de nossa infantilidade. O "bom infante" acabou. Ele é uma figura de areia entre uma maré vazante e outra montante: é uma composição que só aparece entre duas outras: a de um passado que o ignorava, a de um futuro que não o reconhecerá mais. Los Ninos desenham o negativo do mundo da Modernidade, e seus furores e flagelos entram em nossos conhecimentos do infantil ainda não tornados razoáveis. Realização do sujeito moral. El Nino/La Nina, como figura da Teleologia-Infantil, integra o dispositivo da infantilidade, através dos seguintes modos de relação consigo: 1) sujeitado por técnicas de si que promovem sua experiência de infância como um ser adultizado; 2) integrando as Ciências Humanas e Sociais que promovem transformações sobre sua natureza sexuada, educada, dependente, ameaçadora; 3) pela atribuição de primazia aos atos, desejos e prazeres ligados à sua condição de infantil-adulto: ameaças de um Diferente-Mesmo que ele próprio e o Outro, ao mesmo tempo, temem e amam, porque "promete" ser o GrandeOutro, cujas forças são corrigidas e postas no reto caminho pelos dispositivos de poder-saber adultizadores.

A ÉTICA DA INFANTILIDADE

3

4 7

Tutti sistemati. Ruptura da História da Infantilidade: a-vida-a-morte. Conjunto estratégico: adultização do infantil. Forma predominante de sujeição: submissão ao Outro. Técnicas de si: auto-disciplinamento; auto-educação; autoavaliação; auto-domínio; auto-regulamento; auto-vigilância moral; auto-normalização de seu infantilismo; delação; confissão; exercícios físicos; abdicar do narcisismo e de sua patologia infantil; controlar as paixões, os caprichos e os apetites; educar-se para racionalizar-se, para conscientizar-se de que o amor do Outro só quer o seu bem, para libertar-se das trevas do erro e da ignorância; trabalho intelectual para sublimar o instinto sexual; amadurecer rapidamente, transfigurando-se de criança em homem/mulher, adultos/as e normais; tratar-se terapeuticamente, quando necessário; obedecer as autoridades; ser o mestre de si mesmo; fortalecer sua fraqueza constitucional; constituir-se como um ser autônomo que conhece seus deveres e as razões de seus deveres; ser moralmente normal e sadio; ser o mais rapidamente possível adulto; etc. Figura do conjunto estratégico: infantiladulto. Figura da Teleologia-Infantil: EI Nino/La Nina. Hermenêutica de si: o infantil-adulto, El Nino/La Nina, multiplica os efeitos de verdade acerca do sujeito ocidental a partir de sua conduta infantil efetivada ao modo da conduta adulta. Significando e decifrando tal sujeito como um primitivo sujeito-infantil - sexuado, educável, dependente, e ameaçador, por sua própria natureza -, a atitude deste infantil para consigo mesmo consiste em fazer de sua vida, imagem, palavras, pensamentos, sentimentos, um permanente processo de ruptura de suas quatro forças dobradas sobre si mesmo: a parte material, a relação de forças, a dobra da verdade, e a dobra do lado de fora. Ele quer e trabalha para ser o Outro; espera que, deste modo, leve o indivíduo moderno a um modo de ser em que este atinja a imortalidade, a salvação, a liberdade, a cidadania, o bem-estar, a felicida-

3 4 8

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

de; para que este indivíduo realize assim o sonho de ser subjetivado, em sua submissão ao Outro e no apego à sua identidade, somente por "crianças viris", não infantilizadas, como aquelas de Heráclito e de Nietzsche.

Nós

Para Nós, figuras familiares desta História da Infantilidade, as afirmações e as perguntas escato-teológicas que cabem são as que a seguir vêm dispostas. Em nossa história presente, não desaparece um conceito de infantil, nem um conceito de infância; não se afasta um infantil existente que se ultrapassa em direção a um super-infantil, nem uma infância que se ultrapassa em direção a uma pós-infância. A questão não é a do composto infantil, conceptual ou existente, perceptível e enunciável; a questão é a das forças componentes do infantil e da infância: com quais outras forças se combinam na formação histórica de nosso presente e qual é o composto que delas advém? Pretendendo reconstituir a unidade perdida da infância, estaremos a levar ao extremo uma exegese, um pensamento, as marcas, os signos, a gramática de um infantil que são os dos séculos precedentes? ou estamos antes a dirigir-nos a formas que já são incompatíveis com eles? El Nino/La Nina nada mais consiste do que o novo significante infantil operando no presente. Ao atribuir e ser atribuído dessas significações - selvagem, furioso, cruel, monstro, problemático, assustador, anômalo, etc. -, este "O Menino" [que ainda é dito preferencialmente no masculino] encerra um ciclo de problematizações, iniciado no século XVI com a inocência daquele outro menino-morto; e, ao fazer isto, demarca a condição histórica presente na história

A ÉTICA DA INFANTILIDADE

3 4-9

de nossa infantilidade. Nessa atribuição de sentido ao infantil contemporâneo se pressente o nascimento, menos ainda, o primeiro clarão de um dia que mal se anuncia, mas onde adivinhamos no horizonte a silhueta de um novo sujeito-infantil, cuja dispersão insistimos em negar. Já que Nós não problematiza o que lhe apetece, mas como apetece ao tempo em que problematiza, tais questões acerca do infantil são as que se empenha em problematizar; condição que autoriza Nós a escrever, ao modo de Foucault: a estas questões, é verdade que não sei responder nem, nestas alternativas, qual termo conviria escolher. Não adivinho sequer se poderei jamais responder a elas, ou se um dia terei razões para me determinar a tal. Todavia, sei agora a razão porque pude formular a mim própria essas questões, e que não posso ainda deixar de as formular. "Este perigoso suplemento..." Na Idade Clássica, todas as forças do humano foram referidas a uma força "de representação" que pretendeu extrair o que nele havia de elevável ao infinito; de tal forma que o conjunto das forças compusessem Deus, não o humano, e que o humano só pudesse aparecer entre ordens de infinito. Para que o humano aparecesse como composto específico, foi preciso que suas forças componentes entrassem em relação com novas forças que se esquivassem à da representação e a destituíssem. Na nova formação histórica do século XIX, essas novas forças foram as da finitude, as quais promoveram, por seu conjunto, o humano. As forças do humano entraram então em relação com outras forças, de maneira a compor uma outra coisa ainda, que não será mais ITV ^, nem o homem: dir-se-á que a morte do humano concatena-se com a de Deus para formar novos compostos. O infantil moderno integrou a forma composta deste humano como o suplemento necessário para driblar sua morte. Suplemento que, produzi-

3 5D

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

do apenas marginalmente pela sociedade de soberania efetuando seu diagrama em um grau baixo -, só existiu como dispositivo quando a exposição das relações de forças que constituíam o poder produziu o diagrama disciplinar, fazendo-o ultrapassar o limiar tecnológico. O composto infantil, como suplemento, tem duas funções: 1) Acrescentase, é um excesso, uma plenitude enriquecendo uma outra plenitude, a culminação da presença do ser. Ele cumula e acumula a presença. 2) O suplemento supre. Ele não se acrescenta ao indivíduo ocidental senão para substituir. Intervém e se insinua em-Jugar-de; é como se cumula um vazio. Se ele representa e faz imagem, é pela falta anterior de uma presença. Suplente e vicário, o suplemento infantil é um adjunto, uma instância subalterna que substitui. Enquanto substituto, não se acrescenta simplesmente à positividade de uma presença, não produz nenhum relevo, seu lugar é assinalado na estrutura pela marca de um vazio: o de infinito. Em alguma parte, alguma coisa não se pode preencher de si mesma, não pode efetivar-se, a não ser deixando-se colmar pelo suplemento. O ponto ideal e necessário. A história escrita neste livro mostrou como o dispositivo de infantilidade, a partir dos séculos XVI e XVII, promoveu a idéia de que existia algo mais do que "adultos em miniatura", constituindo alguma coisa que possuía propriedades intrínsecas e leis próprias; esta coisa seria o referente da palavra "infância". A infância surgiu como o ponto ideal, tornado necessário para que se armassem e funcionassem, dentre outros, o dispositivo de infantilidade. Esta "ficção" cumpriu duas funções: 1) configurou certa matriz teórica pela qual o poder organizou a apropriação dos cornos infantis, sua materialidade, suas forças, suas energias, seus prazeres, suas verdades, dando-se como princípio causai e sentido onipresente; 2) configurou

A ÉTICA DA INFANTILIDADE

35 1

uma função mais prática, na medida em que este ponto imaginário, congelado pelo dispositivo de infantilidade, serviu de ponte para que cada um/a de nós encontrasse, como indivíduo, sua própria inteligibilidade, a totalidade de seu corpo, e sua identidade na condição de infantil. A infância. Estudando um dos modos pelo qual um ser humano torna-se um sujeito, esta história escolheu o domínio da infantilidade para descrever a racionalidade específica pela qual o humano é objetivado e aprende a se reconhecer em tal experiência fundamental como um sujeito-infantil. A análise da infantilidade como dispositivo político teria sido paradoxal se não tratasse, por menos que fosse, da infância. Afinal de contas, o poder que se exerce através da infantilidade não se dirige a esse elemento do real que é c h a m a d o de "infância", a infância em geral? Para a infantilidade, a infância é o foco em torno do qual ela distribui seus efeitos. Ora, foi justamente esta idéia da infância em geral que não se pôde receber sem exame. Mostrou-se que a infância não é o ponto de fixação que apoia as manifestações da infantilidade; mas, ao contrário, uma idéia complexa historicamente formada no seio do dispositivo de infantilidade. Descreveu-se de que maneira esta idéia "da infância" se formou através das diferentes estratégias de poder e da função que desempenhou nisso tudo. Registrou-se que foi o dispositivo de infantilidade que, em suas diferentes estratégias, instaurou essa idéia "da infância", e a fez aparecer, sob as quatro grandes formas: da identidade subordinada, do corpo e da alma educados, da adultização das crianças, e da sexualização do infant!1 Problematização. Desde os anos 50 deste século, e, mais recentemente, nos últimos anos deste "fim de milênio", um certo sentimento de calamidade generalizada fazse implicar em sensações de alarme e desassossego social

3 5 Z

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

para enunciar o "fim" de outras "coisas": "o fim da história", "o fim das ideologias", "o fim da família", "o fim da paternidade", "o fim do trabalho", "o fim da filosofia", "o fim do homem", "o fim do equilíbrio ecológico", "o fim do marxismo", etc; e também "o fim da infância". Esses temas escatológicos foram denominados por Derrida (1991), em 1980, como o Apocalipse Moderno, enunciados em tom apocalíptico pelos Clássicos do Fim, os quais formaram o cânon do Pão de Apocalipse. O alarde midiático - ansioso, maníaco e enlutado - dos atuais discursos sobre tais "fins", diz Derrida, parece-se a um tedioso anacronismo; pois já Blanchot tinha escrito, em 1957, O último homem, e, em 1959, O fim da filosofia; Fukuyama (1992), em 1989, escrevera seu primeiro O fim da história, e, em 1990, The end of history and the last man. Perguntar se "o fim" não é somente o fim de um certo conceito é muito fácil. É preciso complicar - porque as coisas estão longe de ser simples - um pouco o esquema de tais diagnósticos, para indagar do "fim" que nos interessou: - Perdeu-se o fim, a finalidade moderna do infantil? sua utilidade? sua função? A forma-infância teria capturado tantas relações de poder por que uma operação de infantilização contínua produziu-se, em nossa formação histórica, na ordem pedagógica, judiciária, econômica, familiar, sexual, visando a uma integração global? Afirma o diagnóstico do fim-de-infância, que o infantil entrou em decadência moral: está desonrado, corrompido, desregrado, pervertido: encontra-se out of joint. A infância não anda bem, vai mal, não funciona, não se passa direito, não anda como deveria andar; é um desastre, um fracasso, uma inadequação. Facilmente desloca-se do infantil moralmente desajustado so injusto. Este é o problema: como justificamos esta passagem do desajuste a uma injustiça que não seria mais ontológica?

A ÉTICA DA INFANTILIDADE

3

5 3

A perversão do infantil que, out of joint, não anda bem ou anda de revés, vemo-la com que facilidade se opõe como o oblíquo, o torcido, o torto, ou o atravessado à retidão, à boa direção do que anda direito, ao espírito do que orienta ou funda o direito e impele diretamente, sem desvios, para a direção certa: um infantil com uma infância sem fim. O dispositivo de infantilidade deveria consertar um tempo de infância - este tempo, estes tempos, por estes tempos, o tempo destes tempos, o tempo deste mundo, um nosso tempo, este mundo de agora, hoje, esta época e nenhuma outra, o presente, o agora, o contemporâneo, este tempo que nos é próprio e comum, o tempo desse Nós que anda de revés; deveria fazer justiça, endireitar as coisas, a história, o mundo, a sociedade, a nova ordem mundial, a época, o tempo, os/as adultos/as, as relações; colocar o infantil do lado direito, no reto caminho, recolocar nos eixos uma infância desconjuntada, a fim de que, em conformidade com as regras de seu justo funcionamento, a infância avance direito, e segundo o direito. A infantilização deve ser forte para consertar o infantil errado, fazê-lo entrar em retidão, corrigir sua direção, reparálo, restituir a infantilidade que lhe pertence, vingá-lo, desforrálo, castigar o mundo, o tempo e o social que dele roubam a infância que é, que deve ser a sua. Tornar a juntar, recolocar na ordem, pôr no lugar, pôr direito, fazer justiça, corrigir a tortuosidade da infância: tarefas das tecnologias de Estado e das práticas de si, das técnicas de governo de si mesmo/a e dos/as outros/as - de toda atividade que requer a conduta da conduta na relação do eu com o próprio eu, e nas relações que supõem formas de controle ou direcionamento -, que reparem os erros deste nosso presente sem infância: tempo desajustado, dis-junto, desarmonioso, em desconcerto, desacordado, demitido, fora de si, desordenado, fora dos eixos, injusto.

3 5 4

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Vive Nós a experiência do fim-da-infância. Para onde vai a infância se tudo continuar como está? Escatológica é a vinda do por-vir do que há-de-vir: a infância-sem-fim. Necessária uma grande conjuração contra o fim-da-infância: nova mobilização para lutar contra ele, contra isto e contra tudo o que este fim representa e continuará a representar. Para o combater, exorcizando-o: atos de jurar juntos/as, portanto de prometer; e também de decidir, de assumir cada um/a e todos/as a responsabilidade de salvar a infância, de comprometer-se com ela de modo performativo. Na realização dessa escatologia messiânica, é necessária uma Santa Aliança, que opere o advento da Terra Prometida de uma infância sem fim. Um dos feitiços - encantação mágica - destinado a evocar, a fazer vir o infantil que não está presente é o A B C. Em nossos dias, de uma infância profanada, é o da Escola, cantado por Pele; nos dias de Rousseau, de uma infância a ser amadurecida, o feitiço é o da educação prescrita como um sistema de suplência destinado a reconstituir o mais naturalmente possível o edifício da Natureza. Nos dois tempos, que são um só, a infância é a primeira manifestação da deficiência que chama a suplência. A Pedagogia esclarece os paradoxos do suplemento: é preciso ajudar os infantis a suprir o que lhes falta, seja em inteligência, seja em força, em tudo o que é necessidade física. Todo o tempo da educação e toda a sua organização são regidos por este mal necessário: suprir o que falta. Esta é a oportunidade da Humanidade. O que será dela se não faltar nada a que suprir? A infância-por-vir, do porvir, e o infantil recuperado em sua sexuação, educabilidade, dependência, modo infantil de ser, são acontecimentos de uma injunção penhorada que prescreve fazer vir isto mesmo, sob a forma de uma presença plena. Promessa infinita e forma determinada: in-

A ÉTICA DA INFANTILIDADE

3

5 5

sustentáveis, quando menos, porque exigem o desrespeito pela singularidade e alteridade do outro. Espera sem horizonte de espera: hospitalidade com todas as restrições devidas, cumprimento sem signo de boas-vindas. Porque, de imediato, deve-se reiniciar os trabalhos de disjunção. Abertura messiânica ao que vem: este "ideal" da infância-sem-fim não é proposto como um ideal regulador infinito e pólo de uma tarefa sem fim: é um acontecimento. Pois, o ideal da infância-sem-fim já teria acontecido, já se teria apresentado em sua forma de ideal, esse acontecimento teria, desde então, desde os tempos modernos, marcado o fim de uma história finita. Esse ideal é, a um só tempo, infinito e finito: infinito porque permanece uma tendência a longo prazo; é contudo finito porque aconteceu já, como ideal, e sua história de infantilidade está, desde então, descontínua. O fim do infantil, como limite antropológico, anunciou-se ao pensamento ocidental depois do fim do humano, como infinidade de seu telos: a infinidade de seu fim. O fim da linearidade "a vida" e ou "a morte", bem como a implicação de nosso trabalho de mais-valia escreveram e desescreveram esse "ideal" de uma infância-sem-fim. Situação escato-teoíógica. Nós, figura humana da Modernidade, pensa o infantil, como se pensa a si mesmo, numa relação de superação. Esta relação marca o fim do infantil, o infantil passado, mas também, de imediato, o cumprimento do infantil, a apropriação da sua essência. A superação ou a ultrapassagem do infantil é, para o humano, o seu telos ou o seu eskhaton. A unidade destes dois fins do infantil, a unidade da sua morte, do seu acabamento, e do seu cumprimento, é envolvida no pensamento, que é grego, do telos, o qual é também discurso sobre o eidos, sobre a ousia e sobre a aletheia.

3 5 6

HISTORIADA INFÂNCIA SEM FIM

Um tal discurso, como em toda a metafísica, coordena indissocialmente a teleologia com uma escatologia, com uma teologia e com uma ontologia do Infantil. O pensamento do fim-da-infância, portanto, está sempre já prescrito na metafísica, no pensamento do fim do humano e da verdade do humano. O que hoje é difícil pensar é um fim-da-infância que não seja organizado por uma dialética da verdade e da negatividade, um fim do infantil que não seja uma teleologia na primeira pessoa do plural. O Nós é a unidade do saber absoluto e da antropologia, de Deus e do Homem, da onto-teo-teleologia e do humanismo. Esta condição assegura a passagem pelo Nós entre a metafísica e o humanismo para falar do fim do infantil. No jogo do telos - como abertura determinada ou infinidade teleológica - e da morte - como limite antropológico factual -, Nós indaga sobre a situação escato-teológica do infantil: o desaparecimento do infantil e da infância, bem como acerca de seu cumprimento, de sua finalidade. No pensamento e na língua do Ser, o fim do infantil estava desde sempre prescrito e essa prescrição não fez mais sempre do que modular o equívoco do fim, no jogo de seu telos e da sua morte. Na leitura deste jogo, pode-se entender em todos os sentidos o seguinte encadeamento: o fim do humano é pensamento do ser-infantil, o humano é o fim do pensamento do ser-infantil, o fim do humano é o fim do pensamento do ser-infantil. O humano é desde sempre o seu próprio fim, isto é, o fim do seu próprio. O ser-infantil é, desde sempre, o seu próprio fim, isto é, o fim do seu próprio. O humano é o que tem relação com o seu fim, no sentido diverso desta palavra. O fim transcendental só pode aparecer e desdobrar-se sob a condição da mortalidade

A ÉTICA DA INFANTILIDADE

3 5

7

imanente, de uma relação com a finitude como origem da idealidade. Os nomes do ser humano e do infantil sempre se inscreveram na metafísica entre estes dois fins. Só têm sentido nessa situação escato-teológica. O vazio benfazejo. Por não poder deixar de formular essas questões, é possível adiantar que a "morte" do infantil talvez seja o contrário da morte; talvez, os gestos que se esboçam para matá-lo liberem finalmente sua linguagem, no exterior de seu mutismo; como o canto das sereias, pode ser que sua sedução consista no vazio que abrem, na imobilidade fascinante que provocam naqueles que as escutam. Imobilidade de pedra em um rosto sem expressão e sem olhos, silêncio em uma boca que é apenas uma linha fina: rosto e boca voltados para um outro que é ele mesmo, e não mais o desenho de um rosto tatuado sobre o próprio rosto. No espelho quebrado. E se El Nino e La Nina estivessem estilhaçando o espelho, a prisão do reflexo? desequilibrando as relações conhecidas? aniquilando-se, dissociandose, desidentificando-se nas brumas de uma infância revisitada? dessubjetivando-se numa experiência-limite, sem funções transcendentais, que os impedem de ser sempre os mesmos, que os desgarram de si, de modo que não constituam mais o sujeito-infantil como tal, que sejam um sujeito-outro de si mesmos? e se estiverem enriquecendo-se de novas e diversas identificações? Se os Ni nos o que fazem é aceitar, revelar e operar a linha de força de outra carência infantil, não mais advinda da perfeição imaginária daquela completude mortal na relação especular com os/as adultos/as? Se estes Ninos estiverem mostrando a miséria do infantil moderno e nos apontando que não basta dar "o pão da infância" às/aos famintas/os, mas que é preciso que deixemos de produzir um mesmo tipo de fome? E que teremos, desta vez, de parar de subir a ladeira do "sempre mais infância", do "sem-

3 5 S

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

pre mais verdade da infância" à qual séculos nos haviam fadado, e inventar de A a Z uma relação e um modo de vida com os infantis, uma cultura e uma ética, ainda sem forma e sem forças definidas. Talvez, se o pintor pudesse hoje pintar outro Las Meninas, na tela, poderíamos vislumbrar a silhueta do Príncipe, fosse ele quem fosse, quem, com seu beijo amoroso de estrangeiro, já esteja revivendo a menina, subtraindo-a da dependência ao olhar e ao código soberanos. Outra aurora de nossas vidas? Será tudo isso o anúncio de uma nova aurora de nossas vidas, da qual não sentiremos tantas saudades assim? Afinal, sabe-se como, no fim do Zaratustra, com a chegada do signo, quando das Zeichen Kommt - Quando o Sinal chega -, Nietzsche (s.d.) distingue, na maior proximidade, numa estranha semelhança e numa última cumplicidade, na véspera da última separação, do grande Meio-Dia, o homem superior {hõherer Mensch) e o super-homem (Übermensch). O primeiro é abandonado ao seu infortúnio com um último movimento de piedade. O último - que não é o último homem - acorda e parte, sem se voltar para o que deixa atrás de si. Queima o seu texto e apaga as marcas dos seus passos. O seu riso explodirá então em direção a um retorno que não terá mais a forma da repetição metafísica do humanismo nem também, sem dúvida, o para-além da metafísica, a do memorial ou da guarda do sentido do Ser, a da casa e da verdade do Ser. Ele dançará, fora da casa, esse esquecimento ativo, essa festa cruel de que fala A genealogia da moral. Sem dúvida alguma, apela-se a um esquecimento ativo do Ser. Momento da despedida e de luta. Quem sabe seja esse o momento da História da Infantilidade para nos despedir de alguns espectros que constituíram nossa modernidade, e o advento de uma luminosidade e de um modo de enunciação que, finalmente, acabem por reconhecer na di-

A ÉTICA DA INFANTILIDADE

3

5 9

versidade a singularidade de nossos infantis? Talvez, pela porção infantil de indivíduos modernos que ainda somos, possamos prosseguir a forma de luta contra aquilo que nos liga a nós mesmas/os e nos submete, deste modo, aos outros: lutas contra a sujeição, as formas de subjetivação e de submissão de nossa subjetividade. Desse modo, talvez possamos promover novos exercícios éticos de práticas de liberdade ao redor das formas pelas quais fomos subjetivadas/os como indivíduos infantis, e que nos foram impostas há tantos séculos. Nessas relações revividas - em que a consciência se torna modesta e o corpo é fruto do acaso e não de um continuum - , o infantil contemporâneo parece lutar com armas da infância. Nova história. Aqui, onde termina o infantil, no mesmo lugar, no mesmo limite, aqui onde termina um certo conceito específico da infância, aqui, onde acaba uma determinada condição histórica - ontológica, deontológica, ascética, teleológica e escato-teológica - do infantil, precisamente aqui, uma nova história da infantilidade começa. O infantil tem agora a oportunidade de anunciar-se, de prometer-se, de recomeçar-se: como a humanidade outra do infantil, do outro infantil e do infantil como outro. Se a onto-teoarqui-teleologia aferrolhou, neutralizou e finalmente anulou sua historicidade, trata-se de pensar uma outra forma de história, talvez em outro registro do político. De um político-trágico (cf. Nietzsche, 1974a,b): não residente na angústia ou na tristeza, nem na nostalgia da unidade perdida; tampouco resultado de uma sublimação, de uma purgação, de uma compensação, resignação, depreciação, vingança, acusação, queixa, falta, condenação, de um descontentamento, do ressentimento, da má consciência, do ideal ascético, do niilismo, das forças reativas, da vontade de nada; nem solução moral da dor, do medo, da

3 6 D

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

piedade, da doença, do erro, da culpa, do crime, da responsabilidade, do pecado; mas definindo-se na multiplicidade, na diversidade da afirmação, na alegria do múltiplo, na alegria plural, no riso alegre do ser do devir. Dança-jogo-sonho anti-dialético e anti-religioso - leve, móvel, aéreo, ubíquo, irresponsável, inocente, gracioso, pueril, irreverente - de Dionísio-Criança com seus brinquedos, de Dionísio-Constelação com Ariadne no céu como estrela dançante, de DionísioSenhor-do-Eterno-Retorno, que reproduz o diverso no coração da síntese kantiana, repete a diferença pela vontade de poder reunida às forças postas em relação pelo acaso, contraria a adiaforia, nega o estado terminal e o de equilíbrio, opõe-se ao princípio da identidade. Esquecimento do Ser. Afinal, Zaratustra já havia se retirado da gruta, ardente e cheio de vigor, para viver sua alvorada, o Grande Meio-Dia que subia, olhar para o ardente sol matinal e escutar seu Leão rugir furiosamente. Naquele ar e naquela luz existia a promessa ameaçadora da própria desaparição da individualização infantil moderna, e da futura aparição de El Nino e de La Nina, que conservava o reflexo de uma antiga e alegre e criadora e infantil beleza, que se esquecera ativamente do Ser. Entre a vigília e a véspera. Dever-se-á entender a questão da verdade do Ser Infantil como o último sobressalto do humano moderno? Dever-se-á entender nossa vigília como guarda montada junto à morada do Ser, ou como despertar para o dia que vem, na véspera do qual nos encontramos? Há uma economia da vigília-véspera? Nós estamos talvez entre essa vigília e essa véspera que são também os fins do homem, da mulher, e de seus infantis. Mas quem, Nós?

36 1

A ETIDA DA INFANTILIDADE

RESUMO

Ethics figure (rapport à soi)

Estrategic group

Ontology

Deontologie

Ascética

Téléologie

(cthical substancc)

(modc d'assujcttissement)

(sclf-forming activity)

(rcalisation du sujet moral)

Sofio

Émilc

Graciliano

EI Nino/ La Nina

La Donna

Le Bon Sauvage

El Pequeno Escolar

The-Girl-theLittle Boyand-TheMonster

Scxualization

Pcdagogization

Subordination dMdcntité

Adultization

Figura dei conjunto estratégico

Enfantinscxuc

Childishcducatcd

Infantildcpcndcnte

Infantilcadulto

Predominant subdveing form

Attachemcnt à sa idcntité

Fondncss for your idcntity

Soumission à 1'Autrc

Submission to thc Othcr

Ruptura da História da Infantilidade

Plus-value

Surplusvalue

The-life-thedeath

La-vita-lamorte

EscatoTeologia

Noi, Nós, Nosotras/os, Nous, Wc

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABRAHAM, Tomás. Los senderos Aires : Nueva Vision, 1989.

3 6

5

de Foucault. Buenos

. Prólogo. In: FOUCAULT, M. Genealogía dei racismo. Buenos Aires : Altamira, [s.d.]. p. 7-10. ABREU, Casimiro. Meus oito anos. In: Tesouro da Juventude. Rio de Janeiro : W. M. Jackson, 1954. p. 193-4. Volume V ALCÂNTARA, Euripedes. A fúria natural. Fenômeno climático mais assustador do mundo, o El Nino prepara um novo ataque. Veja, São Paulo, 8 out. 1997, p. 102-8. ALPERS, Svetlana. Interpretación sin representación: mirando Las Meninas. In: MARÍAS, Fernando (coord.). Otras meninas. Madrid : Siruela, 1995. p. 153-62. ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de Estado (AIE). Rio de Janeiro : Graal, 1983. ANOMALIAS enlouqueceram o clima de SP. Folha de S. Paulo, São Paulo, 14 set. 1997. Cotidiano, p. 2. ARAÚJO, Inácio. Coppola faz oposição à Hollywood de Spielberg. Folha de S. Paulo, São Paulo, 25 out. 1996. Ilustrada, p. 5. ARIES, Phillipe. El nino y Ia vida familiar en ei antiguo régimen. Madrid : Taurus, 1975. . História social da criança e da família. Rio de Janeiro : Guanabara, 1981. . La infância. Revista de Educación - Historia de Ia infância y de Ia juventud. Madrid, n. 281, sept.-dic, 1986. p. 5-17.

3 6 6

ECDNDMIA POPULAR E CULTURA DD TRABALHO

ARISTÓTELES. Política. Brasília : Ed. da Universidade de Brasília, 1988. AVANZINI, Guy. La pedagogia en ei siglo XX. Madrid : Narcea, 1987. AVIRAM, Aharon. The subjection of children. Journal of Philosophy of Education, Londres, n. 24, 1992. p. 21434. BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1985. BAQUERO, Ricardo, NARODOWSKI, Mariano. Existe Ia infância? Revista dei Instituto de Investigaciones en Ciências de Ia Educación, Buenos Aires, v.2, n.4, 1994, p. 61-6. BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro : Francisco Alves, 1989. BELLINGHAM, Bruce. The history of childhood since the "invention of childhood": some issues in the Eighties. Journal of Family History, New York, v. 13, n. 2, 1988. p. 347- 58. BÍBLIA Sagrada. Petrópolis : Vozes, 1982. BONALUME NETO, Ricardo. Causa é desconhecida; efeito é notório. Folha de S. Paulo, São Paulo, 14 set. 1997. Cotidiano, p. 2. BOOM, Alberto M., NARODOWSKI, Mariano. Escuela, história y poder. In: (comp.). Escuela, história y poder: miradas desde América Latina. Buenos Aires : Novedades Educativas, 1996. p. 7-16. BRINKMANN, Wilhelm. La nifíez en proceso de transformación: consideraciones sobre su gênesis, su desaparición y su valor efectivo para Ia pedagogia. Educación, n. 2, Tubingenn, 1986. p. 7-23.

REFERêNCIAS BIBLIOGRáFICAS

3

6*7

BRITTO culpa PT pela invasão em Gravataí. Zero Hora, Porto Alegre» 23 jul. 1997. p. 6. BROWN, Jonathan. Sobre ei significado de Las Meninas. In: MARÍAS, Fernando (coord.). Otras meninas. Madrid : Siruela, 1995. p. 67-91. CABAS, Antônio G. Curso e discurso da obra de Jacques Lacan. São Paulo : Moraes, 1982. CAMBI, Franco, ULIVIERI, Simonetta. Storia delVinfanzia neWItalia liberale. Firenze : La Nuova Itália, 1988. CERVANTES, Miguel de. O engenhoso fidalgo Dom Quixote de Ia Mancha. Belo Horizonte : Itatiaia, 1984. COPPOLA, Francis F. Jack. EUA, 1996. 113 min. Filme. CORAZZA, Sandra M. O construtivismo pedagógico como significado transcendental do currículo: razão e obscurantismo da educação. Seminário do fim-de-tarde das segundas-feiras, Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1994. 81p. Texto mimeografado. . Currículo e política cultural da avaliação. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, jul./dez. 1995a, p. 47-59. . O construtivismo pedagógico como significado transcendental do currículo. In: VEIGA-NETO, Alfredo (org.). Crítica pós-estruturalista e educação. Porto Alegre : Sulina, 1995b, p. 211-29. . Poder-saber e ética da escola. Ijuí : UNIJUÍ, 1995c. . Construtivismo: evolução ou modismo? Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 21, n. 2. jul./dez. 1996a. p. 215-32.

3 6 B

ECONOMIA POPULAR E CULTURA DO TRABALHO

CORAZZA, Sandra M. Labirintos da pesquisa, diante dos ferrolhos. In: COSTA, Marisa V. (org.). Caminhos investigativos: novos olhares na pesquisa em educação. Porto Alegre : Mediação, 1996b. p. 105-131. . Olhos de poder sobre o currículo. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 21, n. 1. jan./jun. 1996c. p. 46-70. . Redefinição da identidade da criança-escolar. Seminário Teoria do Discurso, Curso de Pós-Graduação em Ciência Política, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1996d. 28p. Texto mimeografado. . Relaciones de poder y ética en Ia institución escolar. Escritos de Ia Infância, Buenos Aires, v. 4, n. 7, julio 1996e. p. 71-104. . As gentes pequenas e o indivíduo. Correio da APPOA - Psicanálise e Educação, Porto Alegre, n. 52, nov.1997. p. 40-53. . História da infantilidade: a-vida-a-morte e mais-valia de uma infância sem fim. Porto Alegre : Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1998, 619p. (Tese de Doutorado em Educação.) COSTA, Jurandir F. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro : Graal, 1989. . Obediência ou violência. In: ALTOE, Sônia. Infâncias perdidas: o cotidiano nos internatos-prisão. Rio de Janeiro : Xenon, 1990. Apresentação. COTESTA, Vittorio. Michel Foucault: de Ia arqueologia dei saber a Ia genpalogia dei poder. In: TARCUS, Horacio (comp.). Disparen sobre Foucault. Buenos Aires : El Cielo por Asalto, 1993. p. 33-65.

REFERêNCIAS BIBLIOGRáFICAS

3

6 9

CRIANÇA Esperança presta contas. Em Ação/Unicef. Rio de Janeiro, v.5, n.13, out.1997. p. 4. CULLER, Jonathan D. On deconstruction: theory and criticism after structurahsm. New York : Cornell University Press, 1985. DELEUZE, Gilles. Qué es un dispositivo? In: BALBIER, E.; DELEUZE, G., DREYFUS, H. L. et ai. Michel Foucault, filósofo. Barcelona : Gedisa, 1990. p. 155-63. . Foucault. São Paulo : Brasiliense, 1991. . Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro : Ed. 34, 1992. . Deseo y placer. In: FOUCAULT, Michel. El yo minimalista: conversaciones com Michel Foucault. Buenos Aires : La Mirada, 1996. p. 181-90. . Nietzsche e a filosofia. Porto : Rés, [s.d.]. DeMAUSE, Lloyd. La evolución de Ia infância. In: (Dir.). Historia de Ia infância. Madrid : Alianza, 1995. p. 1592. DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo : Perspectiva, 1971. . Gramatologia. São Paulo -. Perspectiva; Ed. da Universidade de São Paulo, 1973. . La tarjeta postal: de Freud a Lacan y más allá. México : Siglo XXI, 1986. . Os fins do homem. In: . Margens da filosofia. Campinas : Papirus, 1991. p. 149-77. . La desconstrucción en Ias fronteras de Ia filosofia. Barcelona : Paidós; I. C. E. de Ia Universidad Autônoma de Barcelona, 1993.

3 V D

ECONOMIA PDPULAR E CULTURA DO TRABALHO

DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Rio de Janeiro : Relume-Dumará, 1994a. . "Fazer justiça a Freud". A história da loucura na era da psicanálise. In: ROUDINESCO, Elisabeth et ai. Foucault: leituras da história da loucura. Rio de Janeiro : RelumeDumará, 1994b. . Khôra. Campinas : Papirus, 1995a. . Paixões. Campinas : Papirus, 1995b. . Salvo o nome. Campinas : Papirus, 1995c. DIAZ, Esther. Michel Foucault: los modos de subjetivación. Buenos Aires : Almagesto, 1993. . La filosofia de Michel Foucault. Buenos Aires : Biblos, 1995. DICIONÁRIO enciclopédico brasileiro ilustrado. Rio de Janeiro : Livraria do Globo, 1946. DICCIONARIO etymologico, prosódico e orthographico da Lingua Portugueza. Lisboa : Livr. Ed. Antônio Maria Pereira, 1912. DONALD, James. Sentimental education: schooling, popular culture and the regulation of liberty. London : Verso, 1992. DONZELOT, Jacques. A polícia das famílias. Rio de Janeiro : Graal, 1980. DOR, Jõel. Introdução à leitura de Lacan: o inconsciente estruturado como linguagem. Porto Alegre : Artes Médicas, 1989. DREYFUS, Hubert L., RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1995.

REFERêNCIAS BIBLIOGRáFICAS

3 *7 1

ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro : Zahar, 1994. Volume 1. . Sobre Las Meninas: implicación y distanciamento. In: MARIAS, Fernando (coord.). Otras meninas. Madrid : Siruela, 1995. p. 205-29. EL NINO, de novo. Veja, São Paulo, 15 out. 1997. p. 119. EMMENS, J. A. Las Meninas de Velázquez: espejo de príncipes para Felipe IV. In: MARIAS, Fernando (coord.). Otras meninas. Madrid : Siruela, 1995. p. 43-66. EWALD, François. Foucault, a norma e o direito. Lisboa : Veja, 1993. FERNANDES, Francisco. Dicionário de sinônimos e antônimos da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro : Livraria do Globo, 1946. FERREIRA, Aurélio B. H. [AURÉLIO] Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, [1974]. FISCHER, Rosa M.B. Adolescência em discurso: mídia e produção de subjetividade. Porto Alegre : Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1996. 297 p. Tese, Doutorado em Educação. FLANDRIN, Jean-Louis. O sexo e o ocidente. São Paulo : Brasiliense, 1988. FLORES, Moacyr. A casa dos expostos. Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, v. 11, n. 2, dez.1985. p. 49-60. FONSECA, Claudia. Pais e filhos na família popular: início do século XX. In: D'INCAO, Maria A. (org.). Amor e família no Brasil. São Paulo : Contexto, 1989. p. 95128.

3 7 2

ECONOMIA POPULAR E CULTURA DO TRABALHO

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Lisboa : Portugália, 1968. . A arqueologia do saber. Petrópolis, Lisboa : Vozes, Centro do Livro Brasileiro, 1972. . História e descontinuidade. In: SILVA, Maria B. N. da (org.). Teoria da história. São Paulo : Cultrix, 1976. p. 56-60. . La gubernamentalidad. In: VARELA, Julia (comp.). Espacios de poder. Madrid : La Piqueta, 1981. p. 9-26. . História da sexualidade, 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro : Graal, 1985. . O nascimento da clínica. Rio de Janeiro : ForenseUniversitária, 1987. . O pensamento do exterior. São Paulo : Princípio, 1988. . Vigiar e punir, nascimento da prisão. Petrópolis : Vozes, 1989. . A política da saúde no século XVIII. In: . Microfísica do poder. Rio de Janeiro : Graal, 1990a. p. 193-207. . História da sexualidade, 2: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro : Graal, 1990b. . Não ao sexo rei. In: . Microfísica do poder. Rio de Janeiro : Graal, 1990c. p. 229-42. . Nietzsche, a genealogia e a história. In: . Microfísica do poder. Rio de Janeiro : Graal, 1990d. p. 15-37. . Os intelectuais e o poder. In: . Microfísica do poder. Rio de Janeiro : Graal, 1990e. p. 69-78. . Poder-corpo. In: . Microfísica do poder. Rio de Janeiro : Graal, 1990f. p. 145-152.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

3 7 3

FOUCAULT, Michel. Soberania e disciplina. In: . Microfísica do poder. Rio de Janeiro : Graal, 1990g. p. 179-191. . Sobre a história da sexualidade. In: . Microfísica do poder. Rio de Janeiro : Graal, 1990h. p.243-276. . Sobre a prisão. In: . Microfísica do poder. Rio de Janeiro : Graal, 1990i. p. 129-143. . Verdade e poder. In: . Microfísica do poder. Rio de Janeiro : Graal, 1990j. p. 1-14. . De los suplícios a Ias celdas. In: . Saber y verdad. Madrid : La Piqueta, 1991a. p. 83-88. . Doença mental e psicologia. Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 1991b. . El interés por Ia verdad. In: . Saber y verdad. Madrid: La Piqueta, 1991c. p. 229-242. . Foucault responde a Sartre. In: _ _ . Saber y verdad. Madrid : La Piqueta, 1991d. p. 39-46. . História da loucura na idade clássica. São Paulo : Perspectiva, 1991e. . La función política dei intelectual. Respuesta a una cuestion. In: . Saber y verdad. Madrid : La Piqueta, 1991f. p. 47-74. . Omnes et singulatim: hacia una critica de Ia "razon política". In: . Tecnologias dei yo y otros textos afines. Barcelona : Paidós, 1991g. p. 95-140. . Que es Ia ilustracion? In: . Saber y verdad. Madrid : La Piqueta, 1991h. p. 197-207. . Tecnologias dei yo. In: . Tecnologias dei yo y otros textos afines. Barcelona : Paidós, 1991i. p. 45-94.

3 7 4

ECONOMIA POPULAR E CULTURA DO TRABALHO

FOUCAULT, Michei. Verdad, indivíduo y poder. In: . Tecnologias dei yo y otros textos afines. Barcelona : Paidós, 1991j. p. 141-150. . História da sexualidade, 1: a vontade de saber. Rio de Janeiro : Graal, 1993. . La ética dei cuidado de uno mismo como práctica de Ia liberdad. In: . Hermenêutica dei sujeto. Madrid: La Piqueta, 1994. p. 105-42. . La verdad y Ias formas jurídicas. Barcelona : Gedisa, 1995a. . Michei Foucault entrevistado por Hubert L. Dreyfus e Paul Rabinow. In: DREYFUS, Hubert L., RABINOW, Paul. Michei Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1995b. p. 231-49. . O sujeito e o poder. In: DREYFUS, Hubert L., RABINOW, Paul. Michei Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1995c. p. 231-49. . El yo minimalista. In: . El yo minimalista: conversaciones com Michei Foucault. Buenos Aires : La Mirada, 1996. p. 85-100. . Primera lección. Genealogía 1 - Erudición y saberessujetos. 7 enero 1976. In: . Genealogía dei racismo. Buenos Aires : Altamira; Montevideo: Nordan- Comunidad, [s.d.]a. p. 11-22. . Segunda lección. Genealogía 2 - Poder, derecho, verdad. 14 enero 1976. In: . Genealogía dei racismo. Buenos Aires : Altamira; Montevideo: Nordan- Comunidad, [s.d.]b. p. 23-34.

REFERêNCIAS BIBLIOGRáFICAS

3*7

5

FOUCAULT, Michel. Resumen dei curso. "Defender Ia sociedad". In: . Genealogía dei racismo. Buenos Aires: Altamira; Montevideo : Nordan-Comunidad, [s.d.]c. p. 191-6. FREUD, Sigmund. A etiologia da histeria [1896]. In: . Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro : Imago, 1976a. Volume III, p. 214-49. . Lembranças encobridoras [1899]. In: . Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro : Imago, 1976b. p. 328-54. Volume III. . Três ensaios sobre a teoria da sexualidade [1905]. In: . Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro : Imago, 1972. p. 122-252. Volume VII. . Três ensayos para una teoria sexual [1905]. In: . Obras completas. (1905-1915(1917]). Ensaios XXVI ai XCVII. Madrid : Biblioteca Nueva, 1981a. Tomo II, p . 1169-237. . La ilustración sexual dei nino. Carta abierta ai doctor M. Fürst. [1907]. In: . Obras completas. (1905 1915[1917]). Ensaios XXVI ai XCVII. Madrid : Biblioteca Nueva, 1981b. Tomo II, p. 1244-48. . Teorias sexuales infantiles. [1908]. In: . Obras completas. (1905-1915[1917]). Ensaios XXVI ai XCVII. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981c. Tomo II, p. 1.262-71. . Analisis de Ia fobia de un nino de cinco afios (Caso "Juanito") [1909]. In: . Obras completas. (19051915[1917]). Ensaios XXVI ai XCVII. Madrid : Biblioteca Nueva, 1981d. Tomo II, p. 1365-440.

3 "7 6

ECONOMIA POPULAR E CULTURA DO TRABALHO

FREUD, Sigmund. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (dementia paranoides) [1911]. In: . Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro : Imago, 1974a.. p. 14-108. Volume XII. . O interesse científico da psicanálise [1913]. In: . Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro : Imago, 1974b. p. 195-226. Volume XIII. . A história do movimento psicanalítico [1914]. In: . Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro : Imago, 1974c. p. 12-84. Volume XIV. . Lecciones introductorias ai psicoanalisis 1915-1917 [1916-1917]. In: . Obras completas. (1905 -1915) [1917]. Ensaios XXVI ai XCVII. Madrid : Biblioteca Nueva, 1981e. Tomo II, p. 2113-412. . Lo siniestro. [1919]. In: . Obras completas. (1916 1938) [1945]. Ensaios XCVIII ai CCffl. Madrid : Biblioteca Nueva, 1981f. Tomo III, p. 2483-505. . El "Yo" y ei "Ello". [1923]. In: . Obras completas. (1916 -1938) [1945]. Ensaios XCVIII ai CCffl. Madrid : Biblioteca Nueva, 1981g. Tomo III, p. 2701-28. . Moyses y Ia religión monoteista: três ensayos. [1939]. In: . Obras completas. (1916 -1938) [1945]. Ensaios XCVIII ai CCffl. Madrid : Biblioteca Nueva, 1981h. Tomo III, p. 3241-324. FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos. Rio de Janeiro : José Olympio Ed., 1968. . Casa grande e senzala. Rio de Janeiro : José Olympio, 1969.

REFERêNCIAS BIBLIOGRáFICAS

3*7*7

FULLER, Peter. Uncovering childhood. In: HOYLES, M. (ed.). Changing chilhood. London : Writers and Readers, 1979. p. 71-107. FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem. Rio de Janeiro : Rocco, 1992. GERTZE, Jurema M. Infância em perigo: a assistência às crianças abandonadas em Porto Alegre - 1837-1880. Porto Alegre : Curso de Pós-Graduação em História, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 1990. 236 p. Dissertação, Mestrado em História. GÉLIS, Jacques. A individualização da criança. In: ARIES, P, DUBY, G. (org.). História da vida privada, 3: da Renascença ao Século das Luzes. São Paulo : Companhia das Letras, 1995. p. 311-29. GHIRALDELLI Jr., Paulo. Infância - um projeto inacabado? Bauru, 1994. 13p. Texto mimeografado. . A "escola do futuro" na época da pós-infância. Paixão de Aprender, Porto Alegre, n.9, dez. 1995. p. 52-7. GORDON, Colin. Govemmental rationality: an introduction. In: BURCHELL, G., GORDON, C , MILLER, P. The Foucault effect: studies in governmentality. Chicago : The University of Chicago Press, 1991. p. 1-51. GUIMARÃES, Bernardo. Rosaura, a enjeitada. Rio de Janeiro : Saraiva, [s.d.]. GUIMARÃES, Rafael (Realizador do texto). A herança do Irmão Joaquim: histórias da Santa Casa. Porto Alegre : Redactor, 1984. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro ' DP&A, 1997.

3 "7 8

ECONOMIA POPULAR E CULTURA DO TRABALHO

HOYLES, Martin. Childhood in historical perspective. In: (ed.). Changing childhood. London : Writers and Readers, 1979. p. 16-29. HUNT, David. Parents and children in history. the psychology of family life in Early Modem France. New York : Harper Torchbooks, 1972. HUNTER, Ian. Rethinking the school: subjectivity, bureaucracy, criticism. Austrália : Allen & Unwin, 1994. ILLICK, Joseph E. La crianza de los ninos en Inglaterra y América dei Norte en ei siglo XVII. In: DeMAUSE, Lloyd (dir.). Historia de Ia infância. Madrid : Alianza, 1995. p. 333-83. IRMANDADE DA SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DE PORTO ALEGRE. Centro de Documentação e Pesquisa CEDOP. Regimento da Caza dos Expostos da Santa Casa da Mizericordia da Cidade de Porto Alegre. Porto Alegre : Typ. de Isidoro Joze Lopes, 1842. . Regimento Interno da Santa Casa de Misericórdia da Cidade de Porto Alegre de 1882. Porto Alegre [s.n.], 1882. . Casa da Roda: o abandono da criança na Santa Casa de Porto Alegre. Porto Alegre : CEDOP, 1997. Guia de Fontes. KEHL, Maria R. Masculino/feminino: o olhar da sedução. In: NOVAES, Adauto (org.). O olhar. São Paulo : Companhia das Letras, 1989. p. 411-23. KUHLMANN Jr., Moysés. A proteção à infância e a "assistência científica". Congresso Internacional da BRASA Brazilian Studies Association, 4, 1997, Washington, D. C. Pobreza e exclusão social: 30 0 anos de políticas públicas para a criança brasileira. 11 p. Texto mimeografado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

3 7 9

LACAN, Jacques. A família. Lisboa : Assírio & Alvim, 1987. . O Seminário: livro 2. O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, 1954-1955. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1985a. . O Seminário: livro 20. Mais, ainda, 1972-1973. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1985b. . O Seminário: livro 1. Os escritos técnicos de Freud, 1953-1954. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1986. . A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: . Escritos. São Paulo ': Perspectiva, 1988a. p. 223-59. . O Seminário: livro 7. A ética da psicanálise, 19591960. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1988b. . O Seminário: livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, 1964. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1988c. . El estádio dei espejo como formador de Ia función dei yo (;e) tal como se nos revela en Ia experiência psicoanalítica. [1949]. In: . Escritos I. México : Siglo Veintiuno, 1990. p. 86-93. . A relação de objeto e as estruturas freudianas. Seminário dos anos 1956-1957. Associação Psicanalítica de Porto Alegre, 1992a. 248p. (Edição não comercial exclusiva aos membros da APPOA.) Texto mimeografado. . O Seminário: livro 8. A transferência, 1960-1961. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1992b. . O Seminário: livro 17. O avesso da psicanálise, 19691970. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1992c.

3 B D

ECDNDMIA POPULAR E CULTURA DO TRABALHO

LACAN, Jacques. Subversión dei sujeto y dialéctica dei deseo en ei inconsciente freudiano. In: . Escritos II. México : Siglo Veintiuno, 1993. p. 773-807. . O Seminário 5, 1957-1958. Las formaciones dei inconsciente. [s.d.]a. [s.p.]. Texto mimeografado. . Livro 21, 1973-1974. Les non-dupes errent: les noms du pére. [s.d.]b. 239p. Texto mimeografado. LAJONQUIERE, Leandro de. O legado pedagógico de Jean Itard. (A pedagogia: ciência ou arte?). Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 6, n.12, jan./dez.l992. p. 37-51. . A criança, "sua" (in)disciplina e a psicanálise. In: AQUINO, J. G. (org.). Indisciplina na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo : Summus, 1996. p. 25-37. LARROSA, Jorge. Tecnologias do eu e educação. In: SILVA, Tomaz T. da (org.). O sujeito da educação: estudos foucaultianos. Petrópolis : Vozes, 1994. p. 35-86. . A estruturação pedagógica do discurso moral: algumas notas e um experimento exploratório. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 21, n.2, jul./dez. 1996. p. 12159. . A construção pedagógica do sujeito moral. In: SILVA, Tomaz T. da (org.). Liberdades reguladas: a pedagogia construtivista e outras formas de governo do eu. Petrópolis : Vozes, 1998. p. 46-75. LEITE, Miriam L. M. O óbvio e o contraditório da Roda. In: PRIORE, Mary Del (org.). História da criança no Brasil. São Paulo : Contexto, 1996. p. 98-111. . A infância no século XIX segundo memórias e livros de viagem. In: FREITAS, Marcos C. de (org.). História social da infância no Brasil. São Paulo : Cortez, 1997. p. 17-50.

REFERêNCIAS BIBLIOGRáFICAS

3 S

1

LEMAIRE, Anika. Jacques Lacan: uma introdução. Rio de Janeiro : Campus, 1986. LERENA, Carlos A. Reprimir y liberar: crítica sociológica de Ia educación y de Ia cultura contemporâneas. Madrid : Akal, 1983. LIMA, Lana L. da G., VENÂNCIO, Renato P. Abandono de crianças negras no Rio de Janeiro. In: PRIORE, Mary Del (org.). História da criança no Brasil. São Paulo : Contexto, 1996. p. 61-75. LYMAN, Jr., Richard B. Barbárie y religión: Ia infância a fines de Ia época romana y comienzos de Ia Edad Média. In: DeMAUSE, Lloyd (dir.). Historia de Ia infância. Madrid : Alianza, 1995. p. 93-120. LYND, Sylvia. Crianças inglesas. Rio de Janeiro : José Olympio Ed., [s.d.]. MACEDO, Joaquim M. de. A luneta mágica. São Paulo : Melhoramentos, 1961. MACHADO DE ASSIS, Joaquim M. Relíquias de casa velha. Rio de Janeiro : W. M. Jachson, 1962. MACHADO, Roberto. Ciência e saber: a trajetória da arqueologia de Michel Foucault. Rio de Janeiro : Graal, 1981. . Deleuze e a filosofia. Rio de Janeiro : Graal, 1990. MAIA NETO, João. Um convite ao pecado sob o manto da noite. Diário de Notícias, Porto Alegre, 18 jan. 1945. p. 10, col. 3-8; p.2, col.1-3. MAISTRE, Marie de. La pedagogia de los inadaptados y sus especialistas. In: AVANZINI, Guy. La pedagogia en ei siglo XX. Madrid : Narcea, 1987. p. 233-57. MANNONI, Maud. Educação impossível. Rio de Janeiro : Francisco Alves, 1977.

3 B 2

ECONOMIA POPULAR E CULTURA DO TRABALHO

MARCILIO, Maria L. A roda dos expostos e a criança abandonada na História do Brasil. 1726-1950. In: FREITAS, Marcos C. de (org.). História social da infância no Brasil. São Paulo : Cortez, USF, 1997. p. 51-76. MARÍAS, Fernando. El gênero de Las Meninas: los servicios de Ia família. In: (coord.). Otras meninas. Madrid : Siruela, 1995a. p. 247-78. . Introducción. In: (coord.). Otras meninas. Madrid : Siruela, 1995b. p. 13-26. MARWICK, Elizabeth W. Naturaleza y educación: pautas y tendências de Ia crianza de los nifíos en Ia Francia dei siglo XVII. In: DeMAUSE, Lloyd (dir.). Historia de Ia infância. Madrid : Alianza, 1995. p. 286-332. MARX, Karl. Para a crítica da economia política. In: . Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. São Paulo : Abril Cultural, 1978a. p. 99-125. (Os Pensadores) . Salário, preço e lucro. In: . Manuscritos econômicofilosóficos e outros textos escolhidos. São Paulo : Abril Cultural, 1978b. p.54-99. (Os Pensadores) . O capital. Crítica da economia política. Livro Primeiro. O processo de produção do capital. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1980. Volume II. . O capital. Crítica da economia política. Livro Primeiro. O processo de produção do capital. São Paulo : Bertrand Brasil - DIFEL, 1987. Volume I. MATTOSO, Kátia de Q. O filho da escrava. In: PRIORE, Mary Del (org.). História da criança no Brasil. São Paulo: Contexto, 1996. p. 76-97.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

3 S 3

McLAUGHLIN, Mary M. Supervivientes y sustitutos: hijos y padres dei siglo IX ai siglo XIII. In: DeMAUSE, Lloyd (dir.). Historia de ia infância. Madrid : Alianza, 1995. p. 121205. MELLO E SOUZA, Laura de. O senado da câmara e as crianças expostas. In: PRIORE, Mary Del (org.). História da criança no Brasil. São Paulo : Contexto, 1996. p. 2843. MILLOT, Catherine. Nobodaddy. a histeria no século. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1989. MONTAIGNE, Michel. Montaigne. São Paulo : Nova Cultural, 1991. (Os Pensadores) MOREY, Miguel. Introduccion: Ia cuestion dei método. In: FOUCAULT, Michel. Tecnologias dei yo y otros textos afines. Barcelona : Paidós, 1991, p. 9-44. MURICY, Katia. Os olhos do poder. In: NOVAES, Adauto (org.). O olhar. São Paulo : Companhia das Letras, 1988. p. 479-86. NARODOWSKI, Mariano. Infância y poder: Ia conformación de Ia pedagogia moderna. Buenos Aires : Aique, 1994. . A infância como construção pedagógica. In: COSTA, Marisa V. (org.). Escola básica na virada do século: cultura, política e educação. São Paulo : Cortez, 1996. p. 107-18. NASIO, Juan D. A criança magnífica da psicanálise: o conceito de sujeito e objeto na teoria de Jacques Lacan. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1988. NIETZSCHE, Friedrich W. A gaia ciência. [1881-1882]. In: . Obras incompletas. São Paulo : Abril Cultural, 1974a. p. 371-84.

3 5 4

ECONOMIA POPULAR E CULTURA DO TRABALHO

NIETZSCHE, Friedrich W. Ecce Homo. Como tornar-se o que se é. [1888]. In: . Obras incompletas. São Paulo: Abril Cultural, 1974b. p. 371-84. . O anticristo. Ensaio de uma crítica do cristianismo. [1888]. In: . Obras incompletas. São Paulo : Nova Cultural, 1991a. p. 125-41. (Os Pensadores) . Para a genealogia da moral. Um escrito polêmico em adendo a "Para Além de Bem e Mal" como complemento e ilustração. [1887]. In: . Obras incompletas. São Paulo : Nova Cultural, 1991b. p. 75-105. (Os Pensadores) . Para além de bem e mal. Prelúdio de uma filosofia do porvir. [1885-1886]. In: . Obras incompletas. São Paulo: Nova Cultural, 1991c. p. 47-74. (Os Pensadores.) . Assim falava Zaratustra. São Paulo : Hemus, [s.d.]. OGILVIE, Bertrand. Lacan: a formação do conceito de sujeito (1932-1949). Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1988. OLIVEIRA, Henrique L. P. Os filhos da falha: assistência aos expostos e remodelação das condutas em Desterro (1828-1887). São Paulo : Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1990. 330p. Dissertação, Mestrado em História. OS EFEITOS do El Nino. Superinteressante, São Paulo, v.7, n.3, mar. 1993. p. 28-31. OS PERIGOS do El Nino. Folha de S. Paulo, São Paulo, 14 set. 1997. Mais! p. 16. PALAMIDESSI, Mariano I. La producción dei "maestro constructivista" en ei discurso curricular. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 21, n. 2. jul./dez.l996. p. 191213.

REFERêNCIAS BIBLIOGRáFICAS

3 S

5

PASTOR, Reyna. Papel y imagen de Ia "juventus" en Ia Espana medieval. Revista de Educación - História de Ia infância y de Ia juuentud. Madrid, n.281, sept.-dic, 1986, p. 87-97. PEQUENO dicionário brasileiro da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1951. PEQUENO dicionário brasileiro da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1974. PEREIRA, André R. Criança x menor: a origem de dois mitos da política social brasileira. In: ROLLEMBERG, Denise (org.). Que história é essa? Rio de Janeiro : RelumeDumará, 1994. PESTALOZZI. Como Gertrudis ensena a sus hijos. Buenos Aires : Centro Editor de América Latina, 1967. PFISTER, Oskar. El psicoanálisis y Ia educación. Buenos Aires : Losada, 1943. POLLOCK, Linda A. Forgotten children: parent-child relations from 1500 to 1900. Cambridge : Cambridge University Press, 1983. POPKEWITZ, Thomas S. História do currículo, regulação social e poder. In: SILVA, Tomaz T da (org.). O sujeito da educação: estudos foucaultianos. Petrópolis : Vozes, 1994. p. 173-210. . Reforma educacional e construtivismo. In: SILVA, Tomaz T. da (org.). Liberdades reguladas: a pedagogia construtivista e outras formas de governo do eu. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 95-142. POSTMAN, Neil. The disappearance of childhood. New York : Laurel, 1984.

3 B 6

ECDNDMIA POPULAR E CULTURA DO TRABALHO

PRIORE, Mary Del. O papel branco, a infância e os jesuítas na Colônia. In: PRIORE, Mary Del (org.). História da criança no Brasil. São Paulo : Contexto, 1996. p. 10-27. RAMOS, Graciliano. Infância. Rio de Janeiro : Record, 1994. RIBEIRO, Célia. Modos & Maneiras. Zero Hora, Porto Alegre, 30 mar. 1997. Donna, p. 2. RIOS de lama. Zero Hora, Porto Alegre, 10 out.1997. p. 49. ROBERTSON, Priscilla. El hogar como nido: Ia infância de Ia clase media en Ia Europa dei siglo XIX. In: DeMAUSE, Lloyd (Dir.). Historia de Ia infância. Madrid : Alianza, 1995. p. 444-71. ROSE, Nikolas. Governing the soul: the shapping of the private self. London : Routledge, 1989. ROSS, James B. El nino de clase media en Ia Itália urbana, dei siglo XIV a princípios dei siglo XVI. In: DeMAUSE, Lloyd (dir.). Historia de Ia infância. Madrid : Alianza, 1995. p. 206-54. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou da educação. Rio de Janeiro : Bertrand Brasil, 1992. . Os devaneios do caminhante solitário. Brasília : Ed. da Universidade de Brasília, 1995. . As confissões.

São Paulo : Tecnoprint, [s.d.].

RUSSELL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e filantropos: a Santa Casa de Misericórdia da Bahia. Brasília : Ed. da Universidade de Brasília, 1 9 8 1 . SAI El Nino, chega La Nina. Globo Ciência, São Paulo, v.3, n.28, nov.1993. p. 36-40.

REFERêNCIAS BIBLIOGRáFICAS

3

8 7

SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. O pequeno príncipe. Rio de Janeiro : Agir, 1987. SALLES, Catharine. Nos submundos da Antigüidade. São Paulo : Brasiliense, 1983. SANTIAGO, Silviano (supervisão). Glossário de Derrida. Rio de Janeiro : Francisco Alves, 1976. SARAMAGO, José. História do cerco de Lisboa. São Paulo : Companhia das Letras, 1989. SEARLE, John R. Las Meninas y las paradojas de Ia representación pictórica. In: MARÍAS, Fernando (coord.). Otras meninas. Madrid : Siruela, 1995. p. 103-12. SILVA, Tomaz T. da. Desconstruindo o construtivismo pedagógico. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 18, n. 2, jul./dez.l993. p. 3-10. . A "nova" direita e as transformações na pedagogia da política e na política da pedagogia. In: GENTILI, Pablo A. A., SILVA, Tomaz T. da (org.). Neoliberalismo, qualidade total e educação. Petrópolis : Vozes, 1994a. p. 1129. . Em resposta a um pedagogo "epistemologicamente correto". Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 19, n. 2, 1994b. p. 9-17. . As pedagogias psi e o governo do eu nos regimes neoliberais. In: SILVA, T. T da (org.). Liberdades reguladas: a pedagogia construtivista e outras formas de governo do eu. Petrópolis : Vozes, 1998. p. 7-13. SINDICATO dos Telefônicos (SINTTEL). A Pedido. Britto e Fernando Henrique Cardoso: "Os bons meninos". Correio do Povo, Porto Alegre, 22 jul.1997. p. 15.

3 B B

ECONOMIA POPULAR E CULTURA DO TRABALHO

SNYDER, Joel. Las Meninas y ei espejo dei príncipe. In: MARÍAS, Fernando (coord.). Otras meninas. Madrid : Siruela, 1995. p. 129-52. STEINBERG, Leo. Las Meninas de Velázquez. In: MARÍAS, Fernando (coord.). Otras meninas. Madrid : Siruela, 1995. p. 93-101. STOICHITA, Victor I. Imago regis: teoria dei arte y retrato real en Las Meninas de Velázquez. In: MARÍAS, Fernando (coord.). Otras meninas. Madrid : Siruela, 1995. p. 181203. SOUZA, Alduísio M. de. Uma leitura introdutória a Lacan: exegese de um estilo. Porto Alegre : Artes Médicas, 1985. STANDARD, Ogilvy & Mather. Investigando crianças: quem são elas e como chegar a elas. Marketing, São Paulo, n. 213, maio 1991. p. 90-4. STEFANELLI, Ricardo. Alerta vermelho para o El Nino. Zero Hora, Porto Alegre, 10 out. 1997. p. 6. STONE, Lawrence. The massacre of the innocents. New York Review of Books, New York, v. 2 1 , n.18, 14 nov.1974. TRISCIUZZI, Leonardo, CAMBI, Franco. L'infanzia nella società moderna. Roma : Riuniti, 1989. TUCKER, M. J. El nino como principio e fin: Ia infância en Ia Inglaterra de los siglos XV e XVI. In: DeMAUSE, Lloyd (Dir.). Historia de Ia infância. Madrid : Alianza, 1995. p. 255-85. TUFÃO deixa mais de 120 mortos. Zero Hora, Porto Alegre, 10 out. 1997. p. 48.

REFERêNCIAS BIBLIOGRáFICAS

3 5 9

ULIVIERI, Simonetta. Historiadores y sociólogos en busca de Ia infância. Apuntes para una bibliografia razonada. Revista de Educación - Historia de Ia infância y de Ia juventud, Madrid, n. 2 8 1 , sept.-dic.1986. p. 47-86. ULLMANN, Reinholdo A. Inácio de Loyola São Leopoldo: Unisinos, 1991.

(1941-1991).

USSEL, Jos van. La represión sexual. México : Roca, 1974. VARELA, Julia. Aproximación genealógica a Ia moderna percepción social de los ninos. Revista de Educación Historia de Ia infância y de Ia juventud, Madrid, n.281, sept.-dic.1986. p. 155-91. . El triunfo de Ias pedagogías psicológicas. Cuadernos de Pedagogia. Madrid, n.198, dez.1991. p. 56-9. . O estatuto do saber pedagógico. In: SILVA, Tomaz T. da (org.). O sujeito da educação: estudos foucaultianos. Petrópolis : Vozes, 1994. p. 87-96. . Categorias espaço-temporais e socialização escolar: do individualismo ao narcisismo. In: COSTA, Marisa V. (org.). Escola básica na virada do século: cultura, política e educação. São Paulo : Cortez, 1996. p. 73-106. VEIGA-NETO, Alfredo da. A ordem das disciplinas. Porto Alegre : Programa d Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1996. 322 p. Tese, Doutorado em Educação. VEYNE, Paul. Como se escreve a história: Foucault revoluciona a história. Brasília : Ed. Universidade de Brasília, 1995. VINYOLES Y VIDAL, Teresa M. Aproxirv,ción a Ia infância y Ia juventud de dos marginados. Los expósitos barceloneses dei siglo XV. Revista de Educación - Historia de Ia infância y de Ia juventud, Madrid, n.281, sept.-dic.1986. p. 99123.

3 9 O

ECONOMIA POPULAR E CULTURA DO TRABALHO

WALKERDINE, Valerie. The mastery of reason: cognitive deuelopment and the production of rationality. London: Routledge, 1988. . Uma análise foucaultiana da pedagogia construtivista. In: SILVA, Tomaz T. da (org.). Liberdades reguladas: a pedagogia construtivista e outras formas de governo do eu. Petrópolis : Vozes, 1998. p. 143-216. WALZER, John F. Un período de ambivalência: Ia infância en América dei Norte en ei siglo XVIII. In: DeMAUSE, Lloyd (Dir.). Historia de Ia infância. Madrid : Alianza, 1995. p. 384-418. WILSON, Adrian. The infancy of the history of childhood: an appraisal of Philippe Aries. History and Theory, New York, v. 19, n. 2, 1980. p. 133-53.

Editora Ü N ! } Ü ! _ _ livros editados

_

FRQNIEIRAS-fDUCACAO I - Por Uma Teoria da Pedagogia: Pesquisas Contemporâneas sobre o Saber Docente Clermont Gauthier, Stéphane Martineau, Jean-François Desbiens, Annie Maio, Denis Simard 2 - 0 Tortuoso e Doce Caminho da Sensibilidade: um Estudo Sobre Arte e Educação Angela Maria Bessa Linhares 3 - Co-Educação Física e Esportes: Quando a Diferença É Mito Maria do Carmo Saraiva 4 - A Escola no Computador: Linguagens Rearticuladas, Educação Outra Mario Osório Marques 5 - Inter-Relação: A Pedagogia da Ciência - uma Leitura do Discurso Epistemológico de Gaston Bachelard Ilton Benoni da Silva 6 - História da Educação Brasileira: Formação do Campo Carlos Monarcha

(Org.)

7 - A Eticidade da Educação: o Discurso de uma Práxis Solidária/Universal Alvori Ahlert 8 - Não Brinco Mais: a (des)Construção do Brincar no Cotidiano Educacional Maria Sílvia Pinto de Moura Librandi da Rocha 9 - Do Manifesto de 1932 à Construção de um Saber Pedagógico: Ensaiando um Diálogo entre Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira Pedro Ângelo Pagni 10 - Economia Popular e Cultura do Trabalho- PuJügogia(s) da Produção Associada

Lia Tiriba I I - História da Infância Sem Fim Sandra Mara

Corazza

12 - Ética e Educação Para a Sensibilidade em Max Horkheimer Divino José da Silva 13 - Educação nas Ciências: Interlocução e Complementaridade Mario Osório Marques 14 - Pedagogia das Imagens Culturais: da Formação Cultural à Formação da Opinião Pública Amarildo Luiz Trevisan 15 - Relacionamento Alunos-Professores na Construção do Conhecimento Arnildo Laurêncio Rockenbach 16 - Filosofia da Educação: um Estudo sobre a História da Disciplina no Brasil Elisete M. Tomazetti

Related Documents


More Documents from "gilclay"