Castel, R. A Gestão Dos Riscos

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-

Robert Castel

AGESTAO DOS RISCOS DA AN TIPS/00/A TRIA À PÔS.PS/CANÀUSE:

Tradução Celina Luz

-

Francisco Alves

©

1981 by Les Editions de Minuit

Título original: La Gestion des Risques

a Franco Basaglia,

Revisão tipográfica: Henrique Tarnapolsky Uranga

Impresso no Brasil Printed in Brazil

1987

ISBN 85-265-0084-8

Todos os direitos desta edição reservados à LIVRARIA FRANCISCO ALVES EDITORAS.A. Rua Sete de Setembro, 177 - Centro Te!.: 221-3198 20050 - Rio de Janeiro - RJ

vivo pelo que nos mostrou: que a utopia, quer dizer, o pensamento generoso e desinteressado, predominava sobre a realidade se nele colocássemos, até o fim, obstinação suficiente.

"Que seja inversa ou diretamente proporcional, de causa a efeito, inter-humana, econômica, incestuosa ou diplomática, a relação, salda das carências do positivismo que deveria ter levado ao fracasso, encontra-se atualmente no centro de todas as reformas tecnocráticas, dotando-as de uma caução revolucionária, mantida de longa data: o senhor Lip pode finalmente responder ao senhor Freud, o salão da senhora Verdurin engendrou as comissões prioritárias. " Folheto do Comitê de Ação Saúde, divulgado em setembro de 1968.

--~-~-------··-"·------

Sumário Apresentação

.

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Capítulo 1: MITOS E REALIDADES DO "AGGIORNAMENTO" PSIQUIÁTRICO 21 1. Grandezas e servidões contestatárias O imaginário da liberação 22 - Psicanálise e tabu 26 - Limites da an tipsiquiatria 29

22

2. A resistivel ascensão do reformismo 32 A reestruturação da profissão 33 - Um novo dispositivo institucional 38 - O expansionismo psiquiátrico 40 3. Um principio de não escolha 43 - IBtrapassar ou reformar o hospício? 44 - Prevenir ou reparar? 46 "Serviço do usuário" ou controle social? 49 - A infância, primeira ou última das preocupações? - Unidade teórica, ou consenso tático? 53

4. O desencantamento 55 Um balanço decepcionante Inércias e resistências 58 Os órfãos de um mi to 61

55

51

Capítulo 2: A MEDICALIZAÇÃO DA SAÚDE MENTAL

I. A crise da "medicina especial" 68 Novos filantropos e primeiros tecnocratas 68 A banalização institucional 73 Da instituição especial às instituições especializadas A homogeneização profissional 77 2. O mal-estar na clínica 80 A vitória de um marginal 81 - Um remédio miraculoso 86 - Bonito demais para ser verdade

67

75

Capítulo S: A GESTÃO PREVISÍVEL

3. Uma a-social-sociabilidade 156 O social não é mais o que era 157 A objetividade do psicológico 159 Narciso libertado, ou Prometeu acorrentado?

163

Conclusão: EM DIREÇÃO A UMA ORDEM PÓS-DISCIPLINAR? - A bipolaridade objetivismo-pragmatismo 171 - Mudança tecnológica e história 175

88

3. A volta do objetivismo médico 90 Mudança do imaginário profissional A pesquisa biológica 92 A terapia comportamental 96 Um novo paradigma 98

2. Trabalhar o capital humano 143 O trabalho sobre a normalidade 143 - A promoção do relacional 147 - A vida de rede 152

Referências bibliográficas

90

Índice Remissivo

100

1. Do se encarregar à gestão administrativa 101 Um novo dispositivo jurídico-administrativo - Da doença à deficiência 105 - O especialista mascarado 107

102

2. A gestão previsível dos perfis humanos 110 A constituição dos perfis 111 - Da programação dos equipamentos à das populações - Mais vale prevenir do que remediar 114 3 . A nová política social 117 Dirigismo e convivência 118

Centralismo e diferenciação 122 Da periculosidade ao risco 125 O objetivismo tecnológico 129 Capítulo 4: A NOVA CULTURA PSICOLÓGICA

1 . A desestabilização da psicanálise 134 Uma cultura psicanalítica de massa 134 A crise da ortodoxia 13 7 Herdeiros e bastardos 140

133

112

191

181

169

Apresentação

No curso dos dez últimos anos, um certo tipo de crítica da medicina mental, que de maneira esquemática, enfeitada com a etiqueta de "antipsiquiatria'', irrompeu bruscamente no campo intelectual, pareceu se impor e se encontra hoje contestada por sua vez. Paralelamente, formas novas de análise das instituições e do poder, que se pode outro tanto aproximativamente colocar sob o rótulo de "problemática do controle social", desenvolveram-se e parecem igualmente se esgotar. Primeira questão: como atou-se esta conexão inesperada entre críticas setoriais de prá.ticas freqüentemente marginais e as apostas estratégicas que operaram o período contemporâneo? Há somente quinze anos os problemas colocados pela doença mental ficavam circunscritos a um domínio mal conhecido do público porque entregue à conta previdenciária das situações de exceção e deixado aos especialistas. Portanto, um conjunto de lutas práticas, e também simbólicas, estabeleceu-se sobre a reabilitação da loucura, através das quais a utopia de. uma libertação completa do assunto se confrontava com as imposições da organização social, pensadas como arbitrárias, irracionais, alienantes. Por que uma problemática profissional de resto prosaica encontrou um imaginário político superdeterminado? Segunda questão: por que a mola que animava tais tentativas parece hoje tão esticada, se não quebrada? O decênio que acaba de se esgotar foi marcado pela conjunção do psicologismo e do politismo. Nos anos que seguiram 13

1968, pare~eu a muitos que, a um projeto de exploração radical do assunto, correspondia uma polític~ igualmente radical, e que não era mais necessário escolh:_r entre revolução social e revolução pessoal: libertação do sujeito, libertaçao das massas, mesmo combate, e, para dizer a verdade, único combate verdadeiramente revolucionário. Esta posição incluía uma crítica da "velha" política concebida como uma cena separada com seus profissionais, suas instituições e suas organizações. Contra as estratégias globais animadas pelas burocracias políticas e sindicais, era preciso, dizia-se, definir os alvos limitados investidos sobre a base de urna implicação pessoal direta. Foi o que se chamou um momento as "lutas setoriais", que levaram o afrontamento político aos novos setores institucionais - hospitais, prisões, instituições pedagógicas ... - onde era sobretudo denunciada a imposição de uma hierarquia, quando nem mesmo a exploração econômica era nela evidente. A esse primeiro deslocamento logo seguiu-se um segundo, por superposição sobre o próprio sujeito da estratégia da libertação: combate contra as alienações cotidianas, as coerções difusas, luta das minorias sexuais, feminismo ... O corpo tornava-se o último palco onde se perseguia a repressão e onde se disfarçavam os traços do poder. A redefinir assim a política, esquecemos talvez de nos indagar se não extenuávamos progressivamente o seu conceito. Se tudo é política, talvez em última análise nada é política, exceto uma política da pessoa, versão à moda dos velhos tempos do apolitismo psicológico. Em todo caso, muitos experimentaram que a subjetividade "liberada" logo se encontrava sem confrontação: potencial psicológico que não tem outro objetivo a não ser slla própria cultura, narcisismo coletivo onde novas gerações de Amiel se acariciam perpetuamente o ombro. A imagem é inspirada em Sartre, que já há muito denunciava na velha introspecção a tentativa de cavar infinitamente em si mesmo p_ara atravessar o espelho no qual a subjetividade se perde através da multiplicidade de seus reflexos. Certo, agora, é sobretudo uma mais-valia de gozo ou de eficiência do que uma soma de conhecimentos que se procura extrair de suas próprias profundezas. Podemos também dispor de técnicas científicas para conduzir esses exercícios, e alugar novos profissionais para dirigi-los. Mas, do divã às tecnologias importadas dos Estados Unidos ou da Índia - Gestalt-terapia, análise transacional, rolfing ou ioga - não teríamós nós inventado só dispositivos mais refinados para explorar e transformar o único território que valeria sê-lo, o psiquismo consciente ou inconsciente? Havia aí uma necessidade nessa mutação que introduz aos aspectos mais contemporâneos de nossa modernidade? Ou então a um dado momento o processo de "liberação" derrapou - e, nesse caso, quando, onde e por q~ê? 14

Talvez começa a ser possível hoje dar uma certa inteligibilidade, ou pelo menos uma legibilidade nova, a esse feixe de acontecimentos que recentemente nos perpassaram. Podemos talvez agora tomar um certo recuo a respeito da representação que uma época se dá de si mesma, para obrigá-la a entregar alguns de seus segredos. Para fazer isso, tentarei balizar um percurso que, em uma dúzia de anos, leva da crítica da instituição totalitária à do totalitarismo psicológico. Trata-se de cercar as condições de uma mutação contemporânea de técnicas médicopsícológícas para chegar numa primeira avaliação do que, no conjunto de nossa cultura, começa a ser transformado pela hegemonia do que chamarei de tecnopsicologias. Mas uma tal tentativa impõe um preâmbulo: evitar projetar sobre o presente e o futuro o sistema de representações que, nesse terreno, dominou os anos setenta.

Até estes últimos anos a psiquiatria clássica parecia a ponto de conseguir seu aggiomamento, o que implicava a um só tempo a transformação profunda de suas condições de exercício e a continuidade de sua tradição secular. Transformação profunda, pois ela se esforçava para romper com a antiga solução segregativa para intervir diretamente na comunidade. Mas continuidade de seu projeto, pois essas novas modalidades de intervenção continuavam a visar a um objeto específico, a doença mental, através de instituições específicas, se bem que desdobradas a partir de então sobre todo o tecido social. Ela continha também a pretensão de se encarregar totalmente das populações sob sua responsabilidade: da prevenção às tentativas de ressociabilização passando pela fase propriamente terapêutica, renovava as condições de uma assistência constante e contínua que tinha sido realizada sob uma forma rude pelo confinamento em asilo. Enfim, a medicina mental moderna conservava a vocação de serviço público. da psiquiatria clássica. Seus reformadores tinham avidamente defendido essa concepção de um serviço nacional, impulsionado e financiado pela administração central, e o Estado parecia lhes dar razão. Na França, a "política do setor", nos Estados Unidos, a implantação de centros de saúde mental na comunidade (Community Mental Health Centers), uma e outra primeiro imaginadas pelos profissionais reformadores, depois aceitas pelos administradores modernistas, tornam-se nos anos sessenta a nova política oficial da saúde mental a promover e generalizar. Paralelamente, a relação psicanalítica continuava a se verificar para o paradigma de um tipo de prática bem diferente, liberta das imposições político-administrativas nas quais a psiquiatria corre o risco de soterrar. Ela pre15

tendia propor uma aproximação sui generis para uma exploração desinteressada da problemática da pessoa. Sem dúvida esse ideal de uma relação que escapa às lentidões sociais estava perpetuamente ameaçado de "recuperação" pelos interesses profissionais, administrativos, políticos, comerciais. Sem dúvida também, essa representação se revelava pouco compatível com o papel efetivo que a psicanálise tinha começado a representar, após vários anos na transformação das instituições e das técnicas psiquiátricas. Mas, para a maior parte de seus adeptos, nisso seguidos pela comtinidade intelectual em sua maioria, essas peripécias não engajavam verdadeiramente seu destino. Parecialhes sempre possível retornar dali à pi:.reza da mensagem e ao rigor da técnica analítica ( o famoso "retorno a Freud") para reencontrar as condições de uma abordagem da subjetividade incomparável em todos os empreendimentos reparadores ou manipuladores. Assim, a partir dos anos sessenta, o futuro parecia plúmbeo pela presença simultânea no campo médico-psicológico desses dois dispositivos de vocação hegemônica: uma psiquiatria pública cuja inserção comunitária vai progressivamente se impor e lhe permitir esposar seu século; uma psicanálise que representa um modelo intransponível na abordagem da problemática do sujeito. Futuro aberto sem dúvida, pois se trata de dispositivos em curso de implantação e que ainda não realizaram integralmente suas promessas; mas futuro apesar disso pré-desenhado a partir da projeção dessas duas linhas de força. Mostraremos sem dificuldade que um consenso geral existiu sobre a dominância desse modelo até a metade dos anos setenta, a um só tempo entre os que o instalavam com entusiasmo e entre os que o denunciavam. Em particular, o movimento de crítica da medicina mental viu na reconversão do dispositivo psiquiátrico uma das vias reais que iam servir-se dos controles estatais para se difundir na comunidade; ao mesmo tempo, aceitando com freqüência as pretensões à extraterritorialidade social e à neutralidade política da psicanálise, dispensou-se de refletir sobre o desenvolvimento de novas regulações que não passavam mais por esse aumento da dominação do aparelho do Estado. É essa conjuntura que hoje é preciso reavaliar. Um exame mais minucioso de transformação das práticas libertará um hiato entre o que é constatado ou denunciado e o que foi efetivamente divulgado sob o rótulo da medicina mental e de suas formações derivadas. Simplificando muito: é no começo dos anos setenta que se desenvolve sistematicamente uma contestação da medicina mental enquanto ela reproduz a herança dos asilos e cumpre uma parte das tarefas do aparelho de Estado. Mas esta data marca paradoxalmente o começo de uma reorganização das práticas médico-psicológicas, através da

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qual elas se desembaraçam melhor dessa cumplicidade direta, e se banaliz~r:, no interior de uma ampla gama de intervenções diversificadas ( trabalho social, perícia, ação sanitária, gestão das populações em risco, e até "terapia para os normais"), das quais não se pode_mais desvendar as funções complexas que assumem, colocando somente à frente seu caráter coercitivo, segregativo, repressivo. Compreende-se melhor assim que a maioria das críticas (exceto as que ousaram se referir também à psicanálise, mas não é um acas~ ~e foram particularmente mal recebidas) tenham perdido as descobertas mais movado. ras do dispositivo que se implantava. Mais: em nome da luta contra a repressão, a contestação das funções mais manifestas da medicina mental freqüentemente apresentou-se como crítica de suas formações arcaicas, assegurando a promoção das novas técnicas e das novas instituições que iam encadear a modernização do sistema. . Então hoje começa a se tornar pensável que a medicina mental esteJa em vias de perder a especificidade que tinha conquistado e defendido através de uma história secular. Acontece também, ou vai se tornar cada vez mais evi· dente, que a psicanálise não poderá mais reivindicar por muito tempô .uma posição de originalidade absoluta e intransponível em meio a uma batena de novas técnicas psicológicas de que em parte ela constituiu a plataforma de lançamento. Mas restabelecer esses dados não consiste somente em retificar um ponto da história. É uma verdadeira reviravolta que se verifica. Sob os debates rumorosos que ocuparam a frente do palco há uma dúzia de anos, novas tecnologias apareciam e marcavam época. A mutação se esboçava. Hoje aparece claramente. Arrastadas pelo mesmo movimento de fundo, a psiquiatria e a psicanálise entram em crise, sua hegemonia se decompõe, e sua contribuição é a partir disso banalizada em meio a uma nova configuração que não domi· nam mais. Essa rede diversificada de atividades de expertises, avaliações, assinalações e de distribuição das populações que representa uma nova fórmula de gestão do social está agora por ser descrita. Assistimos ao advento de estratégias inéditas de tratamento dos problemas sociais, a partir da gestão das particularidades do indivíduo. A um extremo desse léque, encontraremos a administração autoritária, ainda diretamente orquestrada pelo aparelho do Estado, de populações "de riscos", a partir do estabelecimento de perfil que traça para elas as fieiras sociais que serão obrigadas a empregar. E a gestão dos riscos sociais. No outro pólo florescem inovações de caráter aparentemente quase lúdico: exercícios de intensificação do "potencial humano", técnicas de desenvolvimento do capital relacional, produção de uma cultura psicológica

un:

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de massa que consumidores bulímicos ingurgitam como um analogon de formas de sociabilidade perdidas. É a gestão das fragilidades individuais. Será preciso mostrar que aí existe um teclado de possibilidades articuladas em função dos tipos de populações que elas tocam, e ali ressituar, como que intermediários e relais, as antigas posi_ções hegemônicas, psiquiátrica e psicanalítica, agora destronadas. Seja então o movimento deste texto. Reconstituir primeiro, a partir da crônica recente, esta espécie de ponto falso no qual foram apanhados os movimentos de crítica da medicina mental e da psicanálise, impondo-se no fim de um ciclo e visando a um conjunto teórico-prático no momento em que começa a se dissolver. Empenhar-se em desconstruir as antigas representações dominantes, mostrando que elas eram suas contradições internas, e porque não puderam superar os desafios que a conjuntura recente lhes apresentava. Então somente começar a seguir as linhas de recomposição que trabalham hoje esse campo psícotecnológico em três direções principais: um retomo forte do objetivismo médico que substitui a psiquiatria no regaço da medicina geral; mutação das tecnologias preventivas que subordina a atividade de tratar a uma gestão administrativa das populações de riscos; a promoção de um trabalho psicológico sobre si mesmo que faz da mobilização da pessoa a nova panacéia para enfrentar os problemas da vida em sociedade. Em suma, retornar a uma história próxima, não como um historiador, mas correndo o risco de constituir o presente em trocador entre o passado e o futuro. É, ao mesmo tempo, a possibilidade de ajustar a posição crítica às novas formas de dominação. Sem dúvida, continuam a existir instituições coercitivas, intervenções diretas e freqüentemente violentas do poder de Estado. Mas a análise desses modos de imposições foi feita, pelo menos em seu princípio. Mais do que reiterá-las para aplicá-las ao que surge de mais novo nas situações atuais, é preciso começar a tirar todas as conseqüências do fato de que a coerção está longe de constituir o único processo de imposição que mantém o consenso social, os equilíbrios econômicos e as regulações ideológicas. Existem setores cada vez mais amplos da vida social para os quais o problema a enfrentar é sobretudo o da existência e do uso de uma espécie de liberdade vazia, no sentido em que ela não se liga mais nos processos reais de decisão em uma vida coletiva que só gera objetivos irrisórios. Existem também novas formas de gestão dos riscos e populações com riscos pelas quais a conjuração do perigo que representam nio se faz mais pelo enfrentamento direto ou a segregação brutal, mas por uma marginalização dos indivíduos que passa pela negação de sua qualidade de pessoa e de desconstruções de sua história. 18

Na ausência de uma reavaliação dessa situação, o desprezo das abstrações da "antiga" política induz uma forma sutil de psicologismo pelo qual a pessoa tornou-se o último objetivo legítimo de um processo de transformação completamente banalizada que se enfeita ainda, não se sabe por quê, com virtudes de progressismo. A desconfiança a respeito dos poderes centrais, das organizações estruturadas, desemboca numa apologia da sociabilidade de convivência onde os problemas da vida cotidiana são autogerados num quadro associacionista que faz de militantes reconvertidos os herdeiros das antigas damas d'oeuvre. Mas não basta se subtrair das formas de regalia do exercício do poder ou se refugiar nas terras de ninguém sociais onde se admitem produzir suas próprias regras de vida para se proteger de novas técnicas de in~trumentalização coletiva. Hoje, a revitalização de uma posição crítica passa pela compreensão do estatuto da subjetividade "liberada" e da subjetividade recomposta pelas novas tecnologias. Quais são os processos que as produziram? Quais são as novas estratégias que as orquestram e que constituem as modalidades mais específicas da gestão dos homens que se localizam nas sociedades capitalistas avançadas? Uma tal teoria está por ser feita. Eis, no entanto, alguns prolegômenos para começar a empreendê-la. Na versão proposta aqui, seu alcance é limitado, já que repousa sobre a credibilidade de uma demonstração que se refere somente à reestruturação do campo médico-psicológico. Por um lado, é uma escolha: não me converti às visões panorâmicas da história que começam com a Bíblia no deserto da Judéia e terminam nas estepes siberianas com Soljenitsin. Mas é também uma lacuna, pois, partindo da análise das modificações de um domínio restrito de práticas, só se pode evocar de um modo alusivo as transformações globais das estratégias do poder, cujas modificações setoriais só apresentam, no entanto, um caso de porte. Por isso, propus algumas hipóteses para relacionar este estudo limitado com a evolução sócio-política geral. À espera de uma sistematização mais satisfatória, pode nisto haver urgência para, pelo menos, pressentir quais podem ser as novas regras do jogo, antes que os jogos estejam completamente feitos. Acrescento que reconstruí aqui uma evolução tendencial que cada vez mais se impôs nestes últimos anos, à medida que a sociedade francesa se reestruturava segundo um plano de governamentabilidade neoliberal. Em que medida as mudanças políticas ocorridas recentemente são de natureza a afetá-la, é uma pergunta de resposta prematura hoje, mas ela inicialmente convida a tentar o balanço da situação que está na hora de enfrentar.

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Capítulo 1

Mitos e realidades do aggiornamento psiquiátrico Nada mais espetacular, aparentemente, do que as mudanças que intervieram no estatuto social da medicina mental há uma dúzia de anos. Em vez da quase indiferença do público e do monopólio entregue aos profissionais para fazer as perguntas legítimas, abordagens antropológicas, históricas, sociológicas, políticas, poéticas, impuseram-se em um domínio outrora quase totalmente dominado pelas categorias médicas. Tornou-se aceitável - em certos meios, às vezes, exigido - que pessoas que, por sua formação técnica, nada teriam a dizer, mantenham discurso sobre a loucura. Atribui-se em geral aos acontecimentos de 1968 e suas recaídas aresponsabilidade desse deslocamento. É parcialmente exato, desde que se acrescente que o fascínio exercido pela psiquiatria e o sucesso frágil da antipsiquia· tria repousam num certo número de curtos-circuitos inesperados, que foram fonte de tantos mal-entendidos. Na raiz destes, a imensa distância que exigiu entre as novas metas assim aparecidas e o que se passava ( ou melhor, o que não se passava) tanto no plano das práticas como das especulações próprias ao pró· prio meio psiquiátrico. Em outras palavras, o corte que afetou o imaginário político da época não o foi absolutamente ao nível da organização da profis. são. Implicação: sob os acontecimentos espetaculares e as esperanças messiâ· nicas, é preciso destacar as linhas de força que lentamente trabalharam o campo médico-psicológico para dar-lhe sua configuração atual. 21

1. GRANDEZAS E SERVIDÕES CONTESTATÁRIAS

Contrariamente a uma opinião espalhada por antigos combatentes, que colorem suas lembranças sobre o fundo do esquecimento, não se passaram efetivamente na França coisas extraordinárias em psiquiatria por volta de maio de 1968, pelo menos no sentido da ruptura que se atribui freqüentemente aos "acontecimentos". Alguns hospitais ocupados, algumas contestações das formas mais próximas do mandarinato no exercício do poder médico, algumas fraternizações incestuosas que provocaram curtos-circuitos p0r um tellipü muito breve nas hierarquias profissionais estabelecidas, muitas discussões, reuniões, projetos de mudanças metade sonhados e metade pensados. O essencial desta atividade, pelo menos em Paris, desenrolou-se no quadro das discussões e comissões organizadas pelos estudantes de medicina para reformar a organização dos estudos e da profissão. A temática dominante permaneceu assim centrada na exigência de modernizar e de racionalizar as condições do exercício da psiquiatria. 1 O efeito mais claro da crise de 1968 no meio psiquiátrico terá sido facilitar a aceitação de projetos de reformas em suma moderadas, consignadas há muito na literatura psiquiátrica. O imaginário da liberação

Assim, se uma certa contestação adveio à psiquiatria na época da crise de 1968, ela no essencial lhe chegou de fora, e não pode haver incidência sobre a prática a não ser numa espécie de pós-golpe. A mudança da percepção do estatuto da psiquiatria no pós-68 atém-se na verdade ao fato de que se cristalizou nesse terreno uma dupla temática bem mais geral: o deslocamento de certas lutas políticas e a superdeterminação da problemática da subjetividade. Os italianos inventaram a expressão "política redefinida" para qualificar a tomada de consciência de uma dimensão política atravessando os objetivos profissionais, os quadros institucionais outrora preservados pela neutralidade suposta de suas funções objetivas, e mesmo algumas esferas da existência privada. A essa mudança de sensibilidade corresponderam práticas. Confrontações explodiram em locais onde a exploração econômica ou a luta pela representatividade não eram evidentes, mas onde a distribuição das relações sociais, precedências, saberes e Competências, foi recolocada em questão. 1

Os números da Informação PsiauiátriNJ. publicados entre novembro de 1968 e abril de 1969 abriram uma seção, "O movimento de maio, documentos médicos e psiquiá· tricos", que reproduz alguns dos principais textos elaborados na época a respeito dos projetos de reorganização da medicina mental.

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Posições e hierarquias que pareciam alicerçadas sobre o conhecimento ou o mérito foram bruscamente reinterrogadas. Segundo quais categorias? Pareceu que o aparelho conceitua! da crítica tradicional de esquerda ( a grosso modo os quadros teóricos do marxismo em suas indicações econômicas e políticas clássicas) estava mal armado para impulsionar esse tipo de análises. Existe um projeto de objetivos estratégicos que não é nem o de afrontamento psicológico ( ainda que este se misture freqüentemente nisso), nem o dos determinismos sociais e econômicos globais (ainda que interesses de classe possam subentender as posições dos protagonistas). Esta problemática promoveu um tipo de análises fundadas na busca da distribuição dos poderes internos nas instituições e o despistamento das imposições objetivas aquém dos consensos de superfície. Sensibilização que fazia da exploração dos espaços fechados uma espécie de modelo metodológico experimentado a partir de um investimento pessoal. Se de fato pensamos (com ou sem razão) que um certo número de metas essenciais assomaram ao palco da política, concebida como um mundo separado, para estruturar a experiência imediata, disso resulta que é no plano de uma totalidade concreta, circunscrita pelo espaço que o indivíduo percorre e como saturada por sua experiência, que se deve analisar e controlar sua dinâmica. Ora, as "instituições totalitárias", que os hospitais psiquiátricos e as prisões representam em nossa época, permitem analisar este conjunto acabado de interações totalmente atravessado por jogos evidentes de poder. Palcos reais, mas fechados, povoados de seres de carne e osso, mas reduzidos a viver em toda sua existência a unilateralidade da imposição, essas instituições podem aparecer como um modelo reduzido, ou uma "boa forma" no sentido da Gestalt, para ajudar a ler o que se passa na sociedade "normal". Uma grade de interpretação como a de Goffman, por exemplo, que faz do totalitarismo menos uma monstruosidade incompreensível do que a cultura em recipiente fechado e a exasperação de estruturas de autoridade instaladas em numerosas instituições, 2 pode assim reencontrar uma experiência vivida em certos espaços sociais, hospitais, prisões, organismos de trabalho e, às vezes, mesmo fábricas, onde conflitos de ordem anti-hierárquica se sobrepuseram às reivindicações econômicas. Daí o sucesso de análises que tinham começado desde os anos sessenta a se interrogar sobre a finalidade social dessas práticas, mas em um contexto epistemológico e acadêmico mais do que político. Foi nesse momento que apareceu, por exemplo, uma segunda leitura da História da loucura, de Michel 2 GOFFMAN, Erving. Asylums, trad. francesa. Ed. de Minuit, Asiles, 1968.

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Foucault, onde o afresco histórico dos avatares dá insensatez cede o passo a uma sensibilidade exacerbada em relação ao fenômeno do enclausuramento e das potencialidades repressivas nele implicadas. Toda uma parte da obra de Michel Foucault, como de sua audiência prática, provém dessa osmose, entre pesquisa teórica e metas sociais vividas que fizeram de certos livros, como disse Gilles Deleuze dos do próprio Foucault, espécies de "caixas de ferramentas" disponíveis para eventuais usuários. 3 Só basta, aliás, enumerar as principais publicações, nascidas na efervescência de então, que começaram a popularizar essas análises além W.a i;:stiita intelligentsia universitária: Cardes foUs, Psychiatrisés en lutte, Cahiers pour la folie, Champ social, Que! corps, Joumal de l 'A.E.R L.I.P. (Associação para o estudo e a redação do livro branco das instituições psiquiátricas), etc.: elas foram tocadas sobretudo por uma minoria de profissionais interessados na base de uma crítica de sua profissão, trabalhadores sociais "trabalhadores da saúde mental", etc., e mesmo por a~tigos pensionista~ de instituições totalitárias como o Grupo de informação sobre os asilos (G.I.A.) e o Grupo de informação sobre as prisões (G.I.P.), compostos respectivamente sobretudo de antigos pacientes psiquiátricos e antigos prisioneiros. Se o rendimento das análises das instituições totalitárias em geral foi bastante elevado no que assumiam a contracorrente o "ponto de honra espiritualista'' de uma sociedade liberal como poderia ter dito Marx, e pareciam lhe desvendar a face vergonhosa, aquelas que se dirigiam mais exatamente para a psiquiatria se beneficiaram conjunturalmente de uma mais-valia de interesse. O que de fato era reprimido pela psiquiatria era a própria loucura, quer dizer, a expressão mais alta e a mais romanticamente infeliz da subjetividade. É preciso então colocar em relação, como as duas faces de um mesmo fenômeno social, o interesse suscitado por uma crítica da medicina mental de inspiração epistemológica ou teórica, e o sucesso da antipsiquiatria inglesa que popularizou o tema da "viagem" da loucura: a loucura é portadora de uma espécie de verdade misteriosa sobre a existência, sempre reprimida pela pressão social que a degrada em doença mental. Em vez de tratar o louco por meios coercitivos, é preciso ouvi-lo e mais ainda ajudar seus reencontres consigo mesmo acompanhando-o ao longo do percurso da loucura. Quanto ao regime intelectual, não havia ali aparentemente nada em comum entre aquela espécie de romantismo exaltado e a problemática mais acadêmica da ruptura com a ideologia médica. Mas que a obra de David Coopere a de Michel Fou3 Conversâ Gilles Deleuze-Michel Foucault, in Os intelectuais e o poder, L 'Are, n9 49.

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cault, por exemplo, tenham funcioilado de maneira intercambiável no seio dos mesmos grupos diz bastante sobre o que se pode interpretar como ecletismo, mas que demonstra sobretudo que o objeto desse interesse não era mais nem a análise teórica de um fenômeno social, nem a crítica de um setor particular da prática médica. É a partir desse momento que se pode começar a falar de antipsiquiatria. A antipsiquiatria como fenômeno social foi menos a crítica exata (teórica ou prática) de uma atividade profissional particular, do que a superdeterminação do sentido dessa atividade a partir de uma temática antiautoritária generalizada. A contestação antipsiquiátrica foi assim um ponto de fixação privilegiado de um imaginário político da liberação, vivida na época sob a forma de uma sensibilização exacerbada à repressão. A psiquiatria representou uma figura paradigmática do exercício do poder, arcaica em sua estrutura, rígida em sua aplicação, coercitiva em sua mira. Ela como que cristalizou as formas mais difusas de revolta contra a autoridade vividas na família e outras instituições. A psiquiatria funcionou como modelo, porque a relação de imposição que ela coloca em operação implica, pelo menos em suas formas tradicionais de exercício, uma desnivelização absoluta entre aquele que age e aquele que padece. Ela deixava ler a gratuidade e o arbitrário que pode caracterizar todo exercício do poder a partir do momento em que ele não se inscreve e.m uma relação recíproca. É a loucura, patética e sem munição, afastada do mundo mesmo se contém potencialidades enormes, que exemplifica melhor a contrario o imperialismo brutal e impessoal da razão instituída. Ao se tomar assim o principal cavalo de batalha da espontaneidade, a antipsiquiatria ganhava uma audiência imprevisivel e que seria incompreensível, se tivesse se co_ntentado em contestar as condições de exercício de uma prática particular como a prática médica. Mas, fazendo de seu alvo um modelo generalizado de poder, essa crítica se desconectava pela mesma ação da prática profissional. É significativo por exemplo que o próprio termo antipsiquiatria, proposto por David Cooper para nomear uma estratégia de ruptura real no quadro da instituição psiquiátrica,4 tenha se posto a boiar nas águas vagas de uma contestação plena. No quadro desta generalização, a organização _concreta da medicina mental torna-se mais ainda o pretexto do que o alvo principal da antípsiquiatria. Sem mesmo falar na corrente sem rumo mundana que uns tempos fez desta um tema em moda para ensaístas à míngua de reproduções, o afastamento 4

COOPER, David. Psiquiatn·a e antipsiquiatria. Trad. francesa. Ed. du Seuil, 1970.

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não cessou de aumentar entre um radicalismo crítico cujas denúncias permaneciam quase sempre sem apoio em relação às metas dos profissionais, e a reorganização efetiva da prática que se elaborava paralelamente. Psicanálise e tabu

Um outro componente da paisagem intelectual e política da época devia acrescer ainda à confusão: a pretensão de uma certa psicanálise a encarnar a verdade da crítica política da psiquiatria. Voltaremos às etapas da penetração da psicanálise no meio psiquiátrico e na intelligentsia (capítulos 2 e 4). Na base dessas implantações prévias, um pórtico qualitativo foi franqueado por volta de 1968. A psicanálise parecia então articular na unidade de uma teoria rigorosa os dois componentes essenciais do movimento, a superdeterrninação do político e a superdeterminação do psicológico, e levá-los ao seu ponto de incandescência: politismo e psicanalismo. A psicanálise, ou melhor, sua orientação lacaniana. Nos anos cinqüenta, Jacques Lacan tinha tido o mérito, pelo menos aos olhos da inteligência de esquerda, de conduzir uma crítica vigorosa da psicanálise americana, denunciando suas funções adaptadoras através de seu desvio teórico no sentido de uma psicologia do eu. Ele economizava assim a possibilidade de uma síntese psicanálise-política que o partido comunista tinha perdido no momento da guerra fria. Em sua crílica da americanização, cuja integração da psicanálise ao american way of life parecia um componente, a política cultural do partido comunista francês não tinha então encontrado outro meio a não ser denunciar ( e fazer denunciar pelos psicanalistas do partido) a psicanálise como elemento da ideologia dominante, e mesmo como repositório do imperialismo. 5 Esse mesmo partido comunista opunha-se vigorosamente, a partir de 1968, a um esquerdismo acusado de ser um desvio pequeno-burguês, cujo sinal mais evidente era a ênfase colocada sobre a liberação individual e o culto da realização pessoal em detrimento da luta de classes. Revolução proletária ou revolução pessoal, para a esquerda clássica era preciso escolher. O sucesso do lacanismo deveu-se sobretudo porque permitia economizar essa escolha. A radicalidade é una e indivisível, quer dizer, simultaneamente política e psicológica. Benefício político: essa problemática se inscreve no quadro da crítica à moda da "velha" política abstrata, aquela dos partidos e das burocracias sindicais que desenvolvem seus programas ao preço do rechaçamento da subjetividade; a nova política se encarrega, num só movimento, das lutas concretas e o sujeito concreto das lutas. Benefício psicológico: a 5

Cf., assinado por vários psiquiatras comunistas, Autocrítica: a psicanálise, ideologia reacionária. Nouvelle Critique, 7, junho de 1949.

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ação política não é mais paga com a amputação dos investimentos subjetivos; a liberação social e a liberação pessoal fazem parte da mesma trajetória, e potencializam seus efeitos. 6 A rentabilidade dessa postura foi ainda reforçada com o refluxo do movimento. Se a revolução social é despachada para um futuro imprevisível, pelo menos pode-se, mantendo a preocupação de um trabalho sem concessão sobre si mesmo, continuar a ocupar uma posição de radicalismo inexpugnável. A ideologia psicanalítica serviu assim de estrutura de desdobramento a uma ideologia política quando esta constatou a ruína de suas esperanças. Certamente é um fato conhecido que o fracasso ou a repressão de um movimento político acarreta um desdobramento na esfera do privado. Mas o maravilhoso, com a psicanálise, é que ela permitiu pensar esse deslocamento, ao contrário de um recuo ou de uma derrota, como uma radicalização, que decantava a posição politicamente justa no próprio momento em que perdia seus suportes na realidade. O combate liberador se perpetuava num "outro palco". 7 Assim o método psicanalítico é subversivo por essência, já que é capaz de rachar todos os confortos e todos os conformismos. Ele procura um ponto de vista e critérios capazes de julgar (e de desqualificar) toda situação, não somente de ordem psicológica, mas mais geralmente de ordem social e política, que não está à altura de suas pretensões. Se essa posição dominou por um momento o campo intelectual da extrema esquerda, nos ateremos aqui a destacar a função que ela teve em relação à questão psiquiátrica. Ela alimentou a dicotomia absoluta opondo a má psiquiatria (porque repressiva) à boa psicanálise (porque subversiva). Manteve assim uma parte do meio profissional em sua boa consciência em relação à inocência política da prática psicanalítica, creditada das virtudes da neutralidade, e mesmo das da subversão, com a única condição de se abster de uma integração direta com o aparelho do Estado. Compreende-se assim que seja a obra de uma psicanalista, Maud Mannoni, que tenha sem dúvida feito mais para divulgar na França os temas da 6

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Para ser completo, seria preciso fazer aqui uma valorização da audiência reencontrada por Reich no mesmo momento e cm meios próximos. No entanto, Rcich tocou um público ao mesmo tempo menos intelectualmente sofisticado e conectado com práticas políticas mais do que profissionais. Além disso, a maior simplicidade (os psicanalistas dizem simplismo) do corpo teórico e da técnica reichiana permitiu bem ligeiro um deslizamento em direção das formas de "nova~ terapias" que já anunciam a pós-psicanálise (capítulo 4). Para ilustrações de época dessa atitude de época, cf. CASTEL, Robert. O psicanalismo, Ed. Maspero, 1973; UGE, 1976 e Flammarion, 1981.

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Freud e do presidente Mao, o aforisma do primeiro "A história do homem e a história de sua repressão", pretendendo dar a chave da revolução cultnral do 10 segun do.

antipsiquiatria. O argumento central do livro é no entanto frágil. Repousa sobre essa oposição maniqueísta entre uma posição psicanalítica pura e justa e uma psiquiatria cúmplice da administração para instalar uma política repressiva de tratamentos ( o psicanalista, aliás, correndo o risco de se transmutar em "superpsiquiatra" traidor da causa psicanalítica, a partir do momento em que entra num serviço público). 8 Na obra que sucede esse ensaio, Maud Mannoni tem, aliás, uma fórmula que resume sua problemática: "É a psicanálise que, chegado o momento, é chamada a colocar um problema político."9 No quadro de uma divisão do trabalho bastante cômoda, a psiquiatria representou seu papel de "mau objeto". Sua organização se prestava mais imediatamente a uma reinterpretação política de sua função e não era difícil demais religá-la (a um só tempo sua "ciência", o tipo de "poder" exercido pelo médico, o caráter desusado de suas "instituições especiais" e a antiga legislação de 1838 que ainda legitima seu estatuto) a uma função administrativo-política diretamente ligada ao poder de Estado, e exercendo uma ação essencialmente coercitiva. Em relação a uma ideologia, cuja liberação era a palavra mestra, a psiquiatria representava o bode expiatório ideal. Diante desse empurrão, a psicanálise acumulava aparentemente todos os traços positivos. No plano do saber, o caráter altamente sofisticado da teoria psicanalítica e a sutileza das categorias de seu discurso contrastam com a aproximação fora de uso das nosografias psiquiátricas; no plano institucional, uma prática nova, em vias de implantação, escapa aos arcaísmos, fontes de bloqueios e de disfuncionamento, que embaraçam a tradição psiquiátrica; e, sobretudo, o caráter privado das formas mais visíveis de seu exercício lhe assegura os benefícios da neutralidade política: bastar-lhe-ia abster-se da tentação de colaborar com as administrações públicas para perpetuar eternamente sua inocência. Ela pode até se declarar subversiva, já que se desdobra em um no man 's land social franqueado de imposições administrativas, pedagógicas e médicas, e não persegue outro objetivo senão o de ajudar a pessoa a descobrir uma verdade sua e de sua relação com outrem. Uma tal representação, demonstraremos, tem cada vez menm a ver com o processo real de divulgação da psicanálise. Mas o fato é que ela foi geralmente partilhada, não somente pelo meio psicanalítico, mas pela maioria da intelligentsia de esquerda. Testemunha este número especial de O Idiota Internacional de 1970 que ataca a psiquiatria hospitalar e a fórmula "reformista" do setor (a psiquiatria comunitária), mas é colocado sob o duplo patrocínio de

Limites da antipsiquiatria

É então geralmente na base desse duplo consenso - a psiquiatria, forma de repressão ligada ao aparelho de Estado, a psicanálise pelo menos neutra e mais freqüentemente adornada com prestígios do radicalismo contestatório que o movimento de crítica da medicina mental pareceu se impor. Na base também de uma inscrição mais mundana - jornalística, literária, teórica ... do que propriamente profissional. Estas particularidades dão conta de uma certa limitação de sua audiência, sem que se fique autorizado por isso a considerar negligenciável seu impacto. A popularização da temática antipsiquiátrica abalou primeiro o segredo institucional, que constituía uma regra secular de funcionamento da medicina mental. Era tradição para a administração central e mesmo para a justiça, conceder uma espécie de crédito moral aos responsáveis de instituições de um certo tipo (o problema é quase o mesmo para as prisões) a fim de que eles assumam melhor a gestão das populações a eles confiadas, certos de que um direito de fiscalizar sua prática seja exercido de maneira puramente formal. Por convenção tácita, o médico era insuspeitável, agindo o melhor para o bem indissolúvel de seus administrados, da administração e da justiça. Essa deontologia do segredo foi sacudida. A partir do momento em que a eventualidade da intrusão de um olhar crítico exterior faz pairar uma ameaça sobre a legalidade das práticas, estas tiveram que mudar. Por exemplo, se a facilidade de trancar sistematicamente os doentes pode ser longamente o primeiro reflexo dos psiquiatras, a tendência atual seria sobretudo inversa: é o que evitará ter de intervir autoritariamente no processo de localização. O temor de ser apanhado em erro por um olhar crítico não é estranho a essa evolução. Assim, em mala de 1977, o sindicato dos psiquiatras dos hospitais divulgava recomendações de "extrema vigilância" sobre a observação das disposições legislativas e regulamentares, em particular nas modalidades de destinação dos doentes mentais, motivando-os pelo risco que ali haveria, no caso contrário, de "fazer o jogo dos antipsiquiatras de todos os lados" .11

8 MANNONI, Maud. O Psiquiatra, seu louco e a psicanálise. Ed. du Seuil, 1970.

10

O Idiota Internacional, 10, set. 1970.

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11

"Editorial". Boletim do Sindicato dos Psiquiatras de hospitais, maio 1977, p. 3.

MANNONI, Maud. Educação impossível Ed. du Seuil, 1973.

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J

Mais geralmente, no decorrer dos dez últimos anos, a loucura saiu parcialmente de seu gueto. As ilhotas mais arcaicas da prática psiquiátrica foram erradicadas em sua maioria. A vida da maior parte dos serviços humanizou-se e sua organização aproximou-se das expectativas de uma parte da população. Um número crescente de psiquiatras cessa de se identificar com o papel tradicional de representante de uma ordem indissoluvelmente filosófica, social, moral e médica. Transformações próprias ao meio pesaram incontestavelmente nessa evolução, mas também esta pressão vir,. 'ia de fora. Uma dimensão nova abriu caminho no universo asseptizado do profissionalismo. Que o doente mental seja um ser humano é uma idéia a um só tempo banal e que vai de encontro há quase dois séculos de atitudes segregacionistas, justificadas primeiramente pela experiência de asilo, mas também amplamente partilhada pela opinião. Apologias, mesmo discutíveis, da loucura, contribuíram para quebrar esse claustro feito tanto de preconceitos quanto de muros. Experiências, mesmo aventurosas, que negavam qualquer diferença entre terapeutas e pacientes, deixaram pelo menos ver que a alternância do doente não era radical. Mais geralmente, uma certa prevenção para com o doente inscreveu-se, com um certo número de outras para com o prisioneiro, o indígena, o emigrado, em um grande empreendimento para fazer em pedaços a unilateralidade da razão ocidental e seu sentido burguês da virtude. A antipsiquiatria foi ao mesmo tempo o sintoma e um dos repositórios de uma nova sensibilidade, segundo a qual as partilhas do positivo e do negativo, do bem e do mal, da respeitabilidade e da indignidade, da razão e da loucura, não são traçadas a priori e não são substancializadas como irreversíveis. Se estas conquistas podem ser mantidas e aprofundadas, representaram talvez para um historiador futuro uma das raras mutações positivas que se deve à nossa época ambígua: aquela que terá restituído uma dimensão humana a algumas categorias de excluídos. A transformação mais decisiva intervinda após uma dezena de anos no setor da medicina mental foi sem dúvida como que um recuo do que se poderia chamar o "racismo antilouco", uma das formas mais profundamente inscritas da negação da diferença. Não haveria aí senão sua contribuição a depositar no crédito da antipsiquiatria a essa mudança, aqueles que dela participaram ou por ela foram assimilados não teriam a lamentar de nisso ter despendido algum esforço. E, na medida em que esse tipo de aquisição é sempre frágil, provisório e ameaçado, onde amplos setores da opinião alimentam ainda a antiga rejeição da loucura, onde enfim todos os racismos subterraneamente se dão as mãos na grande comunhão dos excludentes, valerá ainda a pena de nisso consagrar esforços no futuro.

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Mas no plano de reestruturação, ou da desestruturação do meio profissional, os resultados se revelaram mais decepcionantes. A esperança soerguida no momento de constituir um conjunto coerente de práticas alternativas franqueadas pelo monopólio dos técnicos e apoiadas em formas coletivas e populares de encargos dos problemas mentais, ardeu bastante. 12 Os que esposaram em sua coerência paradoxal a ideologia antipsiquiátrica foram freqüentemente acuados a wna espécie de fuga para a frente. Muitos deixaram a profissão, às vezes depois de ter tentado experiências difíceis e corajosas, mas quase sempre efêmeras. Os outros foram remetidos a sua insatisfação e má consciênci~. Os profissionais críticos no exercício de sua profissão não acharam no movimento de contestação nenhuma das armas exatas que poderiam utilizar para ajudá-los a transformar a situação existente. Existem aí várias razões, a um tempo internas e externas ao movimento. A luta contra o monopólio dos profissionais supunha alianças com as forças sociais exteriores. Estas não foram achadas, sem dúvida porque partidos políticos e sindicatos, a maior parte do tempo, só manifestaram indiferença a respeito de posições que se deveriam ter teoricamente inscrito no quadro de suas reivindicações sociais e autogestionáveis. O movimento crítico também não convenceu de sua capacidade de propor técnicas alternativas, quer dizer, capazes, ultrapassando uma contestação abstrata do tecnicismo dos profissionais, de fornecer ferramentas para atacar concretamente as dimensões sociais e políticas da doença mental. Mas esses limites se devem sobretudo ao fato de que o terreno já estava ocupado por outros modelos e outras técnicas, difíceis de atacar de frente. Ao contrário da Itália, por exemplo, onde wn movimento crítico vigoroso opôsse a um sistema psiquiátrico globalmente arcaico e acabou por reduzi-lo, 13 na França, a instalação de dispositivos institucionais mais sofisticados como o setor e novas técnicas em geral inspiradas na psicanálise, mobilizaram o essencial dos esforços dos profissionais progressistas. Eles contribuíram para desacreditar como ingênuas ou redutoras as tentativas de mudança que não se 12 Coletivo internacional, Rede alternativa à psiquiatria, UFE, 1977. 13 Esse movimento, começado em princípios dos anos sessenta em Gorizia, cm volta de Franco Basaglia, permaneceu muito tempo marginal e minoritário. Ele soube, no entanto, constituir-se pouco a pouco em força social importante, associando-se a correntes políticas e sindicatos. Em 1978, em grande parte graças à influência desse movimento que se tomou Psiquiatria Democrática, o Parlaml•nto italiano votou a lei 180, que programa a rnpressão dos hospitais psiquiátricos e prevê a integração da psiquiatria cm uma reorganização territorial dos serviços de saúde.

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enquadravam nas exigências de um tecnicismo modernista em via de implantação. Se os profissionais, em sua maioria, permaneceram relativamente alérgicos à contestação sócio-política, é porque possuíam seu próprio programa de reformas. O movimento de crítica foi a~sim empurrado, seja em direção a ações chamadas irresponsáveis, porque não podem se revestir de racionalizações sábias, seja em direção à denúncia das práticas mais arcaicas e mais arbitrárias da organização oficial: a lei de 1838, a violência da instituição totalitária, o arbitrário das rotulações psiquiátricas, a colusão das funções administrativas e médicas exercidas pelo psiquiatra, a tentação de reduzir o desvio social à doença, etc. Em suma, mais esta crítica se pretendia radical, e mais ela se limitava à contestação das formas mais manifestas da expressão psiquiátrica; mais ela se queria política e mais era levada a dar lances sobre a natureza diretamente política de seu alvo, a saber, as relações que a medicina mental mantém com o aparelho de Estado; mais também ela se instalava na denúncia de uma repressão sobre a qual estava claro que era "o poder" que puxava as cordinhas. É esta fixaçãCl de crítica sob o modelo de uma espécie de Estado-Leviatã, às vezes desequilibrando todo o campo da medicina mental, outras manipulando-a sub-repticiamente, que é preciso reconsiderar hoje. Se é verdade que o período pós-68 foi marcado sobretudo pelo encontro entre uma colocação em causa dos aspectos mais tradicionais da organização da medicina mental e a problemática político-moral das lutas anti-repressivas, compreende-se que tal contestação tenha sido especialmente eficaz contra as caracteristicas menos confessáveis dessa organização, as mais constrangedoras em relação a um projeto de modernização da própria profissão. No final, um espírito cínico poderia chegar a pretender que uma crítica que se queria radical contribuiu a impor na base de uma ação militante, quer dizer, da benevolência, quase o mesmo tipo de reàlização que a tendência reformista fazia prevalecer na~base de um trabalho oficialmente reconhecido e regularmente remunerado. E um fato aliás em que o alvo foi definido de maneira demasiado estreita em relação ~o co~junto do processo de transformação que agitou esse se.torno decorrer destes últimos dez anos. Resta agora restituir às mudanças internas do meio sua amplidão e seu ritmo próprio. 2. A RESISTÍVEL ASCENSÃO DO REFORMISMO Os psiquiatras têm, no entanto, eles também, sua hagiografia de 1968, mas ela é muito diferente da dos contestatános. A 18 de janeiro de 1969, 32

Henri Ey recebia nestes termos no hospital psiquiátrico de Soisy-sur-Seine o Ministro da Educação Nacional Edgar Faure: "A reunião de hoje marca a liberação da psiquiatria: ela só conhece um precedente, o grande impulse de organização de 1945. (... ) Nenhum domínio da medicina é mais favorável ao espírito de revolução na Universidade, e o senhor foi o presidente e grande mestre da Universidade, o artesão desta revolução psiquiátrica." 14 Mais perto ainda dos "acontecimentos", Charles Brisset, secretário do Sindicato dos Psiquiatras Franceses, escreveu: "Nós devemos reconhecer que o movimento dos estudantes permitiu às idéias do Livro branco se imporem com uma aceleração de vários anos. O efeito de "ruptura" que foi obtido pelos estudantes acarretou projetos de reformas além das perspectivas previsíveis há somente um ano." 15 A reestruturação da profissão

O que então aconteceu de tão feliz à psiquiatria? A certeza de ver enfim aplicar seu próprio programa de transformação, que tinha laboriosamente completado através de uma vintena de anos de esforços e tentativas e que está consignado, desde antes de 1968, no grande manifesto do reformismo psiquiátrico, o Livro branco da psiquiatria francesa. 16 Por volta de 1968 de fato, intervém uma série de medidas que parecem garantir o desenvolvimento da especialidade em bases renovadas. 1. "Da grande fermentação dos espíritos ( trata-se ainda de maio de

1968) nasceu enfim uma grande especialidade médica: a Psiquiatria." 17 De fato, o certificado de estudos especiais de psiquiatria é criado a 30 de dezembro de 1968. Na aparência, simples peripécia corporatista; mas, para os psiquiatras, conclusão de uma longa história conflituosa que marca o sucesso de uma estratégia profissional e funda a psiquiatria como campo teórico-prático autônomo. 14 15 16 17

EY, Henri. Apud Inter-Setor, 15, 1969, p. 32. BRISSET, Charles. Os acontecimentos de maio e o Livro branco. A Evolução Psiquiátrica, III, set. de 1968. p. 549. Livro branco da psiquiatria francesa. Ed. Privat. Toulouse. t.I. 1965, t.11, 1966, t.III, 1967.

EY, Henri. A psiquiatria, uma grande especialidade médica. A Imprensa Médica, 44, dez. 1968, p. 740.

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A separação com a neurologia põe fim primeiro a uma sit~ç~o p~ra~~xal. o essencial das. práticas da medicina mental se dava nos ho~pltats ps1qmatricos a formação ali se fazia no local pela intermediação do mtemato, e os psiquiatras públicos eram nomeados por um concurso a~inistra:ivo que s_e abria para uma carreira de médico~-funcionários. Mas o umco ensmo d~ ~s1quiatria era dado sob o rótulo da neuropsiquiatria nas FacuMades_de Medicma (Centros Hospitalares Universitários depois de 1958) por Uruvemdades cortadas da prática dos hospitals psiquiátricos. O corpo dos neuropsiqmatras se

reproduzia assim ele mesmo. Mais, o prestígio da ~~versidade os colocava como interlocutores privilegiados nas diversas connssoes onde se tomam as decisões estratégicas para o futuro da profissão. Além do fato de sere~ .excluídos das atividades de ensino que pareciam a seus o~os ser ~e s~u direito, 18 temiam ver-se cada vez mrus m~rgmaliz~do~ p~r 08 psiquiatras do "quadro" as decididas sem eles. O reconhecimento da autononna da ps1qmatna re form .. restabelecia assim uma certa paridade. Ele permitia vislumbrar uma part1~1p!ção dos psiquiatras no ensino de sua especiali~ad~. Ele os colocou na pos1çao de interlocutores válidos junto aos poderes pubhcos no momento em que a profissão se reestruturava. No entanto, se os psiquiatras dispensaram tantos esforços para obter essa separação, foi porque nela viram um objetivo mui_to mais pr~fundo do que a concorrência de duas estratégias profissionais: a propna questão do esta19 tuto da psiquiatria, e de sua existência como entidade espe7ffi~a: ~egundo Henri· Ey, principal cabeça do movimento reformador, esta ongmalidade do fato psiquiátrico que é o grande argumento do refo~mi~m~ que nos ~ns~ir~ a todos"20 passa primeiro pelo_ reconhecimento da ps1qwatna co~o disc1plin~ autônoma:· De fato, a psiquiatria só existe se a doença men~ ~x1ste, q~e~ dise é urna doença (então a psiquiatria existe como especialidade medica), ~ -~d. mas uma doença diferente (então a psiquiatria existe como-espec1 a e onginal). Esta questão da natureza da doença mental, questão do objeto e da existência da psiquiatria, é, aliás, um combate em duas frentes, p01s, como 18

o "quadro" é O nome

tradicional para o corpo de médicos dos hospi!ais psiquiátr.icos constituído llO século XIX para pôr em prática a lei de 1838 e cuJo estatuto tmha permanecido praticamente imutável até 1968 precisamente.

19 Sobre a história e os objetivos do conflito psiquiatria-neuropsiquiatria, cf; ~EC, c.01:tte. Em direção a uma psiquiatria normalizada, história de uma. estrategw profzsszonal, 1945-1970, tese de doutorado do 3
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diz ainda Henri Ey, "a psiquiatria, para responder ao seu objetivo, não deve perecer, nem por excesso de autonomia nem por excesso de dependência". 21 Veremos que o perigo que corre o risco de diluir a psiquiatria numa espécie de cultura relacional inspirada pela psicanálise é tanto mais grave do que a de sua banalização médica, e o próprio Ey tomará consciência disso mais tarde. Mas, por enquanto, o inimigo principal é ainda o inimigo hereditário, quer dizer, a neurologia, e acaba de ser vencido, ou pelo menos parado em sua expansão. O próprio Edgar Faure rubricou o tratado que garante a au:odeterminação da psiquiatria e pode lhe servir de base operacional para desenvolver · todas as suas potencialidades. Talvez se pense que era ingênuo dar tanta importância a uma resolução do Ministro da Educação Nacional. Mas, além do que lá se tratava, aos olhos dos psiquiatras, da questão da vida ou morte da psiquiatria, esse reconhecimento de sua autonomia ia na mesma direção de uma série de outras medidas mais ou menos contemporâneas, que pareciam provar que aquela "grande especialidade médica" estava realmente conseguindo impor sua hegemonia. 2. A 3 de janeiro de 1968, o Parlamento tinha votado uma lei sobre os "incapazes maiores" revogando certas disposições da lei de 30 de junho de 1838 sobre os alienados relativas à gestão dos bens e aos direitos civis dos doentes mentais. Essa lei de 1838 funcionava há mais de um século de maneira monolítica, segundo o princípio do tudo ou nada. Ela tinha correspondido a um estágio de desenvolvimento da psiquiatria onde ser alienado era ter que ser internado, e onde a atividade terapêutica se passava inteiramente em espaço de asilo fechado. A lei tinha sido ultrapassada pela instalação de novas práticas, como a abertura dos serviços livres em meio hospitalar, onde as admissões se fazem a pedido independentemente da lei, e pelo desenvolvimento de atividades extra-hospitalares, elas também sem regime especial. Mas a legislação de 1838 permanecia o núcleo rígido que freava as possibilidades de expansão da medicina mental, já que ela representava sua única cobertura legal num modo pesadamente discriminativo. Os psiquiatras reformistas pediam insistentemente, seja sua supressão pura e simples, seja uma transformação profunda que quebraria a tautologia alienado-internado, outro tanto ruinosa para sua prática quanto chocante em relação a qualquer ideologia que queria romper com as tradições segregacionistas. Assim, desde 1945, eles defendem "um ponto de vista novo, saído dos trabalhos mais recentes, que destrói a noção de internação e a ela substitui um teclado de medidas de assistência infinitamente mais maleáveis, acrescendo consideravelmente o caráter médico da as21

EY, Henri."Discurso de abertura". Livro branco da psiquiatria francesa. p. 3. t. I.

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sistência psiquiátrica e estendendo medidas médico-sociais cambiantes a todas 22 as categorias de perturbações mentais, segundo sua repercussão social". A nova lei de 1968 fornece uma resposta parcial a essas reivindicações reiteradas. Ela dissocia o internamento da colocação sob proteção judiciária. Doentes podem ser colocados sob a guarda da justiça, sob tutela ou sob curadoria por decisão judiciária, quer ·sejam hospitalizados ou não, em serviço aberto ou em serviço fechado. Inversamente, um doente internado pode conservar a totalidade de seus direitos. As medidas podem valer, aliás, para outros incapazes maiores - bebedores inveterados, pródigos, etc. - que não são doentes mentais. A alienação mental cessa de pertencer a essa categorização maciça a um tempo médica, administrativa e jurídica, que anulava umas pelas outras todas essas determinações e as resumia num estatuto de exceção. Certo, essa reforma de 1968 continua limitada ao estatuto de direito civil do doente, a lei de 1838 continuando a reger os outros aspectos de seu regime. Mas, nesse ano de 1968, iria fazer quase que exatamente um século que no final do Segundo Império um deputado chamado Gambetta apresentava o primeiro projeto de reforma e liberalização da lei de 1838. Dezenas de outros o seguiram, mas nenhum chegou ao fim. Não era proibido pensar que vencer uma resistência secular já constituía um grande sucesso, e que se tratava da primeira etapa decisiva em direção à abolição dessa legislação arcaica. (Hoje, cento e vinte anos depois de Gambetta e perto de um século e meio após sua promulgação, a refonna ou a revogação da lei de 1838 continua na ordem do dia ... ) 3. A 31 de julho de 1968 sai a lei trazendo reforma do estatuto dos médicos de hospitais psiquiátricos. Esta medida marca, aqui ainda, a conclusão de uma longa história. Os alienistas tinham sido os primeiros e durante muito tempo os únicos médicos (seguidos pelos médicos dos sanatórios, eles também encarregados de trabalhar no isolamento um "flagelo social"), dotados de estatuto de fllncionários: nomeados pelo Ministério, pagos com recursos públicos, responsáveis diante da administração local. Esse estatuto correspondia a importantes funções administrativas e até administrativo-políticas reconhecidas aos psiquiatras no quadro da lei de 1838. Enquanto isso, o exercício desse poder administrativo marcava os psiquiatras com um estigma cada vez mais difícil de assumir, à medida que eles reivindicavam o caráter essencialmente médico de sua prática. Na polêmica com os neurologistas e alguns reformadores que querem aproximar a psiquia22

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BONNAFÉ, Lucien. As jornadas psiquiátricas. O Méàico Francês, 39, 1945, p. 11.

tria das condições de exercício da prática nos hospitais comuns, eles se viam regularmente acusados de assim prolongar a tradição assistencialista da filantropia em detrimento da função de tratamento, que deve ser a partir de então a única justificativa de uma psiquiatria moderna. Parece que, ao contrário do que se passou com as outras reformas, não houve aí, à primeira vista, unanimidade sobre esse ponto no quadro. Este, por razões profundas, sobre as quais voltaremos, continuava muito ligado à tradição assistencialista. Mas a lei Debré de 1958, 23 que tinha deixado a psiquiatria fora de seu campo, continha riscos de marginalização grave se a medicina mental não,se ligasse à organização administrativa da medicina em geral. O conjunto da profissão se religa então à posição expressa nas conclusões do Livro branco: "A harmonização das estruturas administrativas dos hospitais psiquiátricos com as dos hospitais gerais, o alinhamento do estatuto dos médicos dos hospitais psiquiátricos com o dos médicos de horário integral dos hospitais gerais, vão no sentido do progresso no caminho da integração da psiquiatria na medicina. " 24 Ao mesmo tempo, os hospitais psiquiátricos cessam de ser estabelecimentos departamentais colocados sob a autoridade direta da administração local para se tornarem autônomos como os outros hospitais. A nova lei introduz assim uma hierarquia no quadro, instituindo dois concursos de recrutamento, o de "assistente", para entrar na carreira, e o de "psiquiatra", para ser o médico-chefe do serviço. Era talvez ir um pouco longe em direção da integração à medicina. O novo estatuto dos psiquiatras vai ser o cavalo de Tróia, que tornará possível a passagem da psiquiatria para a banalização médica (capítulo 2). Mas esta implicação só se desprenderá progressivamente. Na espera, uma tal assimilação é tentadora: ela valoriza consideravelmente uma profissão cujas condições financeiras de exercício pareciam escandalosamente piores do que qualquer outra especialidade médica. E, sobretudo, o novo estatuto parecia que ia promover uma aplicação acelerada da política de setor. A lei previa de fato que só seriam colocados no "primeiro grupo", com uma importante diferença de tratamento, os psiquiatras cujo serviço seria setorizado. Foi, efetivamente, uma poderosa motivação para "trabalhar o setor". 23 A lei Debré institui o estatuto de tempo integral dos médicos ho'ipitalares, assim como a indissolubilidade da prática hospitalar, do ensino e da pesquisa nos centros hospitalares universitários (C.H. U .) . 24 "Conclusões". Livro branco. Op. cit., moção 11, p. 153, t. III.

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Um novo dispositivo institucional

esp_e~am ~ue "os acontecimentos'' vão ajudá-los a obtê-la. A necessidade já esta mscnta no novo estatuto de 1968. O processo de sua implantação vai ser programado, com uma sábia lentidão, todavia A partir de 1972 aparecem as mais importantes circulares de aplicação que definem as condições de instalação sistemática do setor. Em particular os "Conselhos de Setor" são constituídos, cujos membros, nomeados pela administração da Prefeitura, devem coordenar a ação de diferentes instâncias tendo a ver com "a luta contra as doenças mentais". O dispositivo para adultos está encimado de "intersetores da psiquiatria infanto-juvenis", correspondendo cada um a três setores àdultos. A p~rti~ do início d~s anos setenta, o organograma completo da implantação terntonal de uma psiquiatria moderna - o que alguns denunciarão como uma nova "quadriculação" - está instalado.

O "setor" tinha se tornado o cavalo de batalha dos psiquiatras reformadores. Será preciso voltar à lógica complexa que o tinha progressivamente constituído na única alternativa capaz, aos olhos dos profissionais, de garantir a especificidade da medicina mental e de lhe assegurar os meios de seu desenvolvimento moderno. Mas a política do setor como fórmula ele ren.rganização do conjunto da psiquiatria tinha sido oficializada por uma circular ministerial de 1960. Ela previa o retalhamento de todo o país em unidades territoriais correspondendo a uma população de 70.000 habitantes aproximadamente, e afetava a cada uma dessas zonas uma equipe psiquiátrica plurivalente dotada de ampla gama de instituições diversas, do hospital psiquiátrico a estruturas mais maleáveis. Ora, essa decisão tinha resultado de uma conjuntura feliz, e a muitos olhos prematura em relação à evolução das práticas e mesmo dos espíritos da maioria silenciosa dos profissionais. Ela era o produto da aliança entre o nódulo illais progressista dos psiquiatras que trabalhava nesse sentido desde a Liberação, e alguns administradores esclarecidos do "Departamento das Doenças Mentais" no Ministério da Saúde. Talvez se tratasse também de dar uma compensação a um grupo de médicos deixados à margem da lei Debré de 1958. 25 Em todo caso, a decisão permaneceu amplamente formal e, exceto algumas situações-piloto como a experiência da 13~ Região de Paris, a organização da psiquiatria continuava essencialmente hospitalar. O setor representa, portanto, aos olhos de seus promotores, o desdobramento em ato da especificidade da psiquiatria. Supõe estruturas horizontais, integradas ao tecido social, cujo funcionamento democrático (a um só tempo no seio da equipe e através do tipo de relacionamento que ela mantém com os usuários) se opõe às estruturas verticais ou piramidais de uma hierarquia médica rígida e centralizada, 26 tal qual é representada nos hospitais comuns. Trata-se então de aplicar enfim essa estrutura necessária e suficiente para promover o aggiornamento progressista da psiquiatria. Os psiquiatras 25

Notamos que essas diferentes disposições tanto procedem imediatamente, tanto sucedem a 1968: como vão todas na mesma direção, que consiste em garantir a especificidade da psiquiatria no seio da medicina. Prova de que esta data de 1968 não constitui um mecanismo significativo. Por exemplo, a importante reforma do estatuto dos psiquiatras, votada emjulho de 1968 estava muito evidentemente preparada antes. Os acontecimentos de 1968 s~ contentaram em acelerar a instalação do processo. Contrariamente ao que se passou para outras profissões que tentaram inventar na febrilidade das reestruturações inéditas, a crise confirmou os psiquiatras na idéia de que trilhavam há vários anos em direção â história. Possuíam um programa completo de reforma~ que eles mesmos tinham constituído. Bastava <:1plicá-lo para que fosse assmado o pacto da reconciliação da psiquiatria com a sociedade moderna. No máximo, a crise de 1968 empurrou para ir um pouco mais longe, mas sempre na direção do combate contra a hegemonia dos universitários e para promover uma democratização das condições de exercício da psiquiatria que andava a par com o aumento de suas possibilidades de expansão. Por exemplo, no imediato pós-68, constituíram-se em inúmeras cidades universitárias "Colégios Regionais de Psiquiatria", assegurando a coordenação da atividade de todas as instâncias psiquiátricas de uma região para organizar a formação profissional. Em algumas cidades, o Colégio acresceu-se com "trabalhad~res_ da_ s!~~" não médicos para formar um "Instituto Pluridisciplinar de Ps1qmatna . Modelo alternativo ao do ensino dispensado nas Faculdades,

Os principais documentos oficiais sobre o setor estão reproduzidos em AUDISIO, Michel. A psiquiatria de setor. Privat, 1980. Sobre a história do setor, CASTEL, Robert. Gênese e ambigüidades da noção do setor em psiquiatria. Sociologia do Trabalho, jan. 1975; História da psiquiatria de setor ou o setor impossíveL Pesquisa, 17 mar. 1975. Na literatura psiquiátrica, o texto mais sintético sobre o setor é

sem dúvida o relatório de Henri Duchêne no congresso de Tours em 1959: "Os serviços psiquiátricos extra-hospitalares". Congresso de psiquiatria e neurologia da Ungua francesa. Masson, 1959. 26

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Sobre es~a distinção, BRISSET, Charles. O futuro da psiquiatria na França, cap. UI.

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DEMA~, ~ean & DEMAY, Marie. O movimento de maio, documentos médicos e psiqutatncos. Informação Psiquiátrica, nov. 1968.

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apoiado na prática do setor, a fórmula parece ter-se beneficiado com alguns apoios nos meios próximos a Edgar Faure". 28 De fato, em psiquiatria como alhures, algumas esperanças reformistas serão decepcionadas. Em particular, o núcleo conservador dos neuropsiquiatras, que se tinha submetido durante a tempestade, prova logo que continua a controlar os centros importantes de decisão. Segue-se um certo número de conflitos, particularmente sobre a instalação de uma agregação d.P psJquiatiia e da participação no ensino universitário. 29 Mas o essencial parecia em jogo entre 1965 e 1970. O modelo de implantação de uma nova psiquiatria comunitária parece então existir, e tudo leva a pensar que vai rapidamente se impor aos fatos. Assim, a medicina mental parece ter reconquistad9 sua autonomia, a partir do reconhecimento da especificidade de seu objeto. Esta especificidade tinha ganho uma vez em torno das condições de exercício de uma prática de asilo. Ela tinha permitido construir uma síntese completa, comportando uma dimensão técnica, teórica, institucional, profissional e legislativa. A psiquiatria parece ter alcançado sua metamorfose moderna, ou estar em via de alcançá-la, porque parece pronta a estender a mesma sistematicidade em torno do dispositivo do setor. É novamente um modelo público; está dotado de seu corpo especializado de profissionais, de suas instituições específicas, e pretende promover uma abordagem original das perturbações mentais diferente da tecnologia médica clássica. Mas, enquanto a rigidez da síntese anterior limitava a realização aos espaços fechados regidos por uma legislação especial, o exercício da medicina mental torna-se no fim coextensivo ao conjunto social. Dar fim à segregação é também abrir o caminho a um intervencionismo generalizado.

O expansionismo psiquiátrico Desde 1967, o Livro branco da psiquiatria françesa abre uma interessante discussão sobre as implicações desse deslocamento. Para um dos líderes do movimento desde 1945, "a cultura espera a palavra do psiquiatra; ela espera que nós formulemos nosso pensamento em um certo número de domínios,

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FAURE-LISFRANC, Sylvie. Mesa redonda de 25 de outubro de 1968. Psiquiatria Francesa. 2 nov. 1968.

29 Sobre estes pontos, a literatura sindical, em particular A Informação Psiquiátrica nos anos seguintes a 1968.

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e seria impensável que nos fechássemos em nossa torre de marfim.''3o Mas preconizar uma "psiquiatria de extensão" não é fazer do próprio social um grande corpo doente do qual todas as disfunções dependeriam de soluções médicas? Diante dessa interrogação sobre a "psicocracia", diferentes atitudes se desenham. Tentações tecnocráticas de alguns: "Tenho consciência de que, diante da enormidade dos deveres que já temos diante de nós, poderia parecer irônico querer acrescentar-lhes novos e alargar - com risco de pulverizar o fato psiquiátrico - a função do psiquiatra em domínios mais amplos que os atualmente seus, domínio onde ele já não consegue ser suficiente. Podemos no entanto nos perguntar, levando em conta o que sabemos da gênese de uma parte das perturbações mentais, se uma posição demasiado defensiva não é a condenação de um certo tipo de progresso; e se - com prudência - não convém colocar a questão da intervenção do psiquiatra em níveis profiláticos correspondendo nisso à definição da saúde. " 31 Inquietudes morais de outros: "No papel do médico, creio que há, em qualquer caso, uma função social e normativa. ( ... ) Nossos colegas expert", ao longo do dia, ditam o direito em matéria de doença mental. Há aí um problema que mereceria ser estudado com muita seriedade, não na perspectiva criminologista, mas na perspectiva normativa. Na estrutura social atual há um certo número de normas que fazem que um tal esteja doente, e tal o~tro não o esteja. Não está dito aliás que, se nos colocamos no plano histórico, as fronteiras tenham sido sempre as mesmas. " 32 É ainda Henri Ey, com seu sentido tático, que conclui o debate, recorrendo novamente à especificidade do fato psiquiátrico concebido como uma espécie muito particular do gênero das doenças: Tão essencial e tão fundamen_~ que seja a função social do psiquiatra, pareceu a todos os que tinham participado desse debate que essa função é e tinha sido limitada. Limitada por quem e por quê? Pelo próprio objetivo da psiquiatria, quer dizer, a estrutura da doença men_tal. Ela não se confunde nem com todos os vícios, nem com ~odas as originalidades, nem com todas as infelicidades da condição humana, isso que chamamos romanticamente "a loucura da humanidade. " 33 30 BONNAFÊ, Lucien. Discussão sobre "As funções sociais do psiquiatra". Livro branco... , p. 261, t. II. 31 BALLY-SALIN, Jean. Idem. p. 255. 32 33

DAUMEZON, Georges. Idem. p. 257. EY, Henri. Idem. p. 263.

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Sem dúvida. Mas, se essa é a única barreira contra o expansionismo psiquiátrico, ela é bem frágil. Seria preciso ter certeza não somente de que todos os psiquiatras, mas também todos os responsáveis administrativos e todos os governos, estivessem convertidos a uma definição limitativa da doença mental para ter garantia quanto ao risco de ver a medicina mental tornar-se um modo generalizado de resolução dos conflitos? É então nesse contexto, nutrido pelas esperanças de alguns e inquietudes de outros, que desenvolveu-se uma crítica política da medicina mental. Pareceu tanto mais natural denunciar os riscos provenientes de sua ligação ao poder do Estado quanto a setorização se tomava a si mesma como uma transformação e uma ampliação de um modelo de inteivenção central, exercendo funções administrativas ao mesmo tempo que médicas. Em particular, a nova psiquiatria comunitária retomava integralmente a vocação de seiviço público da estrutura asilar: "A nação deve a educação às pessoas que dela fazem parte; ela deve então colocar a educação ao alcance do usuário. Da mesma forma, a nação deve o aparelho de proteção da 34 saúde mental: ela deve colocá-lo ao alcance do usuário. " É, aliás, um psiquiatra que, na época, dá a formulação talvez mais sintética da nova "tentação" psiquiátrica. Um psiquiatra do Quebec - o que não constitui um acaso: Quebec tinha sido profundamente penetrado pelas influências psiquiátricas francesas, em particular, por intermédio da equipe da 13i:t Administração, responsável pela primeira experiência de implantação sistemática do setor na França - e a disponibilidade e os recursos de um país novo tinham permitido começar a realizá-las lá: "Mais a ação do psiquiatra se quer precoce e radical, mais ela deve inteivir no nível dos conjuntos, das estruturas familiares e sociais, cuja apreensão exige o domínio das teorias e práticas novas ainda mal definidas. ( ... ) Ele não pode mais se contentar (instado pelo psiquiatra de asilo) em "constatar", quer dizer, reconhecer sua importância no nível da estrutura já alterada, mas ressente a necessidade de ínteivir no nível da estrutura que se está alterando, ou mesmo experimenta a 35 vertiginosa tentação de inteivir no nível da conjuntura." A essas ambições, às vezes misturadas de escrúpulos, ecoa a inquietude sem nuance dos contestatários. No número já citado do Idiota Internacional, o ponto de vista "esquerdista" sobre o setor é assim apresentado: "Muito mais flexivel que a política de internamento, menos autoritária, ( ... ) a política de 34 BONNAFÊ, Lucien. Discussão sobre "As instituições e a organização de setores psiquiátricos". Livro branco... Op. cit., II. p. 54. 35

STERLIN, Carlo. Ser psiquiatria de setor. Infonnação psiquiátriéa, 7 set. 1969. pp. 762-63.

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setor parece a muitos como a panacéia psiquiátrica, a solução ideal, democrática, civilizada e tUdo. ( ... ) É provável que a setorização vá se estender muito mais amplamente nos próximos anos e que o Estado aceitará o custo da operação. ( ... ) Uma tal política, que operará um esquadrinhamento completo da população, constituirá uma verdadeira polícia do desvio. Quais são os critérios que justificarão a intervenção da equipe encarregada do tratamento? De fato, estamos começando a erguer um pequeno exército a serviço da norma e da ideologia dominante. " 36 Se ao slogan do "psiquiatra tira" ac1<.:~centou-se o do setor como "esquadrinhador policial", é que aí havia,. sob o exagero das fórmulas, a consciência de um mesmo religamento da psiquiatria, antiga e moderna, ao aparelho do Estado. A primeira referência ao setor como esquadrinhamento não se encontra, aliás, na literatura contestatária, mas na pena de um dos pais menos contestáveis da psiquiatria moderna, Georges Daumezon: "Há comissariados de polícia para os delinqüentes, por que não haveria 'comissariados de polícia mental'? E, em certa medida, o esquadrinhamento do território em zonas onde há assim um responsável definido é uma providência tranqüilizadora. " 37

3. UM PRINCÍPIO DE NÃO ESCOLHA Este modelo do setor é tão coerente, tão imperialista - exaltante para alguns, perigoso para outros - quanto parecia na época? Representa a principal matriz, através da qual pode-se consumar o conjunto das transformações em curso? Uma volta à gênese da política de setor sugere que ela justapõe sobretudo um conjunto de elementos heteróclitos e representa no final uma maneira hábil de unificar, num organograma formal, dados inconciliáveis na prática. O setor, síntese original ou ajuntamento de dados díspares? Opção audaciosa ou astúcia sutil para evitar ter verdadeiramente de escolher uma política da saúde mental? Reexaminar aqui sua estrutura interna não corresponde ao desejo de tomar a contracorrente da opinião quase unânime que vê no setor a síntese harmoniosa e nova capaz de renovar os poderes da psiquiatria. Fazer explodir a estrutura do setor é fazer explodir a falsa unidade de um alvo, que cristalizou o essencial dos ataques contra as formas modernas de hegemonia 36 "Contra a psiquiatria", O Idiota Internacional, 10. p. 7 37

DAUMEZON, Georges. Discussão sobre "As instituições· e a organização de setores psiquiátricos". Op. cit. p. 72.

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da medicina mental, enquanto que o essencial, sem dúvida, já se passava além. Com o recuo, pode-se agora desprender um certo número de contradições internas que minavam a própria fórmula do setor.

cura nas mãos de um médico hábil, é o agente terapêutico mais-poderoso contra as doenças mentais". A psicoterapia institucional redescobre as virtudes do tratamento moral do século XIX. O principal promotor dessa psicoterapia institucional reconhece: "Em suma, com a diferença de poucos detalhes téc:nicos, de alguns instantes, empreendidos por cada um em seu seiviço, o fundamento dessa psicoterapia coletiva que perseguimos não variou nada há um século. " 42 Seria injusto interpretar esta fidelidade nos mais ativos dos inovadores somente por sua própria alienação a uma tradição secular. O trabalho sobre a instituição é capitalizável na polêmica que opõe essa corrente reformadora aos partidários do tecnicismo médico. Só, com efeito, permite argumentar medicamente a defesa de uma posição assistencial. Veremos (capítulo 2) as razões pelas quais a psiquiatria moderna foi como que obcecada por um contramodelo de reforma possível da medicina mental, o do objetivismo médico. Ela consagrou o essencial de seus esforços, teóricos e práticos, a se dissociar de uma fórmula que faría da psiquiatria um simples ramo da medicina, caracterizado pelos seus cuidados intensivos e suas inteivenções precoces, abandonando a instâncias de encarregados não médicos esses pensionistas de longo curso nos hospitais psiquiátricos batizados "crônicos". Contra essa tendência, os psiquiatras querem provar que a maneira pela qual eles administram a assistência é um forma original de medicina. O desenvolvimento de uma psicoterapia institucional nos hospitais psiquiátricos mostra que técnicas que nada têm aparentemente de ponto em comum com aquelas de serviços médicos de urgência são assim mesmo eficazes. Então, não somente é uma heresia médica batizar crônicos doentes que não respondem a determinado tipo de tratamentos intensivos, mas, mais geralmente, há, pelo menos para certas categorias de doentes, uma especificidade do tratamento psiquiátrico que não se pode medir pela bitola dos critérios da medicina comum. As técnicas institucionais representam a forma apropriada de medicalização que convém às condições específicas de exercício da psiquiatria. Essas tenta~ivas transfonrtaram profundamente a estrutura de certos serviços, e, às vezes, antes do aparecimento dos medicamentos psicotrópicos nos anos cinqüenta. Mas seu próprio sucesso acarretou um desequilíbrio entre o relativo desenvolvimento das tecnologias hospitalares e a quase inexistência de práticas externas. Uma tal disparidade vai pesar enormemente em toda a elaboração da política do setor.

Ultrapassar ou reformar o hosp(cio? 1. "Nosso objetivo é, a um só tempo, transtornar nossa organização hospitalar, e levar nossa atividade a todos os campos onde o conhecimento psicopatológico é necessário". 38 Desde 1945, multiplicam-se declarações tendendo a recolocar "o alienado na sociedade" e ir "além do hospício e do hospital psiquiátrico". 39 O programa elaborado por ocasião das jornadas de 1945 exprime igualmente esta intenção de ultrapassar a prática hospitalar: "A competência dos psiquiatras qualificados deve ser considerada como estendida a todos os problemas que dizem respeito à saúde mental, individual ou social, a readaptação ao meio das pessoas desadaptadas. As ligações indispensáveis devem ser mantidas com os organismos da Educação Nacional, da orientação profissional, da justiça, etc. " 40 Pprtanto, essas múltiplas declarações de intenção não são nada seguidas de efeitos reais. Há nisso, primeiro, razões prosaicas. A base operacional dos psiquiatras é e permanece o hospital. Ora, por razões trágicas devidas à guerra, este se encontra ampiamente suhocupado na Liberação e oferece - antes mesmo da descoberta dos neurolépticos e antes também da penetração da psicanálise no meio psiquiátrico - possibilidades novas de trabalho. Operou-se assim, pelo menos nos seiviços mais ativos, um trabalho ao mesmo tempo espetacular e aprofundado de humanização, comparado ao que foi efetuado na GrãBretanha pela corrente das comunidades terapêuticas e ao qual se deu na França o nome de "psicoterapia institucional". 41 Trata-se do que se poderia chamar um "neo-esquirolismo ". Como na famosa fórmula de Esquirol, "uma casa de alienados é um instrumento de 38

BONNAFÉ, Lucien & DAUMEZON, Georges. "Perspectivas de reformas psiquiátricas na França após a Liberação". Congresso dos médicos alienistas e neurologistas de lingua francesa de Genebra. Masson, 1946.

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São os títulos dos dois primeiros Documentos da Informação Psiquiátrica (1945 e 1946), que contêm manifestos das idéia'> reformadoras.

40 "Conclusão das jornadas psiquiátrica<, de março de 1945", conclusão n9 3, p. 19. 41 DAUMEZON, Georges & KOECHLIN, Phillippe. A psicoterapia institucional contemporânea. Anais Portugueses de Psiquiatria, vol. 4, dez. 1982.

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DAUMEZON, Georges. "Os fundamentos Pstq_uiátrica. 1948, li, p. 61.

de

uma psicoterapia coletiva". Evolução

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Prevenir ou reparar? 2. Disparidade maciça, então, ao nível das práticas, entre as que se elaboram no espaço hospitalar e as que se presume vão romper com a hegemonia do hospital e em proveito das primeiras. Mas, ao mesmo tempo, afirmação reiterada das necessidades de desenvolver sobretudo as práticas fora do hospital. Era difícil que nessas condições a síntese dessas duas posições não ficasse em larga medida verbal. Ela foi pensada como uma articulação do "hospitalar" e do "extra-hospitalar" no seio de um moto-contínuo que se presumia constituir uma unidade orgânica: "Também devemos chegar a uma organização que transcenda tanto a noção do hospital como a do hospício: o centro de cura e de readaptação, o estabelecimento psicoterapêutico, não será senão uma da.s engrenagens da organização inteira que deve cobrir praticamente todo o país, e, em todo caso, corresponde a uma ótica absolutamente revolucionária em relação à atitude tradicional. " 43 Pode-se perceber, através de todos esses textos que antecipam a organização do setor, a imagem de um deslocamento no espaço, que faria deslizar o centro de gravidade das práticas psiquiátricas do hospital a-uma pluralidade de instituições colocadas tanto a montante como água abaixo do antigo hospício, e esse desdobramento parece valer por uma revolução completa do ponto de vista. Assim, por exemplo, Bonnafé opera um atalho bastante envolvente, mas que parece um número de mágico quando ele declara: "A instituição psiquiátrica é pensada como uma rede de postos diversos, através dos quais o médico assegura ao doente seu cuidado tão pessoal quanto possível. O eixo do serviço não está mais no hospício, mas na cidade, no coração do território, no qual se exerce a função do psiquiatra, ampliada à proteção da saúde mental. " 44 Pode-se mudar de eixo, a partir da imagem da germinação? Pode-se colocar no próprio seio de um processo contínuo as práticas que provêm do espírito da comunidade terapêutica e as que se referem à psiquiatria comunitária? Nos países anglo-saxões, as duas fórmulas foram concorrentes e inspiraram opções políticas diferentes. Assim, nos Estados Unidos, a corrente da Community psychiatry desenvolveu um conjunto de pesquisas e experimen. tos para conseguir tecnologias de intervenção no território. Ao mesmo tempo se efetuava uma importante reflexão teórica sobre a mutação do papel do psi43 BONNAFÊ, Lucien & DAUMEZON, Georges. "Perspectivas de reformas psiquiátricas na França, após a Liberação". Op. cit. p. 588. 44 BONNAFÉ, Lucien. Da doutrina pós-esquiroliana, II, Informação Psiquiátrica, maio 1960. p. 580.

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quiatra, quando ele não int:rvém mais _direta1;1e~te com~ t~rapeuta, ~as como consultante, o que supoe a colocaçao de tecmcas qualitativamente d~ferentes. Quando esta orientação constituiu-se em política de conjunto da saude mental ( o movimento das Comrilunity Mental Health Centers), ela montou-se em derivação, em relação ao sistema dos hospitais psiquiátricos (Sta te Mental Hospitais). Seus promotores esperavam que, quando ela se_ impusesse, exerceria uma força de atração suficiente sobre a estrutura hospitalar para desestabilizá-la e torná-la caduca, com o tempo. Mas eles não pretenderam propor uma fórmula cobrindo a um só tempo e vez todo o hospitalar e todo o extrahospitalar.45 _ Em relação a essa relativa modéstia, a ambição do setor frances de constituir por si mesmo um sistema unificado e sedutor. Em particular, parece ~er a única capaz de assegurar a continuidade dos cuidados, m1:a mesma equ_ipe assumindo todos os usuários todo o tempo, qualquer que seJa a estrutura mstitucional na qual eles se encontrem colocados. Mas uma tal construção deixa em suspenso dois problemas: . .. - A estrutura hospitalar continua enquistada no novo d1spos1t1vo. Ela é suscetível de destransitoriedade espontânea? Se os psiquiatras franceses pensaram isso, implícita ou explicitamente, se pelo menos eles não desenca~earam uma luta aberta para destruir o hospício como fez a corrente progressista italiana, é preciso não se espantar muito que seu peso tenha permanecido tal que ele tenha completamente desequilibrado a estrutura diversificada na qual se presumia iria se fundir. , . - O risco que o hospital permaneça preponderante e tanto maior porque ele não domina somente por suas estruturas mais fortes e rígidas, mas também por suas tecnologias. Porque as práticas, mesmo inovadoras, tinham se ajeitado na instituição, os operadores correm o risco de ficar tecnicamente desguarnecidos quando é preciso dela sair. Para dizer a verdade, há mais grave: não existem, falando claro, tecnologias específicas para o trabalho do setor, mas sobretudo um coquetel de técnicas ou de receitas diversas, experimentadas primeiro em instituição: um pouco de psicoterapia, um pouco (ou °:uito) de medicamentos, um pouco de ergoterapia, etc. Mas, por exe°:plo, a mterv~nção in vivo, em uma situação de urgência (a crisis interventwn dos amen~anos), não é de uma outra natureza que a maioria das outras condutas terapeuticas? 45 CASTEL, Françoise; CASTEL, Robert & LOVEL, Anne. A s~cie~ade psiquiát~ica avançada: 0 modelo americano. Grasset, 1979, cap. V: "A~ 1lusoes da comunidade".

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Se se trata efetivamente de sair para assumir problemas que se colocam no nível de comunidade, e não somente de para ela levar o saber constituído na instituição, não seria preciso reconsiderar do todo ao todo as condições de aplicação do esquema médico? Alguns psiquiatras americanos jogados em,condíções de exercício completamente novas (por exemplo, a prática nos guetos) ali perderam mesmo a certeza de" que havia no local um papel apropriado aos psiquiatras naquelas circunstâncias e foram arrastados numa fuga considerada 1i perigosa para o ativismo social ou político. Os psiquiatras franceses aparentemente se preservaram dessas tentações. Mas é sem dúvida também porque eles subestimaram a amplidão da reconversão a trabalhar fora da instituiçãci. fHá na psiquiatria francesa uma rP.lação de reforçamento recíproco entre f um forte componente institucionalista e um forte componente profissionalis- · ta. Os achados montados no hospital são pensados como exportáveis ao exterior, o que evita ter de recolocar profundamente em causa o papel do médico nas novas condições de exercício. E, se um pouco mais tarde, a psiquiatria francesa atirou-se nos braços da psicanálise, depois de a ela ter sido alérgica durante tanto tempo, não foi porque ela tendeu a acolher a tecnologia relacional dos analistas como uma panacéia, por não ter podido ou sabido forjar ela mesma suas próprias técnicas extra-hospitalares? 1•.·.

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Esquematicamente: não há aí uma opção radical - e dolorosa - a tomar entre reformar (melhorar) o hospício e suprimir ( destruir) o hospício? Se, por exemplo, o movimento italiano parece ter ido mais longe no sentido de uma transformação revolucionária da prática psiquiátrica, é sem dúvida porque ele ultrapassou o compromisso do hospitalar e do extra-hospitalar, o que o levou, ao mesmo tempo, a tomar ainda mais distância em relação ao profissionalismo médico. 46 Inversamente, se o setor impôs-se, pelo menos como fraseologia, é talvez porque a escolha que representava evitava deverescolher realmente entre duas fórmulas se não totalmente antagônicas, pelo menos não diretamente complementares: a comunidade terapêutica e a psiquiatria comunitária, a reforma da estrutura hospitalar e a "psiquiatria de extensão", os cuidados e a prevenção, o papel de terapeuta e o de conselheiro. Tudo se passou como se os promotores do setor tivessem subestimado as diferenças entre esses dois grandes modelos de intervenção psiquiátrica. Princípio de economia, e no final de não-escolha, que não podia ser eternamente mantido ao nível da prática.

''Serviço do usuário'' ou controle social?

3. Os riscos de imperialismo do setor foram debatidos sobretudo no nível do Livro branco, através do prQblema da livre escolha e da necessidade, ao mesmo tempo por razões táticas e por causa da ideologia liberal partilhada pela maioria dos psiquiatras, de deixar subsistir um setor de exercício privado: "Se o setor é somente uma espécie de aparelho público disponível, um serviço público no sentido etimológico do· termo, se não há nenhuma vontade psicocrática, nenhuma vontade reformadora além da didática, se não se trata senão de informar, cuidar, fazer a profilaxia, o problema da livre escolha não se coloca. " 47 De fato, a despeito de seus temores, os psiquiatras liberais não tiveram nada do que-se queixar da concorrência do setor e, voltaremos a isso, a psiquiatria de exercício privado conheceu um crescimento mais rápido ainda que a psiquiatria pública. Mas, mesmo se o setor não é totalitário, no sentido em que devoraria os outros tipos de práticas psiquiátricas, ele assume responsabilidades sociais que não podem se interpretar na ideologia da livre escolha. Existe em psiquiatria uma espécie de divisão do trabalho entre certas intervenções que provêm de uma demanda mais ou menos livre da parte dos beneficiários, e deveres correspondendo a funções sociais para as quais a intervenção do psiquiatra é obrigatoriamente requisitada. Podemos desde logo julgar um pouco ingênua a apresentação do conjunto do trabalho psiquiátrico como uma oferta desinteressada de serviços a usuários eventuais convidados a se determinarem livremente em relaçã0 a ela: "O desalienista é aquele que, abandonando sua função de alienista, se apresenta diante da sociedade perguntando: o que há para servi-la?" 48 Por um lado, um serviço de setor pode dispensar serviços propriamente médicos, abertos a um amplo público (e é para esses serviços que a psiquiatria privada temeu a concorrência). Mas ele completa assim outros mandatos que são, sem dúvida, pelo menos do ponto de vista da administração, sua principal razão de ser, e de que nem os psiquiatras nem os usuários estão livres para se subtraírem. De fato, o psiquiatra do setor herda alguns deveres devidos ao alienista, e vai ser cada vez mais conduzido a assumir novidades na direção de popula47 AUDISIO, Michel. As instituições e a organização dos setores psiquiátricos. Livro branco. Op. cit. t. II. p. 25. 48

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46 BASAGLIA, Franco. A instituição em negação. Trad. francesa, Ed. du Seuil, 1970.

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BONNAFÉ, Lucien. Discussão sobre "As funções sociais da psiquiatria". Livro branco... Op. cit. t. II. p. 261.

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ções não concedentes" Ele é sempre o garantidor da aplicação da lei de 1838, em particular sob a forma mais coercitiva da localização do ofício; ele pode ser requisitado para expertises junto a tribunais ou determinadas administrações; a partir de 1954, intervém para a repressão dos "alcoólicos perigoso(, a partir de 1970 para o tratamento forçado de alguns toxicômanos, etc" Veremos (em particular no capítulo -3, a propósito da lei de orientação em favor dos deficientes) que essas funções, longe de representar uma velha herança em via de liquidação, vão continuamente se diversificar e ampliar. Dois traços complementares devem ser sublinhados. Do lado do psiquiatra, seu estatuto comporta obrigações às quais ele não pode se furtar e que provêm da manutenção da ordem pública, do inventário e do controle das populações marginais. É sem dúvida o mérito de um grande número de psiquiatras há uns vinte anos assumir esses papéis com um máximo de liberalismo. Assim, a lei de 1954 sobre os alcoólicos perigosos, por exemplo, só é muito parcialmente aplicada, e a de 1970 sobre os toxicômanos é freqüentemente contornada pelos profissionais. Apesar disso cada chefe de setor continua sob a dependência da autoridade da prefeitura (atualmente religada pelas Direções à ação sanitária e social) e que pode ser requisitado a intervir como a p;:,lícia é de verbalizar. Há aí um feixe de exigências incontornáveis. Do lado das populações concernidas, por outro lado, a representação de um usuário indeferenciado é igualmente um mito. Além mesmG da diferença entre os que estão bem e os doentes, há alvos específicos aos quais se dirige preferencialmente o trabalho psiquiátrico e que não estão muito afastados dos do trabalho social no que se recrutam freqüentemente também no seio de categorias de populações desfavorecidas, desestabilizadas, marginais, às vezes perigosas para a ordem pública. A liberdade de escolha, aqui como em várias ocorrências, é um privilégio social. E, para os que não são livres para escolher, a liberdade em si seria às vezes, simplesmente, serem deixados tranqüilos. Mas a existência do setor teve também muitas vezes como conseqüência que não gozassem nem mesmo dessa liberdade. Sem dúvida não há aí matéria a criar de qualquer maneira para a repres-são policial. Mas esquecer esta dimensão essencial, fazer do setor um serviço público como um outro aberto aos passantes, e do psiquiatra o equivalente de um monge pedinte, colocado nas encruzilhadas da peregrinação por uma autoridade tutelar para enxugar a miséria do mundo, era se expor a despertares dolorosos. Poder-se-ia mesmo se espantar que fossem os promotores politicamente mais à esquerda que tenham feito o máximo para desenvolver uma ideologia do serviço público que desemboca facilmente em práticas de ingerência da autoridade pública. Independentemente mesmo do que é requisi1

tado pela lei e os regulamentos, era preciso poder entrar aqui no labirinto das contradições concretas que colocam práticas como a visita a domicfüo, a conduta a observar diante dos "assinalamentos" feitos pela D.A.S.S. ou os vizinhos, etc., e mais geralmente sobre a ambigüidade que há a propor-impor um setviço a pessoas que nada pediram.

A infância, primeira ou última das preocupações? 4" Lendo a abundante literatura produzida desde 1945 em torno dos projetos de reformas da medicina mental, fica-se chocado do pouco lugar que ali tiveram por muito tempo as reflexões sobre a infância. Tudo se passou como se, até uma data recente, os problemas da infância tivessem sido tratados como uma conseqüência do dispositivo pensado para os adultos. Impasse tanto mais grave, já que o recentemente contemporâneo de toda a assistência médica e de toda a prevenção se faz principalmente em torno dessa zona nevrálgica de práticas (capítulo 3). Como explicar essa descoberta tardia da infância na psiquiatria pública? A criança entrou pela fresta em um dispositivo psiquiátrico concebido primeiro para os adultos alienados. Para isto, simples razão: a construção do sistema asilar tinha correspondido a uma exigência administrativo-jurídica tanto quanto médica, a necessidade de exe;-cer uma tutela sobre pessoas reputadas irresponsáveis e perigosas, mas cujo aparelho judiciário não podia assegurar a responsabilidade, já que não provinham de sanções penais. As crianças não representam os mesmos problemas, porque são mais ainda colocadas sob uma tutela familiar que assume a maioria dos problemas de responsabilidade penal ou civil e de assistência material. Certo, crianças puderam encontrar seu lugar no asilo, seja em razão de carências familiares, seja porque a gravidade das perturbações ou das deficiências que apresentavam ultrapassava as possibilidades de um encargo familiar. Foi o caso sobretudo primeiro dos grandes retardados ( os idiotas, no vocabulário do século XIX). Mas as alas de crianças de hospitais psiquiátricos não representavam nada de específico, a não ser qus..as condições de albergamento ali eram ainda piores. Portanto, alguns desses lugares foram excepcionalmente centros de inovação, pois a preferência maciça de idiotas ou de retardados exigia, se quiséssemos ainda deles cuidar, afrontar um tipo de deficiência diferente do dJ doença mental: um retardado de desenvolvimento requer um aprendizado e não um tratamento. Foi assim que à instigação de Seguin abriu-se desde o meio do século XIX, no hospício de Bícêtre, uma "escola espech..1" para os

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idiotas que constituiria uma espécie de laboratório onde se forjaram as primeiras fer"ramentas da psicopedagogia. 49 Assim, logo que ela escapava da simples guarda, a especificidade do tratamento da infância levava a conseguir um tipo de instituições pedagógicas mais do que médicas. Movimento a_centuado pela lei sobre a escolaridade obrigatória que, multiplicando o número de pessoas necessitando de uma educação especial, exigia a criação de um dispositivo montado em derivação sobre o sistema escolar e não sobre o sistema psiquiátrico ( classes especiais a partir de 1909, internatos médico-pedagógicos a partir de 1935, centros médico-pedagógicos a partir de 1945, grupos de ação psicopedagógicos a partir de 1970, etc.). Essas instituições são mais ou menos medicalizadas, a maioria funcionando com um pessoal específico formado pela Educação Nacional. Mesmo aquelas que desenvolvem a orientação médico-psicológica são animadas por um pessoal estranho ao quadro dos hospitais psiquiátricos. Assim a importante rede dos Centros Médico-Psicopedagógicos (C.M.P.P.), que se desenvolveram a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, foi um pináculo da difusão da psicanálise em direção à infância. Mas ela consiste em instituições em geral privadas (tipo lei de 1901) que se instalaram fora do dispositivo da psiquiatria pública. Mesmo fora dessas conexões estreitas com a pedagogia, a responsabilização psiquiátrica da infância impôs-se principalmente através das redes desconectadas dos hospitais psiquiátricos: instituições privadas de origem filantrópica ou religiosa; serviços de neuropsiquiatria, como a famosa clínica infantil, fundada em Paris em 1925 e dirigida por Georges Heuyer, grande mestre da psiquiatria infantil na França, mas universitária; centro de consulta infantil Henri-Rousselle em Sainte-Anne, aberto por Edouard Toulouse, inovador marginal e discutido pelo quadro dos hospitais psiquiátricos e que tentará colocar com Heuyer programas de descoberta sistemática das anomalias d3 infância ... É sem dúvida ·porque não estavam, por sua prática, nos circuitos de inovações a respeito da iniancia, que os reformadores da psiquiatria pública apenas abordaram essas questões, incluídas por eles na quantidade de medidas de ordem geral, quer dizer, pensadas a partir da psiquiatria de adultos.. Desenvolveu-se assim todo um setor importante e dinâmico das práticas psiquiátricas em direção da infância, que escapa no essencial ao controle dos

promotores da psiquiatria pública. so No momento em que a política de setor se instala, existem como que dois sistemas quase independentes, um centrado no adulto (e que contém alguns serviços de crianças no centro dos hospitais psiquiátricos), o outro sobre a iníancia ligado à Educação Nacional, às fundações particulê!!eS ou à medicina universitária e que está fora da estrutura hospitalar pública. Quando, em 16 de março de 1972, uma circular ministerial de aplicação do setor cria os intersetares infanta-juvenis (à razão de um para três setores de adultos), têm-se quase a impressão de que esta medida surge num vazio de reflexões anteriores, mas que ela encontra por outro lado inúmeras implantações prévias que ocuparam o terreno e nele se desenvolveram de modo anárquico. O serviço de intersetar ( que repousa talvez ele mesmo sobre uma não ratão terapêutica, pois como cortar a assistência às crianças e a assistência· aos adultos em serviços diferentes, quando, ao mesmo tempo, se acentuam as responsabilidades da farm1ia na etiologia das perturbações mentais?) custará bastante a encontrar seu lugar e seu papel no seio dessa rede de instituições díspares. Mas, independentemente mesmo desse problema técnico, é uma grave carência que um dispositivo que se pretendia hegemónico tenha mal integrado um domínio essencial das práticas; tanto mais que, como se verá, esse setor da infância não é somente uma parte importante de um conjunto mais amplo. Ele vai se tornar o foco a partir do qual vão logo se irradiar as técnicas médico-psicológicas mais inovadoras em matéria de descobertas.

49 Cf. CASTEL, Robert & LE CERF, Jean-François. O fenômeno psi e a sociedade francesa. O Debate, 1 maio 1980.

S1 Em particular EY, Henri; BONNAFÉ, L.; FOLLIN, S.; LACAN, J. & ROUART, S. O problema da psicogênese das neuroses e das psicoses. Desclée de Brouwer, 1950.

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Unidade teórica, ou consenso tático?

5. Os psiquiatras reformadores não pouparam esforços para definir uma abordagem específica da doença mental diferente da da medicina em geral. Do encontro de Bonneval ao de sevres, passando pelas numerosas contribuições à Infonnação Psiquiá'lrica e sobretudo à Evolução Psiquiátrica, 51 uma teoria foi procurada, e acreditou-se ser encontrada, que teria fundado, a partir do objeto que ela se dava, a vontade de autonomia da psiquiatria. Mas, mais que uma teoria unitária, essas tentativas deram lugar a teorizações diferentes. Elas puderam funcionar juntas, num certo nível tático, manifestando que ali havia acordo sobre o que a perturbação psiquiátrica não era: não uma doença como so Para a instalação do setor da infância inadaptada, a partir da guerra, e em particular do papel representado pela administração de Vichy, cf. CHAUVIÊRE, Michel. lnfância inadaptada: herança de Vichy. Edições Operárias, 1980, cuja análise confirma esse tipo de montage'm em derivação dos dispo~itivos a respeito da infância.

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uma outra, não reduzível a uma abordagem médica clássica. Mas nada estava em jogo quanto à relação das forças em presença sob esse consenso de superfície. A adesão a um projeto tático comum levava a suspeitar, ou mesmo dissimulava aos olhos dos protagonistas, a profundidade das divergências teóricas. De fato, os partidários do moVimento se apegavam a diferentes correntes que se pode esquematicamente aproximar a uma influência fenomenológica (Eugéne Minkovski, Georges Daumezon, Georges Lentéri-Laura), ao organodinam1smo de Henri Ey e de seus discípulo$ e uma orientação psicanalítica surgida mais tardiamente, mas que no final dos anos sessenta alcançava bem ligeiro o tempo perdido. 52 Cada uma dessas tendências tem talvez sua própria coerência, mas elas se opõem, e, aliás, se combateram vivamente em diferentes circunstâncias, como por ocasião do encontro de Bonneval em 1946 ou o de Sêvres em 1958. Elas têm, no entanto, em comum, procurar a origem da perturbação psíquica do lado de uma patologia das relações, e podem assim representar juntas contra um esquema médico organicista. Por ocasião das J ornadas do Livro branco, por exemplo, elas se expuseram em sua heterogeneidade sem provocar discussões, o que seria paradoxal se se tratasse de um encontro científico. Mas tudo se passou como se sua simples justaposição equivalesse a uma soma de certezas e como se cada um trabalhasse para construir um ponto de vista coerente global. Taticamente, a manobra se revelou gratificente, já que provava a existência de uma frente comum contra a neuropsiquiatria. Mas o ecletismo tem seus limites. A unanimidade não podia resultar senão de um encontro conjuntural e ela estava destinada a estourar na prllJ!eira ocasião. Veremos em particular que a psicanálise não ia se contentar por muito tempo com servir de tecnologia de aperfeiçoamento numa estratégia psiquiátrica. Com o peso crescente que toma a psicanálise, é todo esse equilíbrio frágil que corre o risco de logo balançar. Se é verdade que a política de setor mistura práticas diferentes, querendo opções teóricas divergentes nas instituições heterogêneas, ela pode dificilmente se apresentar como um modelo conquistador. Se é verdade também que ela não pode dominar ou domina mal seus domínios essenciais de prática ( a prevenção, a inf"ancia, sem dúvida também a reinserção social), ela falha ainda mais à vontade sintética que exibe. Pode-se então perguntar se ela não estava de certa maneira condenada antes de ser aplicada, ou, pelo menos, se 52

BEC, Colette. "Em direção a uma psiquiatria normalizada", in. op. cit., e adiante, capítulo li.

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ao se aplicar, não ia revelar esse caráter de lado ~ai cortado, dissimulado, sob o rigor formal de uma construção que ressalta ainda mais do que Franco Basaglia chamava "uma psiquiatria de propaganda. " 53 do que de uma aproximação realista da problemática de conjunto da medicina mental.

4. O DESENCANTAMENTO O balanço dos resultados atuais da implantação da política de setor confirma essa fragilidade da fórmula. Oficialmente decidida há mais de vinte anos, em curso de aplicação sistemática há uma dezena de anos, seria tempo de confrontar seu mito com suas realizações efetivas. Portanto a literatura profissio, nal sobre o setor, muito abundante, apresenta a particularidade de se subtrair perpetuamente a essa prova de realidade. Existe sempre aí a questão de um setor desnaturado, setor traído sempre aquém de seu conceito, mas sem que ele em si mesmo carregue responsabilidade nesse não acabamento. Assim ouve-se repetir freqüentemente ainda hoje nos meios psiquiátricos que "o setor não existe" ~ o que dá um excelente álibi para não interrogá-lo em sua natureza, a partir do que ele se tornou na realidade. Um balanço decepcionante

O setor não se projetou num vazio institucional e humano. No momento em que começava a se implantar, o pesado dispositivo hospitalar psiquiátrico estava intacto com seus hábitos e tradições, que metgúlham numa história secular, e as exigências burocráticas e econômicas de uma administração tanto mais tateante quanto está amarrada por sua própria rede de obrigações. Em 1960, ano em que o setor tornou-se em princípio a política psiquiátrica oficial, os hospitais psiquiátricos tinham uma capacidade de 83.000 leitos para 105.000 doentes (taxa de ocupação de 127%). Continuaram-se então a programar leitos para lutar contra a superlotação, com uma boa consciência, tanto mais evidente, porque os especialistas nacionais e internacionais tinham decretado que eram precisos três leitos hospitalares por fatias de 1. 000 habitantes, e estava-se ainda longe da conta. O IV plano (1962-1965) conseguiu então 11.159 lugares novos ou renovados nos hospitais, e o V plano (1965-70), 9. 892. Em 1972 ainda, 7. 290 leitos hospitalares psiquiátricos estavam sendo construídos ou ajeitados. 53

BASAGLIA, Franco. O que é a psiquiatria? Trad. francesa. P.U.F., 1978.

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Assim, se o setor presumiu subordinar o hospital ao dispositivo extra. hospitalar, sua instalação coincidiu com o reforçamento do primeiro: há hoje ainda mais lugares (cerca de 120.000) nos hospitais psiquiátricos do que em 1960. Por outro lado, em 1977, havia somente, para toda a França, 72 locais de pós-tratamento (dos quais 55 para alcoólicos), 255 hospitais de dia e 108 hospitais noturnos, dos quais a maioria foi, aliás, adaptada ao quadro dos hos· pitais psiquiátricos. Os "apartamentos terapêuticos" e outras estruturas mais flexíveis concebidas para a reinserção dos doentes mentais começavam apenas a se desenvolver. Mesma insuficiência do lado dos dispensários, que constituem as antenas principais da intervenção psiquiátrica na comunidade: 726 em 1962, menos de mil em 1970. Mesmo se atualmente seu número cresce bastante rapidamente e atinge mais de 2.763 em 1978, o hospital continua o centro de gravidade do dispositivo psiquiátrico. Havia 121.000 doentes hospitalizados em 1963, 120.000 em 1970, 110.000 em 1976, 104.000 em 1978, 107.000 em 1980. Diminuição apreciável, dirão talvez os otimistas. Mas, se levarmos em conta as entradas (admissões) no ano, elas mais que dobraram em quinze anos: 104.000 em 1963, 155.000 em 1970, 246.000 em 1976 e 269.000em 1978. Isto significa, para a maioria dos doentes, estadas mais curtas (às quais não se pode atribuir o único mérito do setor, pois, entre outras variáveis, novos medicamentos, como os nellrolépticos-efeito retardado, permitiram a saída de novas categorias de doentes}, mas também que um contingente cada vez maior de doentes passa pelo hospital psiquiátrico e que o número de rein· ternações aumenta igualmente (55,3% em 1975). s4 Notaremos assim que mais da metade dos leitos de hospitais psiquiátricos estão ainda ocupados pelo que chamamos pudicamente de um "sedimento" de doentes crônicos. Em 1975 ainda, encontravam-se 65.000 doentes sob a rubrica "hospital~zações de duração anual", o que quer dizer que a maioria dentre eles estava lá há vários anos e lá permaneceria ainda por muito tem55 po. A maioria dos serviços psiquiátricos justapõe na realidade dois tipos 54

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Números recolhidos em diferentes fontes. Em particular para os mais recentes, MAMELET, Marie-Rose, "Trinta anos de política", Informações Sociais, 11, 1979; Relatón·o da inspeção geral dos negócios sociais apresentado à Sra. Simone Veil a 27 de fevereiro de 1979, Documentação francesa, 1979; e sobretudo um documento do Ministério da Saúde e da Previdência Social,A política dos tratamentos em psiquiatria, balanço e sfntese, feito durante o verão de 1980, e cuja divulgação permaneceu confidencial. "Relatório da inspeção geral dos negócios sociais". Op. cit.

diferentes de população, correspondendo como que a dois estratos históricos da organização da psiquiatria. Há os "crônicos" ou assim pretendidos, geralmente de pequeno status social e !dosas, que há muito tempo romperam todas as amarras com a vida normal; há os doentes dos quais não somente o diagnóstico, mas as características sociais, profissionais, demográficas, geográficas diferem significativamente dos primeiros, e que são mantidos bem ou mal nos circuitos de sociabilidade ou de produtividade, freqüentemente ao preço de recaídas e readmissões freqüentes (é o que nos Estados Unidos se chamam os revolving doar patients, que entram e saem do hospital como que arrastados por um torniquete). Uma parte dentre eles (e seria a contribuição mais específica do setor) economiza a hospitalização, sendo mantida, bem ou mal, fora pela freqüência nos serviços extra-hospitalares. Mas, salvo nos serviços de urgência, é ainda uma miI10ria. Como nos Estados Unidos, falou-se muito ligeiro na França de desinstitucionalização da doença mental. 56 Mais do que um enfraquecimento do hospital psiquiátrico indo até sua supressão, assiste-se a uma reestruturação de suas funções. É verdade que a diminuição do número de leitos hospitalares da ordem de um terço, seja de uns quarenta mil, foi proposta, por motivos essencialmente econômicos, aliás, pelas instâncias ministeriais. 57 Mas essa economia, aqui como alhures, deve aumentar a competitividade e a racionalidade do sistema. Deve eliminar do hospital aqueles que ali não têm seu lugar em função de normas médicas mais rigorosas, e não eliminar, mesmo a prazo, a hospitalização. Na programação do setor, "equipes médico-sociais" diversificadas, às vezes pluridisciplinares, deviam assegurar, pelo menos, tanto quanto o pluralismo institucional, o suporte concreto da nova política. O que existe de fato? Os enfermeiros co.nstituem sempre a maioria esmagadora do pessoal psiquiátrico (mais de 52.000). Salvo alguns dentre os mais jovens, eles não foram formados para exercer fora do hospital, e muitos têm horror a isso, pois seus deveres são aí mal definidos. Alguns sindicatos se opõem, aliás, atualmente à supressão dos leitos hospitalares em nome da defesa do "instrumento de trabalho".

56 Para a situação nos Estados Unidos, cf. CASTEL, F.; CASTEL, R. & LOVELL, A. "A sociedade psiquiátrica avançada". Op. cit. cap. IV: A nova ordem hospitalar. 57 Cf. Ministério da Saúde e da Previdência Social. "A política dos cuidados em psiquiatria, balanço e síntese". Op. cit. p. 20.

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Os efetivos dos psiquiatras são aqueles cujo crescimento foi maís rápido, não fosse porque eles assumem funções administrativas incontornáveis: um setor supõe ao menos um chefe de setor! Eram 435 em 1963, 960 em 1971, 1.060 em 1975, por volta de 1.500, hoje. Durante os últimos seis anos, o númer.o de psiquiatras públicos mais do que dobrou. 58 Em contrapartida, para as outras categorias de pessoal, o saldo é muito mais deficitário. Em 1975, contava-se para o conjunto do serviço psiquiátrico público mil psicólogos, mais mil entre o pessoal associado, tipo reeducadores, ortofonistas, cineseterapeutas, ergoterapeutas, etc., e uma proporção ainda inferior de assistentes sociais. 59 Em certo hospital da região parisiense, cuja situação não é excepcional, há uma assistente social para seis serviços do setor. Assim, da mesma maneira que o sistema continua dominado pela estrutura hospitalar, está também pela hierarquia médica e a dupla tradicional psiquiatra-enfermeiro. O que pode significar, por exemplo, a expressão de "equipe-médico-social", quando em numerosos serviços do setor não existe nem mesmo uma assistente social? Uma psiquiatria comunitária teria exigido uma transformação profunda do exercício do esquema médico, forjado primeiro nas condições da prática hospitalar. Teria sido preciso também poder se acrescentar competências novas, em particular de hrdem social, tanto é verdade que, mesmo se doença há, quando ela é percebida no meio da vida, não é isolável das condições ambientais. Mas já a estrutura profissional da maioria dessas "equipes", sobre as quais tanto se escreveu e t:.onhou, conduz a reproduzir quase que exatamente na comunidade o modelo de uma intervenção médica clássica. A se ater à repressão das diferentes categorias de pessoal, é claro que a política de setor fez muito pouco para quebrar uma hegemonia médica que é o grande dado tradicional de toda a história da psiquiatria.

Inércias e resistei1cias Pode-se, com a maioria dos profissionais, imputar a principal responsabilidade dessas insuficiências a uma penúria de meios e a obstáculos, cuja administração seria principalmente responsável. 60 Esses ava tares teriam con58

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Em razão, principalmente, da revalorização do estatuto que interveio em 1968, e talvez também das dificuldad~~-~ de instalação em outras especialidades médicas, as vocações psiquiátricas permanecem numerosas. Assim, no último concurso de 1981 da entrada na carreira pública, contavam-se 320 candidatos para 100 lugares. "Relatório da inspeção geral dos negócios sociais". Op. cit. p. 267.

00 Cf. BENHA'iM, Simone. A mutação impossível da psiquiatria pública? Psiquiatria Hoje. 33, 1978.

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intenções primitivas do setor. Desde 1974, a Infonnação Psiquiátrica consarava o essencial de dois números a um dossiê intitulado "O livro negro do ~.:·. !erviço de saúde mental francês", cujo título é evidentemente escolhido para f, lembrar as esperanças frustradas do Livro branco. A argumentação desenvolvida ali é também em preto e branco. As reivindicações dos psiquiatras públii;, os em relação ao Ministério e às administrações responsáveis são ali longa/; ~ente enumeradas em termos de um atraso na aplicação dos princípios defi61 1 n,·dos entre 1967 e 1972 e que é atribuído à má vontade do Ministério.. Não faltam argumentos para mostrar que a administração não capitaneou resolutamente a nova política proposta pelos psiquiatras. Por exemplo, um setor qualquer que seja seu local de implantação, deve necessariamente ser gerid~ no plano financeiro e administrativo·por um hospital. A Previdência Social toma então a si as despesas de hospitalização. Um hospital funciona ao preço de diária e tem então um lucro, às vezes vital, se tiver um coefici~nte satisfatório de ocupação de leitos. Por outro lado, as despesas extra-hospitalares, atividades de ambulatórios, visitas domiciliares e eventuais intervenções na comunidade entram na rubrica da prevenção e são pouco ou nada reembolsáveis pela Previdência Social. Essas despesas devem ser votadas pelos Conselhos gerais e só são parcialmente tomadas como encargos em seguida pelo Estado. Dado muito prosaico, mas que constitui uma incitação prática poderosa, para manter a hegemonia das práticas mais tradicionais e frear as mais novas. Sobre os 18 bilhões de francos mais ou menos que representam as despesas prescritas num quadro psiquiátrico, mais de 80% o são a título de hospitalização. 62 Estamos aqui nos limites do absurdo: a maioria dos setores, estando implantada a partir dos hospitais psiquiátricos e tendo necessidade do preço de diária para funcionar, um serviço que assumiria inteiramente sua vocação comunitária trabalharia de fato contra si mesmo! É fato que tudo se passou como se a administração tivesse visto sobretudo no setor uma fórmula para gerar tecnocraticamente e ao mínimo custo o problema espinhoso da doença mental: um corte geográfico homogêneo,_~~ organograma hierarquizado sob a responsabilidade das D.A.S.S., a poss1b1hdade de homogeneizar a prazo o setor psiquiátrico com toda uma série de recortes burocráticos do domínio da saúde e da ação social, tudo isso entra bastante bem no quadro de um grande sonho gerencial que começa, aliás, a poder

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61 "O livro negro do serviço de saúde mental francês". Informação Psiquiátrica, 6 jun. e 8 out. 1974. 62 A política dos tratamentos em psiquiatria, balanço e síntese. Op. cit. p. 26.

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mobilizar os recursos da informática. Face a essa máquina, a utopia do serviço do usuário ou o engajamento pessoal na perseguição de uma espécie de convivência social correm o sêrio risco de ser pulverizados. Os psiquiatras reformadores f"izeram certamente prova de uma certa ingenuidade, maravilhando-se demasiado rápido, porque seus projetos foram tão bem acolhidos nos gabinetes ministeriais. Não é, no entanto, uma razão suficiente para gritar por traição do setor. A experiência histórica prova que uma disposição administrativa não tem que realizar na prática todas as promessas que carrega para preencher o essencial de seu ofício. Assim a lei de 1838, ela mesma nunca foi plenamente aplicada em quase um século e meio, a começar por seu artigo primeiro, que previa a construção de pelo menos um hospício público por departamento. Mal foi votada, deu lugar, por parte dos alienistas, às mesmas reivindicações dos psiquiatras atuais, lamentando-se de suas condições concretas de trabalho. Mas, uma vez a lei passada, o essencial ficava em jogo para os administradores e os políticos. A loucura não representava mais problemas de princípio, era "administrável". As questões técnicas e de intendência para chegarem a uma aplicação completa poderiam tanto mais esperar que exigissem freqüentemente enormes gastos. Assim acontece atualmente no setor, e não há muito do que se espantar. Seria preciso acrescentar que a inércia também foi praticada por muitos, e sem dúvida pelos próprios profissionais. Não se insistiu bastante sobre adistância que, desde 1945, sempre separou uma minoria ativa de uma maioria silenciosa de psiquiatras. O setor tornou-se popular, ou pelo menos majoritário, no momento do Livro branco, quando apareceu como o meio de obter uma valorização da profissão. O gênio tático dos reformadores consistiu em ligar indissoluvelmente a reforma do sistema geral da medicina mental, à promoção individual de seus agentes ( de fato, só os psiquiatras, pois os 40.000 a 50.000 enfermeiros ficaram fora do debate até o fim) e um desenvolvimento espetacular da profissão. Assim a necessidade afirmada de passar de 600 a 4.000 psiquiatras em alguns anos: os internos, pelo menos, só podiam concordar. .. O religamento quase unânime da profissão à política de setor não implicava então necessariamente, da parte da maioria, uma motivação tal que eles se comprometam de um dia para o outro a romper com seus hábitos e a· reorganizar toda sua atividade sobre uma base inteiramente nova. Ora, se há qualquer coisa na qual a reforma não tocou, é bem a preeminência do médicochefe, fonte exclusiva de todo poder. Compreende-se a partir daí que um grande número de psiquiatras tenham se contentado com fazer o que era

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·t mente requisitado pelos regulamentos para obter a habilitação de chefes . . d de setor: introduzir a atividade mista em seu serviço, acolhe: os doentes e sua área geográfica (e excluir os que vinham de ~utras),_~bnr uma consu~ta mana em um ou dois ambulatórios que podiam, alias, confiar a um mpor se ·d· terno ... Por outro lado, as coisas podiam continuar segum o mais ou menos

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como antes.

Os órfãos de um mito Então setor desnaturado, setor traído? Todas estas razões pesaram incontestavel~ente, e poderiam dar conta do fato de que uma idéia generosa tenha escorregado para o pântano dos conformismos. Apesar de tu_do, o setor ou em paite nos fatos. Os argumentos não faltam aos que contmuam seus m tr hl .. defensor~s. É um dispositivo mais evoluído de gestão ~os pro emas so~ia1.s colocados pela doença mental do que o precedente, a lei d~ 1838, que_'." hm1tava a comandar uma parte cada vez mais restrita das pratJ.cas psiquiatncas. dúvida continuam a existir insuficiências e incoerências. Mas algumas . Sem estão em via de reabsorção. Lá onde havia wn psiquiatra em 1960, existem h · três ou quatro a situação dos doentes examinados ou tratados em extraOJe , d h ·tal· d 63 hospitalar começa a ultrapassar significativ~ente a os osp~ 1~a os, algumas equipes dispensam cuidados personalizados que pod~~ nval1~ar _cº1:1 os da medicina liberal, enfim, o próprio Ministério parece decidido a d1mmmr peso da herança hospitalar e a racionalizar o modo de financiamento do 0 setor. Uma tal argumentação não é contraditória com a que a precede. P?d~-se ter um balanço de sucesso ou de fracasso do setor em função dos obJetlvos propostos. O conjunto do território franc~~ logo será coberto por ser~ços dotados do mínimo de estruturas necessanas para que se possa chama-los setores: eram necessárias 1.200 equipes, na base de um setor para 70.000 habitantes e de uni intersetar infanta-juvenil para três _setores adultos, e 911 64 estão atualmente criados e dotados no mínimo de um chefe de serviço. Assim a disposição sobre o setor logo será realizada. Mas, d~r-se-á, seu es~írito não 0 está e O desencantamento substituiu no meio profissional o entusiasmo do começo. Hoje, numerosos psiquiatras são como os órfãos de um setor im63 Em 1978 mais de 2 milhões de consultas individuais tinham sido dadas em ambulatórios ~ontra 381.000 em 1962; 557.000 pacientes tinham freqüentado ambulatórios' no ano, dos quais 188.000 novos (Cf. "A política dos cuidados em psiquiatria. Balanço e síntese". Op. cit., p. 14). 64

Idem, ibidem, p. 6.

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possível, cuja representação vem alimentar sonhos de ocasiões perdidas e esperanças mortas. Mas isto se deve a que o caráter inovador do setor e sua coerência interna foram superavaliados. A fórmula pode iludir enquanto cristalizou todas as aspirações - ou todos os fantasmas - de reformismo psiquiátrico. A prova da realidade, suas ambições totais - ou totalitárias - esvaziadas, aparece como um disposit.ivo frágil, mais ou menos eficaz, mas que em todo caso não pode mais carregar a ambição de conter o futuro da psiquiatria. No fundo, o verdadeiro princípio de unificação que promoveu o setor é de ordem administrativa: ele permite gerir a heterogeneidade de um certo número de práticas e de instituições que tentam se encarregar das perturbações psíquicas, no momento em que emergem na comunidade e nela causam problema. É sem dúvida a razão pela quru os administradores a ela estão, à sua maneira, ligados, mesmo entendendo-a num sentido muito diferente dos psiquiatras. Recentemente um representante do Ministério da Saúde titulava um artigo: "Psiquiatria: o setor continua prioritário" e fazia o balanço dos progressos conseguidos nessa via, desde alguns anos, mas logo acrescentando: "Creio que a visão do setor universal, capaz de tudo absorver, e mesmo eventualmente de tudo reinserir, é uma ilusão. " 65 É forçoso reconhecer que esta concepção é mais realista do que a dos profissionai,s promotores da fórmula. Que ela se impõe hoje nos meios "responsáveis" epermite medir o caminho percorrido há uma dezena de anos. Nos anos sessenta, o desenvolvimento do setor psiquiátrico foi efetivamente a expressão da vontade que parecia então se afirmar ao instalar um dispositivo unificado de cuidado e de assistência aberto a todos, impulsionado, financiado e executado pelos poderes públicos. Mesmo nos Estados Unidos, onde as tradições de encargos por formas de assistência religiosa, os particularismos locais e a desconfiança a respeito das intervenções do poder central são mais fortes, é também o espírito que inspira na época (1963) a passagem do Community Mental Health and Retardation Act, sustentado pelo próprio presidente Kennedy. Mas assiste-se há um bom decênio ao refluxo dessa política. Nos Estados Unidos, em 1978, um relatório de uma comissão presidencial sobre a saúde mental presidida pela Sra. Rosalyn Carter preconiza uma reorganização dos serviços no seio da qual o sistema público impulsionado no nível federal só conservaria um lugar limitado e específico. As instâncias centralizadas se con65

LACRONIQUE, Jean-François. O setor continua prioritário. lmpact-médica, 51, nov. 1980, p. 31.

tentariam em sincronizar a ação de todas as instituições públicas e particulares, as que foram implantadas pela administração federal como as herdadas da tradição religiosa-filantrópica e até mesmo as nascidas na corrente da contracultura.66 É o desdobramento desse dispositivo que permitiria cobrir completamente o conjunto das necessidades da população, tais, pelo menos, como percebidos pelo lado do poder. Não é certamente a administração Reagan que irá de encontro a essa tendência, ao desengajamento do poderio público. Mas a_ intenção de sistematicidade dos partidários da intervenção federal poderia de certa maneira ser conservada por vias diferentes: potencializando todos os recursos assistenciais, qualquer que fosse sua origem, sua inspiração ou sua direção, a administração central reservando-se o cuidado de separar o bom grão do joio por meio de regulamentações administrativas e financeiras. Observa-se uma evolução do mesmo tipo na França. É num triplo nível pelo menos que podem ser ressaltados os signos de um recuo dessa posição privilegiada da nova psiquiatria pública, que se parecia ter progressivamente imposto desde o final da Segunda Guerra Mundial até o começo dos anos setenta. No plano da organização administrativa, primeiro. A psiquiatria pública propôs o primeiro modelo coerente de uma estrutura setorial como matriz unificada de todas as intervenções em direção a um alvo específico, a doença mental. Mas esse dispositivo tornou-se o organograma administrativo privilegiado do redesdobramento da ação sanitária e social em geral. A instauração de uma carta hospitalar (lei de 31 de dezembro de 1970), de uma circunscrição e de um setor de proteção maternal e infantil ( artigo 148 do Código da Saúde Pública), de um setor médico-escolar (portaria de 26 de agosto de 1968), de uma circunscrição do serviço social ( circular de 12 de dezembro de 1966), de um setor antituberculose (instrução de 29 de maio de 1973), de um setor por pessoas idosas ( circular de 14 de março de 1972), poderia ser interpretada como um triunfo dessa política de setorização inaugurada pela psiquiatria pública. Mas os difíceis problemas de coordenação entre essas dife. rentes instâncias não poderão se resolver a não ser homogeneizando essas estruturas, e particularmente aplainando a originalidade do setor psiquiátrico, sob vários aspectos específico e particularment~ difícil de integrar. Esse processo de laminação das estruturas psiquiátricas dentro de um organismo admi· nistrativo cada vez mais unificado e exigente ao nível das D.A.S.S. já está fortemente comprometido. 66

Report ta the President from the President 's Commissian an Mental Health, Washington, 1978. 4v.

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De fato, uma das características essenciais das transformações intervindas há uma dezena de anos nesse campo é certamente a extraordinária expansão e tecnização da infra-estrutura administrativa. Logo que a política do setor foi oficializada por uma circular de 1960, havia, no Ministério da Saúde, uma repartição de doenças mentais, com alguns funcionários, a maioria cúmplices das novas idéias. Os psiquiatras reformadores - algumas personalidades também - tinham aí suas entradas. Hoje, os escritórios estão povoados de enarcas, de politécnicos e de jovens liberais dinâmicos. Terminais de computadores acabam ali, e as pastas estão c!1eias de pesquisas sobre as racionalizações das escolhas orçamentárias. No interior, o secretário do gabinete do prefeito foi substituído pela pesada máquina tecnocrática das D.A.S.S. e por uma proliferação de comissões administrativas de todas as espécies. Em segundo lugar, observa-se uma inclinação, para não dizer urna integração, do serviço público do setor no seio de uma constelação de instituições particulares e parapúblicas. O peso do particular, pelo menos no quadro da psiquiatria de adultos, a partir da qual tinha sido pensado o modelo de desenvolvimento do setor, sempre foi relativamente modesto. O patrimônio hospitalar das clínicas particulares nunca representou senão o décimo mais ou menos das capacidades da hospitalização pública e "fazendo função de público". O exercício da psiquiatria em clieritela particular só começou a se desenvolver de maneira significativa há uns dez anos. De onde a consciência dos psiquiatras públicos, até os anos sessenta, de cobrir o essencial do campo da prátjca da medicina mental, com somente concorrentes principais, os psiquiatras universitários. A ótica se transmuta no entanto, se levarmos em conta que o domínio da infância e as intervenções sobre deficiências que não são doenças mentais no sentido estrito, mas que requerem cada vez mais a intervenção da expertise psiquiátrica, como os deficientes mentais (capítulo 3), cuja responsabilidade depende de estabelecimentos médico-educativos. Ora, em 1.800 estabelecimentos desse tipo, que dependem do Ministério da Saúde, 1.100 nasceram de u?1a iniciativa particular; 88% dos estabelecimentos acolhendo Crianças em dificuldade, e 90% dos que se encarregam dos deficientes adultos, são igualmente de origem particular. 67 A tarefa essencial de um chefe de seta~ infantojuvenil, por ex:mplo, é freqüentemente compor com as instituições e associações variadas. E também negociar e coordenar com representantes de adminis67

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Cf. Discussão da lei de orientação em favor das pessoas deficientes, Assembléia Nacional, sessão de 13 de dezembro de 1974, Diário Oficial, 102, ano de 1974, p. 82. Para uma avaliação recente do peso do setor particular no domínio da infância cf. CHAUVIERE, Michel. "Phagocytages", Non! ,jan.-fov. 1981. '

trações diferentes, proteção maternal e infantil, proteção médico-social escolar, infância inadaptada, serviços sociais e até justiça. Só pode haver uma consciência aguda da relatividade de seu modo de inserção no seio de um amplo conjunto de organismos e de instâncias de decisão em meio aos quais não se detém o poder de direção. Em terceiro, a hegemonia da psiquiatria pública aparece também roída no próprio interior da profissão. A existência de um setor particular deve ser aí concebida, ao contrário de uma herança ou de uma sobrevivência, como um domínio em expansão cujo desenvolvimento foi encorajado pelas próprias administrações no quadro da curva neoliberal que se impôs nestes últimos anos. Seu desenvolvimento está desequilibrando a relação de forças no próprio seio da profissão. Notou-se a progressão do número dos psiquiatras públicos, mas a dos particulares é mais rápida ainda Eles são atualmente quase 3.000 (enquanto seu número era insignificante há trinta anos) e avalia-se em quatro milhões o número de atos terapêuticos que eles concluem anualmente, contra um milhão para os psiquiatras públicos. 68 O próprio ministério reconhece a existência de "uma dupla malha, uma destinada às categorias sociais mais privilegiadas de encargo da medicina de exercício liberal e estabelecimentos particulares, outra que recebe os doentes menos favorecidos (setor)". 69 Ainda trata-se aí de atos efetuados pelos especialistas públicos ou particulares. Mas eles representam a minoria: 74% das intervenções da saúde mental são efetuadas por clínicos gerais e outros especialistas que não são psiquiatras, que não têm praticamente nenhuma relação com o setor. 70 Estamos longe, vêse, do domínio desse grande serviço público que representaria o setor. Assim, à medida que se aplica, o setor se apaga como a estrutura suscetível de servir de fio condutor para compreender o conjunto das mudanças em curso no domínio da medicina mental. Portanto, não há alternativa no setor, pelo menos se se entende por isso uma fórmula unificada e autônoma do desenvolvimento da psiquiatria. Se atribuímos à sua discussão uma tal importância, é porque sobre ele acaba de ser jogada a última peripécia do projeto secular de unificar numa síntese original os diferentes elementos que fariam 68 Sobre a implantação e as estrutura~ da psiquiátrica particular, cf. BLÊS, Gerard. "A prática psiquiátrica particular". Enciclopédia Médico-cirúrgica, 1 976, A 1O, 11. 37957. Número~ atualizados no decorrer de uma entrevista com o autor, secretário-geral do Sindicato dos psiquiatras de exercício particular. 69 "A política dos tratamentos em psiquiatria, balanço e síntese. Op. cit. p. 36. 70 Idem. Ibidem. p. 50.

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da medicina mental uma medicina especial. Sobre ele jogou-se também odestino de um certo proselitismo psiquiátrico que alimentava o desígnio de abrir as vias novas às intervenções médico-psicológicas em nome de uma ideologia do serviço do usuário que conciliaria a exigência jacobina de desenvolver o serviço público e a exigência humanista de ir à frente de qualquer fraqueza, talvez prevenir sua aparição. Em vez então de repetir as condenações de "imperialismo psiquiátrico" que se cristalizaram em volta da política de setor,. melhor vale a partir de então analisar os dispositivos estourados que pegam o relais de sua ambição.

Capítulo 2

A medicalização da saúde mental

Há uma nova organização de conjunto da medicina mental suscetível de substituir a que se acreditava dominante até a metade dos anos setenta'! À primeira vista, hoje, em um contexto de crise que não é somente econômico, é a dispersão que prevalece. Iniciativas partem em todas as direções, novas linhas de expansão se desenham, enquanto que posições antes sólidas são condenadas à defensiva. De uma certa maneira, entramos, simultaneamente, na era da pós-psiquiatria e da pós-psicanálise. Esta proposição deve-se entender sem equívoco. Ela não significa que nós nos instalamos em uma modernidade sem memória que.teria ultrapassado e tornado caducos os antigos dispositivos. Assiste-se sobretudo a decomposições e a recomposições inéditas que acarretam uma redistribuição das cartas. A análise dessas transformações trabalhando um campo médico-psicológico, que cessa por esse fato de ser dominado pela psiquiatria clássica e pela psicanálise, constitui assim uma prévia obrigada a uma avaliação sintética da situação atual. Seja então, neste capítulo e nos dois seguintes, a identificação das três principais linhas de fuga que nos levam para novos horizontes: - a laminação da especificidade da abordagem psiquiátrica permirindo o retorno forte do objetivismo e do positivismo e operando uma banalização das instituições e técnicas da medicina mental no seio da medicina geral,

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medicina mental que, autorizando a dissociação do diagnóstico e do tratamento, tende a substituir a prática de tratamento por uma prática de expertise generalizada, à base de estratégias inéditas de gestão das populaçõe~. - a derrapagem da orientação psicoterapêutica se diluindo numa nova cultura psicológica, no seio da qual as fronteiras entre o normal e a patologia desaparecem e onde a terapia é ultrapassada, mesmo quando a totalidade da existência torna-se matéria de tratamento.

1. A CRISE DA "MEDICINA ESPECIAL"

A medicina mental esforçou-se além do mais para fundar a originalidade de seu objeto, de seus métodos e sua abordagem em relação à medicina geral. Isto significa, primeiro, defender a especificidade de um lugar de exercício, o "estabelecimento especial" como se dizia no século XIX, quer dizer, o hospício especialmente concebido para o tratamento da loucura, mas também mais tarde_ o dispositivo do setor cujas estruturas horizontais, capilares, se opõem à estrutura piramidal do hospital geral. Afirmar a originalidade da medicina mental é ainda impor através da exigência de continuidade dos tratamentos uma tomada de encargo completo e um tratamento em profundidade da clientela em oposição às intervenções mais pontuais e mais técnicas de uma medicina que ataca preferencialmente os estados agudos. Novos filantropos e primeiros tecnocratas

Essas noções, que os profissionais apresentam freqüentemente como quase-evidências, s6 se impuseram, no entanto, através de longas lutas. De fato, essas conquistas são frágeis, pois repousam numa contradição que a medicina mental viveu até hoje: uma especialidade médica constituindo-se em medicina especial, quer dizer, em uma relação a um s6 tempo essencial e impossível para a medicina. Desde sua origem, de fato, a medicina mental instituiu-se numa curiosa situação de falsidade em relação à medicina. No começo do século XIX, no próprio momento em que se impõe a medicina "científica" moderna, e em que a Escola de Paris encontra seus mais brilhantes sucessos, o alienismo procurou na medicina do século XVIII o modelo de suas nosografias e a fórmula de sua abordagem prática. Classificação dos sintomas, procura de uma etiologia moral das doenças mentais, preponderância do tratamento moral sobre os meios físicos formam, no começo do século XIX, um conjunto certamente 68

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coerente, mas perigosamente deslocado e como que em atraso em relação aos critérios de cienti:ficidade que se impõem no mesmo momento da medicina. A explicação desse paradoxo se deve à própria natureza da perturbação psíquica tal como.a representam os alienistas. Que a alienação mental tenha ou não raízes orgânicas, 1 ela se dá sob a forma de uma desordem na organização da sociabilidade, e a psiquiatria representa o saber e a prática capazes de combater e anular essas turbulências. Ela é assim, antes de ser uma medicina orgânica, ainda mais uma medicina social. O alienismo colocou-se dessa maneira em posição de chefe de fila em relação às práticas da higiene social e da filantropia, que repousavam sem dúvida sobre tradições mais antigas, mas tinham necessidade de caução científica que lhes tenham buscado a indexação médica. Ocupando essa posição, a medicina mental consumou uma parte essencial de sua vocação histórica. 2 Esta concepção de conjunto dominou amplamente a primeira metade do século XIX. A partir de 1860 mais ou menos, ela começa a ser roída pelos ataques do positivismo médico, que se desenvolvem segundo uma linha dupla. De um lado, fazer do espaço hospitalar um meio verdadeiramente médico, quer dizer, onde se dispensam tratamentos intensivos, rompendo conforme a necessidade com as funções de assistência e guarda tradicionais, mesmo se estas se enfeitem de virtudes da filantropia. Paralelamente, sair do hospital para desenvolver ações preventivas às quais a luta contra as doenças infecciosas, e sobretudo contra a tuberculose, vão logo propor um modelo médico que não deve nada à tradição alienista. Essa dupla evolução das práticas apóiase no plano teórico sobre uma distinção que tende a se impor desde o século XIX entre "doença mental" e Halienação mental". Se a alienação corresponde a um estatuto administrativo-legal, ao mesmo tempo que médico sancionado na lei de 1838, um grande número de doenças mentais correspondem a uma problemática puramente médica que não exige medidas de assistência e/ou de contenção. 3 É preciso então romper com esta associação assistência-medicina que remete aos estágios arcaicos da constituição da psiquiatria. 1 Desse ponto de vista, o debate se abre no nível teórico, e opõem "somatizadores" e "psicologistas". Mas, nesse plano da prática, prevalece o que J.P. Falret chama de "ecletismo terapêutico", que consiste em mobilizar todos os meios empiricamente disponíveis para afrontar a doença mental tal qual ela se apresenta: como o que nós chamaríamos hoje uma perturbação relacional. 2 CASTEL, Robert. A ordem psiquiátrica. Ed. de Minuit, 1976, cap. III: "A primeira medicina social". 3 Pelo que eu conheço, essa distinção aparece pela primeira vez com clareza em "A convalescença dos alienados", de LEGRAIN, M. Relatório do conselho superior da

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Antes da Segunda Guerra Mundial éssa orientação tecnicista e, dever-se-ia dizer, tecnocrática por antecipação, está apta a propor um programa coerente de reformas que se poderia formular aproximativamente assim: a medicina mental começa a dispor de métodos de pesquisas e de técnicas de tratamento intensivo que a reaproximam da medicina comum. Façamos então, tanto quanto possível, da doença mental uma doença como qualquer outra, tratável num hospital como uma outra, mandando de volta, se necessário, as crônicas aos estabelecimentos de carceragem. Por outro lado, existem também tecnologias médicas de detectação e de prevenção entre as quais a luta contra a tuberculose oferece o modelo. Abramos dispensários de higiene ffil"!:t:tl do mesmo tipo religando-os por exemplo à repartição pública de .higiene social (O.P.H.S.); eles tocarão diretamente o público economizando os desvios da hospitalização. Enfim, proponhamos mais amplamente ainda as novas competências do médico-psiquiatra fazendo-o inteivir como conselheiro junto a instituições como escola, exército, empresa, que têm problemas de recrutamento, de seleção e organização interna que um expert pode resolver. Tal é aproximadamente o programa que encontramos formulado por Georges Heuyer em 1945. Ele se refere a Edouard Toulouse, e, além, à tradição do movimento americano de higiene mental4 que tinha inspitado Toulouse para a criação do Centro de Cuidados Intensivos Henri-Rousselle em Paris, e para seus projetos de detectação sistemática das anomalias da iniancia Ele já pode se apoiar sobre um começo de realização: em 1936, a integração de um programa de luta contra as doenças mentais na O.P.H.S. com abertura de ambulatórios psiquiátricos ligados aos ambulatórios de detectação das doenças infecciosas; a mudança do nome de hospício para hospital psiquiátrico inteivinda em 1937, a despeito da oposição dos alienistas; a circular do ministro da Frente Popular Roucard que, no mesmo ano, recomenda a multiplicação assistência-pública, 78, 1982: "No alienado há dois seres, o anti-social e o doente. O primeiro é alienado do ponto de vista legal, o segundo é alienado do ponto de vista médico". Legrain mesmo acrescenta; "Tal é a distinção capital que não foi abordada até esse dia e que nós consideramos como o pivô das reformas de amanhã'' (p. 7).

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Fundado em 1909 por antigo doente mental, Clifford Beers, o movimento de higiene mental logo cobre os Estados Unidos com comitês que se propõem ter antes de tudo um papel de informação e de prevenção. A filial francesa foi criada em 1921 (será a segunda sociedade estrangeira depois da canadense). Em 1937 realiza-se em Paris o segundo congresso mundial de higiene mental. O presidente é Edouard Toulouse. Ele já avaliava em um milhão para a França o número de "mentais" que precisavam de tratamento intensivo.

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dos ambulatórios de higiene mental e "serviços livres". Essa posição é acompanhada de violentas críticas pela tradição alienista, entre as quais Heuyer, que pede praticamente a supressão através da abolição de qualquer legislação especial como a lei de 1838, a "desadministração" da função do psiquiatra, que deve tornar-se um especialista como os O.R.L. e outros tisiologistas, recrutando com base num diploma de faculdade e não mais um médicu-funcionário, absorvido por tarefas administrativas. É preciso ao mesmo tempo remedicalizar a instituição psiquiátrica fundindo-a no hospital geral. "O centro lógico da organização psiquiátrica é o serviço hospitalar no quadro do hospital geral. " 5 O novo especialista, enfim, liberado para tarefas propriamente médicas, poderá simultaneamente exercer suas competências em domínios tão diversos quanto "a orientação profissional", Ha organização do exército", "a antropologia criminal" ou "a inlancia deficiente ou em perigo moral". Eis a organização que se poderia instalar como alternativa à tradição alienista. Podemos nos espantar que os alvos dessa confrontação tenham sido freqüentemente dissimulados na literatura dos reformadores, por exemplo, no Livro branco, atrás da polêmica algo corporativista e limitada contra o conservantismo dos universitários. Eis também o modelo em relação ao qual e contra o qual o setor se bateu, e pelo qual acreditou poder igualar a coerência economizando os exclusivos. Há assim não só um, mas dois modelos de modernização da medicina mental. O das espécies de "mutantes da tradição alienista", segundo a palavra de Bonnafé, que se expande na doutrina do setor: renovar o dispositivo psiquiátrico conseivando a um só tempo a especificidade de sua abordagem em relação à medicina e a vontade de encargo total da tradição assistencialista. O do objetivismo médico, cuja exigência de eficácia se paga com o abandono algo cínico dessa espécie de sedimento da população de hospícios que resiste aos cuidados intensivos e é batizada "crônica", "incurável", "irrecuperável", etc. 6 De um ponto de vista humanista ou político, o desfile dos alienistas e de seus sucessores é forte quando eles denunciam aí uma exclusão e uma rejeição. Nem por isso eles subestimaram a força, a coerência e a dinâmica da orientação oposta. 5

HEUYER, Georges. Para uma verdadeira assistência aos doentes mentais. O médico Francês, 51, out. 1945. p. 9.

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A título de ilustração, esta profissão de fé de Edouard Toulouse, chefe de fila da corrente modernista entre as duas guerras: "A crítica mais justa que se possa fazer a

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Esta, do ponto de vista teórico, podia se apoiar sobre o alargamento progressivo da concepção da doença mental, além do círculo estreito da alienação mental. Podia, ela também, reivindicar um .caráter progressista, na me~ dida em que a forma de medicalização que propunha quebrava a velha taut0logia doença mental== alienação completa =internação necessária, sobre a qual se fundavam as condutas mais segregacionárias a respeito das doenças mentais. Enfim, em termos de relações de força, ela se apoiava em posições pelo menos tão sólidas quanto as de sua concorrente, pois, se o positivismo médico era fracamente representado nos hospitais psiquiátricos, sempre dominou os poderosos bastiões universitários. Curiosamente, quase toda a polêmica recente sobre os objetivos da psiquiatria desenrolou-se como se só tivesse existido uma tradição alienista renovada pela política do setor, e sobre o sucesso ou fracasso da qual se jogava o destino da medicina mental. A ocultação da outra possibilidade não somente teve o inconveniente de fazer mal conhecido ou subestimado todo um domínio de práticas que, elas também, pesaram nas transformações recentes do sistema psiquiátrico (para tomar esse único exemplo, os medicamentos psicotrópicos foram descobertos pela psiquiatria universitária). Fazer 'da política de setor a única fórmula coerente do reformismo psiquiátrico, e da orientação propriamente médica um puro bastião da resistência ao progresso, era também hipotecar pesadamente a concepção que se podia fazer do futuro da medicina mental. Pois, hoje, os defensores do setor descobrem com espanto que os seus inimigos hereditários, os defensores do objetivismo médico, do nossos hospícios, é que eles não respondem a um objetivo claramente determinado. Se são destinados a hospitalizar doentes atingidos por formas agudas de loucura, devemos reconhecer que não possuem um pessoal suficiente de médicos e guardas, nem a instalação desejável do interior dos locais. Se, pelo contrário, esses hospícios são feitos para receber crônicos e incuráveis, poder-se-ia declarar que o pessoal médico e vigilante é demais. ( ... ) A estada de todos esses crônicos inofen~ sivos em nossos hospícios, onde a vida é tão dispendiosa, é quase uma extravagância de assistência, tal como escreveu um alienista inglês. Por que gastar tanto para cultivar em estufa e prolongar indefinidamente a existência de tão grande número de idiotas e dementes? Uns nunca puderam, e os outros não poderão jamais dar qualquer proveito à sociedade. Esta última deve assisti-los proporcionalmente e reservar o resto de seu dinheiro para os doentes agudos e para tantos outros desafortunados, por exemplo, as crianças abandonadas, que são um capital seguro, cujos resultados ultrapassam todos os sacrifícios feitos por eles." (Relatório sobre a existência dos alienados na França e na Escócia, Conselho Geral do Sena, 1898, PP- 3 e 4).

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uai só quiseram reter os traços mais conservadores, os estão suplantando ;m quase todos os terrenos, e que são eles que parecem a partir de então estar contra o vento da história. A banalização institucional É primeiro a noção de instituição especial, quer dizer, de um espaço autônomo no qual se desenrolariam todas as práticas psiquiátricas e nada mais do que elas, que aparece no ponto de ser implantada. Essa concepção tinha sido conseguida em alta luta pelos alienistas no correr dos debates que culminaram na lei de 1838. Disso resultou que o hospício constituiu a principal matriz no seio da qual foi constituída a prática psiquiátrica hospitalar até data recente.

No máximo, foram conservados, com a condição de ficarem perfeitamente separados e terem um funcionamento autônomo, alguns "quarteirões especiais" nos hospícios ou hospitais gerais, um setor institucional particular que nunca ultrapassou 10.000 leitos e serviços psiquiátricos ou neuropsiquiátricos de faculdade. Estes recebiam além dos doentes de perfil diferente, casos agudos rapidamente transferidos ao hospício, logo que não se curavam ligeiro, a menos que não fossem conservados como "belos casos" a apresentar aos estudantes. Assim, em 1964, havia para a região parisiense 240'1eitos de psiquiatria e 925 de neuropsiquiatria dependendo da Assistência Pública, contra 15.000 leitos de hospitais psiquiátricos e, para toda a França, 1.500 leitos de 7 serviços de neuropsiquiatria para 114.000 hospitalizados em psiquiatria. Os primeiros setores tendo sido criados a partir dos hospitais psiquiátricos existentes, essa relação não foi logo modificada Mas os novos serviços psiquiátricos são cada vez mais freqüentemente ligados a hospitais gerais. Há hoje 17.000 lugares psiquiátricos nesses hospitais, ou seja, perto de 15% do conjunto, contra 1%, há vinte anos, e a tendência se acentua. Essa normalização relativa de suas condições de exercício pode beneficiar a psiquiatria ajudando-a a sair de seu gueto. As trocas que autorizam a proximidade dos serviços, a homogeneização dos estatutos do pessoal vão acarretar uma certa osmose entre as práticas e atenuar os estigmas de rejeição associados ao exercício de uma medicina mental confinada em espaços especiais. No entanto, uma tal evolução leva a termo o risco de ver instituirwse um 7 LOSSERAND, Jean, "Neurologia e psiquiatria". Livro branco... Op. cit. t. 1.

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duplo circuito de cuidados e um duplo curso institucional. A partir do mo. m~~t~ em que coexistem dois modelos de práticas, a médica clássica e a psi- -: qmatnca, tudo leva a crer que a primeira representa a boa fórmula que acabará por vencer. , _ Já em algumas grandes cidades, grandes hospitais (por exemplo, Edouard- : He1_:1ot em Lion, o Hôtel-Dieu em Paris) não somente recebem a maioria das urgencias, mas constituíram serviços de tratamentos intensivos, com um pessoal reforçado, que escolhem uma parte da clientela dos setores das redondezas. Os responsáveis pelas estruturas universitárias jamais se converteram à r:li~ião do s:tor como dispositivo homogêneo, cobrindo o conjunto do territono. Ele.s visam antes de tudo, através da modernização da psiquiatria, ao desenvolvimento de serviços integrados à estrutura hospitalar geral, participando de seu dinamismo e de suas formas hierarquizadas de funcionamento de maneira que as estruturas horizontais se desenvolvam nas zonas meno~ medicalizadas. Seu peso é cada vez maior na profissão. Um psiquiatra da tradição clássica dava assim conta do recente congresso que se realizou em Toulouse so~re o tema "A psiquiatria no hospital geral" (fevereiro de 1980): "Sua o:1entaçao, ~eral nos apareceu de certa maneira como uma colocação em questao da poh tlca de setor em psiquiatria. " 8 O setor, de fato, era a associação hospital psiquiátrico-serviços comunitários; o recentramento das práticas psiquiátricas sobre o hospital geral seria a separação entre os serviços especializados de alta tecnicidade e os serviços de longas estadias fracamente medicalizados. Esta ameaça é tanto mais real quanto os serviços especializados dos hosP_it~s ge~ais, que não são os únicos a tratar das perturbações psíquicas. O relatono mais recente do Ministério da Saúde numera em 263.000 a quantidade de altas dos hospitais gerais de doentes sofrendo de uma perturbação mental, contra lb5.000 altas_ dos hospitais psiquiátricos. 9 Mesmo, se é verdade que ~m regra geral a gravidade das perturbações tratadas nos serviços não especializados dos hospitais gerais é menor que a apresentada pelos doentes oriundos do ~ospital psiquiátrico, e que estão em geral associadas com uma patologia somatica, estamos muito longe da situação quase-monopólio sobre as pertur-

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bações psíquicas reivindicada pelos partidários da tradição psiquiátrica. Não é também um dado marginal que na outra extremidade do leque das instituições hospitalares os estabelecimentos de tipo hospício abriguem um grande número de velhos sofrendo de perturbações mentais. Em 1976, seu número era avaliado em 115.000, 10 seja aproximadamente a população dos hospitais psiquiátricos. Mas, fato mais grave ainda para os defensores de uma psiquiatria específica, os próprios serviços ministeriais, pelo menos sob a antiga maioria, se distanciaram a respeito do que se convencionou ser a política oficial de defesa dessa especificidade. Numa entrevista recente, o adjunto do Diretor-Geral da Saúde preconizava, contra os "incondicionais do setor", a abertura de um serviço de psiquiatria em cada hospital geral. Passando por cima do risco de escolha dos setores por tais serviços, punha em questão a coexistência no seio de um serviço unificado de patologias mentais muito diferentes, quer dizer, o princípio de base do alienismo retomado pela política de setor: "Fazer cotejar o grande débil ou o violento com o doente que é frágil em sua inserção social não vai contribuir em nada a que o último tenha muita vontade de sair disso, nem a que ele possa se reinserir rapidamente. " 11 Da instituição especial às instituições especializadas

O que se esboça aí é uma reestruturação de todo o dispositivo institucional da psiquiatria, onde haveria não mais "instituições especiais", mas instituições especializadas no tratamento, e outras na vigilância, de tal ou tal categoria de doentes. Política nova (e, ao mesmo tempo, velha política, já que ela só retoma antigos projetos tais como o de Toulouse) que está ainda no estágio de esboço, mas que começa a se perfilar atrás de algumas diretrizes recentes. Assim, a última, em data das circulares de aplicação da política de setor (15 de junho de 1979), obriga todas as equipes a estarem aptas a assegurar as urgências, recebendo a qualquer momento os chamados, tanto de doentes ou de sua equipe como de outros serviços médicos e serviços encarregados da manutenção da ordem e da segurança, polícia, guardas, bombeiros. 12 As equi10

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BACIOCCHI, Maurice. A psiquiatria no hospital geral. Boletim do Sindicato dos Psi· quiatras dos Hospitais, 2, mar.-abr. 1980. 9 "A po l'. lt1ca d os tratamentos em psiquiatria, balanço e síntese". Op. cit. p. 38.

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Idem, ibidem, p. 37. LACRONIQUE, Jean-François. "Psiquiatria: o setor continua prioritário". Op. cit. p. 28. Circular nC? 896 A.S.2., reproduzida na Informação Psiquiátrica, fev. 1980, pp. 223226.

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pes de s~tor são incitadas a se agruparem em _três ou quatro para assegurarem e:se _serviço, e a constituír~m uma antena de intervenção, que será, de prefe. renc1a, baseada num hosp1 tal geral, onde poderá se beneficiar da infra-estru~ t~r~ dos outro~ se~i?os méd~c?s. de urgência. Mesmo se só se trata, em prin. c1pio,, de _um_ disp~sitivo prov1s~no, e que só diz respeito a uma parte das tare-· f~s pr~p~ias _ª eqmpe psiquiátrica, é colocá-la à frente de um modelo de prática medica i~te~:n~ionista, pontual, centrada sobre a crise, oposta. ao modo de encargo_ ps1qmatnco e lon~o termo. Haveria bastante razões técnicas para que essa diferença na modalidade das intervenções se institucionalizasse e uma d~cotomia entre tipos de serviços de tratamentos intensivos e serviç: apropnados à vigilância. Num espírito aproximado, uma disposição da lei de 30 de junho de 1975, _'.'m favm das pessoas deficientes (cap. 3), prevê a criação de casas de recepçao especializadas (M.A.S. ), para assegurar uma vigilância e um mínimo de ac?m~anhamento médico para grandes deficientes que não mais seriam s~s~etiveis ~e- recuperação. Disposição em curso de aplicação, que vai sem duv~da permit1r regularizar o destino de um certo número de "crônicos" dos quais Toulou~e j~ notava q~e a m3:1utenção em meio hospitalar era "quase um~ extravagancia de assistencia". E também questão de abrir alguns desses se~iços nos grandes hospitais psiquiátricos que não podem mais lotar com os ?.ªcientes ~ecrutados em sua área geográfica. Assim, no próprio coração do estabelecimento especial" inventado para o tratamento exclusivo da loucura vere~_os se instalar uma nova população de grandes deficientes que ali serã~ admitidos com a condição de que não sejam doentes mentais suscetíveis de tr~tamento. Ao ~~smo tempo que uma peripécia comandada por razões prosa~camente (ou cinicamente) econômicas, há aí como que um símbolo de uma ~nse profunda da "medicina especial" que cqmeça a ser desmantelada até 0 imo de sua fortaleza secular. , _A proliferação atual das ''estruturas intermediárias", se provém de um esp1nto todo diferente, vai na mesma direção. Trata-se do desenvolvimento. nas margens das instituições oficiais, de "apartamentos terapêuticos" para d~entes mentais, de comunidades de inspiração mais ou menos antipsiquiátnca que, por exemplo, acolhem no campo crianças psicóticas ou toxicôman~s., Alg~mas dentre elas herdaram aquisições do movimento· de crítica antihi~rarqmco e antiestático destes últimos anos. Outras são promovidas por psiqw~t~as empreendedores, que as montam em derivação sobre as estruturas oficiais do setor. Que sejam de estatuto privado ou parapúblico, contava-se em volta de 250 dessas estruturas intermediárias em 1977, e seriam atualmen-

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te da ordem de 500. 13 Movimento sem dúvida destinado a se ampliar, porque formas atenuadas e mais concretas da contestação antipsiquiátrica, elas seduzem também um número crescente de profissionais que ali vêem o meio de ultrapassar a rigidez da estrutura burocrática do setor, e mesmo de responsáveis administrativos da Ação Sanitá1ia e Social tentados a um só tempo pela sua flexibilidade e seu menor custo de funcionamento. Não somente elas ampliam a gama institucional, além da instituição especial, mas contradizem sua própria concepção, já que acolhem freqüentemente, com e ao lado de doentes mentais propriamente ditos, diferentes tipos de casos sociais oriundos dos meios da marginalidade e do desvio. "Desespecificação", então, dos espaços psiquiátricos. Mas, no seio de todas as forças que fazem explodir a velha idéia de uma única instituição para todos os _doentes mentais e unicamente para os doentes mentais, as que impõem a prevalência do esquema médico clínico parecem as mais fortes. Vê-se assim ressurgir perpetuamente o espectro de uma faceta entre uma psiquiatria de ponta altamente medicalizada e serviços de toda origem, ou marginalizados nos campos bucólicos ou, pior ainda, especializados na manutenção dos '"crônicos" e outros "não-valores sociais", como dizia ainda Edouard Toulouse. Essa distinção contra a qual toda a linhagem alienista, depois a da psiquiatria comunitária, lutara e continua a lutar, até aqui com sucesso, tem, apesar disso, por ela, todo o peso da tradição propriamente médica. À medida que a medicina mental se reaproxima da medicina geral, a atração desta se faz mais forte. Que esteja se sobressaindo mais, não significa o fim da medicina mental, mas o fim da psiquiatria como medicina especial. A homogeneização profissional

Devemos reaproximar esta banalização do dispositivo institucional daquele que está se impondo no nível da formação de pessoal. As faculdades de medicina (atualmente C.H.U.) não tinham formado, até data recente, a não ser um ínfimo número de psiquiatras. Assim, em sete anos, por volta de 1960, somente 34 diplomas de estudos especializados de neuropsiquiatria tinham sido concedidos pela faculdade de Paris. 14 A imensa maioria dos psiquiatras se 13

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Uma associação para o estudo e a promoção das estruturas intermediárias (A.S.E.P. S.O.) recentemente fundada lança uma revista, Transições (cinco números publicados desde dezembro de 1979). BRISSET, Charles. "Psiquiatria, neurologia e medicina". Livro branco... Op. cit., t. II. p. 148.

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formava "no local", no hospital psiquiátrico, onde primeiro eram internos, recrutados por concurso especial, 15 depois faziam, para se tornarem médicosch~fe~, ~ doutorado, concurso nacional ele mesmo totalmente específico à p~1qmatna. Essa formação entretinha evidentemente o particularismo psiquiátnco. Os estudantes escolhendo a psiquiatria foram, aliás, sempre caracterizados por várias particularidades atípicas em relação ao recrutamento do conjunto dos profissionais médicos: gosto pelo serviço público, origem social menos elevada, orientação política "de es,:iuerda", etc. Uma tal particularização já foi fortemente empreendida pela reforma do estatuto dos psiquiatras em 1968. A partir de então, internos como não-internos devem obter o certificado de estudos especiais. Este, preparado em quatro anos, comporta seminários obrigatórios de cuja maioria são dispensados nos C.H. U. A manutenção na especialidade e a memória terminal são julgados por um júri composto principalmente de universitários. Aqui os psiquiatras perderam completamente numa reivindicação que a seus olhos era a contrapartida necessária da separação entre neurologia e psiquiatria: a participação nas atividades de ensino em paridade com os universitários, e o reconhecimento dos caracteres específicos da prática psiquiátrica de setor como elemento essencial da formação. E mais, o novo estatuto dos psiquiatras que os assimilava aos médicos dos hospitais de segunda categoria permitiu aos elementos provenientes da Universidade ( chefes de clínicas, assistentes, adidos, etc.) postular diretamente à direção de um serviço de setor, e o fizeram em grande número. No concurso de 1980 do ramo psiquiátrico, um terço de aprovados tinha sido exclusivamente formado por essa rede, com grande dano para os psiquiatras dos hospitais. 16

. o q~e tmha subsistido do antigo modo de reprodução endógena dos psiqmatras publicas, e que continuava quantitativamente determinante está em via de ser completamente abolido com a reforma dos estudos de :Uedicina votada em 1979. A rede do internato único abrirá para todas as especialidades, entre as quais a psiquiatria. Os internos serão formados nos C.H.U. e num nú.mero li-!11-itado de serviços reputados "qualificadores" escolhidos pelo estabhshment médico segundo critérios que não darão certamente vantagem para os defensores da tradição psiquiátrica. IS A

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preemme_ncia desse emaranhado era tal que a maioria dos psiquiatras e psicanalista'i que se mstalaram no particular a partir dos anos cinqüenta eram antigos internos d_os grande_s _hospitais psiquiátrico<;, como os do Sena, cujo título dava a equivalência do certificado de estudos especializados de neuropsiquiatria.

Boletim do Sindicato dos Psiquiatras dos Hospitais, 3 abr. 1980.

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Para a psiquiatria, isto significa primeiro que o número dos internos, por volta dos 3.000 atualmente, vai baixar para mals da metade. Em seguida, que serão formados em prioridade nas estruturas médicas, C.H. U. e serviços de psiquiatria dos hospitais gerais. Enfim, o concurso de internato sendo único para todas as especialidades, há lugar para pensar que a maioria daqueles que teriam vontade de fazer psiquiatria não o poderão, e que os que a tomarão como especialidade não a teriam querido, já que as possibilidades de escolha são estritamente determinadas pelo lugar obtido no concurso único. Acontecendo muito cedo no curso universitário esse concurso, o recrutamento se fará sobre critérios muito "científicos". Aliás, o mínimo que se pode dizer dos programas dos estudos de medicina em geral e dos internatos em particular é que eles não encorajam o sentido das relações humanas e da indagação sobre os mistérios do psiquismo. Já ao nível da formação requisitada, eles drenam preferencialmente os espíritos positivos, adaptados a um mundo de concorrência que muitos afrontarão com a eficiência e o dinamismo dos jovens tecnocratas. Atualmente, o Sindicato dos Psiquiatras dos Hospitais e o dos Internos em Psiquiatria hesitam entre tentar arrumar essa reforma dos estudos médicos num sentido menos destruidor da originalidade da psiquiatria, ou tentar impor a manutenção de um internato de psiquiatria completamente independente do novo curso, o que marcaria um retomo à especificidade psiquiátrica mas correria o risco de assim pagar um corte radical em relação à medicina. A mesma tendência está aliás prevalecendo para a formação dos outros "trabalhadores da saúde mental". Os enfermeiros psiquiátricos tinham herdado seu papel de '"vigilantes de loucos", uma homogeneidade da profissão e uma originalidade em relação aos enfermeiros da medicina geral, que se marcavam por um diploma específico e pelo fato de que um enfermeiro psiquiátrico assumia, com os cuidados estritamente médicos, todas as tarefas de vigilância e de manutenção dos doentes. A reforma recente dos estudos de enfennagem institui um trono comum aos enfermeiros psiquiátricos e aos enfermeiros do Estado, que aproxima a formação dos primeiros da dos segundos. Nos serviços psiquiátricos dos hospitais gerais introduz-se também, entre enfermeiros, ajudantes, agentes dos serviços hospitalares, etc., uma hierarquia do pessoal subalterno calcada na divisão do trabalho em medicina, mas nova na tradição psiquiátrica, onde o enfermeiro completa, em princípio, todas as tarefas hospitalares da psicoterapia aos cuidados corporais dos doentes, passando pelas injeções, segundo a ideologia que quer que, num ambiente

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de tratamento, "'tudo seja terapêutica". Mas esse colaborador polivalente em termos está ameaçado de desaparecimento. Da mesma maneira que a especialização das instituições se impõe pouco a pouco, a do pessoal segue a mesma evolu?ãº_· Racionalização aí também: cada especialista será o representante da espec1fic1dade de sua técnica em vez de todos os terapeutas terem em comum a abordagem da especificidade do fato psiquiátrico. _ ~ê-se em que contradições está preso o movimento da modernização da ~ed1cma mental:_ A necessidade de romper com alguns particularismos da prá~ca e da formaçao, que encerravam a psiquiatria num gueto, tinha sido acres-c1da de exigências precisas para manter sua originalidade. Teria sido necessário poder impo~ um_a transversalidade real dessa prática e dessa formação em torno da organizaçao do setor, o que os psiquiatras, aliás, reivindicaram energicamente. Mas tudo se passa como se, tendo colocado eles mesmos O dedo na engr~nagem ( a possibilidade de religar setores aos hospitais gerais está prevista na c1rcular de 1960, o novo estatuto da profissão votado em 1968 foi reivindicado pelo _quadro, etc.), tivessem começado um processo que ia progressivame.nte lam1~ar ~ originalidade da especialidade. O acabamento desse processo sena a reahzaçao do velho sonho positivista de uma psiquiatria "verdadeiramente" méd~c~, ~ particularismo que a caracterizou até agora só representando ~s s~b:'e_v1vencias de sua pré-história, quando ela não tinha atingido O nível da c1enhflc1dade das outras especialidades médicas.

loucura e paixão, doença mental e desordens da civilização que ocorrem em todo o curso do século XIX. Depois da Segunda Guerra Mundial, uma referência à fenomenologia através da influência da obra de Karl Jaspers dá sua caução principal ao movimento de renovação que se desenvolve na época. A abordagem fenomenológica justifica a colocação em primeiro plano da compreensão do fenômeno patológico) a atenção ao vivido, a exigência de entrar em empatia com o doente, que caracterizam a renovação humanista da época. 18 Mas uma tal referência permanece impressionista. A aproximação fenomenológica continua restrita ao presente. Ela não conhece nem a gênese nem a causa do aparecimento das perturbações patológicas. Há aí, da própria confissão de seu mais eminente representante na França, Eugêne Minkowski, "como que uma fraqueza". 19 A vitória de um marginal

A psicanálise vai superar esta fraqueza e tentar encontrar na procura de uma especificidade da medicina mental moderna seu fundamento teórico. Como a psicanálise foi levada a representar esse papel depois de ser longamente proibida em psiquiatria? Para compreendê-lo, é preciso colocar entre parênteses o debate de caráter ideológico que se passou no meio analítico e do qual falamos antes (capítulo 1) a respeito da relação psiquiatria-psicanálise'º e ler funestos à humanidade, e que é talvez a causa deplorável do estado de abandono no qual se deixa quase todos os alienados, é olhar seu mal como incurável, e atribuí-lo a uma lesão orgânica no cérebro ou em qualquer outra parte da cabeça. Posso assegurar que, na maioria dos fatos que reuni sobre a mania delirante tornada incurável ou terminada por outra doença funesta, todos os resultados da abertura dos corpos comparados aos sintoma<:, que se manifestaram provam que essa alienação tem em geral um caráter puramente nervo':>o, e que não é o produto de nenhum vício orgânico da substância do cérebro." PINEL, Philippe. Tratado médicofilosófico sobre a alienação mental, 1 ed., Ano IX, p. 154.

2. MAL-ESTAR NA CLÍNICA

A exigê~ci~ da es~e.cificida~e das instituições e da formação psiquiátrica repousava em ultima análise, se disse, na concepção de uma medicina "não co-m~. outra", porque el~ diz respeito à doença mental, doença "não como outra . Se, desde sua ongem, a psiquiatria atacou a desordem da loucura mais do que a infra-estrutura orgânica que pode eventualmente constituir sua etiologia, é porque ela foi tanto mais concebida como uma tentativa de redução de uma patologia relacional, e não de uma patologia dos órgãos. 17 Mas qual fundamento teórico dar a essa concepção de uma doença diferente das outras? Procurou-se sucessivamente no decorrer da história da medicina mental, por aproximações. Daí as especulações sobre a analogia entre 17 L

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em ;aremos aqui um texto de Pinel, o "pai fundador" do alienismo, que funda tambem esta tradição dominante de toda a psiquiatria: "Um preconceito dos mais

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Cf. HESNARD, André. "Contribuição da fenomenologia à psiquiatria contemporânea", Congresso de psiquiatria e de neurologia de lfngua francesa de Tours, 1959, Masson, 1960.

19 MINKOWSKI, Eugêne. "Fenomenologia e análise existencial em psiquiatria", Evolução Psiquiátrica, III,juL-set 1948, p. 150. 20 Há de fato um enorme hiato entre o discurso psicanalítico dominante, pelo menos em sua versão lacaniana, que é extremamente crítica a respeito da psiquiatria, e as práticas concertadas do inve':>timento das instituições psiquiátricas pelos psicanalistas. Diante do encarniçamento de numerosos psicanalistas em condenar, em nome do purismo analítico, a colaboração da psicanálise para uma reforma da psiquia-

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a história da penetração da psiquiatria pela psicanálise à luz das estratégias dos protagonistas, que eles mesmos percorreram um certo número de etapas. O meio psiquiátrico francês sempre foi hostil à psicanálise. A força da tradição clássica, o prestígio de Pierre Janet, rival de Freud, uma sólida hostilidade a respeito da Alemanha e até um certo anti-semitismo fizeram que a orientação freudiana não seduzisse primeiro senão elementos pouco numero. sos e muito marginais da profissão psiquiátrica. 21 Se a situação começa a se desbloquear logo após a Segunda Guerra Mundial, a guerra fria remete logo tudo em questão pois um certo número de psiquiatras mais abertos às novas idéias eram ao mesmo tempo membros do Partido Comunista, e devem romper violentamente com a psicanálise, essa "ideologia reacionária." 22 É muito progressivamente que a psicanálise recuperará o tempo perdido, e tomando primeiro circuitos marginais em relação ao "quadro" dos psiquiatras públicos, em particular pelo atalho da infância.

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Ela parece fazer sua volta oficial na psiquiatria pública no momento do Livro branco, num contexto do qual já assinalamos o significado tático. Para fundar o reformismo. psiquiátrico, não se pensa atribuir a prática psiquiátrica a uma orientação teórica precisa, mas deixar adicionarem-se tendências diversas afirmando seu caráter não contraditório e procurando nesse ecletismo um efeito de reforço recíproco. O relatório sobre a formação dos psiquiatras, do qual um dos autores é psicanalista, precisa: "Teríamos podido de passagem reconhecer as atitudes organicista, organodinarnista, fenomenológica e psicatria, lembraremos - uma vez não representa hábito - a opinião de Freud: "A psicanálise não está no entanto em oposição à psiquiatria como se poderia acreditar diante da atitude quase unânime dos psiquiatras. Ela é sobretudo, na qualidade de psicologia das profundezas, quer dizer, psicologia do.~ processos da vida psíquica inconsciente, chamada a fornecer à psiquiatria a indispensável infra-estrutura e a acorrer em auxílio a suas limitações atuais. O futuro produzirá verdadeiramente uma psiquiatria cientffica à qual a psicanálise terá servido de introdução". ("Relatórios da psicanálise e da psiquiatria", Gesammelte Werke XIII, 1923, p. 227). Notaremos então que Freud vê que na oposição, por parte dos psiquiatras na França, as resistências vieram freqüentemente dos psicanalistas. É justo no entanto notar que o purismo antipsiquiátrico foi sobretudo o resultado da tendência lacaniana. Para outra orientação que se propõe explicitamente desenvolver uma "psiquiatria psicanalítica", cf. por exemplo RECAMIER, Paul-Claude. De psicanálise em psiquiatria. Payot, 1979.

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SMIRNOFF, Victor N. De Viena a Paris. Nova Revista Frrmcesa de Psicanálise, 21, outono de l 979.

22 "Autocrítica: a psicanálise, ideologia reacionária". Op. cit.

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nalítica ( ... ). No estado atual do saber, nenhuma dessas posições triunfou so,. bre as outras de fato senão de direito. A obrigação de levá-las toàas em con23 sideração faz parte da originalidade da psiquiatria. Dentro desse complexo, a psicanálise procura uma aproximação essencial na medida em que cultiva o sentido da relação e a implicação pessoal do terapeuta que são o imo da prática psiquiátrica. Mas, como diz um outro interveniente, ''uma formação psicoterápica levada ao máximo, inspirada inevitavelmente pela psicanálise, deveria integrar o ciclo dos estudos psiquiátricos( ... ). O essencial é, reciprocamente, velar para que esta regeneração da psiquiatria, sob a influência de modas de pensamento inspiradas pela psicanálise, não vá acabar em uma volatilização da psiquiatria, a qual deve conservar sua forma e traços específicos". 24 Urna tal síntese só podia ser instável. Ela supunha primeiro uma relação quantitativa na profissão, onde os psicanalistas estavam representados, mas sem ser majoritários. E o que se verificava naquele momento. Por exemplo, em 1965, dez dos trinta e três chefes de serviços psiquiátricos da região parisiense são de formação psicanalítica. 25 Mas cinco anos antes não havia nenhum, e a relação logo se reinverterá, sobretudo entre os jovens para os quais, a partir do fim dos anos sessenta, em Paris pelo menos, será uma quase obrigação ter seguido ou seguir uma formação analítica para ter direito à palavra no meio psiquiátrico. Mas a perpetuação do ecletismo tornara-se ainda mais impossível pelas ambições dos psicanalistas mais dinâmicos, engajados na prática psiquiátrica. Para eles, não se tratava de fornecer um dado a mais ao reformismo psiquiátrico, mas de apresentar o ponto de vista da verdade sobre o que dali em diante deve ser essa prática. Existe sobre esse ponto um consenso total entre as duas principais escolas psicanalíticas rivais, que disputaram na França o mercado da psiquiatria. Um primeiro círculo de difusão da psicanálise no meio psiquiátrico propagou-se, a partir da clínica de La Borde a Courheverny, fundada em 1953 por Jean Oury e Félix Guattari. Em torno de La Borde desenvolveu-se um trabalho teórico e prático importante para aplicar a orientação psicanalítica laca23 GREEN, A.; MARTIN, D. & SILVADON, P., "Ensino da psiquiatria e formação do

psiquiatra", Livro branco.. Op. cit. t. I. p. 61. 24 MISÊS, Roger. Intervenção na discussão sobre "Formação do psiquiatra e ensino da psiquiatria. Idem, t. II. pp. 240-1. 25 MISÊS, Roger. "As psicoterapias. Relação com a psicanálise", Idem, t. I. P· 228.

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niana às condições de um trabalho em instituição. A ambição é integrar no quadro de uma teoria rigorosa (conseqüentemente psicanalítica) as aquisições de toda a "psicoterapia institucional" que, desde o fun da Segunda Guerra Mundial, tinha começado a transformar concretamente a vida diária dos serviços, mas sem se mostrar exigente demais sobre a conceitualização. François Tosquellês, ele mesmo engajado ·desde a guerra nesse movimento, tornou-se chefe de fila da psicoterapia institucional "segunda maneira" 26 e, depois de sua conversão ao lacanismo, exprime assim o sentido dessa transmutação: "O hospital representaria do ponto de vista terapêutico um papel análogo ao do psicanalista. Seria objeto de investimentos sucessivos desses conflitos; e a dialética da cura passaria, por assim dizer, nessa lâmina de transferências e de projeções que a estrutura social do hospital poderia permitir. " 27 Religados pelos prestígios do seminário de Lacan, essa orientação se desenvolve nos anos sessenta e atrai urna sementeira de jovens psiquiatras, eles próprios engajados numa formação analítica, mas preocupados em conciliar as exigências do purismo freudiano com as servidões do serviço público. Reagruparam-se em tendência desde os Encontros de sevres de 1958, onde desencadearam um violento afrontamento com as representações do movimento reformista oriundo da Libertação. Louis Le Guillant, um dos mais constantes representantes da psicoterapia institucional "primeira maneira", marxista ainda por cima, exprimirá mais tarde sua amargura: "Parece-me que todos aqueles - numerosos - que se calaram em Sevres tinham sido dominados, subjugados, talvez mais ou menos diminuídos a seus próprios olhos, pelas prestigiosas exposições relativas a uma psicoterapia institucional que só poderia ser validamente fundada sobre as bases teóricas de uma muito sábia psicologia das profundezas, e tornaria bastante derisórias suas humildes reformas "materiais" e mesmo um pouco suspeita, pelo menos ingênua, errônea, a solicitude, "armadilha" de seu inconsciente, que eles testemunhavam a respeito de seus pacientes e se esforçavam - não sem sucesso - em obter de seus colaboradores". 28

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Para a elaboração dessa distinção entre psicoterapia institucional "primeira maneira" e "segunda maneira", cf. CASTEL, Robert. A instituição psiquiátrica em questão. Revista Francesa de Sociologia, XII. jan.-mar. 1971. TOSQUELL:ÊS, François. Miséria da psiquiatria. Esprit, número especial dez. 1952, p. 901. LE GUILLANT, Louis. "As instituições e a organização de setores psiquiátricos", Discussão. Livro branco... t. ll, p. 69.

Assim, desde o fim dos anos cinqüenta - quer dizer, antes mesmo da e dação do Livro branco - essa corrente prepara uma espécie de secessão ~ . . funda em 1965 a Federação dos Grupos de Estudos e Pesquisas Instituc10nais (F.G.E.R.l.), recrutado em critérios de estrita ortodoxia analítica. Esse grupo será um local de reflexão e de trocas importantes para elaborar uma aproximação psicanalítica do trabalho em instituição. Mas o mínim? que se_ pode dizer é que ele não se caracterizou por sua indulgência a respeito de_ onentaões mais prosaicas. Oscilará continuamente entre a tentação de se retirar para Iormar um gueto de puros e a de constituir um lobby de conquistadores imperiosos. 29 No mesmo momento em que La Borde, há aproximadamente um ano (1954), debuta "a experiência do 139 Quarteirão"., Animada pelos mais sábios psicanalistas, pertencendo à Sociedade Psicanah tlca de Pans, ela desdobra seus esforços para demonstrar a pertinência da psicanálise em fecundar um trabalho psiquiátrico na comunidade. Outra versão da pretensão de ultr~passar os quadros mais estreitos do reformismo psiquiátrico. Este não ~ez ~:11s do que preparar o terreno para um cumprimento que encontra na ps1canahse sua verdadeira justificação: "Há novamente um doente, um médico, um terapeuta. Mas o que podem eles se tornar? E o que pode fazer a instit~iç!o_? Não é aqui que o impulso humanitário e as ideologias constituem prmc1p10s de ação. E é no ponto dessa interrogação grave que a psiquiatria se v?lto~, entr~ outras direções, para a psicanálise, e que entraram em cena os pnme1ros psiquiatras de formação psicanalítica e de prática institucional. '~30 _ Diferença de escola posta entre parênteses, esta preferencia algo menospreziva à insuficiência de "impulso humanitário" e "ide~logias:·, rende exa!amente o mesmo som que a reprimenda que faz Tosquelles, o hder da tendencia lacaniana, a Daumezon, chefe de fila da psicoterapia institucional préanalítica de ter tido a ingenuidade de se deixar pegar pela realidade prosaica em vez de se erguer sobre as sutilezas da transferência e da contratransferência. 31 As diferentes orientações analíticas ficam assim profundamente de acordo, pelo menos nesse ponto: a psicanálise não representa para a psiquia29

A importância dessa corrente é essencial sob um outro título: ela cruzou e misturou as principais tendências da extrema esquerda francesa, prepara~do a via_a_esta outra síntese espantosa do elitismo lacaniano e do esquerdismo cuJos presttg1os e poderes se desdobraram depois de maio de 1968.

30 RECAMIER, P.C. et al. O psicanalista sem divã. Payot, 1970. p. 60. 31 TOSQUELLÊS, François. "Introdução ao problema da transferência na psicoterapia institucional", Psicoterapia Institucional, 1, p. 15.

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tria uma fonte entre outras de sua regeneração moderna; ela pretende se impor como a posição dominante a partir da qual devem-se redistribuir todas as cartas. Ela tem vocação hegemônica para a restruturação de todo o sistema psiquiátrico. Um remédio miraculoso

Assim esses dois primeiros locais de difusão da psicanálise em psiquiaüia, inaugurados de maneira completamente independente e vividos no antagonismo por seus protagonistas, 32 funcionaram de maneira milagrosamente complementar. Lembramo-nos que o reformismo psiquiátrico tinha-se fixado na existência de dois modelos organizacionais dificilmente compatíveis, o da comunidade terapêutica e o da psiquiatria comunitária. Mas a tecnologia psic_analitica parece providencialmente transcender esse corte. La Borde é, a sua maneira, um espaço fechado, cercado de árvores mais do que de muros, mas que apresenta a maioria das características objetivas de urna verdadeira "instituição totalitária": os pacientes fazem ali em geral longas estadias no decorrer das quais se desenrola o ciclo completo de uma vida social sob a autoridade de urn grupo que, queiramos ou não, representa um corpo de terapeutas. Em seguida, a maioria dos adeptos dessa tendência foi praticar nos hospitais psiquiátricos mais clássicos, onde se depara diariamente com a herança dos hospícios. As equipes do 139 Quarteirão são, ao contrário, chamadas a circular da maneira mais fluida em todo o espaço social, sem até, durante os primeiros anos, pelo menos, dispor de um hospital psiquiátrico. Beneficiando-se de recursos consideráveis em homens e em material, elas exibiam uma primeira realização do setor que os reformadores não psicanalistas tinham laboriosamente tentado conceitualizar desde 1945. Perpetuamente comentada e dada a imitar, "a experiência do 139 Quarteirão" ia tornar-se o modelo e a vitrina do setor francês, aquele que as delegações estrangeiras visitam, do qual se

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Não se pode entrar aqui na problemática insolúvel, pelo menos para um profano, que consistiria em se perguntar quem detém a posição psicanaliticamente mais "verda~ dcira". Mas parece ao observador que a oposição endurecida, no plano teórico, por cuidado de pureza doutrinal, é bem menos significativa, no plano das práticas. Assim, a despeito da posição muito purista da tendência lacaniana, é, no entanto, uma parte dessa corrente que, por intermédio da "psicoterapia institucional" analítica, conquistou uma parte importante dos bastiões de hospício mais tradicionais da psiquiatria pública.

fala, sobre O qual se escreve, e que se co_meça a exportar, enquanto não existe ainda nenhuma outra realização comparavel. Impondo-se a um só tempo na instituição fechada e na comunid~de, a sicanálise parece assim provar que sua tecnologia supera os antagomsmos istitucionais que a prática psiquiátrica se aplica a ten~ar -~lt~apassar. Ela parece realmente o instrumento da contemporaneidade ps1qmatnca, mas com a aparente capacidade de assegurar sua direção em vez de se manter no lugar subordinado definido pelo Livro branco. , . . Assim pode se explicar o sucesso, aparentem~nte paraa~~~l da ps1qma· tria psicanalítiq.. Não faltam razões para denunciar. as amb1g_mdades desse casamento, e os psicanalistas lígados à estrutura duelista ~efimda por Freu~ disso se privam raramente. No entanto, para nos aterm~: a :rança, ~ss~ casal capenga conquistou Paris após a província, ~pós ~s e~pene~cias margrnai~ e,~tamente sofisticadas, o venha-a-nós do serviço pubhco, apos os chefes h1stonos e carismáticos, os cumpridores de tarefas que tentam aplicar receitas. Era ;reciso certamente refinar a análise, disting~ir tipos .de i~~tituiç_ões ~pa~ti~ularmente para as crianças) onde a penetraçao da ps1canál1se .~m mais fac~ e outras que resistiram mais tempo, detalhar regiões logo seduzidas em funçoes de conjunturas locais, como o Baixo Reno, o Essone e outros que perm~· neceram durante muito tempo quase alérgicos, como o Langued~c~Rouss~lon. Mas globalmente, hoje, noções de graus de interpretação e pratl~a~ ma1s ou menos diretamente inspiradas na psicanálise ( ouvir o doente, a pnondade dada à relação de tipo psicoterapêutico, a atenção enfocad_a n~ hi_stór~a infan. til e nos problemas familiares, a tentativa de manipulaçao ms:1tu~10nal da transferência e da contratransferência, etc.) tornaram-se referencias quase obrigatórias de todos os profissionais que desejam praticar uma psiquiatria moderna. Mesmo se esse alívio permanece em parte verbal, não deveríamos subestimar sua força que repousa, além dos efeitos de moda, sob~e a prof~ndidade dessa necessidade de fundar a especificidade da aprox1maçao ps1qmatn~a.. A relação corno matéria primeira da intervenção, a psicoterapia como tecru~a pareceram para um grande número de profissionais os assentarnento.s ma~s seguros para garantir o fato de que a aproximação psiquiátric~ n~o s~Jª assimilada a uma banal especialidade médica. Ou bem, de fato, a ps1qmatna ado~a melhor ou pior tecnologias médicas ou importadas das ciências exa:as - qmmioterapias, intervenções cirúrgicas como as lobotomias, sismotera~1~s, et~. e então sua originalidade em relação à medicina só se atém a seu mrnuno ngor e ao caráter mais aleatório de seus sucessos: ela não é urna medicina como

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outra simplesmente, porque é menos medicina do-que outra; ou bem tem uma especificidade positiva que não pode se fundir, a não ser em uma aproximação psicoterapêutica rigorosa, cuja relação psicanalítica propõe o modelo. Bonito demais para ser verdade Mas esse ganho se paga com um custo enorme qlle, no fim, nada mais é do que o risco de desmedicalização da medicina mental. É preciso homenagear a lucidez de Henri Ey, que tinha percebido perfeitamente o objetivo desse debate desde 1968: "A operação que a (psiquiatria) separa de sua irmã siamesa, a neurologia, era necessária, mas não evidentemente sem perigo. Pois, claro, pode-se, deve-se temer que, rompendo as amarras que a mantinham estreitamente ligada à neurologia, ela não flutue a partir de então na nebulosa chamada "ciências humanas".( ... ) Diante dessa nova ameaça "psiquiatricida", devemos propor uma alternativa própria a demonstrar suas contradições: ou bem a psiquiah~a não existe, ou bem é parte importante da medicina. " 33 A psicanálise, "ameaça psiquiatricida"? No plano prático primeiro, num serviço que quer funcionar realmente segundo os princípios da psicanálise, a referência ao esquema médico se esbate. A capacidade de insight, * o domínio da transferência, a pertinência das interpretações, etc. não são absolutamente implicações necessárias de uma posição médica. Desde então, o papel próprio do psiquiatra como psiquiatra ( de fato, terá havido em geral a prudência de se fazer ao mesmo tempo analista, pelo menos para poder sobreviver) se reduz a assumir as funções administrativas, o que lhe dá quase necessariamente o lugar ingrato do "mau objeto". A psiquiatria, num serviço "verdadeiramente" impregnado de psicanálise, não é a terapia, é a administração, com talvez, em complemento, a responsabilidade de um certo número de atos propriamente médicos e, por isso, desvalorizados pela ideologia psicanalítica, como por exemplo a administração de medicamentos. Certo, se dirá, os princípios da psicanálise não são quase nunca ''verdadeiramente" aplicados nos serviços. Mas, mesmo se conseguinnos notar que a. "audiência" do doente é imperfeita, às vezes impossível em certas condições de exercício da prática, que sua "demanda" é distorcida, que a equipe não funciona de fato como lugar de "circulação da palavra", etc., esses valores continuam, apesar disso, colocados como o ideal de toda relação terapêutica digna desse nome, orientam as opções desejáveis e os progressos a consumar. 33

EY, Henri. "A psiquiatria, grande especialidade médica". Op. cit. p. 740.

*Em inglês no original. (N. da T.)

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As referências psicanalíticas tornaram-se as idéias reguladoras, no sentido kantiano da palavra, da prática psiquiátrica moderna. Mas então elas colocam essa prática numa posição difícil, às vezes contraditória. É uma aposta, de fato, para uma atividade que continua em princípio a se inscrever na órbita médica, de colocar ela mesma seu_pr~prio sucesso em um registro inacessível, senão assintomático. Todos os ps1qmatras na movimentação psicanalítica se dizem insatisfeitos com suas realizações, mas vivem essa decepção como fazendo parte da definição do trabalho que é o seu. Existe assim uma espécie de desnivelamento estrutural, quer dizer, amplamente independente das contingências e mesmo de todas as circunstâncias, entre o que, nessa atividade, seria preciso fazer e o que é efetivamente possível fazer. Uma tal postura é, compreende-se, inconfortável e, por aí, frágil. Ela mantém juntas duas exigências que, poder-se-ia dizer, só pediam para se separar. Por que não se separariam? A intencionalidade de uma intervenção realista, reparadora, mensurável em seus efeitos empíricos, se consumaria melhor emprestando técnicas mais prosaicas do que aquelas que se referem ao corpo psicanalítico. Inversamente, as potencialidades mais originais da psicanálise seriam liberadas se a referência ao pólo médico fosse diretamente abandonada. É preciso ver aí o nódulo de pertinência das discussões confusas que agiram nestes últimos anos os meios psiquiátrico-psicanalíticos sobre o ponto de saber se a finalidade dessas profissões era ou não curar. Essa seria uma interrogação próxima do absurdo, se nos referíssemos ao conjunto da clínica psiquiátrica, onde a necessidade de intervenções de caráter terapêutico é dificilmente recusâvel. Mas, a partir do momento em que esta exigência ficasse saturada por outras aproximações mais médicas, poder-se-ia muito bem conceber o desdobramento de um trabalho de inspiração psicanalítica sobre a pessoa (eu, os outros e suas relações), franqueado pelo cuidado da cura. A psicanálise torna-se então o principal vetor de propagação de uma cultura psicológica que, veremos, desemboca nos terrenos mal balizados da "terapia para os normais", além do corte que separa o normal do patológico. Em suma, a psiquiatria psicanalítica tentou um golpe ambicioso: recodificar o conjunto da prática psiquiâtrica no quadro de um1 rigorosa tecnologia das relações comandada pelos princípios da psicanálise. É a versão maximalista do reconhecimento do fato de que a patologia mental é uma patologia relacional. Mas a operação só pode ter sucesso completo com a condição de reduzir o fato psiquiátrico a essa pura patologia relacional, quer dizer, de tirar a psiquiatria definitivamente da esfera médica. Ora, há qualquer coisa no fato 89

psiquiátrico - e sobretudo na organização da psiquiatria con:o Profissão que resiste a tal redução. Henri Ey, ainda, dizia em 1966: "E mais do que tempo que a psicanálise encontre seu lugar na medicina, e que seja assim recolocad?, em _seu lugar. " 34 Pudemos acreditar, de fato, nessa época, que a psicanálise encontrava na psiquiatria um lugar. Mas esta integração relativa não a recolocou em seu lugar, porque ela quis tomar todo lugar. E, por um choque de volta, essa vontade de hegemonia está atualmente fazendo a cama da contra-ofensiva do positivismo médico. De fato, se a psiquiatria psicanalítica constituiu, nestes últimos anos, a ideologia dominante da medicina mental moderna, hoje assiste-se à explosão da síntese frágil que ela representava. De um lado, a psicanálise continua seu percurso social que é uma fuga para a frente numa cultura psicológica generalizada, além do psiquiátrico, e mesmo do psicanalítico propriamente dito ( capítulo 4). De outro lado, em medicina mental se desenha uma volta ao objetivismo médico, aquém do psicanalítico, e mesmo ao psiquiátrico.

3. A VOLTA DO OBJETIVISMO MÊDICO

Um sistema particular de representações, diríamos quase de crenças, que chamaremos aqui um "imaginário profissional" mais do que uma ideologia, sempre deu à psiquiatria um espírito muito particular dentro da medicina. Há uma vintena de anos, esse imaginário profissional se alimentava em duas fontes principais. De um lado, os psiquiatras reformadores eram inspirados por preocupações sociais que tendiam a fazer da psiquiatria um serviço público e desembocaram na elaboração da política de setor. De outro, a referência psicanalítica fez que, por uma maioria de .. trabalhadores da saúde mental", o essencial da vocação terapêutica passasse por um investimento pessoal cuja relação psicoterapêutica era a matriz. A essa dupla referência acrescentou-se, no último decênio, o efeito das críticas políticas da medicina mental que trouxeram, a uma parte pelo menos do meio profissional, perguntas desconfortáveis sobre as finalidades sociais da prática de tratamento. Mudança do imaginário profissional

Às vezes separadas, às vezes confundidas ao preço de muitas ambigüidades, essas preocupações acusaram a originalidade - que sempre foi de tradição 34

EY, Henri. Plano de organização do campo da psiquiatria. Privat, 1966. p. 10.

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_ dos psiquiatras no seio das outras medicinas, cujas orientações positivistas dominantes raramente se embaraçaram com tais estados de alma. Mas elas também perigosamente cavaram o fosso entre uma exigência de cientificidade que se impõe cada vez mais na medicina moderna _e especulaç?es'. pesqui~as, inovações, que correm o risco de aparecer a contrano como amave1s fa~tas1~~· quem sabe empreendimentos irresponsáveis e per~go~os: U~a cer~~ ps1canahse, uma certa psiquiatria social e uma certa ant1ps1qmatna frequentemente casaram seus prestígios para produzir sonhos sedutores e frágeis, para levantar perguntas muito sérias também, mas que não encontram sua resposta no plano de eficácia prosaica. Mais gravemente, deve-se reconhecer também qu~ ~sse imaginário tem por vezes entretido uma negação da realidade, autonzando uma indiferença altaneira a respeito de toda avaliação positiva da prática, mesmo quando assim provocava o impasse sobre problemas dos próprios pacientes. Pior ainda, talvez, em certos casos essas referências autorizar_a~ o duplo jogo entre um discurso irrepreensivelmente sofisticado sobre as prati_cas e práticas contraditórias com esse discurso: poderíamos, por exemplo, citar serviços que supostamente funcionam há dois ou três decênios de acordo com a "psicoterapia institucional analítica" e nos quais as condições materiais de existência dos doentes mudaram muito pouco desde a bela época hospitalar. Mas, seja por boas ou más razões, esse imaginário é atualmente comtestado. Lassidão, sem dúvida, a respeito de um certo confusionismo verbal que tinha se instalado em numerosos serviços, discussões repetitivas sobre o que significava curar, e mesmo se era preciso curar, intem:ináveis "r~un_iõ~s de síntese", onde são abordados mais os problemas da equipe ou da mstltmção do que os dos doentes< Mas arrogância também, agora, dos jovens ou lhos lobos de um positivismo que retorna para a frente do palco e a CUJOS adeptos se atribuem ares de franco-atiradores redescobrindo somente velhos mitos cientistas que florescia...111 na psiquiatria, no final do século XIX. Eis aqui, sem dúvida de volta, aqui, como alhures, o tempo dos caçadores de utopias que medem todo o interesse de uma questão por sua rentabilidade em uma economia de eficácia, quando não a própria economia diretamente, Essa mudança participa de um certo desencantamento geral, mas remete também a dados específicos do campo. De um lado, vimos, o modo essencialmente administrativo, sobre o qual se faz agora a implantação da política do setor, não permite mais nela investir grandes motivações políticas, nem mesmo humanistas. Por outro lado, a crise que atravessa a psicanálise desvitaliza a especulação sobre a natureza profunda da perturbação psíqui_ca e cort~ a prática da referência a um "outro palco". Quanto às pesquisas de alternativas em relação aos modos médicos de se encarregar, o mínimo que se pode dizer é

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que elas não tinham provado sua capacidade de balançar os establishments profissionais. A pesquisa biológica

Pelo que está sendo substituí.do esse imaginário que dominou O último decênio'. Primei~o por um interesse crescente pelas práticas ou técnicas que nunca tmham sido abandonadas, mas que subsistiam um pouco envergonhadamente, recobertas por um discurso dominante mais incandescente. Assim os medicamentos. Poderíamos nos espantar constatando O pouco lu~ar que ocuparam nas discussões sobre os objetivos da prática psiquiátrica. ~rn~a, quando _se falava, tratava-se mais freqüentemente de limitar sua importancia ou de remterpretar sua ação, a partir de alguns de seus efeitos laterais co~~ na argumentação psicanalítica um pouco fácil, que mantém o interess~ prmc1~~ ~o medic~ento,,na relação que ele permite atar com o paciente como obJeto transac10nal . Portanto, independentemente de qualquer julgamento de valor, a descoberta dos neurolépticos em 1952 foi incontestavelmente um acontecimento maior da história da psiquiatria. Os medicamentos representam de fato o denominador comum da prática psiquiátrica, já que são ~plame~te empreg~do_s em_ quase todos os serviços, qualquer que seja, aliás, ª 1~eol?gia ~e refere~cia: ~1 compreendidos nos altos escalões, a partir dos quais difundm-se a psicanálise como instituição. M~~ a ig_norância em que estamos, dos mecanismos de sua ação, facilitou essas ut.ilizaçoes puramente empíricas. O medicamento era mais freqüente~ente tido co~o uma fe:r_amen~a in~ispensável, mas cuja utilização não questlona~a o sentido da pratica ps1quiatrica, porque parecia ele mesmo agir de mane:ra compl~t~ente cega. Mas desenvolvem-se atualmente pesquisas que, atraves da eluc1daçao do _modo de ação dos medicamentos, têm a ambição de chegar_ a uma ~ompreensao do mecanismo bioquímico na origem das doenças mentais e~ no fmal, ~und_ar uma teoria positivista de sua etiologia. Assim, a eluc1daçao da ação dos antidepressivos e dos sais de lítio so~re a P~,icose maníaco-depressiva. Controlando todas as outras variáveis (incluSIVe placebo"),. pode-se · - o d efeito · . _ estabelecer que de 70 a 80"10 dessas psicoses sao re 1:,z1das pela adm1mstraçao de um antidepressivo. Existiria assim uma corr_elaça~ entre a cura .clínica de certas doenças e as modificações bioquímicas 1~,duz1das pelo me~.1camento. significaria que, pelo menos para algumas doenças da alma , se podena mtervir exatamente, e com conhecimento d~ ~a~sa, como a respeito d~ um acesso infeccioso ou uma perturbação metabolica. a doença mental sena verdadeiramente uma doença "como qualquer outra".

!s~o

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Nessa linha se desenvolve toda uma série de pesquisas para localizar os pontos de fixação e o modo de ação dos medicamentos psicotrópicos. Um aparelho como a câmara de pósitron permite acompanhar o que os medicamentos se tomam no cérebro. O mecanismo de ação dos mediadores bioquímicos dá lugar neste momento a estudos aprofundados. 35 Por enquanto, só as pesquisas sobre a psicose maníaco-depressiva parecem ter liberado uma relação rigorosa entre a ação de um medicamento e a cura clínica de uma entidade nosográfica. As pesquisas sobre a esquizofrenia são menos convincentes, sem dúvida, porque estão reunidas sob essa etiqueta entidades mórbidas heterogêneas, das quais será preciso empreender a redução uma por uma. Essa aproximação bioquímica deve ser relacionada com as pesquisas genéticas que visam a estabelecer o caráter hereditário de algumas perturbações psíquicas ( aliás, constataríamos uma anomalia cromossômica em 80% das psicoses maníaco-depressivas). Aqui, ainda, trata-se de uma velha ambição, mas que se dá meios novos. Desde Esquirol, a importância da hereditariedade na etiologia das doenças mentais tinha sido inúmeras vezes sublinhada, e sua preponderância tinha mesmo sido afirmada, particularmente depois da divulgação do conceito de degenerescência por Morei ou a descoberta das leis de Mendel. Mas esta referência manteve-se difícil de instrumentalizar na prática, exceto inspirar, sobretudo nos Estados Unidos e na Alemanha nazista, práticas eugênicas que lançaram a suspeição sobre essa orientação. Não se poderia ser prudente demais, quando se sabe que, quase todos os Estados de uma nação tão "liberal" quanto os Estados Unidos, nos anos vinte, adotaram disposições legislativas para esterilizar os retardados e deficientes psíquicos (feeble minded}, e mesmo algumas categorias de doentes mentais e de delinqüentes. Dezenas de milhares de operações foram feitas em nome de uma ideologia inspirada pelo darwinismo social, colocando impasse em duas questões muito simples: Pode-se fundar cientificamente um diagnóstico de deficiência incurável? Pode-se fundar cientificamente o caráter hereditário de sua transmissão? 36 35 Cf. GLOWINSKI, Jacques. "Mecanismos de ação bioquímica dos neuromediadores", Mesa redonda sobre o modo de ação dos medicamentos psicotrópicos, documentação do Movimento universal da responsabilidade cient(fica. Paris, 1977. 36 O esquecimento revelador que recobriu essa voga do eugenismo nos Estado5 Unidos nos anos vinte convida a dar aqui uma amostra dessa legislação, por exemplo, a lei 290 votada no Estado do Missouri em 1923 (a maioria dessas leis não foi revogada, mesmo se atualmente são pouco aplicadas): "Quando alguém for acusado de morte (salvo se cometido sob o império da paixão), de violação, de roubo em grandes

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As pesquisas sobre a hereditariedade se desenrolam atualmente num contexto científico asseptizado. As mais interessantes na França abordam a esquizofrenia, a partir do estudo de genealogias familiares de doentes atingidos pela afecção. Chegaram recentemente a propor um modelo de probabilidade_ genética de aparecimento da esquizofrenia. Os esquizofrênicos ( da ordem de I % da população) se caracterizam pela associação de dois genes (s.s.). Um só gene é encontrado em 32% dos sujeitos de dada população. A presença dos dois genes s.s. daria assim uma probabilidade de uma ocasião em quatro de se tornar esquizofrênico. 37 Notaremos que essas pesquisas propõem resultados nuançados, já que, mesmo se um tal modelo é válido, ele só dá à "causa" hereditária o papel de urna predisposição cuja ação deve ser completada por outros dados, em particular os que provêm do meio. t sobretudo o fascínio que exercem sobre numerosos espíritos em nome da nP,utralidade e da eficácia absolutas do saber positivo que merece que _paremos aqui. O fato também é que os sustentadores dessa orientação ocupam altos cargos da pesquisa, C.H.U. principalmente, Colégio de França, Instituto Pasteur, etc. e que, mesmo sem falar dos laboratórios farmacêuticos, esses trabalhos são colocados prioritariamente pe. los organismos de planejamento e de incentivo à pesquisa médica. Assim, o I.N.S.E.R.M. colocou recentemente a psicofarmacologia à frente das pesqui· sas pelos próximos anos, antes mesmo dos trabalhos sobre o câr1cer. Coló. quios de alto nível, como se diz, reúnem periodicamente os pesquisadores engajados nessa via. Assim, o encontro sobre o modo de ação dos medicamentos psicotrópicos que se realizou em Paris, sob a égide do Movimento Universal pela Responsabilidade Científica, no curso do qual numerosos especialis-tas mundiais exprimiram a convicção de que a pesquisa nesses domínios franqueava um pórtico qualitativo que ia revolucionar a prática psiquiátrica. 38 vias, roubo de frangos, uso de explosivos ou roubo de carro, o juiz que instrui o processo designará imediatamente um médico competente residente na região onde o delito aconteceu para fazer no condenado a operação chamada vasectomia ou salpingcctomia, com o fim de esterilizá.lo, para que o poder de procriar lhe seja tirado para sempre." (O roubo de frango em particular era um delito freqüente· mente atribuído aos negros.) Sobre a importância da eugenia como episódio afastado da história_ da medicina mental, cf. CASTEL, F.; CASTEL, & LOVELL, A. "A sociedade 'psiquiátrica avançada". Op. cit., cap. II.

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DEBRAY, Quentin; CAILLARD, Vincent & STEWART, John. "Schizophreni.a, a Study of Genetic Models and some of their Implications", "Neuro·psychobiology, 1978. 4. Mesa redonda sobre o modo de ação dos medicamentos psicotrópicos, documentação do Movimento universal pela responsabilidade científica. Paris, 1977.

Assim, o encontro que se realizou em Montpellier em 1980 sobre os neuro~ peptídios, sob o patrocínio conjunto do professor Roger Guillernin, Prêmio Nobel, e dos laboratórios Clin-Midy, e que se prolongou pela criação de um laboratório de pesquisa fundamental sobre a biologia dos peptídios, e;om a colaboração do C.N.R.S. e da indústria farmacêutica. Que os seminários de Bichat de 1980 tinham sido consagrados aos estados depressivos é igualmente um índice dessa medicalização de aproximação das perturbações psíquicas. Uma coisa é a pesquisa científica e outra o contexto ideológico, no qual funcionam essas descobertas. A Dr9' Escoffier-Lambiotte relatou nestes termos o encontro de Montpellier: "O objetivo último desses trabalhos e a esperança evidente dos pesquisadores que os conduzem é a descoberta da natureza exata e do tratamento das perturbações, acabando nas patologias mentais graves, diante das quais a medicina só pode, na hora atual e em inúmeros casos, oferecer soluções carcerárias tragicamente inoperantes. " 39 O progresso da medicina mental é assim assimilado ao conhecimento das únicas condições que sejam cientificamente instiumentalizáveis. São remetidos para o esquecimento da história todos os esforços para alcançar a pessoa sofredora em sua relação problemática no sentido, na linguagem, no simbolismo e outras. Para o objetivismo médico, a psiquiatria, especialidade médica como outra, se deixou distanciar por causa desses investimentos "ideológicos" (quer dizer, psicanalíticos e/ou políticos), mas atualmente está retomando seu atraso graças aos progressos do pensamento científico. Sem dúvida, não se jogou tudo. Urna grande maioria de profissionais parece ainda temer nesses domínios os efeitos de um desligamento "científico" que, historicamente, acomodou-se muito bem a práticas das mais repulsivas a respeito da loucura, e até freqüentemente deu.lhes caução. No entanto, sob os debates barulhentos que monopolizaram a atenção nestes últimos anos, instalou-se um dispositivo de poder e de saber atualmente bem colocado para reinverter a situação em seu favor. O indicador da balança volta-se para a brancura asseptizada dos laboratórios, empurrando para a sombra das velhas metafísicas as orientações que revitalizaram a problemática da medicina mental nestes últimos quinze anos e disso fazendo um objetivo existencial, social e político.

39 Dr? ESCOFFIER-LAMBIOTTE. Hormônios cerebrais e regulações do psiquismo, Le Monde, 15 maio 1980; cf. também Biologia do cérebro e doenças mentais, Le Monde, 6 out. 1980.

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A terapia comportamental

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Outro índice do progresso do positivismo, a implantação recente das terapias comportamentais. Não se trata aqui exatamente de uma volta à tradiçã? médica clássica. As terapias comportamentais se situam, ao contrário, na linguagem da psicologia de laboratório, do behaviorismo americano reatualizado pelos trabalhos de Wolpe e Skinner. 40 Nos Estados Unidos, elas foram até o instrumento de uma espécie de revanche dos psicólogos sobre os psiquiatras: os psicólogos, quase excluídos da formação analítica no momento em que esta dominava na psiquiatria, importaram em medicina mental essa nova técnica, que ali se impôs imediatamente. Na França, onde os psicólogos cEnicos _puderam integrar a psicanálise em sua formação e na sua prática, foi a partn de certos serviços psiquiátricos do C.H. U. que as terapias comportamentais começaram sua implantação. Assim, na antiga clínica de doentes mentais de Santa Ana, onde a clorpromazina f01 descoberta, tiveram lugar simultaneamente pesquisas avançadas de bioquímica e experimentos de modificação comportamental, assim como pesquisas para proceder a diagnósticos psiquiátricos pelos meios da informática. A terapia comportamental seduz, por sua simplicidade, sua eficácia, e também a amplidão de suas intoxicações. Uma fobia é reduzida em algumas sessões, argumento que é oposto aos comprimentos e aos resultados aleatórios das psicoterapias. As terapias comportamentais podem ser aplicadas nos mais diversos locais institucionais. Nos Estados Unidos, foram adotadas primeiro nas instituições, hospitais psiquiátricos, prisões, "comunidades terapêuticas" para toxicômanos, etc., onde a totalidade das condições do meio ambiente pode ser controlada. Mas elas podem também se adaptar a qualquer tipo de relação terapêutica aí compreendida, e cada vez mais no quadro de um "contrato" parecido com o da psicoterapia, que excluem assim em seu próprio terreno. Elas encontram aí possibilidades extraordinárias de difusão. É assim que um terapeuta pode definir com os pais um programa de retificação do comportamento para uma criança difícil, e estes o aplicarão na vida diária, tanto quando a criança brinca como quando come, ritmando toda sua existência pelas punições e as recompensas pudicamente chamadas métodos opostos e condicionamento operante. Possibilidades de expansão literalmente infinitas, levando em conta a gama ~as i~~icações para as quais esta técnica afinna sua competência Um relatóno oficial da American Psychiatric Association caracteriza assim as si40 Cf. WOLPE, J. Prática da terapia comportamental, Trad. francesa. Masson, 1975;

SKINNER, B.F. Beyond freedom and dignity. New York, Harper, 1971.

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tuações para as quais o recurso à modificação comportamental se revela, em diversos graus, operante. Ela é "de uma grande eficácia" para "as reações fóbicas e de ansiedade, a enurese, a gagueira e os tiques associados à síndrome de Gilles de La Tourette". Ela proporciona "melhora freqüente" para "os comportamentos obsessivos e compulsivos, a histeria, a encopresia, * a impotência devida a causas psicológicas, a homossexualidade, o fetichismo, a frigidez, o transicionismo, o exibicionismo, a paixão do jogo, a anorexia, a insônia, os pesadelos", assim como para "os problemas de comportamento das crianças próximas da nonnalidade, tais como o fato de chupar o dedo, recusar alimento, se coçar freqüentemente". Ela, enfim, obteve "sucessos promissores" para "comportamentos que causam problemas no seio da família, tais como o fato de fazer perguntas incessantemente, condutas de oposição, rivalidades entre irmãos e irmãs e, fora da fam11ia, a tendência a se isolar, o mutismo eletivo, a hiperatividade e as dificuldades nos contatos com os colegas. " 41 Compreende-se que essa panacéia seja atualmente a tecnologia médicopsicológica mais empregada nos Estados Unidos. Seu menor mérito não é permitir indicações em todos os casos sem que tenhamos que colocar problemas metafísicos ou políticos sobre o bom fundamento dessas intervenções. É até recomendado economizar essas questões: o positivismo, enfim, deixado livre para se mirar no espelho da eficácia. Na França, só estamos no começo do processo de implantação dessas técnicas. Como para a orientação bioquímica, trata-se no momento menos de ocupar o terreno do que colocar no ponto uma fórmula cujo sucesso dependerá de um certo número de fatores em um jogo que ainda não está parado. Também os principais sítios de implantação são ainda espaços de experimentos como o serviço hospitalar-universitário de saúde mental e de terapêutica de Paris-Cochln, o laboratório de psicologia médica de Lyon, o Instituto MarcelRiviêre, mais alguns serviços psiquiátricos ainda raros como o hospital Bretonneau de Tours ou o hospital psiquiátrico de Monfavet, perto de Avignon. Mas uma primeira via de implantação séria se desenha em direção da infância deficiente. Voltaremos logo, a propósito da lei de 1975 "em favor das pessoas deficientes", sobre a tendência a uma certa "despsiquiatrização" que a inspirou, animada pelas associações de pais de deficientes. Algumas delas se inclinam a ver na modificação comportamental um método objetivo e eficaz para melhorar pelo condicionamento os déficits motores ou intelectuais dos defi*Defecação involuntária de criança de mais de três anos que não apresenta problema orgânico. Pequeno Larousse Ilustrado, 1982. 41 Task Force Report from the American Psychiatric Associatíon. Behavior Therapy in Psychiatry. Washington, 1973.

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cientes e içá-los a um nível de performances que os torne capazes de um mínimo de vida social e profissional. É assim que as associações de pais de deficientes como a União Nacional de Pais de Crianças Inadaptadas (U.N.A.P.E.I.) estão no momento vivamente interessadas nos programas que se esboçam, e cuja aplicação começa em algumas instituições particulares. 42 É fato que a terapia comportamental promove uma despsiquiatrização real. "Tratando o sintoma" ela não se preocupa mais em encontrar uma etiologia para esta ou aquela deficiência. Também não é mais somente a esfera dO patológico que está em vista, mas mais geralmente a diferença em relação a normas de conduta, na proporção em que incomoda, intolerável ou intolerada, inaceitável ou inaceitada, pelo meio ambiente ou pela própria pessoa. É uma técnica de retificação pedagógica mais do que tratamento médico, e que não comporta, a partir de sua própria tecnologia, nenhum limite à sua expansão indefinida. Já estamos na esfera da "terapia para os normais" (capítulo 4), mas em Sua versão mais objetivista. Um novo paradigma

Tratando-se da modificação comportamental ou mais geralmente de todas as abordagens objetivistas dos males psíquicos, deficiências ou anomalias, poder-se-ia notar um atraso da França em relação a outras sociedades industriais avançadas, em particular os Estados Unidos. Pelo menos tanto . quanto uma carência em meios, parece que seria preciso procurar sua razão no vigor desse duplo imaginário, psicanalítico e político, que dominou o último decênio. A psicanálise, em particular, representou e representa ainda o papel de freio ao desenvolvimento dessas abordagens. Se a escuta é a atitude terapêutica por excelência, e o esforço para instituir uma relação autêntica a forma paradigmática da ajuda a outrem, as abordagens objetivistas são além disso suspeitas de serem redutoras. Para a maioria dos "trabalhadores da saúde mental", o essencial da vocação terapêutica passa ainda por um investimento pessoal, cuja relação psicoterapêutica é a matriz. Mas seria perigoso acreditar que essas resistências serão eternas.Já estão cedendo. Um certo purismo inspirado pela psicanálise fez admitir por muito tempo como indo de si que as abordagens teoricamente opostas são praticamente inconciliáveis. A experiência mostra mais que o "ecletismo terapêuti42

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WELGER, Corinne. A cenoura e o bastão, número especial deAutrement, nov. 1980, que faz o levantamento sobre os começos do processo de difusão das terapias comportamentais na França.

co", como já dizia Jean-Paul Falret na metade do século XIX, se impõe quase sempre numa profissão em que é preciso fazer fogo com qualquer madeira. Assim, não se pode imputar unicamente à falta de exigência intelectual, que creditamos bem aos anglo-saxões a existência dessas espantosas sínteses, entre psicanálise e terapia comportamental, por exemplo, que já funcionam nos Estados Unidos há muito tempo. Na França também a psicanálise vai se encontrar cada vez mais acuada às posições defensivas. Em vez de constituir o modelo ideal da relação terapêutica, ela vai verossimilmente refluir para "indicações" mais específicas e deixar o campo livre para novas composições. É pouco provável que as abordagens objetivistas venham bruscamente ocupar todo o terreno. A hipótese mais verossímil no imediato é antes a do triunfo de um ecletismo que procurará sua caução na eficácia de seus proce· dimentos. Más nessa perspectiva as orientações que se enfeitam com os prestígios da cientificidade têm uma carta decisiva para jogar. Em nome do sério, real ou suposto de seus resultados, em afinidade com o ar do tempo que prega o retorno ao realismo, dotadas de um forte potencial mobilizador e apoiadas em tecnologias avançadas, elas vão pelo menos quebrar o jogo das antigas hegemonias. Sem pretender deduzir o que será o futuro, é pelo menos possí· vel prever com uma quase certeza o que ele não será. Não será mais dominado pelas grandes sínteses que tentaram se impor nos dois últimos decênios em redor da psiquiatria social e/ou da psicanálise confrontando as técnicas de cura com objetivos políticos ou existenciais. É a própria mira da marcha terapêutica que aparece assim profundamente transformada. Em vez da pesquisa de uma totalidade sensata - encon. trar, além do episódio patológico, o sentido de uma trajetória individual em relação à história da pessoa ou o sentido de sua inscrição em seu meio social se perfila uma totalidade nova, que não seria mais do que a soma de tantos pontos de vista sobre o homem quanto possa existir de saberes positivos que a parcelam. Aquela mesmo de que alguns já propõem a fórmula afirmando "a necessidade de uma pesquisa interdisciplinar experimental à qual a física, a química, a bioquímica, a fisiologia celular, a neurofisiologia, a farmacologia, a etologia, a psicologia e a sociologia", para citar só essas possam começar a trocar suas informações. 43 "Para só citar essas"! Perguntamo-nos em quantos pedaços o objetivismo científico poderá recortar uma pessoa a quem creditávamos, não há tanto tempo, um inconsciente, uma história e um projeto ... 43

LABORIT, Henri. "Para uma psiquiatria total... O homem e seu.<; meios ambientes: ensaio de integração bio-neuro-psico-sociológico", Prospectiva e Saúde, 1, primavera de 1977.p. 77.

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lógicos que, autorizando uma dissociação radical entre o diagnóstico e o se encarregar, faz balançar a prática terapêutica do lado de uma pura atividade de expertise. O saber médico-psicológico torna-se assim o instrumento de uma política de gestão di!erencial das populações mais do que o cuidado ( ou, na versão crítica, de repressão). Na medida em que esta orientação pode se apoiar ao mesmo tempo em tecnologias altamente sofisticadas como a infonnática, e numa nova administração da Ação Social reorientada ao redor da prevenção sistemática dos riscos, ela representa uma das linhas de transformação das mais novas, mas também das mais inquietantes, que trabalham no domínio das práticas.

1. DO SE ENCARREGAR À GESTÃO ADMINISTRATIVA

Capítulo 3

A gestão previsível

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Não existe incoerência em lamentar_que se abandone a referência ao inconsciente, depois de ter criticado uma psicanálise que se pretendia a melhor colocada para defendê-la? Não é contraditório pleitear pela salvaguarda de uma dimensão social, em medicina mental, depois de ter denunciado na psiquiatria social a tentação de reduzir o social ao psiquiátrico? Não se trata, portanto, nem de renegar análises que visavam ao hegemonismo psicanalítico ou psiquiátrico, nem de queimar o que outros adoram. Mas, se é verdade que uma transformação profunda está se produzindo nesses domínios, ela implica também um reexame das posições ocupadas pelos diferentes parceiros no novo campo em via de constituição. Em particular, o itnaginário profissional precedentemente descrito, alimentado de referências psicanalíticas e sociais, mesmo ambíguas, está se tornando uma linha de resistência diante da subida de novas estratégias de intervenção que se anunciam sempre sob o estandarte do bem-estar e do interesse das pessoas, mas se consumam através da desestabilização do indivíduo e da desarticulação de sua história, pessoal ou social. Pois a ofensiva do objetivismo médico só representa uma tendência, a mais tradicional ou a mais clássica, no seio da nova constelação do positivismo conquistador tal qual tende hoje a se impor. Uma orientação diferente se desenvolve, a partir de uma outra transformação dos dispositivos médico-psico100

A vontade de se encarregar das populações de que têm a responsabilidade tão total quanto possível, caracterizou até hoje a tradição psiquiátrica. Ela realizou-se primeiro sob a forma frustrada de encerramento: o diagnóstico de alienação mental equivalia a uma definição completa a um só tempo médica, jurídica e social do estatuto da pessoa, seu lugar fixado na "instituição especial" garantindo-lhe um tratamento completo, em todo o sentido da palavra, - e, veja-se, freqüentemente por toda a vida. Mas para a psiquiatria moderna a noção essencial de continuidade de tratamento significa também que a equipe médico-social, a despeito da diversidade dos locais onde é exercida e da descontinuidade no tempo do se encarregar, deve assegurar a totalidade das intervenções sobre uma pessoa, das atividades preventivas à pós-cura. É uma evidência que um paciente ganha sempre e em todas as circunstâncias - no final, do nascimento à morte - em ser tratado pela mesma equipe? Sem dúvida, diz-se, ele pode assim estabelecer relações "estruturantes" de longa duração. Mas é absurdo se perguntar se não poderia ser também mais terapêutico, pelo menos em certos casos, poder mudar, escolher, tentar outras relações e outras aproximações com outras pessoas? Se esta questão nunca foi colocada no meio médico, é porque contradiz o princípio regulador de toda a prática psiquiátrica antiga ou moderna, o paradigma da assistência completa. Mesmo a psicanálise não rompeu com essa lógica já que, como todos sabem, a cura marca em longos anos toda uma existência com o ritmo regular de suas sessões. Hoje, no entanto, esse regime contínuo de assistência está a ponto de cessar de representar o modelo dominante da prática médico-psicológica, e essa situação nova, bem além das mudanças institucionais e tecnológicas que

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implica, recoloca em questão o próprio registro da intervenção terapêutica. ~ ~uncionamento da última data das grandes disposições legislativas especiais fundadas em critérios médico-psicológicos, a lei votada pelo Parlamento a 30 de junho de 1975, em favor das pessoas deficientes, exemplifica o que poder_ia_ const1tmr uma mutação da prática de tratamento: sua transformação em atividade de avaliação. Um novo dispositivo jurz'dico-administrativo

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Lei quantitativamente importante primeiro, já que diz respeito, segundo as avaliações, a entre dois e três milhões de pessoas, mais ou menos pela metade adultos e crianças. 1 Que é que permite decidir que uma pessoa é "deficiente"? A inspiração ideológica da lei se encontra no relatório de um alto funcionário, François Bloch-Lainé, estabelecido em 1967 a pedido do Presidente Pompidou, então Primeiro-Ministro. Bloch-Lainé define assim o deficiente: "Dizem-se 'deficientes' ... aqueles que sofrem, em seguida a seu estado físico, mental ou de caráter, ou de sua si:uação social, perturbações que constituem para eles 'dificuldades', quer dizer, fraquezas, servidões particulares em relação à normalidade· esta estando definida como a média das capacidades e das oportunidades d~ maioria dos indivíduos que vivem na mesma sociedade. " 2 A deficiência se recorta na categoria mais vasta da inadaptação. Sempre se~undo Bloch-Lainé, "são inadaptados à sociedade da qual fazem parte as cnanças, adolescentes ou adultos que têm por razões diversas dificuldades mais ou menos grandes a ser ou a agir como os outros. " 3 René Lenoir Secretário de Estado de Giscard para a Ação Social, que fará passar a lei n~ Parlamento e, sobretudo inspirará seus importantes decretos de aplicação, enumera uma ampla gama de "excluídos" que representariam mais ou menos um quinto da população francesa. Achamos aí misturados inadaptados físicos (2~300.000), débeis mentais (1.000.000), inadaptados sociais (3 ou 4 milhoes), q~e compreendem ao mesmo tempo crianças desadaptadas, delinqüentes, tox1comanos, doentes mentais, alcoólicos, suicidas potenciais anti-sociais

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BLA~C, J acque~ .. "Relàtório feito em nome da Comissão dos negóciós culturais, fami· h_:'-fes e socirus sobre o projeto de lei n9 951", Assembléia Nacional. Primeira sessao comum de 1974-75, n9 1.353.

. BLOC~-LAINt , Franç01s.

Estudo do problema geral da inadaptação das pessoas defi· czentes, a Documentação Francesa, 1969, p. 111.

Idem, ibidem, p. 111.

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etc. Mais especificamente (se se pode dizer), "é deficiente a pessoa que, em razão de sua incapacidade física ou mental, de seu comportamento psicológico ou de sua ausência de formação, é incapaz de prover suas necessidades ou exige cuidados constantes, ou se encontra segregada por sua própria iniciativa, ou da coletividade. " 4 Tais definições são evidentemente pouco rigorosas. Não têm nenhum caráter operatório, e não comandam como tais nenhuma mediçla particular. Quanto à lei, ela também não define a natureza da deficiência, nem a pessoa do deficiente. Na ocasião da discussão no Senado, a Ministra Simone Veil declarou, aliás: "O governo, nesse ponto, escolheu uma concepção muito flexível e muito empírica: será a partir de agora considerada deficiente toda a pessoa reconhecida como tal pelas Comissões Departamentais previstas pelos artigos 4 para os menores e 11 para os adultos, do projeto." 5 -É deficiente aquele que é definido como tal, por ocasião de sua passagem diante de uma comissão. Como então funcionam as comissões às quais é delegado esse JJOder? 6 Existem duas Comissões Departamentais, uma a respeito das crianças, outra dos adultos. São compostas essencialmente de representantes das diferentes administrações e serviços concernentes nomeados pelo prefeito. Assim, para as crianças, três funcionários da Educação Nacional, três outros dos serviços sanitários e sociais da Prefeitura (D.A.S.S.), três representantes da Previdência Social, um responsável dos estabelecimentos de recepção dos deficien· tese dois membros das associações de pais de alunos e/ou de famílias dos deficientes. Para os adultos, representantes do Ministério do Trabalho e do mundo de trabalho substituem os da Educação Nacional. Nos dois casos, os representantes da administração estão em maioria e têm assento assegurado. As comissões julgam por dossiês, que são preparados por outras comissões ditas, para as crianças, Comissão de Circunscrição pré.escolar e elementar ou Comissão de Circunscrição do segundo grau segundo a idade da criança, e Comissão Técnica. Elas são compostas por um pessoal mais especializado. 4 LENOIR, René. Osexclufdos. Ed. du Seuil, 1974. 5 Diário

Oficial, de 4 de abril de 1975, Debates parlamentares, Senado, sessão de 3 de

abril de 1975. 6 Encontraremos um notável dossiê crítico sobre a lei de 1975, graças ao Sindicato da Psiquiatria em Psiquiatria hoje, 32, "Os incluídos". Cf. também V ACHER, Nicole & CHESSEL, Patrick: "O sistema G.A.M.I.N.: o melhor dos mundos". Autrement, 22, 1979, e MASSON, Alain. Mainmise sur /'enfance, Payot, 1980. Para o texto da lei e os decretos de aplicação, assim como amplos excertos dos debates parlamen-

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Assim, a Comissão de Circunscrição, presidida por um inspetor da Educação Nacional, compreende em geral o médico escolar, um psicólogo escolar, uma assistente social, dois membros da Educação Nacional, instrutores e/ou chefes de estabelecimento, um representante dos pais dos alunos, um r~pre~e11tar..te da Previdência Social, um membro d<;> intersetar infanto-Juvenil psiquiátrico. Sigamos uma pista freqüente que, para uma criança, desemboca, a partir da escola, a caracterizá.la como deficiente. A lei dá aos chefes de estabeleci. mentas a obrigação de fazer uma lista das crianças com dificuldades ou retar· dos escolares. Um dossiê é constituído, compreendendo informações pedagó-gicas, médicas, sociais e um exame psicológico. Sobre essa base, a equipe edu· cativa escolar emite uma opinião de orientação sobre a qual a Comissão de Circunscrição vai tomar a primeira decisão. Ela pode reorientar a criança no circuito escolar (classes de aperfeiçoamento ou sessões de educação especial). Ela pode também julgar que a criança é inapta a seguir uma escolaridade nor· mal. Nesse caso, transmite o dossiê à Comissão Departamental, que só ela tem poder de decidir a colocação num estabelecimento especializado até uma du. ração de cinco anos, a atribuição de uma alocação especial por fixação de uma taxa de incapacidade, 7 o total acrescido por uma inscrição no fichário depar· tamental dos deficientes. Além da rede desenhada aqui, a partir do sistema escolar (é a principal), a Comissão Departamental pode igualmente ser tomada por múltiplas instân· cias: os próprios pais ou as pessoas que têm o encargo do presumido deficien· te, a Previdência Social, os serviços da D.A.S.S., os responsáveis por estabele· cimentos onde a criança já foi colocada, os médicos que a tratam etc. Para os adultos, o mecanismo é um pouco diferente, já que a Comissão Departamental (Comissão Técnica de Orientação e Reclassificação Profissional, C.O.T.O.R.E.P.) tem por função principal elaborar estatuto sobre a localização do deficiente em função de suas capacidades de trabalhar. Ele pode ser deixado nos circuitos normais de produção (empregos reservados) ou coloca· do em estabelecimentos especiais, centros de ajuda pelo trabalho e oficinas tares e de críticas endereçadas à lei, dois números especiais da revista dos psiquia· tras de exercício particular, Psychiatn·es, 30 e 31. Existe também uma abundante literatura contestatária, mas freqüentemente inédita, produzida pelo próprio meio profissional, a partir de 1978, por ocasião do começo da aplicação da lei. 7

As tabelas d~ deficientes são estabelecidas em referência a uma lei de 1919 a respeito dos fenmen tos de guerra. A atribuição de uma pensão passa pela assimilação à categoria de "grande enfermo".

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protegidas. 8 É o papel da primeira seção da Comissão, ligada à direção do Trabalho. A segunda seção, ligada à direção da Ação sanitária e social, atribui os abonos especiais e pode colocar o deficiente em hospital psiquiátrico ou nessas Casas de Recepção especializadas (M.A.S.) em via de constituição, onde vegetará até sua morte. Da doença à deficiência

Sob essa pesada maquinaria burocrático.administrativa, representada pelas comissões, qual é o espírito da lei? Uma de suas primeiras característi· cas é unificar sob um mesmo rótulo e fazer depender da mesma instância de decisão casos absolutamente heterogêneos. Primeiro, os deficientes físicos e os deficientes mentais, por exemplo, o cego de nascença e o débil mental. Em seguida, dentro de cada uma dessas categorias, tipos heterogêneos de diferenças em relação a um funcionamento normal ou médio, por exemplo, o grande oligofrênico e a criança marcada por dificuldades escolares. Ora, se certas defi. ciências, sejam físicas, sejam mentais, são dificilmente recusáveis, outras, e elas representam a maioria dos casos apresentados às comissões, pelo menos no que diz respeito às crianças, dependem de critérios bem menos simples. Primeiro, a noção de deficiência coloca em primeiro plano as performances sociais. Ela depende de uma medida da eficiência do comportamento com pretensão objetivista, a qual se opõe à percepção da perturbação psíquica que prevaleceu em medicina mental. O louco pode, finalmente, ser genial; o deficiente representa sempre um déficit. Ele remete a um outro modo de pen· sarnento e a uma outra tradição além das que constituíram a psiquiatria. A medicina mental nasceu de uma reflexão sobre o delírio, a crise, a ruptura, o mistério da diferença e da descontinuidade. O próprio. Pinel, que não é suspeito de desvio antipsiquiátrico, assinala seguidamente seu espanto diante da descompensação brutal, mas freqüentemente reversível, de doentes que, diz ele, eram ou serão talvez homens ou mulheres notáveis, até excepcionais. Certo, a psiquiatria respondeu também à apreensão menos humanista da loucura em termos de perigo e de violência, a qual representa como a face de sombra dessa imprevisibilidade que caracteriza a doença mental, através do 8 As "oficinas protegidas" são empreendimentos nos quais, mediante algumas adapta· ções, os deficientes permanecem submetidos ao mercado de trabalho. Os Centros de ajuda para o trabalho (C.A.T.) são organismos de assistência que funcionam ao preço de diárias. Havia recentemente cerca de 1.000 lugares em oficinas protegidas para 13.000 em C.A.T., mas desde a implantação da lei, esses efetivos crescem num ritmo rápido.

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temor da passagem ao ato brutal e devastador. Mas nenhuma dessas duas conotações da loucura, a positiva ou a negativa, se reencontra na noção da deficiência. Deficiente é conotado com diminuído, retardado, incapaz, inválido, enfermo, mutilado, inferior, às vezes, tarado. A principal linha de reflexão S(?bre o deficiente amadureceu na tradição de uma certa forma de medicina e de psiquiatria sociais, preocupadas com problemas do trabalho, da reinserção profissional, da readaptação, da reclassificação social e da recuperação da mão-de-obra. Foi assim que o primeiro relatório na Europa sobre os problemas dos deficientes, o relatório Tominson, foi feito em 1943 numa Inglaterra que a guerra conduzia à mobilização de todas as formas de mão-de-obra possível. y- Se esta tradição visa a incluir mais do que excluir, ela o fez banalizando a deficiência sob a forma de um déficit que se pode compensar. A atenuação da deficiência se obtém, através dos processos de aprendizagem, que diferem profundamente da terapia. Em relação à doença mental, que é um acontecimento mesmo prolongado, e só no extremo crônico, a deficiência se situa assim do lado do fixo, do estado permanente, do estatuto definitivo, mesmo se acrescentamos sempre, como se deve, que "é preciso deixar lugar às possibilidades evolutivas". Estas podem, no melhor, significar reparação, na acepção mais ortopédica da palavra. Nesse sentido, o discurso da deficiência promete uma verdadeira despsiquiatrização, pois mesmo se uma ação sobre o déficit é empreendida, é pensada em termos de exercícios de desenvolvimento, de melhora de performances, mais do que em termos de tratamento, e ainda menos de escuta, de resposta a um pedido de cuidado, de atenção ao sofrimento psíquico, de levar em conta à problemática da pessoa, etc., em suma, de todas as noções que se tornaram palavras-chave da psiquiatria moderna. Trabalho para "' adulta;, resultados escolares para as crianças constituem o duplo horizonte de valores de eficiência, a partir dos quais a deficiência se inscreve como falta. O que se esconde atrás da deficiência não é a irrupção do patológico, mas o reino da desigualdade. Desigualdade. que remete à deficiência de uma constituição, ou desigualdade adquirida na luta pela vida concebida como um percurso de obstáculos, mede sempre uma inferioridade. A deficiência naturaliza ao mesmo tempo a história da pessoa, fazendo de sua falta um déficit e a his.tória social, assimilando as performances requisitadas a um certo momento histórico a uma normalidade "natural". 1º 9 VEIL, Claude. Deficiência e sociedade. Flammarion, 1968. p. 21. 10 Ê por isso que é impossível distinguir, em rigor, o deficiente de certas formas de desa· daptação social. Empiricamente, isto se traduz notadamente pelo fato de que os

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O especialista mascarado O fato de que a opção de deficiência se consiga assim, ao contrário de uma concepção tornada dominante nas orientações terapêuticas modernas pelo menos em sua ideologia, inspirado pelo duplo imaginário psicanalí~ti~o e social, já assinalado - explica por urna ampla parte a oposição quase unamme dos profissionais da saúde à lei de 1975. Assimilando resultados comportamentais que podem remeter à etiologias e problemáticas subjetivas diferentes, a caracterização em termo de deficiência impede o tratamento diferencial ~ ~ possibilidade de passar um contrato terapêutico personalizado. Como_ d_1~a uma comissão de psiquiatras, exprimindo sob uma forma brutal a opm1ao geral do meio, "o funcionamento da Comissão Departamental de educação especial anula a realidade do campo psiquiátrico". 11 Os principais sindicatos de psiquiatras depositaram, aliás, um recurso no Conselho d~ 1:-_stado ~obre a legalidade do decreto de aplicação, instituindo essas comissoes. Alem d~s contradições observadas entre o funcionamento das comissões e certas exigências terapêuticas ou deontológicas (o segredo profissional, por exemplo), ele sublinha que, na pesada máquina administrativa instalada pela lei, o lugar do psiquiatra aparece submerso em meio a múltiplos funcionários e representantes de instituições diversas. Sua presença nem mesmo é obrigatória nesses organismos reais de deciSão que constituem as Comissões Departamentais. No entanto, em vez de contabilizar o que falta à lei em relação às exigências de uma prática terapêutica, tal qual a concebem a maioria dos profissionais, pode-se indagar o que ela inaugura em relação à definição clássica do papel desses especialistas. Percebe-se então que, mais do que uma anulação do ponto de vista médico-psicológico, assistimos a um redesdobramento do mandato que ele assume. Embora ela opere uma certa despsiquiatrização orientada freqüentemente para modos não psiquiátrica; de responsabilização,' 2 o papel do diagfilhos de imigrados são proporcionalmente muito mais numerosos a se tomarem "~deficientes" do que os filhos de fami1ias auto-suficientes. 11 Congresso da Comissão das Croix-Marines, "Relatórios da Comissão", A Informação Psiquiátrica, fevereiro de 1972, p. 203. Cf. também em Psiquiatrias, 30, o resumo de numerosas tomadas de posição do meio profissional hostis à lei. 12

Além do fato que permitia uma racionalização na distribuição dos serviços e abonos, a lei de orientação foi primeiro bem acolhida pelas fami1ias, por essa razão. Contra a tendência da psiquiatria moderna, a tornar a deficiência psicológica, com o que isto comporta de culpabilizante para as fam11ias, ela fazia esperar que a deficiência ia ser tratada como um dado a reduzir, ou pelo menos a melhorar, pelo desdobramento de meios objetivos e de incitações materiais.

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nóstico médico-psicológico continua determinante no quadro da lei As Comissões Departamentais de fato, não fosse por causa do número de casos de que tem de tratar, funcionam quase à maneira de câmara de registros ou de oficialização das comissões especializadas. Julgam baseadas em dossiês elaborados por técnicos. É nesse nível que o papel do especialista do domínio médico-psicológico é essencial, mesmo se ntimericamente minoritário. É de fato o único a propor a referência a um saber científico. O pessoal da Educação Nacional, por exemplo, traz fatos que representam desvios do comportamento em relação a uma norma social: retardo escolar, agitação em classe, etc. A categorização médico-psicológica faz disso uma dimensão da pessoa: apresentar retardo toma-se ser débil, dar sinais de hiperatividade torna-se problema de caráter, ter graves dificuldades de contato se traduz por ser psicótico ou autista. A referência ao saber possui uma função legitimamente indispensável na medida em que dá uma caução científica a um julgamento normativo. O ponto aqui não se atém ao caráter freqüentemente aleatório e impreciso de tais etiquetagens: é o fato de todo diagnóstico. O elemento novo, é que o diagnóstico é completamente dissociado da responsabilização. O profissional da saúde mental opera assim literalmente como um especialista, quer dizer, como alguém cujo julgamento é objetivado como peça essencial de um dossiê, sobre o qual os que decidem, em seguida, se apoiarão para fundar seu próprio julgamento que, este, chegará às opções práticas. Um tal uso da psiquiatria não é sem precedente: diante dos tribunais, por exemplo, a expertise é tomada como elemento de apreciação num processo de decisão, do qual a conclusão prática escapa ao especialista. Mas, além de que, uma expertise no senso estrito pode se discutir como tal, e, por exemplo, suscitar uma contra-expertise, o que não é o caso aqui. O que é objeto de expertise no quadro da lei de orientação de 1975 não o é da ordem do delito, mas de uma distância em relação à norma. Não existe nenhum código para assinalar limites a tais avaliações. Elas medem simplesmente uma relação a modelos sociais dominantes e· ainda por cima mutantes. Pode-se imaginar, por exemplo, que um crescimento das exigências do sistema escolar aumente ainda o número de seus desadaptados e, por aí, crianças para quem se colocará a questão da deficiência; ou que haja intensificação dos critérios da· produtividade normal, multiplicando o número de adultos que devem trabalhar em meio protegido. Tais "oficinas protegidas" criam-se atualmente a um ritmo rápido e está previsto que possam mesmo ser organizadas pelas próprias empresas. Estas poderão assim gerar a produtividade dos deficientes, em condições tanto mais interessantes que a lei fixa para esses trabalhadores um teto de remuneração inferior ao dos trabalhadores normais e uma diminuição das abri108

gações sociais a cargo do empregador, sem mesmo falar do fato de que o exercício dos direitos sindicais parecerá incongruente em instituições assim filantrópicas. Em relação ao sistema escolar, vê-se também o interesse que pode apresentar o fato de declarar deficientes os que assim poderão sê-lo para seu funcionamento normal. Que não se pense então que a vontade dos profissionais, para enraizar um tal desvio de sua prática, poderia constituir um freio suficiente à realização dessas eventualidades. Eles são eles mesmos, presas de uma mecânica que não podem dominar. Um texto escrito por vigorosos oponentes à lei de orientação exprime assim a propósito de sua presença na Comissão de Circunscrição para crianças: "De fato, encontramo.nos num tal tecido de contradições que nosso papel dentro da Comissão se resumia a ser espectadores embaraçados de uma manipulação de ponteiros (mais do que de uma real orientação pedagógico.tecnocrática). Vamos, aliás, compreender bem ligeiro que só nos pediam isso, e que ao que se visava em nossa participação não passava do lugar simbólico que ali tínhamos ( ... ). Como, à vista de um dossiê de três ou quatro folhas, pode-se fazer uma idéia da história de uma criança, de sua personalidade profunda, de seus problemas? Aliás, o dossié não é constituído por pessoas que estão "bem localizadas", que conhecem a criança? A partir de quais critérios emitir uma opinião contrária à deles, sem falar do aspecto descortês e, digamos claramente, da suspeita de incompetência que deixaria planar uma opinião contrária'!( ... ) O silêncio constituiu o grosso de nossa intervenção na Comissão Consultiva. ( ... ) De fato, assistíamos silenciosos ao processo implacável do aparelho escolar em seus mecanismos fundamentais de rejeição. " 13 A mesma equipe descreve em outro lugar a função, apesar de tudo indispensável, desse "lugar simbólico": "Posicionada assim numa função que não é nem mais nem menos a de expert, ele (o psiquiatra) traz a caução pseudocientífica que justificará o bem fundado da lei. Solicitado como expert, não lhe é assim dado nenhum meio de funcionar como tal (seus certificados não podendo ser considerados como objeto de expertise). Pesa na comissão com o peso de um expert, mas não "expertisa' nada.( ... ) Expert tanto mais temível, porque não diz seu nome, expert 'mascarado', suposto capaz de apreciar com alguma coerência o que ele, por outro lado, se esforça por tratar, goza de uma impunidade tanto maior, porque nenhuma contradição é considerada.

13

"Resumo de uma experiência de participação nas Comissões de circunscrição por membros de uma equipe de intersetar de psiquiatria infanto-juvenil", documento interno de um intersetar do Essone, inédito.

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Assim, sagrado deus ex machina pela lei, ele é, ao mesmo tempo, seu executante mais alienado. 14 Quem detém o poder, quem faz a lei por ocasião das decisões que as Comissões tomam? Primeiro, funcionários sob a autoridade direta do prefeito, e que exercem um mandato administrativo. No entanto, de maneira menos evidente, mas também essencial, esse pro-cesso de decisão não pode funcionar sem a referência ao saber médico-psicológico. A presença desses especialistas não é uma sobrevivência ou uma inadvertência Embora aparentemente abandonados no quadro de uma relação de força, são indispensáveis para fazer dessa relação de força uma relação de direito. O papel do saber psiquiátrico é assim de servir de fundamento de legitimidade e de correia de transmissão num funcionamento institucional, cujo domínio lhe escapa completamente. Na aventura, sua vocação terapêutica perdeu-se. A oposição a uma "má" administração, cujos objetivos se oponham aos do humanismo médico, sempre funcionou um pouco à maneira de um mito, através de toda a história da psiquiatria. Mas, outrora, este adversário era representado pelo diretor não médico do hospital, que se podia freqüentemente seduzir, ou pela argola de regulamentações minuciosas, que se podia virar. Pela primeira vez, poderia bem ser que a dicotomia cuidado-administração ou tratamento-prazo a injunções começasse a representar uma lapidação estrutural, inscrita nessas formas novas de práticas. Dizendo de outra maneira, poderia bem acontecer que a medicina mental assumisse a partir de então, uma função de auxiliar em relação a uma política administrativa completamente definida pelas exigências de gestão. 2. A GESTÃO PREVISÍVEL DOS PERFIS HUMANOS

Uma tal transformação da medicina mental pode-se interpretar de uma só vez como continuidade e ruptura em relação a sua história. A lei de 1838 já permitia ao psiquiatra desempenhar um papel de expert, mesmo se este estava dissimulado pela contrapartida terapêutica que se imaginava justificar sua intervenção. Ê, aliás, na base da contestação de um tal amálgama entre funções administrativas e funções terapêuticas que se desenvolveu a denúncia do poder psiquiátrico, acusado de reprimir ou de neutralizar, sob o pretexto de tratá-los, comportamentos socialmente indesejáveis.

14

"Reflexão sobre a lei de orientação dos deficientes e sobre o papel dos psiquiatras em suas diferentes instâncias", id.

110

A constituição çl.os perfis Seja o que for que se pense desse processo, ele não é mais da atualidade. É preciso, a partir de agora, encarar o papel social cada vez mais importante que assume a medicina mental independentemente da cobertura do tratamento, quer dizer, a partir de intervenções que são expertises no senti.do amplo da palavra e não tratamentos. A relação tratamento (que seja julgada terapêutica ou "repressiva") cessa de ser o elemento determinante da prática. O psiquiatra aparece cada vez mais como um especialista que marca um destino sem modificar uma situação: no final, como o auxiliar de um computador que ele alimentaria com dados, distribuídos em seguida em circuitos administrativos, independentemente de qualquer visão terapêutica. Desse ponto de vista a função de controle social da medicina mental não teria mais g-rande coisa a ver com uma coerção exercida diretamente: seria um simples instrumento de gestão das populações, que opera sem modificar por si mesmo as pessoas visadas. As intervenções médico-psicológicas seriam assim, antes de tudo, um meio de calibrar diferencialmente categorias de indivíduos para assinalá-los a lugares precisos. O diagnóstico expertise representaria o estágio "'científico" de um processo de distribuição das populações em circuitos especiais, educação especial ou trabalho especial, por exemplo. Legitimação por um saber ( ou um pseudo-saber) de decisões que arbitram entre valores essenciais e levam a expertise à altura de uma nova magistratura dos tempos modernos. Esta função das intervenções médico-psicológicas foi várias vezes antecipada, através das relações que a psiquiatria e a psicologia mantiveram com outros aparelhos como a Justiça ou a Educação nacional, em relação às quais elas desempenharam o papel de auxiliar, permitindo aos representantes de outros instituições patrocinar decisões tomadas em função de seus próprios critérios. 15 Poder-se-ia também notar que as Comissões Departamentais atuais só fazem, em muitos aspectos, sistematizar o que as antigas Comissões MédicoPedagógicas da Educação realizavam de um modo mais artesanal, quando orientavam as crianças indesejáveis para fora do circuito escolar normal. Portanto, a partir da lei de 1975, esse papel se reveste de um caráter mais sistemático e, sobretudo, é dotado de uma infra-estrutura administrativa e tecnológica no· 15

Uma parte crescente da justiça dos adultos e a quase totalidade das crianças vé"m de uma avaliação médico-psicológica da personalidade do delinqüente. Georges Canghuilhem assinalava já em "O que é a psicologia?" o peso dessa "prática generalizada de expertise, no sentido amplo, como determinação da competência e despistamento da simulação". (Estudos de história e de filosofia das Ciências, Vrin, 1968, p. 376).

1 II

va suscetível de dar a essas operações um alcance bem mais importante do que antes. Dando um diagnóstico de deficiência, o técnico objetiva diferenças em relação.a uma combinatória de performances, requisitadas no nível da escolaridade ou do trabalho, que são atualmente os dois principais setores de localização de anomalias. A partir dessa discriminação, no sentido literal da palavra, o indivíduo submetido à expertise se põe a transitar num circuito especial. Assim, na rede de deficiência. Se não se sabe muito a que corresponde, clinicamente falando, a deficiência, e se estamos ainda mais embaraçados para tratar os deficientes, por outro lado, essa etiqueta coloca a pessoa em um percurso social bem balizado. Não é absurdo admitir outros perfis diferenciais, aos quais corresponderiam séries homogêneas de abonos sociais programáveis antecipadamente. Os "superdotados", por exemplo, apresentam em positivo 16 exatamente as mesmas características objetivas que os deficientes. Também esboça-se para eles igualmente um circulo social especial, que consistiria em maximizar suas oportunidades de se tomarem as futuras elites. Mas, mais geralmente, toda diferença, a partir do momento em que é objetivada, pode dar lugar à constituição de um perfil.

Da programação dos equipamentos à das populações Os especialistas médico-psicológicos poderiam assim constituir, para indivíduos para os quais objetivariam a diferença em relação âs normas, os modos de programação análogos aos que o sistema escolar promove para os indivíduos normais: atestar um nível de performance ao qual correspondem circuitos franqueados antecipadamente na textura social. O rótulo de deficientes seria essa espécie de diploma ao contrário, que dá, senão direitos, pelo menos um estatuto, um lugar assinalável na estrutura social. Nessa lógica, a rede da deficiência poderia contribuir a distender a demanda sobre o mercado de trabalho, da mesma maneira que poderia sanear a escola distribuindo em circuitos menos exigentes aqueles cujo perfil foi certificado não conforme. Já se observam transferências do mundo normal ao do trabalho "protegido". 17 Mas é teoricamente possível ir mais longe orientando 16 Um dos primeiros psiquiatras na França, a se interessar pelos problemas da deficiência, já fazia desde 1968 a pergunta: "Que fazemos pelas crianças desadaptadas porque superdotadas?" (VEIL, Claude. "Deficiência e sociedade". Op. cit. p. 111. 17

Cf. por exemplo: "Testemunho: como transformar um desempregado válido num deficiente produtivo" pelo Coletivo de ação e de coordenação dos deficientes para a

!12

grupos inteiros, a partir da operação que consiste em lhes definir um perfil diferente. Há de fato aqui um elemento profundamente inovador em relação às técnicas clássicas de exames, de arquivamento, de punção de conhecimentos, de acumulação de informações, etc. Estas se contentavam em registrar dados para que o poder político-administrativo pudesse deles se servir. Mas, aqui, a Comissão Departamental, instância administrativa, tem poder de decisão sobre a própria constituição dos perfis. Não é exagero dizer que ela define a deficiência e que essa definição tem função constitutiva, na medida em que retira, numa população ainda não diferenciada, um subconjunto, para o qual se põe a existir uma rede especial. Assim se esboça a possibilidade de uma gestão previsível de perfis humanos.18 Até o presente, o planejamen.to social repousou essencialmente na defmição de objetivos sócio-econômiCos, a partir da programação dos equipamentos. A racionalização, a coordenação, os redesdobramentos, etc., visam a modificar a estrutura dos empreendimentos e dos estabelecimentos, com a carga para o pessoal de seguir e se adaptar a essas mudanças com todos os riscos de turbulência individuais e coletivos que comporta um tal empirismo. A programação das populações seria a contrapartida lógica de um planejamento conseqüente, mas ela é mais difícil de ser realizada por razões a um só tempo técnicas e políticas. No entanto, com a informática, torna-se possível constituir fluxos de população, segundo não importa qual critério de diferenciação, em particular as anomalias físicas ou psiquícas, os riscos devidos ao meio ambiente, às carências familiares, o nível de eficiência social, etc. Basta reunir duas condições: dispor de um sistema de codificação bastante rigoroso para objetivar essas diferenças; darem-se os meios de inventariar sistematicamente todas as pessoas que compõem uma certa população. O saber médico-psicológico proporciona um código científico de objetivação das diferenças. Quanto à preocupação de exaustão, ele encontra o meio de se realizar com o exame sistemático das populações. O resto, quer dizer, o fato de abonar a esses indivíduos constituídos em fluxos estatísticos um destino social homogêneo, é uma questão de vontade política. Até o presente, tais possibilidades tecnológicas revogação da lei de orientação, mimeo. pp. 4 748: itinerário de uma manobra vítima de um licenciamento coletivo que, depois de ter trabalhado normalmente durante onze anos e não reencontrando emprego, foi colocado, sem dúvida definitivamente, numa "oficina protegida". 18 Cf. FOUSSET, J. A orientação das leis e a direção da história. Psiquiatria Hoje, 32, jan. 1978, e MASSON, Alain. "Intervenção na infância". Op. cit., cap. IV.

113

permanecem subempregadas. Mas existem sinais alimentando o temor de que possamos ir muito mais longe. Em particular, dois programas em realização visando à infância já desenham o que poderia ser uma gestão perfilada do conjunto da população. Mais vale prevenir do que remediar

O sistema de Gestão Automatizada em Medicina Infantil (G.A.M.I.N.) diz respeito a todas as crianças, a partir de seu nascimento. Os dados recolhidos para os exames médicos obrigatórios (no 89 dia, no 99 mês e no 249 mês) são sistematicamente tratados pelo computador. Permitem estabelecer "fichas prioritárias" assinalando as crianças "com riscos". O risco é definido pela presença de um ou de uma associação de critérios, uns de ordem médica,1 outros de ordem social. É assim que uma malformaç_ão, o mau estado de saúde da mãe, abortos anteriores, etc., representam fatores de risco. Mas também que a mãe ou quem recebe o salário-fam11ia seja solteiro, menor, de nacionalidade estrangeira, operário(a) agrícola, empregada, manobrista, aprendiz, estudante, militar do contingente, sem profissão, etc. Um representante dos serviços sociais visita a fanu1ia para confirmar ou não a existência do risco. Uma ação dos serviços médico-sociais pode então tudo desencadear. Esse dispositivo visa, diz-se, a assegurar uma detecção sistemática e rápida de certos riscos. Ê duvidoso, portanto, que a informatização do processo permita concretamente ganhar tempo. A ida e volta das informações do médico examinador ao serviço departamental poderia de fato ser curto-circuitada pela intervenção direta do primeiro, em caso de urgência. Por outro lado, como está expresso na exposição de motivos, o tratamento dos dados em nível departamental e nacional permitirá conhecer a incidência real das doenças infantis e programar os equipamentos e pessoal necessários à abordagem desses problemas. Um tal dispositivo realiza essa forma particular (ou esse desvio) da prevenção, que é o resultado sistemático. A eventual intervenção visa a indivíduos pré-selecionados, fora do contexto em relação ao meio ambiente, e economiza uma ação preventiva geral sobre o meio. Mas a operação permite também constituir um fichário geral das anomalias. Ela desprende esse perfil individual que desenha uma rede social. Assim, antes do revelador da escola, fatores de deficiência terão sido detectados que farão depender alguns individuas da Comissão Departamental prevista pela lei sobre os deficientes. O sistema G.A.M.I.N. situa-se na vertente da lei de orientação. Opera uma primeita triagem, que para alguns desenha pon tilhadamen te o perfil da deficiência, 114

que poderá ser oficializada, por exemplo, por ocasião da passagem diante da Comissão Departamental para adultos (C.O.T.O.R.E.P.), para a localização num Centro de auxílio para o trabalho, depois, eventualmente num estabelecimento para deficientes da terceira idade. Desenho pré-progr~ado de uma existên~ia paralela, na qual um risco individual inscreveu-se como a marca que detenmna as grandes opções da vida. . Essas disposições pareceram tão perigosas que se chocaram com a oposição de um certo número de grupos contestatários. Sem sucesso até que a c01~issão "Informática e Libertados", cinco anos depois do começo' daimplantaçao do programa G.A.M.I.N., recomende sua supressão ou, pelo menos, uma reforma profunda do sistema que asseguraria o anonimato do tratamento dos dados. A data dessa decisão (junho de 1981) permite esperar que uma nova orientaç:ão política comece a levar a sério as ameaças para os libertados que carteg~ tais dispositivos. Mas, para fazê-lo, não basta a opinião tardia de uma corrnssão sobre um elemento particular de um conjunto coerente. É de fato uma política sistemática que, depois de alguns anos, promove esse modelo de gestão tecnocrática das indiferenças.

. ,~ª mesm_a lógica, o sistema de Automatização Departamental da Ação Samtana e Soc1_al (A.U.D.~.S.S} ficha as crianças (720.000, atualmente) que d:pendem da AJuda Social a Infancrn. A termo, é previsto para alojar informaçoes sobre todas as pessoas que se beneficiaram a um ou outro título dos serviços soci~s. Figuram no fichário informações como o código do motivo do abono (cnança não escolarizada, encarcerada, etc.), o código do motivo de d~s~daptaçã~ (perturbações motoras, sensoriais, mentais, doenças crônicas), 0 cod1go da ongem do abono Guiz, trabalhador social, serviços da medicina infantil, etc.). Essas crianças recebem uma ajuda financeira por intermédio da famfüa ou então são colocadas em fami1ias receptoras ou em estabelecimento ou tão ainda colocadas sob a vigilância dos serviços da A.ção Educativa e~ Meio Aberto (A_.E.M.A.). Constituem uma população sociologicamente bem simplificada. Mais ~e. um terç_o entre eles, por exemplo, são filhos de desempregados, de subproletanos ou b1scateiros, e quase 60% dos assumidos provêm de dificuldades de ordem familiar ou econômica. 19 O sistema A.U.D.A.S.S. corta assim o universo familiar em dois as famílias "normais", quer dizer, as que não fazem história, ou cujas histórÍas não

en:

19

Ministério ~a Saúde, A prevenção das desadaptações sociais, estudo de R.C.B., Documentaçao francesa, 1973.

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chegaram aos serviços sociais, e as que representam um outro tipo de riscos, além dos da rede da deficiência, embora alguns critérios se recortem, e que o itinerário social das pessoas seja freqüentemente recuperado. Que a ajuda social à infância (a antiga Assistência Pública) representa uma rede aparecia desde sempre através do destino freqüente çl.os "filhos da Assistência", essas trajetórias da infelicidade pelas quais as crianças tornadas adultas reproduzem a situação de partida e procriam por sua vez crianças para serem assistidas. Mas esses casos representam, a partir de agora, uma população estatística objetivável, com base em critérios precisos. Eles engordam a onda diversificada de todos os que correm o risco de serem estigmatizados por suas diferenças e que poderíamos chamar, permitindo-nos um neologismo, os anomálicos. Depois dos loucos, os delinqüentes, os deficientes, os casos sociais e outros desviados diversos, eis um novo conjunto, mais extenso, de contornos esmaecidos, de indivíduos vocacionados para uma vigilância especial, que pode desembocar num tratamento especial. Ora, o que é uma anomalia? Só pela colocação do sistema G.A.M.I.N., em 1976, 46,7% dos recém-nascidos da região parisiense, seja 16.130 crianças, são assinaladas "de risco". 20 Estamos longe da proporção que se poderia originar de doenças hereditárias, de pesadas deficiências físicas ou mentais, quem sabe condições econômicas ou sociais excepcionalmente desfavoráveis, que poderiam exigir uma ajuda especiai. Por exemplo, 15% do que é bem preciso chamar crianças suspeitas o são simplesmente porque nasceram de mães solteiras. A quem podem servir tais avaliações, e quem delas pode se servir? Sempre é malvisto fazer tais perguntas; fica-se logo sob suspeita de processo de intenção. Não pretendemos certamente que esses dispositivos tenham-se inseri to em uma política, da qual um poder maquiavélico teria sido o instigador. Mas é um fato que desenham em sua coerência uma política possível, que consistiria, por exemplo, em ventilar populações em função de exigên~ das econômicas, a fim de realizar com os homens uma programação-planificação que é bem difícil obter das coisas. Seja o que for que se pense destas extrapolações, tais dispositivos já têm uma incidência que, ela, não é discutível, sobre as condições de exercício e o estatuto das profissões médico-psicológicas. As condições de constituição e de tratamento dessas informações acarretam um desequilíbrio entre os especialistas da gestão do social e os técnicos do tratamento e subordinam estes últimos a uma concepção administrativa da ação sanitária e social. Subordinação que 20 Cf. MASSON, Alain. "Intervenção na infüncia". Op. cit. p. 120.

l 16

não significa anulação: a referência a um código médico-psicológico permanece um momento indispensável na constituição do processo. Mas o técnico aparece como um simples expert, quer dizer, ele estabelece o perfil sem dominar a rede. Cava-se assim uma divisão do trabalho entre os que constituem os dossiês e os que decidem, os que tratam e os que gerenciam. Tal evolução não teve nada de irracional num universo político-social onde reinam enarques. * altos funcionários e outros representantes eficazes de um poder cujo modo de ação se fez cada vez mais oculto. Simplesmente, ela quebra a ambição sintética sobre a qual a psicanálise clássica tinha vivido e que a psicanálise não tinha repudiado: fazer do olhar (ou da escuta) que detecta um sofrimento e do ato que se esforça de a ele responder as duas faces de uma mesma operação. É significativo que tenha se desenrolado, nestes últimos anos, nos meios impregnados de cultura psicanalítica, um debate sobre ai questão de saber se seria preciso ou não curar, sem que se tenha dado conta de que, num número crescente de situações, o problema nem se colocava mais. Certo, a pessoa suspeita de sofrer de alguma anomalia, deficiência ou doença, contin1:1a a dever ser "vista" pelo especialista. Mas em numerosos casos, ela cessa de ser "seguida" por ele. É um outro agente que, a partir de então, se encarrega dela.

3. A NOVA POLfTICA SOCIAL

Esta linha de transformação não recobre evidentemente todo o campo da terapêutica. Neste momento, aproximações artesanais e métodos "científicos" nela estão concorrendo. É particularmente nítido no domínio da infância desadaptada, vasto consórcio onde equipes pedagógicas, equipes sociais e equipes médicas, serviços de tratamento a domicílio, dispensários, internatos ou externatos médico-psicológicos, centros médico-psicopedagógicos, serviços de colocação familiar, de assistência educativa, de ajuda médico-social precoc~, de prevenção em meio aberto, lares para adolescentes sob assistência judiciária, etc., disputam o mercado. Mas não é um acaso também, se a infância é hoje a preocupação prioritária de todos os especialistas do tratamento e todos os administradores da ação social. Primeiro porque é preciso racionalizar esta nebulosa cuja constituição remete a estratos históricos diferentes e a intenções divergentes. Mas também, porque através da vontade de constituir um banco completo de dados sobre a infância, joga-se o projeto de dominar seus *Antigo aluno da Escola Nacional de Administração (N. da T.).

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riscos e planificar até suas deficiências, para desembocar num programa de gestão racional das populações. Dirigismo e convivência

Se queremos desenhar o novo modelo de gestão dos homens que foi implantado nestes últimos anos, é preciso dar conta desta contradição aparen· te: a acentuação das tendências dirigistas, planificadoras e tecnocráticas que vêm de exemplificar a lei de orientação e os sistemas G.A.M.I.N. e A.D.D.A. S.S. de um lado, e de outro pelo recuo de uma concepção pública da assistên· eia ( o que chamamos o Welfare Sta te) que fazia do Estado o responsável direto da organização da rede completa. O domínio da Ação Sanitária e Social é sem dúvida característico do modo de gestão que queria promover um Estado neoliberal, esta estratégia que tenta conjugar a planificação centralizadora e a iniciativa privada, o autoritarismo dos tecnocratas e a convivência das associa. ções espontâneas dos cidadãos, a objetividade que emprestamos aos profissio. nais e os bons sentimentos que se imaginam ser o apanágio dos benévolos. O antigo Secretário de Estado da Ação Social, que tanto fez para implantar a nova burocracia presidindo a partir de então a sorte dos deficientes, dava ao mesmo tempo a filosofia dessa orientação no quadro de uma petição para o desenvolvimento da ação das associações: "O Estado não tem o mono. pólio do bem público, mas é seu fiador. Ele deve aqui desempenhar um papel de regulador, definir as regras gerais de gestão e saber eventualmente consoli· 21 dar, seguir ou deixar a ação privada pela gestão pública. " . Um porta.voz da Revolução Nacional proclamava já nos tempos de Vt· chy: "Tudo seria de uma só vez estatizado no alto, o que é uma necessidade evidente, e livre na base, o que é uma idêntica. Assim, a unidade estando ga. rantida pela ação do Estado, a diversidade e a adaptação poderia se dar livre curso e satisfazer às aspirações particulares. " 22 Essa aproximação não é tão espantosa quanto parece, à primeira vista. O regime de Vichy já tinha tentado, em matéria de política social, conciliar um autoritarismo de Estado, susten· tado por uma primeira geração de tecnocratas, e o apoio dos setores tradicionais e conservadores, em particular os que se situam na dependência da Igreja, grande provedora de serviços particulares. 23 Conjuntura que não. é tão dife· 21 LENOIR, René. Associações, democracia e vida diária. Le Monde, 17 jun. 1975. 22 JAUREGUIBERRY, Jean. A hora da geração 40, Scquana, 1943, apud CHAUVIÊRE, Michel. Phagocytages". Op. cit. p. 110. 23

rente da que se pode observar hoje, nesta reserva próxima que a noção de particular a um só tempo ampliou·se e embaralhou.se, e também que um terceiro parceiro, bem pouco representado há quarenta anos no setor, o corpo de especialistas, intervém agora nessa dialética. Como esta filosofia neoliberal começou nestes últimos anos a reestrutu· rar o campo da Ação Sanitária e Social redefinindo o papel dos três tipos de interlocutores que aí jogam sua responsabilidade, o Estado, o setor privado e ós profissionais? 1. Redefinição do papel do Estado primeiro, cujas funções foram ao mesmo tempo reforçadas e circunscritas. Trata-se menos de criar, executar e financiar diretamente, do que de centralizar e planificar os dados, de racio· nalizar a implantação dos serviços, de lhes fixar normas estritas de funcionamento e de controlar seus resultados - deixando-os em seguida gerenciar seu negócio como uma empresa. Ou seja, algumas formas recentes que traduzem essa vontade. No mesmo dia da lei de orientação de 1975 em favor dos deficientes é votada uma outra lei importante sobre reorganização das instituições sociais e médico. sociais. 24 Ela confia a responsabilidade de autorizar a abertura de toda instituição nova (numa gama que cobre toâo o domínio médico-social, do albergamenta das pessoas idosas ou dos jovens trabalhadores nos clubes de prevenção passando pelas instituições de cuidado médico-psicológicas) a comissões regionais ou nacionais compostas, ao mesmo tempo, de representantes do Esta· do, das coletividades locais, da Previdência Social e dos administradores e profissionais do campo rnédico--social. As comissões planificam a criação de todo estabelecimento em função das necessidades. Elas podem também determinar o fechamento provisório ou definitivo, total ou parcial de um estabelecimento. Esta reforma instaura igualmente um procedimento de habilitação das instituições, o convencionamento, mais restritivo do que o antigo reco-nhecimento. A autorização de funcionar é concedida à vista do programa completo do estabelecimento, o qual engaja a política concreta que prossegui· rá em todos os domínios, a respeito do pessoal como dos clientes, e os resulta· dos serão regularmente controlados. Assim o contrato de convencionamento define completamente o siste· ma de normas ao qual deve se submeter o funcionamento institucional, e é o estabelecimento mesmo que é convidado, ou melhor, forçado, a constituir seu próprio sistema de regulamentos. Mas em seguida, goza de uma grande liber· 24

Lei n9 75.5 35, de 30 de junho de 1975.

Cf. CHAUVIÊRES, Michcl. "A infância desadaptada, a herança de Vichy". Op. cit.

119 118

dade de gestão no quadro do contrato passado. A um dirigismo pontilhado que tentaria dominar todos os detalhes do funcionamento tende assim a se substituir um duplo sistema de regulamentos, muito impositivos ao nível da definição dos objetivos e de controle dos resultados, mas que deixa de desenvolver no intervalo um espaço autogerenciado, orientado, portanto, pela necessidade de rentabilizar o empreendimento. O decreto de 22 de abril de 1977, sobre a organização das direções re-gionais e departamentais dos Negócios Sanitários e Sociais, vai na mesma direção. 25 O diretor regional dos Negócios Sanitários eSociaisreúneemsuapessoa as responsabilidades outrora partilhadas entre diversos serviços. Correspondente único do. prefeito da região, ele exerce uma tutela direta sobre o conjunto do dispositivo da Ação Sanitária e Social. Ele centraliza as informações, planifica os equipamentos, coordena a ação dos serviços, tem mão firme sobre o conjunto das eScolhas orçamentárias e das despesas. Controla diretamente o funcionamento das instituições e "procede a estudos comparativos de gestão sobre os custos e rendimentos dos estabelecimentos, organismos e serviços sanitários e sociais públicos" (art. 7). A recente reforma das coletividades locais que transferiu dos Conselhos Gerais ao Estado a determinação anual dos orçamentos consagrados à Ação Sanitária e Social vai no mesmo sentido. Isto representa ainda a situação atual na espera de uma descentralização, agora em preparação. 2. Mas as "garantias" de um poder centralizador que reforça e racionaliza suas formas tradicionais de controle se acompanham do encorajamento dado ao desenvolvimento da iniciativa privada, a exaltação dos méritos do associacionismo e da benevolência. Essas virtudes da convivência enquadrada mobilizam de uma só vez os recursos da velha herança .da assistência caridosa e do direcionam~nto moral, e das formas bem comportadas do espírito contestatário, anti-hierárquico e antiestático, legados mais recentes dos sobressaltos políticos e da difusão da contracultura. François Bloch-Lainé, um dos inspiradores dessa política sanitária e social, vai bastante longe nessa via, quando recomenda dar crédito às iniciativas mais marginais, sob reserva ~e um controle a posteriori: "A sociedade está tão interessada em que as iniciativas se multipliquem para se ocupar do que é mais embaraçoso, que a administração não saberia reservar seu apoio calculado às soluções que já fizeram suas provas e estão homologadas. Há mais benefícios a esperar que perigos a temer de

25

Decreto citado em Psiquiatria de hoje, 32,janciro de 1978, p. 10.

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uma prática consistindo, nesses domínios, em controlar a posteriori mais do que a priori. " 26 É significativo igualmente que esse grande comissionado do Estado recomende desde essa data tomar o mais amplo possível apoio sobre todas as implantações prévias, quer dizer, o mais freqüentemente num setor privado preexistente: "De maneira geral, tratar-se-ia, em todos os setores, de privilegiar o que se fez primeiro e parece bom numa área determinada, a fim de evitar uma coexistência desordenada. " 27 Ainda não é um afrouxamento, mas a maneira mais inteligente de impor uma ordem, que parecerá tanto menos pesada quanto o Estado não será seu garantidor, a não ser em último recurso, quando as associações não terão sabido elas próprias fazer respeitá-Ia. Os méritos de uma tal política são de fato pelo menos triplos. Primeiro, um princípio de economia, que é evidente e vai se revelar precioso num período de crise econômica; não seria preciso, portanto, superdeterminar esse aspecto, pois a imensa maioria das instituições privadas são convencionadas. Mas o apelo ao privado e ao espírito de iniciativa apresenta igualmente a vantagem de assegurar uma capilaridade na distribuição de certos serviços que os organismos públicos custam a dispensar, sobretudo tratando-se "do que é mais embaraçoso" e que se situa freqüentemente às margens da sociedade. As iniciativas particulares sabem mobilizar as redes de conivência que lhes permitem cobrir todo o tecido social e se integrar nos interstícios onde os funcio· nários, representantes de um poder longínquo, abstrato, e freqüentemente considerado com suspeita, custam a conseguir um lugar. Enfim, o modo de funcionamento das instituições particulares assegura formas eficazes de controle interno, em particular sobre os profissionais. Os conselhos de adminis:ração compostos de notáveis equilibram as exigências técnicas, financeiras, as vezes as veleidades subversivas do pessoal qualificado. Na mesma lógica, o apelo à benevolênciq., não somente permite realizar economias, mas representa um meio de pressão que contribui para desenvolver um "bom espírito" no conjunto do pessoal.

. 3. Os profissionais constituem de fato o terceiro elemento do dispositivo. Tendem de mais a mais a intervir como especialistas dotados de um saber e de uma competência próprios, que alugam seus serviços em um mercado 26

BLOCH-LAINÉ, François. "Estudo do problema geral da desadaptação das pessoas deficientes". Op. cit. p. 39.

27 Idem, p. 59.

121

de trabalho como qualquer outro, negociando as condições de emprego e mesmo convenções coletivas. As profissões de saúde estiver~m entre as que, há uma vintena de anos, conheceram as mais fortes taxas de crescimento. Mas a concorrência para achar um emprego aí é particularmente viva. Há, por exemplo, 30.000 estudantes inscritos em Psicologia cada ano na França, e formamse muito mais clínicos ou pessoal paramédico do que o mercado de trabalho pode absorver. E mais, as ftligranas para encontrar as s~da~ são freqüen~mente informais, dependem de redes de relações, para nao dizer da seduçao individual. Em relação à estrutura do emprego da psiquiatria clássica, por exemplo, fundado sobre a dupla fortemente hierarq~izada médico-e~fe_rmeir~, se desenvolve O que se poderia chamar uma categona de quadr?s_medios (psicólogos, educadores, ortofonistas, massagistas e outros especialistas de uma técnica limitada). De um lado, a presença dessa massa de qualificações sem_ e~pre~os leva à criação de empregos correspondendo às qualificações, _e ~ontn~m assun para desenvolvimento do campo médico-psicológico e medico-social. Mas se os 0 "colarinhos brancos" das profissões paramédicas contribuem poderosame~te para a extensão desse domínio de práticas, eles não controlam sua orgamzação. Sua situação se parece com a do pessoal de uma empresa ~ualquer, ~n_de os parceiros sociais negociam seu estatuto e, numa ~e~ta medida, a pohhca da empresa sob a tutela do Estado. Dissociação aqui amda e~tre_ o ~ape~ de técnico e O de administrador, no oposto não somente da ps1qmatna asilar, onde a função médica se queria função de governo, mas do ~ue constitui ~nda a ideologia do setor, cujo chefe é, ao mesmo tempo, o ammador da eq_mpe terapêutica, 0 organizador responsável pela gestão administrativa do serviço e avalista do caráter de interesse público do trabalho consumado. Cada vez 0 mais, os membros das profissões médico-psicológicas se pensam como técnicos que têm de promover uma política profissional autônom,:i. Defend~m _e ilustram sua técnica como representando o fundamento de uma ~º~?etenc1a neutra, caucionada somente por sua eficácia, que garante a obJet1vtdade de um estatuto na instituição e supõe aqueles que o tem como interlocutores dos administradores e comanditários privados. A estratégia profissional dos profissionais médios do setor sanitário e social tende assim a reforçar o tecnicismo, que é uma característica marcante da evolução do campo.

Centralismo e diferenciação Esta dialética de três pólos·_ Estado, setor privado, profissionais - as~egura uma gestão unificada a partir de uma tomada de posição de diferencia-

122

ção. Ela define um tipo particular de ação social que consiste em cobrir um vasto campo de intervenções, dedicando-se cada vez a alvos específicos: doentes mentais, toxicômanos, deficientes, crianças em dificuldade, mulheres .surradas, mães solteiras, alcoólicos, delinqüentes, etc. Face a essa diversidade, poder-se-ia ter a impressão de estar na presença de um empirismo sem doutrina que responderia golpe por golpe e sempre a posteriori a desafios exteriores. É assim que se duvida às vezes de que a França dispõe de uma verdadeira política de ação social. Parece de fato que, pelo menos há alguns anos, ela teve uma, se entendemos o sentido do termo. Uma política social não existe aí à maneira dos países socialistas, por exemplo, onde é inteiramente definida, impulsionada, financiada e executada pelo Estado. Mas é uma política também organizar a serialização das populações a assistir em função da mul tipli· cidade dos problemas que as assinalam a uma autoridade tutelar. Os beneficiários de socorro não representam nunca grupos concretos que poderiam se organizar por si mesmos e reivindicar um direito. Eles são uns quantos casos sobre os quais urna competência exterior se inclina para verificar a existência real de um déficit. Desse ponto de vista, a divisão do trabalho Estado-setor privado-profissionais é completamente funcional. Mais freqüentemente, é a iniciativa priva· da que detecta concretamente uma dificuldade e improvisa um primeiro dispositivo de assistência, o qual repousa primeiro na boa vontade e nos fundos privados. Por exemplo, um grupo de pais de crianças representando um certo tipo de deficiência cria uma instituição que cuida delas e tem inicialmente um modo de organização muito artesanal. A expertise do técnico competente, que intervém geralmente num segundo estágio de evolução da estrutura, sanciona a objetividade desse recorte empírico. É característico de fato que a pretensão tem a generalidade, às vezes a universalidade dos saberes psicológicos, se acomoda perfeitamente da diversidade das indicações tais quais elas foram primeiro empiricamente constituídas sem nenhuma referência à doutrina Essas referências sábias contribuem assim a fazer do domínio médicopsicológico e assistencial esse universo estilhaçado, onde uma multidão de especialistas de competência diversificada se inclina sobre tantos problemas quantos necessário, no quadro de um recorte, cujo domínio lhe escapa. Por exemplo, há especialistas da toxicomania, ou do alcoolismo, e instituições especiais para alcóolicos e toxicômanos, a partir do momento em que esses problemas são assinalados como problemas sociais. Não somente porque, como se poderia cinicamente pensar, cada um terá de se haver aí, e que há tanto mais competência a mobilizar, e cujos empregos criar, que existem problemas a tratar. Mas, mais profundamente porque, na medida em que essas 123

1

técnicas repousam em última análise sobre a referência a uma competência de tipo psicológico, elas são de repente cúmplices de l.1I11a concepção ato~zante dos problemas de assistência e do tratamento: a razão última de um d1sfuncionamento qualquer só pode estar no indivíduo que carrega seu sintoma, e a compreensão de sua economia pessoal propõe o único fio condutor no domínio estilhaçado da assistência. Defenderíamos de boa vontade o aparente paradoxo em que mais um sistema de assistência e tratamento é afastado, entre diversos serviços burocráticos que recortam os beneficiários em categorias abstratas, mas apela à sua psicologização como a contrapartida necessária de seu funcionamento, a elaboração de uma causalidade interna, intrafísica, 28 fornecendo então o único princípio de totalização possível. Resta agora aos poderes públicos dois papéis principais a assumir. Primeiro, diante de uma constelação de implantações prévias, cuja distinção entre público e privado não fornece o princípio de discriminação mais pertinente, coordenar o conjunto do dispositivo, eliminar progressivamente as redundâncias e encorajar a perseguição de objetivos mais ou menos negligenciados. Vimos que era a isso que tinha-se empregado a reorganização adminis-trativa recente. Ela dispõe para fazê-lo de poderosos meios. Assim, as Comissões Departamentais instituídas no quadro da lei de orientação de 1975 decidem soberanamente sobre as localizações em tal ou tal tipo de instituições. Possuem assim um verdadeiro direito de vida ou de morte sobre certos estabelecimentos, na medida em que podem inflar ou esvaziar sua clientela à vontade. Mas as administrações centrais perseguem igualmente um objetivo mais ambicioso do que a detectação sistemática das anomalias e de planejamento a longo prazo das redes especialistas no qú.adro de uma gestão em massa das populações que se desviam. Aí está uma função especificamente estática, pois só pode ser orquestrada no nível central, com ligações regionais e departamentais. Todos os grandes Estados mOdernos se lançam assim em nome da prevenção em vastos programas de arquivamento das diferenças que mobilizam novas tecnologias.

28

A organização do Cf. CASTEL, miséria numa 21,janeiro de

124

We/fare nos Estados Unidos fornece disso uma ilustração atraente. Robert. "A 'guerra à pobreza' nos Estados Unidos: o estatuto da sociedade de abundância", Atas da pesquisa em Ciências Sociais, 1979.

Da periculosidade ao risco Uma tal centralização da Ação Sanitária e Social acarreta uma dupla transformação em relação às ambições que a medicina mental alimentou historicamente. Uma limitação de seus objetivos, primeiro. Até o período completamente contemporâneo, tivemos a ver, sociológica e politicamente, com um modelo de prática psiquiátrica construída e aperfeiçoada através de um século e meio de história e ao qual mais ou menos todo mundo se referiu, seja para exaltá-lo, seja para contestá-lo. É aquele do qual precedentemente destacamos a lógica: encarregar-se de maneira específica e global das perturbações psíquicas a se consumar, de preferência no quadro de um serviço público. Se essa concepção da política psiquiátrica não está abolida, ela cessa, vimos, de ser a matriz a partir da qual se desdobra o conjunto das inovações atuais. Mas, correlativamente a essa limitação do mandato assumido pela medicina mental, assistimos à sua redefinição no quadro de novas estratégias de gestão das populações. A profundidade dessa mudança foi até aqui mal destacada, porque a medicina mental continua paralelamente a assumir, sob formas renovadas, suas funções terapêuticas clássicas, cuja defesa ou crítica polarizam a atenção. Mas é preciso compreender que as iniciativas que foram tomadas recentemente sob o estandarte da prevenção correspondem a uma verdadeira mutação da política administrativa que engaja uma parte da prática médico-psicológica em vias completamente novas em relação a seus papéis tradicionais, tanto terapêuticos como disciplinares. As novas estratégias médico-psicológicas e sociais se pretendem sobretudo preventivas, e a prevenção moderna se quer, antes de tudo, rastreadora dos riscos. Um risco não resulta da presença de um perigo preciso, trazido por uma pessoa ou um grupo de indivíduos, mas da colocação em relação de dados gerais impessoais ou fatores ( de riscos) que tornam mais ou menos provável o aparecimento de comportamentos indesejáveis. Pode haver aí associações de riscos, quer dizer, correlações de fatores independentes: ter nascido, por exemplo, de mãe solteira que é também empregada doméstica ( ou sem profissão, estrangeira, estudante, assalariada agrícola ... ), menor de dezessete anos ( ou mais de quarenta), tendo tido um número de gravidezes superior às taxas médias segundo a idade, etc. A presença de tais fatores basta para desencadear um assinalamento automático, em virtude do axioma de que uma "mãe de riscos" engendra, ou cria, filhos de riscos. Assim, prevenir é primeiro vigiar, quer dizer, se colocar em posição de antecipar a emergência de acontecimentos indesejáveis ( doenças, anomalias, 125

comportamentos de desvio, atos de delinqüência, etc.) no seio de po~~l~çõ~s estatísticas, assinaladas como portadoras de riscos. Mas o modo de v1gll~c1a promovido por essas políticas preventivas é totalmen~e novo em relaç~o ao das técnicas disciplinares tradicionais que foram parttcularmente anahsadas nestes últimos anos, e que Michel Foucau~t sintetizou a partir do modelo do Panopticon. 29 Segundo o modelo panóptico, a vigilância supõe uma co-presença dos controladores e dos controlados num espaço homogêneo que o olhar varre. Esta coexistência é ainda mais evidente em todas as intervenções corretivas, punitivas ou terapêuticas, pelas quais um agente intervém diretamente num paciente para reerguê-lo, corrigi-lo ou tratá-lo. Se a palavra repressão tem um sentido preciso, supõe um afrontamento de certa maneira físico entre duas pessoas. 30 E que o ato terapêutico tenha ou não um caráter repressivo, entra certamente nesse regime geral de inter-relação concreta. As novas políticas preventivas economizam essa relação de imediatismo, porque do que elas tratam, num prim?iro tempo, pelo menos, não são indivíduos, mas fatores, correlações estatísticas. Elas desconstroem também o sujeito concreto da intervenção para recompô-lo, a partir de uma configuração de elementos heterogêneos. Assim, pode-se menos falar de uma vigilância que, mesmo a distância, suscita sempre alvos precisos e materiais, do que de construção de uma combinatória sistemática de todos os grupamentos possíveis, suscetíveis de produzir risco. Trata-se menos de afrontar uma situação já perigosa do que de antecipar todas as figuras possíveis da irrupção do perigo. E, o que marca assim em oco o lugar do perigo é uma distância avaliável em relação às normas médias.

te que falar de imputações de periculosidade, e o diagnóstico que a estabelece é o resultado de um cálculo de probabilidade intuitivo dissimulado sob um julgamento substancialista. "Ele é perigoso" significa de fato: "As chances são - mais ou menos - fortes de que exista uma correlação entre tais sintomas atuais e tal ato futuro." Em termos de lógica, o diagnóstico de periculosidade abate a categoria do possível sobre a do real, sob pretexto de que o possível é - mais ou menos - provável. A impotência da psiquiatria, mesmo a mais positivista, a objetivar completamente a periculosidade foi uma cruz particularmente pesada de carregar, pois designa no coração de seu funcionamento um coeficiente incompreensível de arbitrar. Toda "conduta a ter" diante de uma pessoa suposta perigosa (mesmo se a eve~tualidade que se teme é uma recidiva) pode ser suspeita de ser ou bem. demasiado lassa, ou demasiado repressiva. Sem dúvida é porque os psiquiatras escolheram durante muito tempo esta forma paradoxal de prudência, que é o intervencionismo. Mais vale de fato fazer demais que não o bastante, pois, se erro pode haver em neutralizar um indivíduo potencialmente perigoso, a prova não seria jamais feita, é sempre permitido pensar que ele poderia ter passado à ação se não tivesse sido impedido. Ao contrário, se não intervimos e a passagem à ação se verifica, o erro de diagnóstico torna-se manifesto e o psiquiatra é seu responsável. Como escapar ao risco de arbitrariedade que comportam tais operaçôt::s? As nosografias psiquiátricas clássicas já são o esboço de uma perfilação dos indivíduos que implica uma imputação sobre sua conduta futura. Dizer de alguém que é monômano, ou perverso instintivo, ou psicopata, etc., é imputarlhe uma probabilidade de passar à ação e fundar um certo tipo de conduta preventiva a seu respeito, já que então pode-se sentir justificado por não esperar a pós-ação para intervir. No entanto, tais diagnósticos só podem fundar condutas preventivas elas mesmas muito frustradas. A psiquiatria clássica pode dispor principalmente de duas entre elas: o encarceramento e a esterilização. Mas o custo ecÓnômico, social e simbólico de tais intervenções é tão elevado, e o valor dos argumentos teóricos que se supõem fundá-los tão frágil, que suas possibilidades de aplicação, em todo caso em larga escala, tornaramse gravemente afetadas. 31

Apreciaremos a importância de um tal deslocamento comparando as estratégias, a partir de então possíveis, com as instaladas anteriormente. Para a psiquiatria clássica, o risco se apresentava essencialmente sob a forma de uma percepção do doente mental como suscetível de uma passagem ao ato imprevisível e violento. A "periculosidade" é esta noção misteriosa, qualidade imanente a uma pessoa, mas cuja existência permanece aleatória, já que a prova objetiva só é dada logo depois de sua realização. Assim, só há propriamen29

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Gallimard, 1975.

30

No caso do modelo panóptico o vigiado, que não sabe quando é olhado, pode interiorizar a vigilância, em vez de ser reduzido a se afrontar com ela, num~ relaçã~ d~ força. Mas o olhar implica sempre o contato, a co-presença dos parceiros e a md1visão da pessoa observada.

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A população simultaneamente trancada pelos problemas mentais, logo atingiu o teto na França de 100.000 pessoas, mais ou menos. Número que se pode julgar fraco, teve relação com a ampla gama de "riscos" a prevenir. De fato, não fosse que, por razões econômicas, esta fonna de intervenção encontra seus limites rapidamente. A esterilização era suscetível de aplicações mais amplas por causa de seu fraco cus127

trabalhos de Lindeman e de Caplan 35 e parcialmente aplicada através do programa das Community Mental Health Centers. 36 De um lado a ambição, que se exprime sob uma forma nova de evitar os riscos inerentes a certos modos de vida, em particular aqueles das populações desfavorecidas dos guetos. Mas, de outro, uma simples reiteração da propensão médica tradicional a confiar ao psiquiatra essas tarefas, fosse mudando seu papel, dele fazendo um consultor acreditado junto dos decididores políticos: "O especialista da saúde mental oferece seus serviços aos legisladores e aos administradores, e colabora com os outros cidadãos para incitar os serviços governamentais a mudar as leis e os regulamentos. A ação social compreende os esforços para modificar as atitudes gerais e o comportamento da comunidade pela comunicação, através do sistema escolar e da mass-media e através da interação dos profissionais e dos comitês de usuários. " 37 Mas o que é que qualifica o psiquiatra a desempenhar o papel de conselheiro do príncipe ou de mediador do povo? O que há em sua teoria ou em sua prática que o autoriza especialmente a intervir sobre fatores tais como a miséria, os alojamentos insalubres, a subeducação, a violência urbana, etc.?

Os limites de uma tal perspectiva, que têm a ver com o fazermos da periculosidade uma qualidade imanente da pessoa, apareceram muito cedo. Quando, antes de 1860, Morei propõe um ponto de vista "hlgiênico e profilático", a partir da levada em conta da freqüência das doenças mentais e outras anomalias nas camadas mais desfavorecidas, e que ele relaciona com as condições de vida do subproletariado, já-está num outro registro de intervenção possível. Já raciocina em tennos de riscos objetivos, sugerindo ao prefeito proceder uma vigilância especial das populações com problemas, "penetrando no interior das famílias", a fim de "prevenir uma grande enfermidade". 32 Mas Morei logo recodifica essa descoberta no quadro do que ele mesmo chama de uma "psiquiatria de extensão". Ele só imagina como solução uma desmultiplicação dos poderes d0 psiquiatra, e vai até falar de "tratamento moral generalizado" para designar as práticas que se devem defrontar com esses problemas, como se bastasse para resolvê-los estender ou suavizar um modo de tratamento que se impôs para o indivíduo. 33 Morei teve a intuição do que poderia ser uma política preventiva moderna, mas não dispôs de tecnologia específica para realizá-la. Foi condenado a desviar-se na prática terapêutica de seu tempo, da qual se contenta em pensar a extensão, quer dizer, o simples alargamento quantitativo. Uma tal política só pode encontrar muito depressa seus limites, pois, por exemplo, como "generalizar" ao infinito um tratamento moral em cuja estrutura pennanece o cara-acara do terapeuta e do cliente? 34 A mesma ambigüidade caracteriza um século mais tarde a tradição americana da preventive psychiatry, portanto elaborada com cuidado depois dos

to econômico. Apresentava igualmente a vantagem de prevenir a longo prazo; enquanto que a internação é freqüentemente condenada por intervir após a ação. Mas além dos escrúpulos morais que é suscetível de provocar, percebeu-se bem depressa da inconseqüência do fundamento científico das políticas eugênicas, que as versões selvagens do tipo nazista acabaram por desconsiderar.

O objetivismo tecnológico

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Tais ambigüidades entretiveram especulações confusas sobre a "psicocracia" ou o "imperialismo psiquiátrico". Temores de um intervencionismo generalizado que podem ser legítimos, mas sem dúvida que é errôneo supor fantasmas sobre o personagem do psiquiatra. Se uma imagem da tirania ameaça, não é sob a figura do psiquiatra-rei de uma nova República platônica, o "estado terapêutico" que alguns ideólogos denunciaram. 38 Empresta-se assim à psiquiatria e aos psiquiatras um poder sem relação com o que eles representam realmente na sociedade. Postula-se igualmente uma correspondência, bem duvidosa, entre as competências médicas ou médico-psicológicas e as competências administrativo-políticas. É, sem dúvida, a razão pela qual os ambiciosos programas de uma "psiquiatria de extensão" deram nascimento a poucas

32 MOREL, B. Le no-restreint. Paris, 1857. p. 103. 35

33

Idem, p. 78.

34

De fato, o tratamento moral comporta uma dupla forma, indiVidual e coletiva, e é esta última que foi a mais freqüentemente aplicada, através do tratamento de massa dos pacientes nos grandes hospícios (cf., por exemplo, FALRET, Jean-Pierre. "Do tratamento geral dos alienados". Das doenças mentais e dos hospfcios de alienados. J .B. Bailliere e filhos, 1864, p. 682-3, onde esta distinção é perfeitamente explicitada). Mas, mesmo no caso do tratamento em massa, a intervenção é limitada pela necessidade de ter a população tratada sob o olhar.

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36 37 38

LINDEMAN, Ercih. Symptomatology and Management of Acute Grief, American Journal of Psychiatry, 101, 1944; CAPLAN, Gerald. Principies of Preventive Psychiatry, New York, 1964. Cf. CASTEL, F.; CASTEL, R. & LOVELL, A. "A sociedade psiquiátrica avançada". Op. cit. cap. V; "As ilusões da comunidade". Cf. CAPLAN, Gerald. "Princípios de psiquiatria preventiva". Op. cit. p. 59. Cf. KITTRIE, Nicholas. The right to be different. Baltimore, 1971.

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realizações convincentes. Em seus projetos expansionistas, o psiquiatra é mantido na coleira pela necessidade de intervir es qua/ité. "* Pode tentar suavizar seu papel; não pode desmultiplicá-lo ao infinito. Essas dificuldades são levantadas, se dissociamos francamente o papel técnico do papel político, o prático do administrativo. Separam-se então (quer dizer que se devolve a cada wná sua liberdade) as tecnologias de intervenção e as tecnologias de prevenção. É o que podem promover as formas novas de gestão administrativa, em particular as que repousam sobre o tratamento informático dos dados. A informática está, sem dúvida, dando à administração, nos setores da ação sanitária e social, sua tecnologia autônoma, enquanto antes ela ficava reduzida a reinterpretar-desviar inovações realizadas primeiro pelos práticos. Assim, o dispositivo administrativo de gestão da loucura do século XIX, sancionado pela lei de 1838, oficializava o novo tipo de práticas sócio-médicas, inauguradas pelos alienistas; o corte administrativo da política de setorização demarcava e generalizava um corte que os psiquiatras reformadores a partir do fim da Segunda Guerra Mundial começaram a operar de maneira tateante. Tais reinterpretações das práticas médicas em função de finalidades administrativo-políticas são regularmente denunciadas pelos profissionais como tanto de recuperações, às vezes traições. Mas esta proximidade ambígüa entre prática de tratamento e prática administrativa faz obstáculo ao desdobramento das finalidades administrativas por si mesmas. É a partir do momento em que elas se dotam de tecnologias próprias que as exigências gestionárias podem se tornar completamente autônomas em relação ao ponto de vista dos práticos. No entanto, esta autonomia tem um efeito de volta decisiva ao estatuto das próprias práticas médico-psicológicas. O tratamento informático dissolve a pessoa para só reter_ dados abstratos interpretados como fatores numa série. Por exemplo, o alcqú1ismo tal qual é encarado no quadro das políticas preventivas é o grupamento de Um certo número de itens, que eventualmente tal ou tal pessoa concreta satura, e nada o alcóolico com sua história própria, seus problemas particulares, as significações simbólicas ou outras de suas condutas. As estratégias preventivas podem assim se desdobrar, economizando o face-aface no qual a prática terapêutica encontrava sua origem. O que diz respeito à intervenção, antes de ser uma pessoa é um alvo abstrato: uma população de riscos. A aproximação médica é aqui tomada ao contrário. A colaboração das profissões médico-psicológicas às novas políticas preventivas passa pela des*Exercendo essa função. (N. da T.)

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truição de seu objeto. No que ela colabora com uma política de gestão preventiva, a participação do prático se reduz a uma simples avaliação abstrata: assinala os fatores de risco. Em suma, procede como um agente administrativo que constitui um banco de dados. Sem dúvida, a máquina, assim, em parte alimentada a golpes de diagnósticos, pode de volta reesquentar uma prática de tratamento. As populações suspeitas detectadas no plano estatístico farão o objeto de uma vigilância especial e de investigações particulares que permitirão assinalar as pessoas concretas a tratar. Estes serão então objeto de uma responsabilização, que poderá ser, quem sabe, personalizada. Por que não, de fato, oferecer por exemplo uma psicanálise a pessoas detectadas pelo recorte de um certo número de fatores dé riscos, e examinadas por essa razão por um especialista competente que formularia a indicação adequada? No entanto, mesmo se pudéssemos falar assim sem ironia, subsistiriam dois elementos novos em relação à situação terapêutica clássica. De um lado, não pode haver aí reequilíbrio de expertise pelo tratamento, porque, nesta nova estrutura, a expertise precede o tratamento e o supera. No processo de constituição dos dados que fazem o perfil do risco, .a avaliação médico-psicológica não passa de uma das fontes nas quais se alimenta a investigação. Ela se encontra banalizada no meio de um complexo de atividades de exame, de percepção, de procura da informação sob todas as suas formas, pelas quais são estocadas as informações mais heterogêneas de ordem econômica, social, médica, psicológica. 39 O eventual retorno a uma prática terapêutica, a partir da massa heteróclita dos dados· alojados, só pod~ recobrir um setor muito limitado do conjunto das indicações de intervenção. Em seguida, e sem dúvida fatalmente, um tal banco de dados em crescimento perpétuo não está sob o controle dos operadores-práticos. Nesse dispositivo, a relação que ligava o diagnóstico e o tratamento, o saber sobre uma pessoa e a possibilidade de intervir nela, essa relação está quebrada. O papel do terapeuta e dos outros operadores de terreno se acha assim subordinado. É o que gere que possui todas as cartas, é ele só que pode dominar o conjunto do jogo e impor sua estratégia. É quem decide de verdade. É mais grave do que depender de boas intenções de um terapeuta? A diferença é mais uma questão de escala. Seja o que pudéssemos pensar do valor positivo ou negativo das intervenções inspiradas pela filantropia psiquiá~ 39

Para se ter uma-idéia de heterogeneidade e da diversificação dos itens escolhidos para as fichas só do sistema G.A.M.I.N., cf. Ministério da Saúde, Divisão, Organização e Métodos Informáticos, Manual de apresentação do sistema G.A.Ml.N. 1976.

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trica, ou pela filantropia em geral, elas se exerciam no registro limitado de um cara-a-cara. Mesmo quando as pessoas eram tratadas em massa, continuavam no espaço da presença e do olhar, pelos quais permaneciam individualizadas. Todas as grandes tecnologias disciplinares clássicas empregadas nos conventos hospitais, prisões, casernas, fábricas, supunham, aí compreendidas sob sua~ for~as ~ais coletivistas e mais reprêssivaS, esse mínimo de individualização que implica a presença física dos interessados. _ A p~r~ir daí, a presença real do suspeito, o contato direto com as populaçoes a v1g1ar, não são mais requisitados. O espaço generalizado dos fatores de~ riscos está no espaço concreto da periculosidade ou da doença como 08 geometras não euclidianos estão para a geometria euclidiana. É uma mutação da qual estamos longe de ter medido todas as conseqüências. Mas podemos pelo menos perceber o que constitui a condição de possibilidade do desdobramento dessas novas políticas preventivas: o desaparecimento da própria noção da pessoa. O retorno do objetivismo médico reduzia esta àquelas de suas con~~ões que são cientificamente instrumentalizáveis. A instauração de um objetivismo tecnológico o dissolve numa combinação abstrata de elementos intercambiáveis.

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Capítulo 4

A nova cultura psicológica Uma terceira grande linha de transformação contemporânea dos dispositivos médico-psicológicos conduz à promoção do psicológico por si mesmo. Com a mutação tecnológica que se acaba de desenhar, estamos já bem além do psiquiátrico, quer dizer, do recorte do normal e do patológico e da problemática do tratamento. Com o recobramento da cultura social por uma cultura· psicológica desenvolvida por si própria, entramos na era da pós-psicanálise. A pós-psicanálise não é o fim da psicanálise, mas o fim do controle pela psicanálise do processo de difusão da cultura psicológica na sociedade. Não que só a psicanálise esteja em causa nesta evolução. Mas podemos tomar a dinâmica de sua banalização na sociedade contemporânea como um fio condutor para seguir uma mudança decisiva do estatuto das técnicas médico-psicológicas, que não se esgotam mais notando disfuncionamentos patológicos ou institucionais, nem mesmo prevenindo riscos de doença, mas se põem a trabalhar o estado do homem normal e o tecido da sociabilidade comum. O destino da psicanálise na França introduz a compreensão de um estado do mundo e de um vivido do mundo, cuja total espessura se deve ao que é psicologicamente interpretável e psicologicamente transformável. Tal poderia ser a definição prévia da nova cultura psicológica. Ela sugere que é além de toda referência ao patológico, além também da instalação de tal ou tal dispositivo especial, que convém procurar a última posteridade do complexo médico-psicológico: em uma postura cultural que tende a fazer da instalação na psicologia a consumação da vocação da pessoa social.

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1. A DESESTABILIZAÇÃO DA PSICANÁLISE

A p_sic:nálise realizou do lado da psiquiatria uma primeira perfuração, que constitma um alargamento em relação às condições técnicas de prática tal qual Freud tinha elaborado (capítulo_ 2). Perfuração que permanece paradoxal. De, um lado, saindo totalmente do quadro da relação dual e da exploração pr_10~1tana do domínio da neurose, a psicanálise acentuava por essa via sua inscnçao no campo patológico: os psicóticos são freqüentemente mlis .;:;tigmatiza~os do ~u~ os neuróticos, e as condições de uma prática em instituição são ~ais e~pec1~s- do que em clientela particular. Mas, inversamente, a aproximaçao ps1canal1tica desse setor patológico puxava a prática terapêutica do lado de uma tecnologia relacional, dentro da qual seu caráter propriamente médico se esfumava, e o final se abolia.

Uma cultura psicanalítica de massa

Mas, paralelamente a essa conquista-alargamento de um mercado tradicionalmente dominado pela psiquiatria, desenhava-se um certo número de outras li~has de expansão que iam integrar a psicanálise à cultura em geral. F~1 primeiro, próximo ainda dos problemas da clínica, sua integração à formaçao de certas especialidades psicológicas. À diferença do que se passou nos .E~tados Unidos, por exemplo, onde permaneceu um quase monopólio p,r~fiss10n~ dos médicos, a integração da psicanálise em certos cursos psicolog1cos foi na França um elemento importante de sua difusão. Muito antes da abertura de departamentos próprios de psicanálise em Vincennes ou Censier psica~ali~t~s logo implantados na Universidade ( orientação Daniel Lagache: depo1.s D~d1:r ~~:ieu) tin~am-na adaptado ao quadro do ensino de uma "psicologia dmam1ca e relac10nal capaz de funcionar em sincretismo com outras orientações psicológicas. Ela fazia assim uma entrada discreta mas eficaz ao nível de certas formações profissionais. Em particular, a psica~álise torno~-se u~ ~lemento essencial na estratégia profissional de numerosos profissionais medias de profissões de saúde. Ela deu caução teórica e de desenv.olturas técnicas a alguns setores dessa nebulosa do psicológico, do qual a fonte tradicional da legitimidade continuava exterior. 1 . Assim ~m.psi~ologia clínica onde, graças à psicanálise, o psicólogo pode, diante da ps1qmatna, conquistar uma posição quase de concorrência, em vez de ser limitado a papéis subalternos de estatuto incerto, como o de fazer 1

Cf. ANZIEU, Didier. A psicanálise a serviço da psicologia. Nova Revista de Psicanálise

20, outono de 1979.

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testes. 2 Assim, a fecundação pela psicanálise de certas orientações médicas ditas psicossomáticas,3 ou de certas profissões da formação, da animação e do trabalho social, onde uma linhagem analítica se ramificou muito cedo, embora de maneira discreta, na corrente psicossociológica dominante da dinâmica de grupo. 4 Assim, e sobretudo na psicologia da criança, onde as orientações analíticas equilibram hoje quase uma tradição psicopedagógica mais antiga. s Esta integração da psicanálise à formação de numerosas profissões da relação já impõe uma certa banalização de seu conteúdo. Subsistem certas querelas de escolas, que continuam a levantar problemas nos termos da ortodoxia e da fidelidade à doutrina freudiana. Assim, a psicologia da criança é hoje despedaçada entre uma tendência pedagógica, mais freqüentemente carregada pelo pessoal saído da Educação Nacional, e uma tendência lacaniana majoritária em numerosos centros médico-psicopedagógicos (C.M.P.P.). Mas observam-se também todas as variantes intermediárias entre a preocupação principal de reinserir a criança no sistema escolar e a de acompanhar sua própria dinâmica pessoal. Além desses conflitos que se apóiam em referências tão amplas, que vão de Piaget a Freud, estabeleceu-se um consenso para fazer da criança em relação ao homem, e da criança em cada homem, a chave de seu destino pessoal e o princípio explicativo essencial de sua história. Esse postulado fundador do pensamento psicológico dominante, em psicologia clínica como na pedagogia e até na criminologia, a saber, que as relações atadas na inlancia, sobretudo se não foram satisfatórias, determinam o destino do indivíduo, difundiu-se bem além dos meios profissionais especializados. É o indutor de uma atenção inquieta e generalizada às turbulências psicológicas que, das escolas de pais às petições do advogado, passando pelas diferentes formas 2

É uma das razões do sucesso da ex-Escola Freudiana de Paris (lacaniana) ter-se ampla·

mente aberto aos não médicos e outros analistas que "só se autorizavam por si mesmos". Isto pelo menos para o grosso das tropas, pois, para o acesso às funções de responsabilidade, a Escola Freudiana apresenta quase a mesma quota médicos/ não-médicos que as outras sociedades (cf. STORA, Ben,iamin. As sociedades de psicanálise à prova do tempo. Poderes, 11, 1979). 3

Cf. NASCHT, Sacha. Introdução à medicina psicossomática,.Evolução Psiquiátrica, 1948, 1.

4

É o caso das pesquisas psicanalíticas de grupo constituídas em volta de Didier Anzieu,

de Anne Schutzenberger e de grupos de "sócio-análise". 5

CASTEL, Robert & LE CERF, Jean-François. "O fenômeno 'psi' e a sociedade fran· cesa". Debate, op. cit:- .

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de conselho familiar, propaga a nostalgia de uma harmonia relacional, que Freud por primeiro julgava impossível. Esta contradição da boa vontade educativa entre a injunção de ter melhor a fazer e a certeza de fracassar no bem fazer, já que o universo das relações é incontrolável em todo rigor, está no princípio de um consumo infinito de psicologia: pedido de ajuda psicológica e apelo a uma competência psicológica para instrumentalizar o projeto, que pode rondar toda uma vida, dominar sua própria economia relacional e a de seus próximos. Qual é a responsabilidade da psicanálise no desenv01vimento de um tal processo? É impossível responder com algum rigor a essa pergunta, e talvez seja pouco sensato fazê-lo. A referência ao corpo e à técnica psicanalítica tem incontestavelmente sido essencial para induzir e exprimir esse apetite de psicologia. Mas por sua vez, o interesse pela psicanálise propagou-se pelo interesse pelo psicológico em geral. Salvo talvez para os técnicos, a exigência de um rigor no método ou de uma pureza doutrinária estão completamente desconectadas dessa superdeterminação do relacional que instalou-se através da problematização psicológica da educação e da vivência familiar em um fato social dominante. A vulgata psicanalítica tornou-se a principal linguagem de base da codificação psicológica da existência. Mas, por esta razão, sua especificidade perdeu-se. A mesma banalização se observa na constituição do que se poderia chamar uma intelligentsia psicanalítica de massa. Entendemos por isso a transmutação de uma teoria difícil e exigente em comum denominador de todo um meio cultural. Atribui-se em geral a Jacques Lacan o mérito principal do sucesso encontrado pela psicanálise nos meios intelectuais, e ao período pós-68 o momento em que esse sucesso se afirma. 6 Tais avaliações devem no entanto ser nuançadas. Cronologicamente primeiro. Lacan transfere seu seminário na Escola N armai Superior desde 1964, o que significa que seu reconhecimento por certos círculos da intelligentsia é bem anterior a essa data. É também antes de 1968 que se faz a aliança Lacan-Althusser, 7 que desempenhará um papel decisivo na conquista dos meios culturais de esquerda. E é igualmente no decorrer dos anos sessenta que as discussões sobre o estruturalismo (LéviStrauss, Foucault, Althusser, Lacan) tomam-se a vulgata dos mesmos meios. 6 7

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Mas, sobretudo, se é verdade que Lacan e o lacanismo desempenharam o papel de locomotivas do movimento, a audiência intelectual da psicanálise foi imediatamente muito mais ampla. Os Escritos de Lacan foram, é certo, 110.000 exemplares vendidos. Mas a Introdução à psicanálise de Freud teve uma tiragem de 650.000 exemplares, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade 400.000, A psicanálise de Daniel Lagache, 200.000. É bem a psicanálise em geral que tornou-se um ingrediente cultural de massa, e a sacudidela de 1968 só ampliou um movimento amplamente engajado nos anos sessenta. 8 Se 68 lhe trouxe um novo público, foi na base de aspirações ideológico-políticas estranhas a sua pertinência clínica, ou mesmo a seu rigor teórico. Uma observadora americana notava que a audiência encontrada pela psicanálise na França era agora superior à que tinha sido em seus melhores momentos nos Estados Unidos, o que não é dizer pouco. 9 Mas um reconhecimento social de tal amplitude não pode se dar sem uma transformação profunda da natureza do objeto. A crise da ortodoxia A análise das razões que constituíram a psicanálise em ideologia dominante na intelligentsia e nos amplos setores da sociedade francesa está por ser feita. 10 Mas é certo, em todo o caso, que esse sucesso não pode ser explicado somente pela implantação das práticas que podem reivindicar uma estrita aplicação do método freudiano. Hoje ainda, mal se conta na França um milhar de psicanalistas devidamente habilitados por uma das quatro Escolas que disputam o mercado da formação. 11 Mesmo multiplicando esse número por dois ou três, para integrar todos os analistas praticando em condições vizinhas da situação dual definida por Freud ( ou em situações que podem entrar no quadro de uma ortodoxia ampliada, como certas técnicas analíticas de grupo, certas inscrições institucionais do tipo da psicoterapia institucional analítica, etc.), 8 Desde 1961, um estudo de Serge Moscovici sobre a imagem da psicanálise no público francês dava conta de uma boa implantação "popular": imprecisa no conhecimento da doutrina, mas ampla pelo interesse que suscitava. Cf. MOSCOVICI, Serge. A psicanálise, sua imagem, seu público. P .U.F ., 1961. 9 TURKLE, Sherry. Op. cit.

Cf. TURKLE, Sherry. Psychoanalitic politics, Freud's french revo/ution. New York, 1978.

10 Além da interpretação que disso tentei em seguida e que permanece parcialmente impressionista (O Psicanalismo, 1973), a de Sherry Turkle, apesar de seus méritos, embeleza demais 1968 e superestima o papel do lacanismo.

Cf. ALTHUSSER, Louis. Freud et Lacan. A Nova Critica, 161-162, dez.-jan. 1964-65.

11 Cf. STORA, Benjamin, "As sociedades de psicanálise à prova do tempo". Op. cit.

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eles só se encarregam diretamente de algumas dezenas de milhares de pessoas. Número sem nenhuma medida comum como aquele de todos os que, a qualquer título, têm a ver com a psicanálise. De fato, a psicanálise hoje na França, o que é? Um número relativamente limitado de práticas terapêuticas ou paraterapêuticas no quadro estrito da relação dual; mas também a referência privilegiada da maioria das orientações psicoterapêuticas, que, portanto, tomam grandes liberdades, com a tecnologia freudiana; é ainda um meio de afrontar certas dificuldades institucionais no hospital ou na escola, por exemplo, ou bem um complemento de formação que se integra em certas estratégias profissionais; é também um produto cultural que se consome, moda que se partilha, hábito de uma intelligentsia culta à qual sonhamos pertencer; tanto a ciência dos experts, tanto o idioma de quase todo mundo, para exprimir as dificuldades de relacionamento, os fracassos escolares ou os conflitos conjugais; é o que alguns escolhem no quadro de um contrato livremente passado com o terapeuta que elegeram, mas também o que muitos sofrem por ocasião da passagem por uma instituição de tratamento ou de dificuldades encontradas por uma criança: primeiro contato freqüente com a psicanálise para os meios modestos, em virtude do poder discricionário que têm as profissões que tratam de impor suas tecnologias preferidas a seus clientes menos municiados. A "crise" da psicanálise, cujos sinais começam a se multiplicar, deve-se a que esse desequilíbrio entre uma base estreita de práticas ortodoxas e das produções que o são cada vez menos, atingiu seu ponto de ruptura. Não se observa, de fato, recuo da implantação social da psicanálise. 12 Também não há crise no nível da produção teórica, mais rica do que nunca, nem daquele do interesse que provoca. Mas torna-se patente que as instâncias de legitimação do meio psicanalítico não podem mais controlar o conjunto desse processo de divulgação. Um tal controle, de fato, é exercido pelas estruturas fracamente institucionalizadas que são' as Sociedades de Psicanálise. Estas, melhor ou pior, assu12

Esquematicamente, pode-se destacar um duplo movimento, que só é contraditório na aparência. De um lado, o começo de um certo descrédito na intellig~ntsia sofisticada (assim o sucesso recente dos panfletos antianalíticos como L 'effet'yau de poêle de François Georges) e no.~ setores profissionais mais inovadores (por exemplo, uma proporção importante de psiquiatras em formação da região parisiense economiza a partir de então a obrigação, quase incontornável há alguns anos, de fazer uma psicanálise "didática"). Inversamente, a implantação prossegue no interior e nos setores que tinham resistido a sua atração. Por exemplo, numa cidade como Avignon, o número de psicanafütas passou de um a 15 em alguns anos.

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miram sua tarefa, através de condenações, cisões, exclusões, dissoluções, refundações, enquanto se trata principalmente de salvaguardar a pureza de uma técnica e as condições de sua reprodução: a fidelidade ao corpo freudiano e a formação dos analistas. Mas esta problemática conservatória da ortodoxia sempre foi incapaz de se encarregar da relação da psicanálise com sua própria história e com a história em geral. Ela nunca pode apreender que sobre o registro da condenação ética ("recuperação", "traição") a imensa maioria das práticas sociais que dependem da psicanálise, nesse sentido, pelo menos, que esta é a primeira condição de sua existência e a última garantia de sua legitimidade. Mas esses anátemas não impedem que o fosso se aprofunde entre a representação que a profissão tem e a que se dá de si mesma e o que,ela é e faz realmente. Vive a partir de então segundo um princípio de irrealidade, oscilando entre a má fé e a negação de seu papel efetivo. O psicanalista continua a se embandeirar com os prestígios da extraterritorialidade social, quando não é o heroísmo de uma posição solitária à ordem estabelecida, enquanto é o representante de uma profissão respeitável e respeitada. Que um dos membros mais reconhecidos do establishment pense ainda o psicanalista como "essencialmente bastardo, a-social, clandestino" 13 pronto hoje a sorrir. Esta maneira de retomar os velhos prestígios da eleição e do profetismo não tem agora nenhum contato com a realidade. Os episódios tragicômicos que recentemente acompanharam a dissolução da Escola Freudiana por Jacques Lacan mostraram que tal modo de organização profissional do tipo da seita, baseando-se no carisma do Chefe e submissão à Obra, era incapaz de gerar os múltiplos interesses que hoje a psicanálise recobre, e da qual a maioria só tem longínqüos relacionamentos com a mística da Causa: Encarniçando-se a interpretar a totalidade de suas funções no quadro exclusivo da ortodoxia, é o próprio sentido de seu papel social que os psicanalistas deixam escapar. Constatando o papel desempenhado pela psicanálise na reforma dos hospitais psiquiátricos, a resolução de certas dificuldades próprias ao sistema escolar, a divulgação de conselhos educativos ou psicossexuais, quem sabe na publicidade ou na empresa, nunca ninguém esperou ver nisso a pura situação poltrona-divã. Mas constatar o caráter herético desses usos não tira nada a seu impacto. Do ponto de vista social, a psicanálise como tal deve a partir de então ser assimilada à totalidade de sua herança, quer dizer, ao conjunto de seus efeitos na cultura, que não se deve somente conceber como os reflexos insos13

MAJOR, René. Une théorie porteuse de révolution. Le Nouvel Observateur, n
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If 1

sos ou deformados de uma verdade originária: esta difusão social cria de fato positividades novas. Ela transformou profundamente a cultura moderna contribuindo para fazê-la desembocar sobre uma Westanchauung psicológica a um ·só tempo mais universal e mais banal. Tomar ciência dessa transformação da psicanálise, já é se situar na apóspsicanálise. Restam, é certo, núcleos de ortOdoxia psicanalítica, e é verossímil que o movimento geral da leiguice da psicanálise na cultura psicológica acarretará, em contragolpe, uma crispação dos puristas nesses bastiões. Mas a partir de agora se impõe a necessidade de encarar a psicanálise também como um fenômeno cultural de massa.

Herdeiros e bastardos Se a metáfora sociologicamente aberrante da "recuperação" da psicanálise pode fazer uma longa carreira é porque a maioria dos profissionais a isso se prestaram, aceitando referir sua prática aos cânones da pureza original. Desse ponto de vista, os processos internos do meio psicanalítico se parecem exatamente com os processos estalinianos, acusando-o, aceitando ser julgado em função de sua submissão à Causa combinada, se ele sente-se forte bastante para fundar uma posição ainda mais ortodoxa do que a que o exclui ou ameaça excluí-lo. Mas esta lógica está hoje quebrada pela aparição de novas técnicas psicológicas, aos olhos das quais a questão da recuperação não se coloca mais, simplesmente porque seus promotores não sentem nenhum interesse pelo que bem poderia ser a ortodoxia na matéria. Há, a partir daí, de fato, como que duas séries de círculos de difusão da cultura psicanalítica. Uma continua a se propagar a partir do epicentro do divã, repercutindo os efeitos da descoberta freudiana sob formas cada vez mais afastadas e atenuadas. É, por exemplo, a que vai de uma cura clássica a uma emissão radiofônica de Françoise Dolto, passando por diversas formas de inscrição da prática nas instituições mais diferentes. É uma pirâmide invertida que continua a repousar sobre a ponta frágil da relação dual. Mas um segundo epicentro está se constituindo em volta de novas técnicas psicológicas que, a um só tempo, derivam da psicanálise e se tornaram completamente autônomas em relação a ela. Elas são pós-psicanalíticas ao triplo sentido em que supõem a psicanálise, que a sucedem ( coexistindo com ela) e que retém uma parte de sua mensagem. Mas elas franquearam a si mesmas a problemática da ortodoXia, criticando-a de frente ou negando a referência analítica. Diante dos herdeiros legítimos da psicanálise, poderíamos falar a seu propósito de bastardos: esqueceram ou recusam a füiação e transmitem uma parte da herança da psicanálise sem querer, ou sem saber, reconhecer sua 140

paternidade. Também eles não podem ser reconhecidos pelos verdadeiros herdeiros. Aliás, maiS do que de dois círculos de difusão, seria preciso falar de duas séries de ondas sucessivas, a primeira, saída do divã, servindo de trampolim e a segunda de ligação. Elas confluem para propagar uma cultura psicológica que se universaliza, perdendo a memória de suas origens e o cuidado de seus fundamentos teóricos. Tal é o papel dessas novas terapias, em geral importadas dos Estados Unidos, que reagrupamos na Europa tanto sob o nome de "movimento do potencial humano", -quanto sob o de "psicologia humanista". Elas compreendem a bioenergia, a Gestalt-terapia, o co-conselho, a análise transacional, o grito primal, etc., com numerosas variedades, a invenção de um novo apelo, justificada por uma inovação quase sempre mínima na técnica, representando para os promotores um meio de se colocar em um mercado de concorrência. 14 Poder-se7ia interpretar seu sucesso como uma revanche póstuma de Reich sobre Freud, mas do Reich do período americano, o qual teria fortemente atenuado a dimensão marxista de sua obra, que seus herdeiros teriam substituído por uma sensibilidade para os valores da contracultura espalhados nos anos sessenta: crítica da autoridade, obrigações e hierarquias, cultos da espontaneidade, de autenticidade, de não-direcionismo e da convivência informal. Essas aproximações repousam quase todas na concepção de uma energia biofísica que liga indissociavelmente o registro psíquico inconsciente e o registro corporal. 15 As dificuldades psíquicas que podem resultar de traumatismos 14 Sobre a bioenergia, cf. seu fundador LOWEN, Alexander. Bioenergetics. Middlesex, 1974, trad. fr. La Bioénergie, Payot, 1976; do fundador da Gestalt-terapia, PERLS, Frédéric S. Gestaltherapy berbatim. New York, 1971; do fundador do grito primal, JANOV, Arthur. The primai scream. New York, 1972, trad. fr. Le cri primai, Flammarion, 1973; do fundador da análise transacional, BERNE, Eric. Games people play, New York, 1964, trad. fr. Des jeux et des hommes. Stock, 1964; do fundador do co-conselho, JAKINS, Harvey. The human side of human beings: the theory of re-evaluation couse!ing, Seattle, 1965. Entre os comentários mais sintéticos em francês, cf. DREYFUS, Catherine. Les groupes de rencontre, Retz, 1978; LAPASSADE, Georges. Socio-analyse et potentiel humain, GauthierVillars, 1975; ANSELIN-SCHUTZENBERGER, Anna. Le corps et !e groupe, Privat, 1977. 15 A análise transacional é, como seu nome indica, mais transacionalista do que centrada sobre as massas energéticas do corpo, mas a influência de Freud e a reação a Freud aí são pelo menos igualmente nítidas. Para a análise transacional, cada pessoa é composta de três "estados do eu", o pai, o adulto e a criança, demarcação da tripartição freudiana dac; instâncias psíquicas, na base da qual ela entra em relação com outrem. A técnica consiste em adquirir o domínio dessas transaçõe:s para retificá-Ias ou ajustá-las.

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infantis (versão que seria sobretudo a da bioenergia e do grito prima!) ou expressar desequilíbrios de organização atual (versão Gesfalt-terapia) se ligam assim principalmente sob a forma de bloqueios corporais. Uma parte importante da atividade terapêutica consiste então em exercícios de expressão corporal para liberar essas cargas emocionais. As sessões têm freqüentemente lugar sob a forma de atividades de grupo. Essãs técnicas elaboradas nos anos cinqüenta têm de fato quase fusionado no decorrer do decênio seguinte, com uma série de pesquisas e de experimentos sobre os grupos inaugurada primeiro num contexto experimental pela escola de Kurt Lewin, depois reinterpretada pelo movimento da psicologia humatiista e rogeriana, ele mesmo penetrado por correntes da contracultura. 16 É provável que um psicanalista negaria qualquer filiação entre essas técnicas e a psicanálise. E não se trata aqui de subestimar as diferenças. Acentuando a situação presente ( o famoso "aqui e agora") do qual a Gestalt-terapia em particular tentou uma reinterpretação clínica, essas técnicas reduzem ao mínimo a parte da historicidade, que acham essencialmente sob a forma de traços inscritos no corpo; também não se trata de mecanismos primários, substituídos por fluxos de energia; uma grande desconfiança e às vezes um desprezo do intelectualismo e da especulação, que corre o risco de afastar o cuidado de v~rdade que conduzia Freud a sempre reestruturar suas descobertas em novos conjuntos teoricamente coerentes; no lugar, um pragmatismo que autoriza a si mesmo a mudar de hipótese ou a modificar a técnica em função da rentabilidade imediata; pouca preocupação em explorar e escutar, mas a impaciência de intervir, de calafetar, de manipular, de reduzir a falha mais do que avaliá-la, etc. Essas aproximações são também quase intermutáveis: vê-se os mesmos animadores empregarem sucessivamente toda a sua gama, ou fazê-las funcionar juntas segundo um ecletismo sem complexo. Damos aqui uma amostra desse sincretismo: "Nós nos abrimos à política, filosofia, sociologia, religião, ciência, economia, e estendemos as mãos às pessoas a que dizem respeito esses domínios para lhes oferecer o melhor de nossos valores e de nossas técnicas humanistas, a saber, a integração da totalidade da pessoa: suas emoções e sua inteligência, seu corpo e sua alma, o desenvolvimento das ciências humanas segundo modos que reconhecem nossas qualidades humanas intrínsecas e que 16

Para corrigir o que tem de demasiado panorâmica esta apresentação, podemos nos reportar à exposição de Kurt W. Back sobre a América, Beyond Words, New York, 1972, ou a CASTEL, F.; CASTEL, R. & WVELL, A. "La societé psychiatriqÚe avancée". Op. cit., cap. VIII: "Os novos consumidores de bens psi."

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trabalham para a realização de nossas capacidades inatas de indivíduos ou de membros cooperativos de uma sociedade cooperativa. " 17

2. TRABALHAR O CAPITAL HUMANO Que sobra então, sob a oposição absoluta de dois regimes de verdade e de prática, que autoriza a colocar essas tendências na dependência da psicanálise? Essencialmente, duas coisas: De um lado, são constituídas em relação à psicanálise, e contra ela. É na constatação de carências próprias à psicanálise que construíram o que partilham de positividade. A acentuação posta no trabalho do corpo repousa em uma crítica do intelectualismo freudiano, o culto do hic et nunc se opõe às durações do merg_ulho na história infantil, as manipulações técnicas de superfície querem provocar curto-circuito na pesquisa dos processos primários, a espontaneidade do contato se opõe à dialética da transferência e da contratransferência, etc. São tantas maneiras de dizer que a despeito de seu simplismo, essas aproximações pretendem ser alternativas da psicanálise: pretendem ter sucesso lá onde esta teria fracassado e assumir o essencial de sua ambição. Querem reencontrar sua positividade verdadeira reinterpretando-a no quadro de uma abordagem mais eficaz, mais realista e mais democrática. Mas, sobretudo, essas abordagens retomam, exploram e instrumentalizam prosaicamente um aspecto fundamental da descoberta freudiana: a possibilidade de trabalhar o próprio conceito de normalidade. O trabalho sobre a normalidade

Em relação à tradição da medicina mental, Freud foi profundamente inovador, no fato de que não concebeu a intervenção de um profissional na problemática psíquica no quadro exclusivo da procura da cura. Sem dúvida, a cura psicanalítica clássica da neurose se prende preferencialmente a casos ainda qualificados de patológicos. Mas é para descobrir logo que um equilíbrio psíquico não constitui nunca um dado definitivo, natural, no máximo um corte atual numa dinâmica interna, cujo acabamento não é fixado a priori. Uma análise é bem "interminável'' nesse sentido: o trabalho de elucidação do eu e de transformação de si que ela instaura nunca termina. 17

Prospectas de convite do "Terceiro Congresso Europeu de Psicologia Humanista", Genebra, julho de 1979.

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Além dessa descoberta, convidar a relativizar as noções de normal e de patológico, ela implica que a normalidade não é um estado definido, uma vez por todas, mas uma situação sobre a qual se pode sempre intervir. O recurso a uma tecnologia psicológica não tem por único objetivo reparar (curar), nem mesmo manter a saúde (prevenir), mas pode servir para explorar, aprofundar, trazer um acréscimo que não Se contentaria em calafetar um disfuncionamento. A ambigüidade que trai a expressão de "terapia para os normais" já está inscrita no coração da psicanálise. Aproximada por razões históricas à tradição médica, ela é também uma teoria e uma prática geral do funcionamento psíquico. De fato, um grande número de práticas psicanalíticaS deixou pa8sar progressivamente indicações mais ou menos terapêuticas ( ou mais ou menos didáticas para os profissionais) para experiências, nas quais o que estava em jogo era a procura de uma verdade e de uma dinamização de si. Se a psicanálise fascinou a esse ponto, é que propunha, alé.m do modelo terapêutico, esta eventualidade de um mergulho no psicológico que renovava as delícias da introspecção escapando à melancolia do narcisismo contemplativo à Amiel. Mas, abrindo-se a esse programa, a psicanálise era presa numa contradição. Esta eventualidade de um trabalho sqbre si é virtualmente universal; em sua versão psicanalítica, é necessariamente restrita a grupos muito limitados, não somente por razões econômicas, mas também por causa dos recursos culturais, em tempo, em liberdade de espírito, que ela obriga a mobilizar. As exigências e os prazos pedidos pelo rigor do método analítico fazem com que sua democratização seja um mito. Universalista de intenção, a abordagem psicanalítica é elitista em suas condições de aplicação. De onde uma ambivalência a respeito da psicanálise, mistura de vontade e de frustração, que fez por um lado a cama dos novos métodos. A psicanálise foi fantasiada por muitos como é a vida das princesas e das estrelas contadas pelo Jours de France a donas-de-casa que sonham e.m sua cozinha com noitadas no cassino e palmeiras sob a lua. Assim, a psicanálise não pode responder à demanda social que lhe é endereçada a não ser dilatando-se em relação à base estreita das práticas du!lis, em que sua legitimidade se funda. Ela se encontra, por conseqüência, constantemente ameaçada por um desequilíbrio entre as cargas que ela pode realmente assumir e as para as quais corre o risco de só fornecer cobertura ideológica. Esse hiato é uma das causas da crise atual da referência psicanalítica em psiquiatria (cf. capítulo 3), mas poder-se-ia fazer a mesma análise a propósito do trabalho social, da pedagogia institucional e todos os setores onde se implantou e onde está sempre sob ameaça de prometer mais do que pode cum144

prir. Como ultrapassar a contradição sempre renascente entre um certo universalismo das categorias psicanalíticas quando elas se aplicam à interpretação das realidades sociais e políticas e o particularismo das práticas psicanalíticas limitadas pelo rigor (ou a rigidez) do método freudiano? As "novas terapias" podem atenuar essa contradição, de uma só vez no plano do fosso entre a existência de demandas pessoais e da possibilidade de respondê-las e no de mais amplas aplicações sociais das tecnologias psicológicas. No plano pessoal, propõem uma "psicanálise do pobre", através de alguns fins de semana no campo, ou uma sessão semanal de grupo, durante algwis meses. Essas práticas comportam incontestavehnente benefícios não negligenciáveis. Elas quebram a prosopopéia monótona e solitária do divã, e permitem, no decorrer do itinerário terapêutico, atar relações, ter aventuras e amigos, quem sabe, encontrar um trabalho tomando-se ele mesmo animador de grupo. Mas o principal é a generalização da "terapia para os normais", para retomar a rica ambigüidade de uma expressão que serve, às vezes, nos Estados Unidos, para qualificar esses métodos. Se tomarmos ao pé da letra essa metáfora, ela significa primeiro que é a normalidade que funciona a partir de então como sintoma. De fato, essas aproximações partem (ou partiam, no seu começo) de uma visão crítica da vida social como lugar onde se exercem constrangimentos absurdos, exigências de disciplina e de rendimento incompatíveis com a expansão pessoal, as relações espontâneas entre os seres humanos, etc. Suspeição, então, a respeito dos princípios e dos hábitos que regulam a sociabilidade comum. Mas, além desse elemento de crítica social que recolheu ecos um pouco atenuados do movimento da contracultura nos Estados Unidos e da contestação do período pós-68 na França, a expressão significa, do lado do indivíduo, que este não é um ser acabado, que pode ser o objeto-pessoa de um trabalho para desenvolver seu potencial e intensificar suas capacidades relacionais. Como? Pelo emprego sistemático de técnicas psicológicas. O acabamento do ser humano toma-se uma tarefa infinita, na qual não se terá nunca acabado de investir. As "novas terapias" fazem explodir - como a psicanálise, mas de uma maneira muito mais extensiva - de uma só vez o conceito de patologia e o de saúde, mas conservando a exigência de uma intervenção por intermédio de técnicas especializadas. A vocação desta intervenção é a partir de então encarregar-se da problemática da felicidade (o desenvolvimento) tão bem quanto da infelicidade (a patologia). No entanto, em relação às aspirações vagas do senso comum ou da especulação moral ou filosófica, a psicologia faz a prova de sua positividade científica propondo técnicas para cumprir um tal programa. Vontade de uni145

versalismo que toma, às vezes, aspectos quase caricaturais, como quando a análise transacional propõe suas receitas não somente para o tratamento dos psicóticos, dos bebedores, dos fumantes ou dos obesos, mas também para melhorar as relações no seio da famt1ia normal ou para aumentar o rendimen18 to dos funcionários de uma empresa. _ As novas terapias testemunham assim o fato de que é possível instrumentalizar a subjetividade e a intersubjetividade por intervenções exteriores. Elas promovem uma visão do homem pela qual se concebe ele mesmo como um possuidor de uma espécie de capital (seu "potencial"), que gere para dele extrair uma mais-valia de gozo e de capacidades relacionais. Há em suma indivíduos subdesenvolvidos e em via de desenvolvimento como os tecnocratas dizem dos países do terceiro mundo. E, para se desenvolver, é preciso, literalmente, investir e trabalhar, fazer frutificar seu potencial humano. Emerge, assim, a possibilidade de fazer rombos nas esferas da existência privada, da intimidade e da intersubjetividade que tinham escapado a precedentes empreendimentos de racionalização segmentária. O que Taylor, ou a psicologia industrial, ou a psicofísica promoviam como possibilidades de medida e de manipulação de uma dimensão do homem - na qualidade de produtor ou suscetível de realitar ou não realizar tal ou tal performance profissional ou escolar - se encontra aqui globalizada. Essas abordagens podem efetivamente se dizer humanistas, pelo menos nesse sentido de que a totalidade do homem que é levada em conta, não fosse para ser instrumentalizada. A audiência das novas terapias vem, aliás, em parte, de que atuam nesse duplo registro, conservando uma referência cada vez mais mítica para a crítica social e os prestígios revolucionários das grandes recusas, propondo ao mesmo tempo uma_ concepção perfeitamente pragmática da pessoa. Composto estranho do rousseaunismo sonhador que exalta a espontaneidade e pretende lutar contra as alienações e os constrangimentos em nome da transparência dos indivíduo~, e de uma procura infin1ta da receita técnica, indispensável para bem condu21r essa tarefa. Tomar-se livre aplicando um programa, construir a espontaneidade a golpes de tecnologia; combater a alienação desdobrando uma bateria de exercícios, da qual nos perguntamos, às vezes, se não se originam de simples ginástica.

18

JAMES, Muriel. The ó.K. boss, Reading, 1975, ou como ter sucesso nos negócios graças à análise transacional.

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A promoção do relacional

O público afetado por tais práticas não representa sem dúvida uma audiência maciça, embora o número de adeptos pareça alcançar o dos clientes da psicanálise. 19 A primeira área de recrutamento situou-se, aliás, nas fronteiras da psicanálise, junto a um público do qual já assinalamos a ambivalência a respeito da institucionalização estreita da promessa freudiana: Pessoas em geral menos afortunadas, jovens ou relativamente jovens (idade média: trinta) em estudos ou tendo-os abandonado, pouco integradas familiar e socialmente, espiadas por um futuro incerto. 20 Todavia, a audiência se amplia progressivamente a elementos que transbordam essa franja: jovens desempregados, militantes políticos decepcionados, mulheres domésticas que se aborrecem, etc. Ela se estende também para os profissionais da saúde e da relação. Assim, no Centro de Desenvolvimento do Potencial Humano(C.D.P.H.), que é, com sua quinzena de formadores muito profissionalizados, o mais importante dos organismos franceses de aprendizagem desses métodos, observase desse ponto de vista uma evolução interessante da clientela. Há cinco anos, os quatro quintos dos participantes freqüentavam estágios de sensibilização para se familiarizar com as técnicas e um quinto somente empreendia uma verdadeira formação. Hoje a proporção se inverteu. Seria preciso aqui distinguir a reinjeção dessas abordagens no domínio da terapia e da paraterapia e no do mais amplo, que é coberto pelo que se poderia chamar as profissões da relação, as que compreendem também os educadores, trabalhadores sociais, certas categorias de ensino, de animadores, quem 19

20

Um número recente da revista Sexpol. 29-30, 1979, recenseava oitenta instituições só de prática da bioenergia, e de numerosas outras não responderam ao jornal. A maioria desses centros de formação são pequenas fábricas precárias lançadas por dois ou três animadores. Mas o ritmo de aprendizagem dessas técnicas e o turnover dos clientes são bem mais rápidos do que no caso da psicanálise. Os principais dados relatados aqui foram recolhidos no quadro de uma abordagem do tipo etnográfico, cf. CARPENTIER, Jean; CASTEL, Robert; DONZELOT, Jacques; LACROSSE, Jean-Marie; LOVELL, Anne & PROCACCI, Giovanna. Resistências à medicina e desmultiplicação do conceito de saúde, C.O.R.D.E.S., Comissariado geral do Plano, Paris, 1980; cf. em particular LOVELL, Anne. "Palavra de curas e energias na sociedade: a~ bioenergias na França" (pp. 39-110) e LACROSSE, Jean-Marie. "Uma cultura pós-terapêutica: modos de vida e clientela" (pp. 112-215). Esses dados quase recortam a literatura americana sobre o assunto e nossa própria experiência desses grupos nos Estados Unidos, levando em conta, no entanto, o fato de que o boom dessas abordagens se situa na América, no fim dos anos sessenta e começo dos anos setenta.

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sabe, um número crescente de profissões de venda, de publicidade, da promoção, do empresariado. Na primeira categoria, essas orientações parecem em posição de recolher uma parte da herança da psicanálise. Já existe um certo número de psicanalistas fatigados com as demoras do método, ou desencorajados pelas dificuldades de aplicar em instituição, que se reCiclaram em bioenergia ou em análise transacional, seja que se trate de uma conversão completa, seja que tenham em vista novas técnicas como uma abordagem não antagonista com a análise e convindo melhor a certas indicações. Outros manifestam a respeito do movimento uma real curiosidade, freqüentemente um pouco condescendente. Testemunha o livro que Roger Gentis consagrou recentemente às correntes oriundas da bioenergia; 21 testemunha também o fato de que a Associação Francesa de Psicologia Humanista realizou no ano passado em Paris um sel!linário onde vários psicanalistas do establishment não desdenharam fazer conferências. Alguns dos adeptos mais profissionalizados dessas orientações trabalham, aliás, em uma síntese da bioenergia e do lacanismo, e uma instituição de bioenergia sonha mesmo tomar-se "o quinto grupo" psicanalítico. As chances de futuro dessas técnicas são reais, na medida em que seduzem mais os que entram atualmente em formação, e num nível de profissionais médios, do que os que já estão formados, e no nível médico. A escolha de fazer uma psicanálise é freqüentemente uma prova a temer para um psicólogo, um educador ou um paramédico. Mas a necessidade de se engajar nela era sentida como uma necessidade social para ter acesso a uma prática psicoterapêutica reconhecida, pelo menos porque a psicanálise reinava de maneira hegemônica. Que de um lado a legitimidade da psicanálise se enfraqueça, e que, de outro, se apresentam alternativas menos dispendiosas, em todos os sentidos da palavra, a tentação é grande de se voltar em direção a esses substitutos menores aos quais muitos começam a ceder. Uma integração possível dessas técnicas se desenha assim em direção a vários tipos de instituições terapêuticas ou paraterapêuticas. Sem dúvida, elas permanecem limitadas. Só algumas instituições públicas integraram as novas terapias em seus programas terapêuticos. 22 Mas o proselitismo dé seus adeptos, o fato de que se possa ayaliar imediatamente alguns de seus resultados, a possibilidade de aplicá-los em grupo, e também o fato de que conservam algu21

GENTIS, Roger. Lições do corpo, Flammarion, 1980.

22

Por exemplo, no hospital psiquiátrico de Montfavet, perto de Avignon ou no Instituto Marcel-Riviêre, na região parisiense. Algumas dessas abordagens, tal como a análise transacional, começam também a se integrar às práticas do setor psiquiátrico.

ma coisa da implicação pessoal das psicoterapias, poderiam colocá-las em posição de concorrente sério em relação à psicanálise. Via paralela, mas que pode ser vivida como alternativa, em relação à qU'e foi aberta pelas terapias comportamentais, onde um mesmo cuidado de eficácia é associado a um objetivismo "cien_tífico" qu~ ~~pugna ainda fre~üentemente aos profissionais da relação. E mais, sua flextbilidade e seu ecletismo lhes servem para funcionar em associação, sem exigir tomar todo o lugar; elas podem, assim, calafetar as brechas em dispositivos existentes ou em via de implantação. Elas também começam a cobrir toda a gama, do setor mais privado e mesmo o mais marginal (esses pequenos organismos de existência quase sempre efêmera fundados pelos anima~or~s pouco profissionalizados que só têm a autoridade de si mesmos), até o publico (alguns hospitais psiquiátricos). As novas terapias devem essa riqueza à posição de junção que são suscetíveis de ocupar em relação às intervenções que visam ao campo da patologia. De um lado, inscrevem-se ainda num domínio terapêutico bastante tradicional mesmo ultrapassando-o: mais flexíveis que as abordagens psicanalíticas clássicas, atraem um novo público em nome de uma concepção ampliada da relação terapêutica. Mesma situação em relação às indicações de psicanálise que substituem ou as quais suplementam sob certas condições. 23 Mas, sobretudo, essas abordagens, ~iviando o apetite da psicologia por novas franjas da população, estendem-se a esfera do que se poderia chamar o "paraterapêutico", quer dizer, esta nebulosa de intervenções que engorda nos limites da patologia e do mal-estar existencial. O sentimento de viver ao lado de sua vida não suscita realmente uma demanda de terapia: não é uma doença, mas sobretudo um conjunto de insatisfações e de frustrações, que recortam ao menos em parte algumas motivações da clientela da psicanálise, mas podem ser, a partir de então, tratados de um modo ao mesmo tempo menos caro, mais democrático ' mais flexível e mais selvagem. Essas novas terapias se inscrevem assim nesse vasto setor ainda mal balizado onde, entre o exercício clássico da neuropsiquiatria e da psicanálise em clientela privada, por um lado, e as instituições públicas, hospitais psiquiátri· 23 A '· mostra que as relações entre psicanálise e bioenergia, por exemenque t e empmca plo, são muito mais complexas do que se pensaria a priori. Às vezes a bioenergia

intervém como alternativa à psicanálise para os que não poderiam ou não quereriam t~r acesso a ela, às vezes ela a sucede para inúmeros decepcionados do divã, como as vezes ela a precede, alguns adeptos da bioenergia experimentando a necessidade de prosseguir o processo num quadro mais clássico. Cf. LACROSSE, J.M. "Uma cultura pós-terapêutica: modos de vidas e clientelas." Op. cit.

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ços e serviços de setor, por outro, aparece uma multidão de novas demandas e de novas respostas a essas perguntas: centro de conselhos conjugais e de terapia sexual, terapia familiar, fins de semana de encontro e mesmc- centros de medicina paralela de diversas origens onde o que é kvaúo em conta é pelo menos tanto um pedido de atenção relacional quanto de cura. Vasto mercado dos bens de saúde que está substituindo esse mercado dos bens de salvação do qual Max Weber fazia a essência da religião. Terapêutica, paraterapêutica, mas também extraterapêutica. Opera-se, de fato, com o mesmo ecletismo, uma reinjeção maciça dessas tecnologias relacionais em setores que, eles, desenvolveram-se de maneira totalmente estranha em relação à clínica, a saber, a empresa, o empresariado, o comércio, a publicidade, etc. Se estes métodos abarcam a fronteira do normal e do patológico, é de fato natural reencontrá-los em todas as situações onde existe um problema relacional. Por exemplo, a lei de 1971 sobre a formação permanente abriu-lhes um mercado inesperado, prevendo consagrar o centésimo da massa salarial a financiar atividades de formação contínua ou de reciclagem. O imperativo que põe para a frente essa ideologia do renovamento perpétuo é aprender você mesmo a mudar, quer dizer, a exigência de trabalhar sua própria disponibilidade e sua flexibilidade relacional, pelo menos tanto quanto seus conhecimentos. Como de fato enfrentar as mudanças tecnológicas e os imperativos da concorrência, se não fazendo do trabalhador um ser sem asperezas e sem crispação, cujas capacidades são mobilizáveis a qualquer instante? Mas como conseguir isso, se não for perseguindo seus bloqueios e suas resistências, cultivando uma espontaneidade reencontrada, capaz de responder às injunções do presente? Milhares de "animadores de formação", pertencentes a uma poeira de organismos públicos, semipúblicos e particulares, enfiaram-se nessas ranhuras. Vêm dispensar as tecnologias relacionais em direção ao mundo do trabalho, e mesmo do mundo da falta de trabalho, pois é ainda mais importante para um profissional carente de emprego, por exemplo, reciclar a vida de modo a exercer o comando e trocar suas competências; é mesmo quase a única coisa que é possível fazer, já que ninguém sabe exatamente para qual posto novo, exigindo quais competências técnicas exatas, ele é suscetível de ser indicado. Através de diferentes tipos de estágios, o carente de emprego tornou-se assim a matéria-prima de uma nova indústria de transformaÇão do capital humano, pois de todos os indivíduos sociais são sem dúvida os desempregados que estão melhor colocados, se se pode dizer, para aprender a mudar, a fim de constituir uma força de trabalho completamente disponível nas condições ideais de reciclagem. 150

Poder-se-ia provocar análises do mesmo tipo em outros setores da sociedade contemporânea, onde profissões de longa data, animadas pelo cuidado do contato humano até os domínios dominados pelas exigências de rentabilidade, como a empresa ou os ofícios da venda, se desenvolve esse mercado de promoção do relacional. Seria, portanto, muito difícil, e sem dúvida vão, tentar medir com exatidão o que se deve, propriamente falando, às técnicas póspsicanalíticas nessa promoção. Elas se inscreveram sem solução de continuidade nesse movimento de fundo, que, desde o fim do século XIX, multiplica os recursos de uma competência psicológica para enfrentar os problemas, seja propriamente pessoais (clínicos e, agora, existenciais), seja de organizações ( contribuir para o bom funcionamento de certas instituições ajudando-as a selecionar seus membros, mensurar suas atuações, resolver seus conflitos internos, etc.). Mas, se tudo fosse assim, que haveria de novo nessa evolução em relação à constatação, estabelecida há muito tempo, da inflação do psicológico em nossas sociedades? Que trazem a mais essas novas técnicas, a não ser enriquecer a palheta das modalidades de intervenção no homem? Desde que existem, a psicopedagogia, a psicotécnica, a psicologia industrial, e, mais recentemente, o comportamentalismo, sempre se situaram além ou ao lado da visão reparadora da clínica. Na própria linhagem da medicina mental, a tradição da higiene logo se desprendeu do modelo clínico para promover um trabalho sobre a "normalidade". Desde 1930, Adolphe Meyer, líder da psiquiatria americana, duplamente influenciado pela psicanálise e pela higiene mental, formulava o que poderia ser o programa da escola-medicina contemporânea: "A higiene mental como filosofia de prevenção é um princípio diretor para trabalhar tanto quanto possível com os valores da vida, antes da diferenciação do normal e do patológico." 24 A novidade, de fato, é dupla. De um lado, um tal programa pode ultrapassar as piedosas declarações de intenção para se instrumentalizar numa ampla escala, porque dispõe de uma panóplia nova de técnicas. Em segundo e, sobretudo, tomando-se a si mesmo como objeto e fim de uma experimentação psicológica, o homem descobre uma propriedade inesperada do trabalho psicológico, a de criar ela mesma uma fonna nova de sociabilidade. A "cultura das relações" empreendida de longa data por meio da psicologia está
MEYER, Adolph. The organization of community facilities for prevention, care and treatment of ne;rvous and mental diseases. Proceedings of the First International Congress of Mental Hygiene, II, New York, 1932.

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bocando numa "cultura relacional" no seio da qual a mobilização psicológica se coloca como um fim em si, que satura todos os valores da existência. A vida de rede

Vejamos _o que se passa num "grupo de encontro" (encounter group}, por exemplo. E um espaço artificial construído para a experimentação dessas novas técnicas, em geral centrado na aprendizagem de uma delas (bioenergia " , G estai t, maratona", etc.). Um grupo pode constituir-se de um ou vários fins de semana, ou uma sessão por semana, à noite, durante algumas semanas ou alguns meses, sob a conduta de um ou dois animadores. Os participantes, em geral, não se conhecem antes. Vão livremente, quer dizer, baseados numa motivação que lhes é própria. A atmosfera é informal, o que significa que seu formalismo põe entre parênteses as formas da sociabilidade comum, as quais repousam no estatuto e papéis sociais para representar o jogo de uma sociabilidade vazia ( ou plena) que tem seu próprio rigor. Duas regras de partida pelo menos, a aceleração dos contatos e a maximização das reações. Em virtude da primeira regra, os participantes são convidados a representar os papéis que exprimem a proximidade e a intimidade com outrem e a travar relações verdadeiras entre eles. Existe uma contradição aparente entre esta exigência de um reconhecimento intenso do outro em sua unidade profunda, além dos estereótipos e o fato de que outrem seja rigorosamente intermutável. Mas ela se resolve no fato de que o interlocutor, como si mesmo, é a cada vez uma pessoa em si, a totalidade realizada de uma existência na eternidade de um presente sem referências sociais e sem gênese histórica. A segunda regra consiste em exprimir livremente suas emoções (feelings), e principalmente as que são objeto de uma censura social. Transgressão das normas da civilidade ou, sobretudo, desrecalcamento: pode-se assim gritar, chorar, manifestar sua agressividade, vomitar, ser deliberadamente provocador, ou mais temo do que normalmente ê requisitado. Alguns grupos autorizam passagens ao ato sexual, mas é a exceção. Assiste-se em todo caso a uma encenação da vida social sob a forma de sua histerização, numa grandiloqüência, uma desmesuração, no sentido literal, que pode surpreender o observador quando ele constata, por exemplo, que uma pessoa que "trabalhou" durante dez minutos no paroxismo pode secar repentinamente suas lágrimas e retomar comportadamente seu lugar enquanto seu vizinho o sucede. Hipertrofia que representa a passagem ao limite de intensificação do que se vive habitualmente em marcha de cruzeiro marítimo. Dir-se-ia a ubris dos tempos gregos, mas os deuses não vão ao encontro: é bem uma imanência radical que essas tentativas tencionam descolar. 152

Tais regras estruturam o campo de uma socialidade que se basta a si mesma, no sentido em que é completa em seu acabamento, à exceção de seu caráter intermitente. Os ideólogos do movimento têm certo um discurso sobre a sociedade em geral concebida como fator de alienação, com suas hierarquias rígidas, a coisificação das relações pessoais sob as exigências de rentabilidade, etc. Mas não existe nunca análise desses mecanismos sociais por si mesmos, da maneira como aí funciona realmente a autoridade, cujo poder se encarna e se exerce em estruturas, instituições, classes. A alienação social se reabateu sobre suas implicações pessoais, e não se pode liberar a não ser por uma estratégia individual. Oposição não dialética à sociedade, já que ela se contenta em inverter os sinais da alienação: à negatividade dos constrangimentos se opõe a positividade de uma natureza. Mas, na medida em que a alienação preexiste, a nat~reza hão vem por acréscimo e é preciso reconstruí-la por técnicas psicológicas, trabalhar no espaço do grupo a imanência da pessoa para dela fazer jorrar o modelo de uma sociabilidade vivível. Tal como é orquestrado nos grupos de encontro, esse trabalho sobre o eu tem um caráter descontínuo. 25 Existem portanto experiências mais próximas da vida social comum, como as "escolas de verão", "comunidades de verão", "espaços do possível", etc., que se desenvolveram no ambiente do movimento. A função de aprendizagem das técnicas é aí atenuad~, ou abolida, pelo vivido contínuo desses valores durante algumas semanas ou alguns meses. A efervescência grupal se faz estilo de vida, tornando-se a lei de uma comunidade de existência. "Instituições a-normativas", 26 nesse sentido que recusam as normas da sociedade comwn, mas através da encenação de seus próprios rituais. Aliás, ·mesmo os participantes de grupos descontínuos vão freqüentemente de grupos em grupos, à procura, a um só tempo, da última novidade e da exposição no tempo das "experiências no cume" {peak experiences). Eles desenvolvem uma espécie de subcultura que se reconhece por sua linguagem, por uma certa maneira de entrar em contato, ao mesmo tempo intensa e sem implicação, como se tudo se jogasse a cada golpe (hic et nunc} com, no entanto, a consciência de que existe uma infinidade de partes e que se uma das características dessas técnicas é sua capacidade de ultrapassar " Mesmo corte entre as situações "de trabalho" (homólogo do dispositivo da cura) e a vida 0

diária. Os exercícios técnicos podem ser transportados e reatualizados nas situações mais comuns. Essas abordagens são assim as operadoras de uma espécie de novo higienismo centrado no corpo. Cf. LOVELL, Anne. "Palavras de cura e energias em sociedade". Op. cit. 26 LACROSSE, Jean-Marie. "Uma cultura pós-terapêutica". Op. cit.

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elas são todas as mesmas. Droga ou estilo de vida que se basta a si mesmo? Como dizia um animador desses grupos, universitário conhecido: "Desde que estou nesse meio, as outras formas de encontros não me interessam mais. Não suporto a frieza e os constrangimentos das relações sociais e dos jantares na cidade." Intensificação das relações, mas ~em o quadro de um comércio inscrito nas estruturas sociais e na história, a cultura psicológica vê-se como um fim em si. É como uma democratização do que já se teria podido chamar uma "cultura do divã", esta maneira inimitável, observável nos velhos freqüentadores da psicanálise, de recobrir sua vida real com um duplo fantasmático no qual eles existem mais ainda do que para o prosaísmo cotidiano. Essas novas técnicas alimentam assim um ethos, pelo qual o desenvolvimento de seu potencial psicológico e a intensificação de suas relações com os outros podem tornar-se o alfa e o· ômega da existência. A psicologia faz aí a experiência de sua própria finalização como atividade autônoma, de uma só vez porque as outras dimensões da existência estão a ela subordinadas, e porque esse porvir passa por uma implicação em um novo universo pleno de relações do qual não acabaremos nunca de dar a volta. Entrar na cultura relacional é abordar uma paisagem social de contornos fluidos, munida da única certeza de ter perpetuamente que retecer a imagem frágil de uma sociabilidade perfeita, cujos pedaços estão exibidos num universo unidimensional do psicológico. Qual pode ser a significação social dessas novas práticas? Se nos ativermos ao círculo dos que poderíamos chamar "os amigos e sustentadores das novas terapias" ,27 sua audiência permanece limitada. Mas, já nesse nível, duas características devem ser sublinhadas que poderiam fazer desses pseudomarginais espécies de testemunhas dos tempos futuros. 28 Por um lado, a clientela desses grupos é recrutada a partir de redes sociais que têm pouco a ver com a terapia. Trata-se de um público em ruptura mais ou menos aberta com as formas admitidas da sociabilidade normal fllildada em afinidades culturais e eletivas, franqueadas das diferenças estatutárias e das obrigações sociais codificadas. 29 Em particular ele manifesta uma distância, querida ou sofrida, a respeito desses dois fatores essenciais de inte-

gração social que são a família e o trabalho. A família: encontramos nesses grupos uma nítida maioria de pessoas não casadas, nela compreendidas as idades que se caracterizam normalmente por uma forte taxa de conjugalidade. 30 O trabalho: numerosos adeptos das novas terapias se dedicaram a pequenos trabalhos, mudando freqüentemente de_ empregos e se deixaram contratar aquém de seu nível de qualificação. Mais significativo ainda seria o fato de que a metade dentre eles, mais ou menos parece em situação de mobilidade descendente em relação a seus pais. 31 Voluntariamente ou não, uma forte proporção dessas pessoas não é colocada nas trajetórias sociais que passam ou passavam por comuns. Mesmo para aqueles que apresentam os sinais exteriores da conformidade social, uma análise mais fina detecta um ponto de ruptura. Interrogado sobre os motivos que levam professores, psicólogos, e mesmo às vezes diretores de empresas a freqüentar seu centro, um dos mais caros, um animador descreve assim sua clientela: "Uma quantidade de pessoas são o que se poderia chamar 'desfiliados' em sua profissão ou em sua vida social. Instalaram-se na beira. Não podem se identificar com os grupos com os quais trabalham e não podem também encontrar uma alternativa de valores. Muitas chegam aqui com um certo anticonformismo. São marginais, porque não conseguem se adaptar. Não estão colocadas em posição de exclusão, mas protestam contra sua profissão, por exemplo. " 32 Simples estado de alma dos pequenos-burgueses que representamosnãoconformistas? Últimos sobressaltos do pós-68, ecos amortecidos de uma contracultura em via de banalização? Tais julgamentos de valor pesam menos do que a constatação segundo a qual as características que saturam atualmente certos meios, minoritários certamente, e marginais talvez, são precisamente as que as transformações atuais da estrutura social generalizam em larga escala. Mais do que uma estrita ligação de classe, são de fato diferentes fatores de não-integração e/ou de não-investimento social, impossibilidade de encontrar um trabalho ou desinteresse no trabalho, falta de investimento de ordem familiar, crise de certezas políticas, etc. Sentimento de que a vida é um casco meio vazio que se enche com psicologia. Se se esfuma a eventualidade de pontuar a existência pela sucessão de um certo número de papéis socialmente

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30 Cf. LACROSSE, Jean-Marie. "Uma cultura pós-terapêutica". Op. cit. p. 172: uma sondagem efetuada em cinqüenta pessoas mostra que somente um quarto dentre elas são casadas na faixa de idade 30-40 anos.

28 29

Transponho aqui uma expressão de Charles Kadushin ( Why people go to psychiatrists, New York, 1969). Cf. CASTEL, Robert & LE CERF, Jean-François. O fenômeno psi e a sociedade francesa. "O Debate". Op. cit. III: "O após-psicanálise na França". Cf. LOVELL, Anne. "Palavras .de cura e energias em sociedade". Op. cit.

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31

Idem. p. 173. 32 Apud LOVELL, Anne. Op. cit. p. 85.

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defmidos da aprendizagem à aposentadoria, ou se a credibilidade desses objetivos some, subsiste uma espécie de eu bergsoniano para o qual as determinações sociais cessam de ter uma função definidora. A pessoa torna-se o itinerário obrigado de um percurso infmito cujo desenvolvimento de seu próprio potencial é a única lei. Ora, as condições sociais que suscitam uma tal atitude correm o risco de se agravar na conjuntura histórica atual. Isto não quer di~er que todos os marginais vão se tomar clientes das novas terapias; mas isto pode significar que a cultura psicológica se apresenta como alternativa em uma situação em que os investimentos sociais se eximem, e tanto mais que as alternativas políticas estão embaralhadas. De gratificação acompanhando o exercício de outras atividades (benefício secundário), a psicologia toma-se o objetivo primário, constituindo uma sociabilidade vazia de qualquer outro conteúdo, a-social-sociabilidade para retomar uma expressão kantiana, que se esgota a desdobrar uma combinatória relacional comportando seu fim em si mesma.

3. UMA A-SOCIAL-SOCIABILIDADE A crítica sócio-política da psicologia sempre se encarniçou a negar-lhe a mínima autonomia. E sem dúvida, à parte a abstração acadêmica de uma psicologia geral que estudaria as leis de funcionamento do psiquismo de maneira totalmente desinteressada, é fácil notar que a psicologia desenvolveu-se à sombra de instituições das quais era chamada para dar paliativos a disfuncionamentos. O que ê a psicopedagogia? Uma tentativa de resposta a problemas que se colocaram diante das exigências do sistema escolar. O que é a psicologia do trabalho? Uma maneira de levar em conta o fator humano da produção depois que ocasionou certas dificuldades diante das exigências do rendimento. Ninguém terá a ingenuidade de acreditar que os testes, por exemplo, quer se trate de selecionar aptidões ou avaliar desempenhos, tenham podido ser inventados no interesse da Pessoa. Sobre essas bases desenvolveu-se uma contestação da psicofogia como máscara: o recurso à psicologia teria por função última dissimular propósitos mais profundos, escamotear interesses mais gerais. Mesmo quando ela não é invocada para desmanchar os conflitos de classe, ela economiza, na medida de seus meios, as recolocações em questão dos sistemas estabelecidos: é menos dispendioso, por exemplo, tratar essas crianças problemáticas que são os dejetos da organização escolar do que mudar a estrutura na origem dos tais problemas.

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O social não é mais o que era Pretendendo-se exclusivas, tais críticas correm o risco, no entanto, de passar ao lado de um elemento novo da conjWltura contemporânea: a constituição de setores de práticas onde a psicologia se constitui análoga do social. Tal é pelo menos a hipótese que sugerem os mais recentes desenvolvimentos da cultura psicológica. Virando a metãfora marxista, diremos que, da mesma maneira que Marx viu na religião o sol de um mundo sem sol, o psicológico está se tomando o social de um mundo sem social. Da mesma forma que, no religioso, investe-se todo o poder que o homem não pode desdobrar no mundo real, o psicológico invade e satura novos espaços liberados pelo refluxo do social, faz a vez de social representando o estatuto de uma sociabilidade completa quando os fatores propriamente sociais escapam ao domínio dos atores. ·Esta intermutabilidade de uma "ordem pública" (no sentido em que o entendem os sociólogos americanos como Eiving Goffman ou Richard Sennett, que defmem a public arder como um jogo de rituais sociais) e de uma organização da existência correspondendo a encenações puramente subjetivas começa a ser representado nos laboratórios de experimentação social que são os grupos de encontro e outras "instituições anormativas". A despeito do caráter aparentemente artificial ou marginal de tais situações, a dinâmica na origem dessa inflação do psicológico não é, ela, de natureza psicológica. Remete a uma transformação de estruturas sociais. Por um lado, um número crescente de pessoas se encontram em ruptura, provisória ou definitiva, com as estruturas integrativas clássicas e são conduzidas a construir formas novas de sociabilidade. 33 Por outro lado, mesmo para aqueles que permanecem no seio das estruturas familiares, de vizinhança, de emprego, observa-se uma evolução interna nesses grupos de participação que assim fazem no fmal pequenas unidades relacionais autogeradas. Assim, a família. O discurso divulgado pelos adeptos do planejamento familiar, da Escola dos Pais, pelos porta-vozes das emissões radiofônicas especializadas no conselho familiar ou conjugal, pelos jornais femininos e as rubricas "Sociedade" das revistas e semanários, faz repousar a realidade última da família na capacidade de seus membros em intensificar suas relações e a regulá-las pela psicologia. Esta ideologia não encontraria uma tal audiência se não fosse verdade que a família, em particular na pequena burguesia, perdeu uma 33 Por exemplo, nos Estados Unidos, durante os anos setenta, o número de indivíduos entre quatorze e trinta e quatro anos vivendo fora de qualquer forma de estrutura familiar praticamente quadruplicou, passando de 1.500.000 a 4.300.000 (cf. TOFFLER, Alvin. A terceira onda, Trad. francesa, Denoel, Paris, 1980, p. 265).

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boa parte de suas funções tradicionais. A família se organiza cada vez menos em volta da transmissão do patrimônio numa estrutura econômica que faz da renda individual a fonte principal da riqueza; ela tem cada vez menos a res,. ponsabilídade da gestão das alianças quando os adolescentes autonomizam seus próprios círculos de sociabilidade; ela assegura cada vez menos a prom0ção social de sua descendência quando a maioria das vias da mobilidade ascendente estão bloqueadas. Permanecem evidentes fami1ias tradicionais organizadas em volta da gestão de seu capital econômico, cultural, social e demográfico. 34 Mas, cada vez mais, o que fica para gerir para uma família Hmédia", é a combinação de suas relações interpessoais; é seu capital relacional que lhe dá seu plano de consistência e sua capacidade de resistência às pisadelas das instituições educativas e normativas concorrentes. Sem esse nexo intenso e conflitual de relações de cônjuges entre si, dos pais com os filhos, dos filhos com os pais, dos filhos entre s1 através da imagem dos pais, .:. fam11ia correria o risco de se tomar definitivamente uma estrutura porosa, esmigalhável, pois exposta a todas as agressões externas, e deixada logo que um mínimo de socialização e de independência econômica fossem asseguradas. Para se defender, que pode ela produzir, senão sentimentos e, como se diz, laços? Sem dúvida uma tal efervescência sentimental sempre acompanhou o exercício das funções tradicionais da fam11ia, e a ordem familiar sempre foi a terra natal das relações psicológicas essenciais. Mas esta estrutura de acompanhamento está se tornando uma estrutura de posição, na falta da qual a família não seria mais do que um ponto de passagem obrigatório no percurso social neutralizado. A partir dessa constatação, observa-se no seio e em volta da família uma forte produção de mercadorias psicológicas destinadas a alimentá-la a partir de dois núcleos principais, a sexualidade e a infância. Segundo cada um desses eixos se desenvolve um duplo sistema de apoio que mobiliza sua constelação de especialistas e de conselheiros. Instrumentalizar uma sexualidade conjugal e uma intensificação afetiva entre cônjuges é uma idéia que não vai sozinha, se nos lembrarmos de que, da literatura cavalheiresca ao romance burguês, o amor, físico ou platônico, construiu no Ocidente seu mito contra a família. Programar uma harmonia educativa em direção dos filhos não é outra evidência, já que o próprio Freud, ourives na matéria, a julgava ainda por cima condenada. Portanto, os esforços atualmente desenvolvidos nessa dupla direção 34

Cf. SAINT-MARTIN, Monique de. "Uma grande famllla". Atas da pesquisa em ciên-

cias soei.ais, 31 jan. 1980.

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não têm nada de marginais e também não se deixam reduzir a uma moda: a famI1ia como estrutura social existe numa ampla medida, através do trabalho visando a produzi-la como estrutura relacional. É a família normal que é hoje a maior consumidora da psicologia. As fam11ias mais desestruturadas provêm sobretudo da Ajuda Social e de socorros econômicos, e se recrutam em outras categorias sociais que não sã"o as que têm acesso à cultura psicológica. O que motiva a ouvinte de tal programa radiofônico é menos a vontade de encontrar paliativos de disfunções patológicas do que a esperança de realizar uma "verdadeira" família, quer dizer, uma famfüa cuja vida relacional seja ao mesmo tempo intensa e harmoniosa. A psicologia representa aqui um papel homólogo ao da cirurgia estética, cuja finalidade é menos reparar os corpos do que lhes proporcionar uma mais-valia de harmonia e de beleza. A objetividade do psicológico Este novo modelo de animação social pela psicologia afeta até os setores que passam pelos mais firmemente estruturados pelas imposições da economia, como as relações de trabalho. Sabe-se que as primeiras intervenções da psicologia no domínio das aplicações industriais foram motivadas pela preocupação de aumentar a produtividade. As constatações dos psicossociólogos de empresas insistiam na ligação entre o interesse portado às relações no seio de uma equipe e o aumento de seu rendimento. Quando um pouco mais tarde a acentuação deslocou.se para a melhora das comunicações e a racionalização das formas de exercício da autoridade, podia-se ainda ver no recurso à psicologia uma tática para desmontar conflitos sociais. A preocupação prioritária de levar em conta o fator humano na empresa serviu de fato freqüentemente de álibi para não tocar em outras causas de afrontamento, como os salários ou as condições de trabalho. "Tomava-se cada vez mais evidente para nós que as principais condições implicadas no fracasso (dos operários) eram pessoais e constitucionais; que elas diziam respeito i economia dos próprios operários, mais do que à eventuali· dade de uma sorte contrária, ou a horríveis condições de trabalho, ou à situa· ção econômica geral, ou a outros fatores desse tipo. " 35 Assim se exprimia um dos primeiros psicossociólogos industriais em meio à grande crise econômica dos anos trinta. 35 ANDERSON, V.V. "The Contribution of Mental Hygiene to Industry'", Proceedings of the First Jnternational Congress of Mental Hygiene. Op. cit. p. 698.

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Portanto, sem que tais finalidades sejam excluídas, elas cessam hoje de esgotar O sentido do recurso à psicologia. Para retomar uma distinção de Jacques Delors, entre três níveis de problemas nas negociações sociais - o das oposições irredutíveis, o da disputa inevitável e o das convergências possíveis36 -, existem sem nenhuma dúvida oposições que podem ser radicais entre parceiros sociais no plano das opções políticas fundamentais. Mas a referência a um transtorno das estruturas econômicas perde toda consistência estratégica a partir do momento em que as próprias organizações sindicais e de oposição fazem seus os objetivos do desenvolvimento social e do crescimento econômico. Os parceiros sociais podem acampar em posições políticas irredutíveis, participando, ao mesmo tempo, do mesmo complexo sócio-econômico. Desde então, os afrontamentos concretos dizem respeito à partilha dos lucros, à organização do trabalho, à defesa, ao alargamento ou, ao contrário, à restrição das vantagens adquiridas. Domínio da "disputa inevitável" sem dúvida, já que os interlocutores tent~m, numa certa conjuntura, maximizar suas vantagens numa relação de força que diz respeito ao emprego, aos lucros, aos salários, às aposentadorias; à duração do trabalho, etc. Mas, cada vez mais, as imposições do mercado, a concorrência internacional, a política das multinacionais e dos bancos definem para o essencial as estratégias de uma empresa, o custo dos produtos e as margens de aumento salarial. Quando operários afrontavam um patrão particular, quem sabe o patronato das Minas ou da Siderurgia em uma greve, do conflito podia sair um sucesso ou um fracasso determinados para o essencial pela relação de força interna. Agora, bem ligeiro se disse que em razão da mundialização da economia, um aumento forte demais dos salários comprometeria a realização do Plano, a política de exportação, ou faria crescer ainda mais o desemprego. Que resta então a decidir num organismo de produção, quando o essencial é decidido em outro lugar? Reagendamentos internos, rearrumações na distribuição das tarefas, melhoras na maneira de as informações circularem na transmissão das ordens, na percepção dos subordinados para o que se lhes pede - e que, de qualquer maneira, eles serão obrigados a fazer. Trata-se do "domínio das convergências possíveis"? Digamos mais que hã um conjunto de problemas que podem ser tratados no quadto da empresa concebida como uma unidade fwicional, depois que se tiver extraído dos limites do negociávei as opções comandadas pelas leis do mercado. Esses objetivos referem-se essencialmente às regularizações relacionais no seio do organismo.

As questões suscetíveis de um tratamento psicológico são assim empurradas ao primeiro plano. Mas esse primeiro plano se põe a ocupar todo o palco se não houver outros. A promoção do relacional se desenvolve assim no vácuo deixado pelo deslocamento de um certo número de centros reais de decisão, da mesma maneira que, no quadro familiar, completava no recuo os papéis estruturados pelas tradições . .Constatar essa relativa autonomização do psicológico não significa absolutamente dar um estatuto autônomo à psicologia. De um lado, esta política das relações tem efeitos que não são somente psicológicos. Assim, na empresa, ela pode contribuir a lutar contra a ausência ou aumentar o investimento do pessoal em seu trabalho. Ela pode ainda ajudar a desmontar certos conflitos sociais. Mais profundamente, mobilizando todas as energias em proveito da empresa, cuja competitividade é o imperativo categórico, esta dimensão psicológica tem implicações econômicas essenciais. Nas grandes firmas modernas, sua cultura é objeto de novas estratégias do gerenciamento que consistem em delegar amplas margens de iniciativa e a transformar, na medida do possível, os executantes em decididores. 37 Nada então de desinteressado aqui. Nada também de espontâneo. O lugar que atrai o interesse para o psicológico e o relacional não resulta de uma descoberta tardia das virtudes da convivência. Ele expressa sobretudo um estado do sistema de produção onde as imposições objetivas da economia são colocadas fora do alcance das pessoas, que não têm outro recurso senão trabalhar o espaço de seu próprio potencial e de suas relações. É mais fãcil mudar seus desejos do que a ordem do mundo: a fórmula não é nova mas, o que é novo, é a disposição de tecnologias psicológicas para mudar um imperativo de moral provisória em programa permanente. É também a descoberta de que a finalidade visada por esse trabalho do psicológico não corresponde somente a uma adaptação às circunstâncias, mas constitui uma intensificação das potencialidades, a qual por sua vez muda as regras do jogo social. Sem dúvida, sabe-se hã muito que nenhum suplemento do psicológico, como se falaria de um suplemento de alma, mudará a lógica de um sistema econômico, fundado sobre a maximização dos lucros. Mas começamos a compreender que um trabalho psicológico pode modificar profundamente os objetivos que se desenrolam nesse campo. Dois organismos públicos foram recentemente criados para se encarregar dessas dimensões não produtivas da produção, um para mudar as condições de trabalho (Agência Nacional para a Melho-

36 Cf. BODMAN, Eric de & RICHARD, Bertrand. Changer les relations sociales. Les Editions d'Organization, 1976.

37 Cf. PAGÊS, Max; BONETTI, Michel; DE GAULEJAC, Vincent & DESCENDRE, Daniel. A empresa da organização, P.U.F., 1979.

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ra das Condições de Trabalho: A.N.A.C.T.), outra para desenvolvera formação contínua (Agência Nacional para o Desenvolvimento da Educação Permanente:

1

r

A.N.D.E.P.). Um grande esforço de flexibilidade relacional constitui hoje uma parte importante do que se chama a política social. Consiste em impulsionar ou em impor o discurso da mudança no mundo do trabalho. Mudar é menos transformar as condições de trabalho do que trabalhar a relação com o trabalho, quer dizer, o próprio trabalhador - ou o postulador de emprego. Deslocamento decisivo: a definição do trabalhador tende a ser menos dada por seu estado, caracterizado a· partir de seu posto e de seu estatuto no quadro da legislação do trabalho, do que pelo fato de que possa apresentar um conjunto de disposições pessoais que é convidado ele mesmo a cultivar. 38 Não fosse em

razão das técnicas obsoletas e da necessidade das reconversões rápidas, a profundidade de uma competência adquirida de uma vez por todas é menos requisitada do que a aptidão em mobilizar novas competências. Se é uma função política representada pela psicologia no quadro da produção, ela está lá mais do que em uma manipulação que consistiria em dissimular aos trabalhadores seus "verdadeiros interesses". Ela está no que criou ou é sllscetível de criar mais do que no que mascara. Começamos a perceber o que o trabalho do psicólogo contribui assim para criar, através da formação permanente, os estágios de reciclagem, os grupos de sensibilização das relações humanas, os exercícios de criatividade: um homem da mudança, cuja espontaneidade trabalhada por técnicas será capaz de enfrentar todas as situações que se apresentarão no mercado. Em suma, uma espécie de interino permanente. É preciso cessar de reduzir a psicologia, seja a um movimento de retorno sobre si com finalidades clínicas ou narcísicas, seja a um simples discurso de acompanhamento de práticas que teriam mais objetividade pelo fato de que produziriam outra coisa além dos estados de alma. Um tal esquema postula uma relação do público e do particular que está em via de se transformar profundamente. Sem dúvida, a vida em sociedade permanece em ampla medida estruturada por finalidades que uma sociologia clássica de tipo durkheimiano chamaria objetivos, e aos quais opomos tradicionalmente a subjetividade do psicológico. Mas, quando as opções econômicas, sociais e políticas se encontram fora do alcance do indivíduo, o psicológico se encontra dotado de uma realidade, se não autônoma, pelo menos autonomizada. Lidamos agora com uma subjetividade tanto mais "livre", porque ela só gera finalidades der38 Cf. DONZELOT, Jacques. "O prazer no trabalho". ln: CARPENTIER, J.; CASTEL, R. & DONZELOT, J. et al. Resistências à medicina e desmultiplicações do conceito de saúde. Op. cit.

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nsonas. A vida social, estando a partir de agora desinvestida em numerosos setores de opções que ultrapassam a encenação da economia pessoal, a constituição de uma sociabilidade saturada.pelo psicológico cria o último teatro onde se desdobra uma cultura relacional que não pode então ter outra finalidade além de sua própria reprodução. Narciso libertado, ou Prometeu aco"entado? Nos Estados Unidos esse processo constitui o pano de fundo de um debate que se engajou recentemente a propósito de .uma mudança de sensibilidade social que seus ideólogos batizaram "a cultura do narcisismo". 39 Christopher Lasch mostra igualmente a relação que existe entre o desinvestimento generalizado para a "ordem pública" e a popularização das técnicas da liberação emocional e outras inovações que estaríamos ainda mais no direito de chamar pós-psicanalíticas nos Estados Unidos. do que após-psicanálise, lá começou muito antes do que na França. Para Richard Sennett, a sociedade moderna perdeu progressivamente esse sentido da vida pública, essa capacidade, cultivada no mais alto ponto pela civilidade do século XVIII, de fazer a partilha entre uma vida pessoal, com seus investimentos privados, e uma existência social, espaço aberto a encontros, contatos, um comércio permitindo comunicar com outrem na base dos papéis sociais que assume. O interesse cada vez mais preponderante pelos problemas da personalidade, a procura de uma autenticidade que exige que um indivíduo seja autêntico e como que transparente através de todos os seus atos, abateram todos os interesses na esfera do eu. A intimidade, hoje, ''nos faz medir toda a realidade social na aurora da psicologia." 4 º Christopher l.asch retoma, aliás, análises recentes de psiquiatras e de psicanalistas41 que sublinham a freqüência de uma patologia nova, ou pelo menos cuja difusão em larga escala é um fenômeno novo, e que se caracterizaria por uma insatisfação crônica, um sentimento intenso de vazio interior, um desejo imenso de ser adulado, junto a uma desconfiança profun. 39 Cf. SENNETT, Richard. The fali of public man, New York, 1976, trad. fr. As tiranias da intimidade: Ed. du Seuil, 1979, e LASCH, Christopher. The Culture of Narcisism, New York, 1979, trad. fr. O complexo de Narciso, Laffont, 1980. Cf. também LIPOVETSKY, Gille5. Narciso ou a estratégia do vazio, O Debate. 5 out.

1980. 40 SENNETT, Richard. "A5 tirania5 da intimidade". Op. cit. p. 274. 41 Em particular KERNBERG, Otto. Borderline conditions and pathological narcisism, New York, 1975, trad. fr. I. As perturbações limites da personalidade, II. A personalidade narcisica, Privat, 1980.

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da a respeito de outrem e a uma impotência de se ligar de maneira duradoura, um terror de envelhecer e de morrer, etc. 42 As exigências dessa "personalidade narcísica de nosso tempo" estão no princípio de uma recomposição fundamental das relações que o indivíduo mantém com seu corpo, os outros, a sociedade. Aqui reina o eu, um eu de uma só vez pletórico e insatisfeito, cheio de veleidade e. exigente. Uma tal imersão na subjetividade é tirânica. Ela comanda uma "guerra de todos contra todos" que faz do novo estado de sociedade o equivalente do estado da natureza segundo Hobbes. A audiência que essa problemática encontra nos Estados Unidos confirmaria que uma sacudida cultural está abalando as sociedades ocidentais, caracterizada por uma inversão das relações do psicológico e dosocial, e cuja onda de choque é propagada pela difusão em todo o corpo social das novas tecnologias psicológicas. Deve-se portanto emitir certas reservas sobre a conceitualização desses fenômenos propostos pelos autores americanos na medida em que ela corre o risco de distorcer seu significado social. Falar da constituição de uma personalidade narcísica ilustra esta tentação tipicamente americana de procurar no indivíduo um princípio de totalização que permite uma leitura sintética do social e autoriza um olhar panorâmico a cavaleiro sobre a- história ( a personalidade de base de Kardiner, a personalidade extrovertida de Riessman, a personalidade esquizóide de Devereux, etc.). Não é contraditório juntar de certa maneira um conceito pré-construído pela psicologia, o narcisismo, para servir de fio condutor a uma crítica da inflação do psicológico?43 Acentuando o narcisismo, corremos o risco de reduzir a cultura psicológica à cultura da interioridade. Sennett, se conserva mais à distância do que Lasch a respeito da clínica. Partilha seu ponto de vista quando ele afirma: "As sociedades ocidentais estão passando de um tipo de sociedade quase dirigida pelos outros a uma sociedade dirigida do interior. " 44 Embora os dois autores enviem evidentemente, para dar conta de sua hipertrofia, ao contexto histórico e social geral, é bem seguodo eles um fechamento completo sobre o círculo da subjetividade que promove a cultura psicológica. 42 Cf. LASCH, Christopher. O complexo de Narciso. Op. cit. p. 60 e segs. 43

Lasch justifica assim sua iniciativa "Partindo do princípio que a pato1ogia simplesmente representa uma versão mais intema da normalidade, pode-se comiderar que o narcisismo patológico, freqüente nas perturbações do caráter, desse tipo, nos dá indicações sobre o narciüsmo como fenômeno social" (op. cit., p. 62). "Dar indicações", o que isso significa?

44 SENNETT, Richard. As tiranias da intimidade. Op. cit. p. 14.

Ora, uma tal Caracterização não dá conta senão de um aspecto do fenômeno. Se cultura psicológica há aí, ela se caracteriza evidentemente por uma certa superdeterminação da subjetividade e da intimidade. Mas, no fenômeno social atual, esta atitude de dobra constitui uma reação. Num sentido, a cultura psicológica consuma o contrário do narcisismo se entendemos por esse termo a procura de uma relação entre o espelho e o eu. Sublinhamos de fato que é a instância do grupo que dominava quase todas as tentativas e as realizações da nova cultura psicológica. Um grande sonho relacional a desequilibra: contatos, encontros, vida grupal, redes, convivência, trocas. Sem dúvida esta procura está condenada a uma espécie de imobilismo, obrigada a proceder ao golpe por golpe, retomar tudo cada vez do zero no hic et nunc de uma experiência para retecer os fios de uma sociabilidade que se·esvai logo. Mas isto significa que, mesmo se fracassa em se tornar sociedade, ela existe bem como projeto de sociabilidade, e não somente como vertigem de intimidade. É reativar a velha dicotomia entre o indivíduo e a sociedade postular uma opacidade subjetiva cuja presença seria imposta por uma pressão social. Como o isolamento individual pode tornar-se um fenômeno de massa? Não existem senão duas possibilidades. A primeira é a hipótese do narcisismo, a hipótese psicológica ou psicopatológica: a inflação dos esquemas psicológicos no social é o resultado da proliferação cancerígena de uma estrutura da personalidade de um certo tipo, cuja análise é devida a saberes psicológicos e cuja gênese deveria ser, na lógica total, igualmente psicológica. Poderemos belamente invocar o contexto social para explicar essa universalização de uma postura psicológica, não saberíamos ultrapassar o raciocínio analógico que provém das semelhanças entre traços de personalidade e certas características dominantes da estrutura social. Ê o que faz Lasch e até em certa medida, Sen~ nett. A outra hipótese é sociológica. A propósito do "suicídio egoísta", "tipo particular de suicida que resulta de uma individualização desmesurada" - de fato, é o suicídio de Narciso -, Durkheim escreve: "A sociedade não pode se desintegrar sem que, na mesma medida, o indivíduo não se desprenda da vida social, sem que seus próprios fins não se tornem preponderantes sobre os fins comuns, sem que sua personalidade, em uma palavra, não tenda a se colocar acima da personalidade coletiva. Mais os grupos aos quais pertence enfraquecem, menos ele depende deles, mais, em seguida, ele só depende de si mesmo para não conhecer outras regras de conduta senão as fundadas em seus interesses particulares. " 45 O egoísmo do desdobramento é menos uma estru45

DURKHEIM, Emile. O suicídio. P.U.F., 1967. p. 223.

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tura da personalidade do que urna posição de refúgio, com"'.1dada por certas transformações sociais. Não investimento do social e do pohtico d~~ l_ado, superinvestimento do psicológico do outro: o lugar da cultura ps1colo~~ca é no vácuo deixado por essa dialética. Quer dizer, também, que ela li1~ ~pua ou se contrai em função da conjuntura social e política. Pode-se -: pod1a-~e c~da vez menos até há pouco - ter a impressão de que os espaços deixados a psicologia são cada vez mais amplos. Isto significa que estamos_ ~ogados em ~ma cultura narcísica? Não existe nenhuma razão para substancialtzar esta conJ~tura histórica. Sem dúvida, como sugere Durkheim, a ausência de fins coletivos ou a impossibilidade de deles participar impõem uma co~versão ou uma inversão, fins pessoais de fora para dentro, do público ao particular. M~s, ~u: a onda da história se lance outra vez, e esse narcisismo desaparece: os mdi~duos que se tinham dobrado sobre a cultura psicológica se reencon~ram entao pessoas sociais. O narcisismo não é nem sua natureza nem se~ d:st1:°"o e o~ e~f orços que despendem, mesmo nos períodos aparentemente unove1s ~a _hi~toria, para colocar no palco um grande sonho relacional mais do que o mturusta já o provam. . Esse desenvolvimento de uma cultura psicológica de massa se situa en46 tão finalmente na confluência de várias nascentes: 1. A ampla divulgação de esquemas de interpretação_ e_ de t~cnic~s. de intervenção que têm freqüentemente sua origem na trad1ça? ps~c_ochmca, mas que tem transbordado as fronteiras do patológico. A ps1canáhse e sua posteridade foram escolhidas aqui como placa giratória para ~preender esta lógica da passagem do terapêutico ao paraterapêutico, em segm~a ~o extrat:rapêutico. De fato, seu impacto foi o mais espetacular nestes últ1mos de~enios, pelo menos nos Estados Unidos e na França. Mas um estudo exa~shvo deveria substituí-lo na dinâmica do desenvolvimento geral das tecnologias d~ intervenção sobre a normalidade, cujo papel freqüentemente i:nais discreto fm igualmente determinante: psicopedagogia, psicologia industnal, trabalho em grupos na tradição psicossociológica de Lewin, comportamentahsmo, etc.

2. A retomada dessas técnicas psicológicas nas experiências ~e trab~o sobre a sociabilidade ou de trabalho sobre a normalidade. Expenmen~oes freqüentemente marginais de grupos e de redes que apa~eceram _como ~mto~ máticas de uma transformação profunda das regras do Jogo social. Assun, relação do corpo encenado nesses meios. Os trabalhos dos etnólogos mostra-

ram que nada talvez é _mais normalizado do que as condutas que regulam a aproximação do corpo. Nossas sociedades ocidentais, em particular, se caracterizam por um tabu do tocar, tão poderoso que a própria psicanálise, afrontando o tabu do sexo, respeitou, se não reforçou, o tabu do corpo. Não é então um pequeno deslocamento daquele que substitui as tecnologias de intervenção sobre a psyché pelas tecn.ologias de intervenção sobre o corpo. 47 O que os puristas interpretarão, através da passagem de Freud a Reich, depois a Lowen, nestes termos de um achatamento da profundidade do inconsciente na superfície do corpo e talvez, numa outra dimensão, tão revolucionária quanto a generalização do conceito de sexualidade instrumentalizada pela psicanálise. É em todo caso o índice de uma desestabilização do código corporal nas sociedades modernas, quer dizer, um dos rituais sociais dos mais poderosos no Ocidente. E, em virtude da capacidade já sublinhada dessas experiências a se exportar, elas divulgam imediatamente fora de seu quadro técnico a desestabilização das quais são o sinal. 3. Um contexto social político e cultural geral que induz à privatização, ou melhor, ao superinvestimento das práticas relacionais, na medida em que um certo número de objetivos que permitiriam tradicionalmente uma outra estruturação das relações entre a ordem pública e a vida particular escapam ao domínio dos atores históricos. Evocou-se os efeitos desta situação global em certos setores particulares como a reestruturação do espaço familiar ou certas transformações contemporâneas da relação com o trabalho. A cultura relacional daí desprende totalmente sua filiação psicoclínica e abandona qualquer referência às situações experimentais onde ela se colocou primeiramente em cena para construir novas formas de sociabilidade. Por exemplo, que faz uma equipe de prevenção implantada num quarteirão de imigrantes? Mudar as condições de morada, encontrar trabalho para os adolescentes, modificar os reflexos racistas da população exterior? Ostrabalhadores sociais estão bem colocados para saber que essas possibilidades de uma intervenção, diretamente social ou política, estão na maioria do tempo fora dos limites de seu mandato. Então tecem redes de relações, tomam possíveis ligações afetivas, estruturam empregos de tempo em volta de atividades que têm por fim intensificar encontros, despertar interesses, saturar desejos no quadro de uma sociabilidade construída por sua própria estratégia. Seu trabalho liga-se menos à possibilidade de agir sobre causas objetivas do que a sua capacidade de produzir um espaço de sociabilidade diferente das condições nas quais vive sua clientela. 47

46 Cf. LACROSSE, Jean-Marie. "Uma cultura pós-terapêutica''. Op. cit.

Cf. LOVELL, Anne. "Palavras de cura e energias em sociedade". Op. cit.

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A análise da cultura psicológica desemboca assim nessa terra de ninguém, onde as fronteiras entre o psicológico e o social se embaralham porque uma soci8.bilidade programada por técnicas psicológicas e relacionais representa o papel de substituto de um social em crise.

Conclusão

Em direção a uma ordem pós-disciplinar? Chegamos, sem dúvida, ao final de um ciclo. Um modelo de intervenção nas perturbações da psyché, constituído há quase dois séculos e que se manteve e se enriqueceu através dos renovamentos sucessivos, está perdendo a preeminência. Isto não significa que os dispositivos como o do setor psiquiátrico ou da psicanálise estejam invalidados ou ultrapassados, mas que as mais significativas inovações, as que dizem respeito ao futuro, não podem mais ser pensadas exclusivamente em sua filiação. Se vai bem assim, é preciso revisar um certo número de representações, que alimentaram as esperanças ou os temores dos protagonistas, que se afrontaram nestes últimos anos nesse campo. Alguns, sem dúvida, resistirã'o a essa necessidade: sempre é aborrecido ouvir-se dizer que não estamos mais nos postos avançados da história. Eles poderão encontrar argumentos no fato de que a transformação precedentemente descrita deixou subsistir todos os estratos anteriores de organização. Resta então suporte bastante na realidade para nela pregar sua nostalgia. Mesmo um defensor do hospital psiquiátrico ainda pode defender a vitalidade de seu modelo. Que não fará então um psicanalista? Mas, se levarmos em conta a convergência das transformações que intervieram nestes últimos anos, a evidência de uma mudança decisiva se impõe. Recapitulemos as principais direções, segundo as quais as cartas foram distribuídas recentemente: retorno ao objetivismo médico e ao positivismo

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1 científico, promoção de novas tecnologias de gestão das "populações proble-

máticas" (quer dizer que representam problemas para os responsáveis pela manutenção de uma ordem social e ideológica), desenvolvimento de técnicas de intensificação psicológica, além do corte do normal e do patológico. Já que se trata de processos em curso de implantação, ainda é impossível propor um balanço preciso de suas audiências respectivas. Mas foram bastante empregados para que nos autorizemos pelo menos a desenhar a trajetória que traçam. Por outro lado, é muito mais aventuroso decidir .se essas transformações vão na direção de uma dispersão máxima, de tal maneira que aí haveria somente uma justaposição de tentativas de soluções estilhaçadas para problemas heterogêneos, ou se assistimos à instalação de um novo dispositivo de conjunto, cuja coerência relativa seria comparável à do sistema que vem de se apagar e que seria bastante apropriada para comandar no futuro. A primeira dificuldade está no fato de que, se novo sistema há, ele não está ainda completamente instalado, ou que nos falta recuo histórico necessário para objetivar seu funcionamento, pelo menos. A segunda dificuldade se dá por uma razão de método, que recorta a primeira e se agrava. É o recu.rso à história que dá sua espessura ao presente e permite nele destacar objetivos ultrapassando a simples fenomenologia descritiva das práticas. Mas acontece que uma análise do tipo genealógico acaba mostrando que uma linhagem se esgota e se perde, talvez definitivamente. Pelo que então substituir a inteligibilidade da filiação histórica quando ela corre o risco de funcionar como armadilha? Questão tanto mais delicada que, se mutação existe, ela não se contenta em quebrar a lei de uma série. Ela desconecta e reconecta de outra maneira séries independentes, ela recompõe toda uma paisagem a partir de sua própria linha de fratura. A transformação atual não se reduz, de fato, ao reforçamento do dispositivo já instalado. Não há somente mais pessoas atingidas pelas novas modalidades de encargo, um enriquecimento progressivo das tecnologias mobilizadas, uma especialização crescente dos agentes que intervêm, uma complexidade contínua da rede institucional que se instala, etc. Constata-se também a emergência de estratégias inéditas: a gestão diferencial das populações não se situa na continuidade de sua segregação no seio dos espaços fechados, e difere igualmente do intervencionismo assistencialista dos programas de psiquiatria comunitária. Há igualmente deslocamento dos objetivos perseguidos, já que técnicas de intensificação do funcionamento normal se superpõem, a partir de então, às das que propunham reparar disfunções (modelo clínico) ou evitar que ocorram (modelo preventivo). Orientações igualmente dinâmicas parecem corresponder a intencionalidades divergentes: simultaneidade de uma 170

volta ao objetivismo médico e de uma fuga para a frente na cultura psicológica, por exemplo, ou reforço dos controles centralizados, apoiados pela informática e encorajamentos dados aos movimentos associacionistas para maximizar as responsabilidades da iniciativa particular. Se unidade há, ela não se exprimirá então a partir de um simples inventário dessas abordagens. O princípio deverá ser procurado em outro plano, além do da descrição empírica, o da complementaridade dessas práticas, a partir de meta comum. PÓd_er-se-ia dizer então que essas diferentes orientações manifestam um mesmo partido, tomado reducionista no modelo d~ humanidade que constituem em alvo de suas intervenções. Elas podem assnn se inscrever numa estratégia geral de gestão das diferenças, das fragilidades e dos riscos que parece caracterizar as sociedades neoliberais.

A bipolaridade objetivismo-pragmatismo Verificando a primeira parte da hipótese, constata-se um deslizamento geral de todos os dispositivos médico-psicológicos, tendendo a impor um modelo do homem e da ação sobre o homem que significa impasse na dimensão do inconsciente, a espessura do social e o peso da história. É evidente para um primeiro conjunto dessas orientações novas ou antigas mais investidas de esperanças novas, que são atualmente impulsionadas para a frente do palco. A referência a um modelo clínico estritamente médico, a fascinação pelas explicações biológicas ou bioquímicas, a procura de um determinismo orgânico ou fisiológico, quem sabe de um código genético na origem das perturbações psíquicas, a programação de protocolo de reforçamento das condutas positivas e de eliminação das práticas negativas pela terapia comportamental, são tanto mais avançadas quanto o sucesso conspira a desvalorizar como subjetivista, pré-científica, ideológica, a atenção às totalidades concretas pessoais, sociais ou históricas. Mas a mesma desestruturação do sentido é operada de maneira mais radical ainda pelas tecnologias informá'ticas aplicadàs à ação sanitária e social. A pessoa desaparece na condição de interlocutor da intervenção, os indivíduos concretos são decompostos segundo tal ou qual objetivo definido no quadro de uma programação administrativa e recompostos em fluxos abstratos de populações. Que se trate sobretudo de intervir diretamente nos primeiros casos, ou de prevenir riscos no segundo, o paradigma comandando a prática é sempre um objetivismo que se justifica em nome da eficácia: dispor de um conjunto mobilizável de informações fiáveis a fnn de modificar uma situação definida a partir de elementos que se podem instrumentalizar. 171

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Que wna tal representação funcione o mais freqüentemente como mito, ou se se prefere como idéia reguladora, não tira nada à sua validade. O ideal consiste aqui em se aproximar, tanto quanto se pode fazer, de um modelo de humanidade como espécie, série, sistema input-output etc., que permite constituir protocolos precisos de intervenção cujos efeitos seriam eles próprios mensuráveis. Mesmo se se pretende mais como no século XIX, em que tudo o que não cai sob o escalpelo ou não entra na máquina não tem existência, essas dimensões se encontram de fato sacrificadas na medida em que não se adequam a procedimentos de validação científica.· Aparentemente, a linha de transformação seguida, a partir da posteridade da psicanálise e que se expande na nova cultura psicológica, escapa a essas tentações reducionistas. Ao mesmo tempo, os que recusam a seus representantes a seriedade da cientificidade, e os que foram seduzidos pela sua atenção passional ao presente, sua procura de autenticidade pessoal e de relações transparentes com outrem, sublinham a dimensão humanista de seu empreendimento. Mas esta meta se realiza diminuindo a trajetória da pessoa no hic et nunc da experiência imediata e identificando a relação a outrem a uma capacidade técnica de comunicar. A utopia convencional cobre uma rachadura do tecnicismo até nódulos anteriormente preservados da subjetividade e do comércio com outrem. O "potencial humano" - a um só tempo pessoal e relacional - é de fato um capital objetivável que se cultiva a fim de se tornar mais "atuante" na sociabilidade, trabalho ou gozo. Um postulado volta constantemente na literatura da nova "psicologia humanista": o homem pseudonormal só funcionaria a 20% de suas potencialidades (por que 20%, aliás?). Lutar contra as alienações torna-se assim uma tarefa programável cujas etapas são mensuráveis, ao longo dessa espécie de percurso do combatente, que é o empreendimento da liberação pessoal. Sob uma maneira" que se quer aventurosa de desafiar os confortos e os conformismos subsiste então um modelo de homem que visa também a operacionalizar e vai por vezes até encarecer naquilo mais fora de moda do cientismo. Marta e Maria numa só e mesma pessoa, já é Wilhelm Reich, profeta da revolução social e sexual construindo suas caixinhas de orgones. É toda a bioenergia atual com sua procura simultânea Hde experiências de cúpula" e de um fundamento bioquímico - às vezes, nas tendências influenciadas pelo orientalismo, cosmológico - da circulação energética. A existência de uma tal dualidade não é estranha à audiência que encontram essas orientações. Elas puderam integrar certas aspirações da contracultura e até uma sensibilidade atravessada pela psicanálise e a crítica política.

O imaginário da busca do Graal funciona aí ainda: procura de uma superação pessoal e de Uma comunidade liberada das alienações e das hierarquias. Mas, procurando-se cauções sábias, a utopia se troca em tecnicismo, e ganha assim seus brevês de realismo. Contrariamente aos defensores do objetivismo científico, os representantes dessa corrente n[o fazem impasse na pessoa: eles a reinterpretam no quadro de um pragmatismo total. Esse pragmatismo domina hoje o campo do que chamei as para terapias, atingidas pelas insatisfações afetivas ou sexuais, as dificuldades conjugais ou familiares, os problemas da solid[o e do mal-estar existencial - o que alguns chamaram "doenças da civilização" e sobre as quais não se sabe muita coisa, salvo que não têm a ver com a medicina nem com as tecnologias de intervenção mais "científicas". As novas abordagens respondem assim a demandas específicas levadas por um público diferente daquele que freqüenta as instituições mais tradicionais e os profissionais mais clássicos. Elas ampliam o círculo daqueles cujos problemas talvez provenham de uma intervenção especializada suavizando a maneira como isto é proposto e dispensado. No quadro da volta forte dos valores da rentabilidade, de procura de resultados tangíveis e de mudanças avaliáveis, constata-se assim uma bipolaridade, mais do que uma franca oposição, entre as tendências propriamente científicas, cujos suportes institucionais provêm em geral das tradições mais antigas e das implantações mais respeitáveis (medicina, pesquisa científica, administrações públicas) do que as que se desdobram às margens dos aparelhos oficiais e acumularam um capital mínimo de legitimidade. Esquematicamente, diremos que o pólo mais institucionalizado gera mais os disfuncionamentos e os riscos mais objetivos - assinalados por uma autoridade exterior em razão das perturbações daqueles que assim são afetados ameaçam ser portadores - enquanto que o pólo mais difuso toma sobretudo encargo das fragilidades mais subjetivas- as que são experimentadas sob a forma de mal-estares e de insatisfações e incitam freqüentemente a própria pessoa a levar seu problema a um especialista competente. Claro, uma tal oposição é demasiado cortada. Os diferentes tipos de populações são distribuídos ou se distribuem ao longo dessa gama em função de muitas variáveis, entre as quais a origem social não é a menor, mas que não podem ser analisadas aqui por si mesmas. Esse panorama de conjunto, apesar disso, deixa ver uma característica essencial da transfonnação em curso: a propensão a fazer nrover de soluções técnicas todos os problemas de consenso. A partir do momento em que esta exigência se impõe, sua atuação passa pela eliminação de' certas dimensões antropológicas demasiado investidas de 173

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sentido para se prestarem a uma instrumentalização rigorosa. Assim o car_áter simbólico da linguagem (exceto fazer deste um sistema de sinais); o projeto de dominar seu meio ambiente social ( exceto reduzi-lo a um conJunto de fatores quantificáveis, cuja dinâmica obedece às leis do engineering); a ~tenção de se reapropriar de sua história (exceto a se contentar em reencontra-la, sob forma de traços inscritos no corpo). A coerência subjacente às ~bordag~ns atualmente dominantes é minar a possibilidade de interpelar a eficacrnpOSitivista, a partir de um estatuto da pessoa que escapa~a a~ ~o~elo de c1~n:1ficídade ipresentada pelas ciências ditas exatas, ou as exigencias pragmaticas da adaptação ao meio ambiente. Mede-se assim a importância, e também os limites do deslocamento que está se efetuando. Evidentemente, nada diz que todas essas orientações sejam novas: algumas reativam simplesmente os mais velhos devaneios ~o cientific_ismo. Não se trata mais aqui de se ligar posteriormente em nostalgia da manerra pela quai as recentes hegemonias ( sobretudo a psiquiatria social e a psicanálise) tinham podido orquestrar essas referências à pessoa e ao social que a ofensiva tecnicista atuai desvitaliza. Em relação à situação de há alguns anos, ou em todo caso à representação que em geral se faz, aparecem, no entanto, pelo menos três diferenças importantes. . Primeiro, uma alteração do imaginário profissionai (capítulo 2) e mais amplamente social ( capítulo 4), impondo essas tecnologias com~ suportes nece:s:sários das aspirações à mudança que se querem realistas e cnve1s. Esta pressão é tão forte que trabalha no próprio interior das orientações que_ lhe são opostas. Assim, uma parte do meio analítico se interroga sobre o umversalismo de sua abordagem e é tentada por uma colaboração com as novas terapias, pelo menos para apagar certas demandas que lhe são endereçadas.1 Assim certas correntes à procura de alternativas políticas para os modelos médico-psicológicos tentam se apoiar em uma ou várias dessas novas tecnologias para conciliar a vontade de sair do esquema médico e o cuidado de 2 oferecer uma tornada concreta da realidade prática. Segundo, a aineaça do que pode ser denunciado como um risco de hegemonia de uma orientação particular (imperialismo psiquiátrico ou ps1canal1s1 A tentação do sincretismo (que triunfou no meio psicanalític? an_ierican~) vai às vezes até procurar a aliança com o comportamental.ismo. O pnme17.o ptes!de~te da_ Asrnciação francesa de terapia comportamental, o doutor Wildocher, e ps1canal15ta. 2 É o caso, por exemplo, da corrente que se exprime no~ Cadernos Cr_,fticos de Te.rapta Familiar e de Práticas da Ramificação, dirigidos por Mony El Ka1m; o~de ~m~ v_:r-

são ampliada da terapia familiar é chamada para dar um s_u~orte tec~1.co a exigencia de restituir à prática de tratamento suas dimensões socms e políticas.

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mo, por exemplo), deslocou-se. A totalidade nova que se desenha não é o domínio de um dispositivo único em medida de ocupar todo o terreno das intervenções comandadas pelo cuidado de se encarregar das turbulências psicológicas ou sociais. Ela seria mais o resultado de uma articulação muito bem azeitada de um conjunto de respostas técnicas a problemas heterogêneos, cujo denominador comum é precisamente serem pensadas como devendo provir de soluções técnicas. Se totalitarismo pode existir nessa via, será, se podemos assim dizer, um totalitarismo liberal, quer dizer, pondo em concorrência orientações diversas para impor uma mesma concepção da ordem. Terceiro, a relação de domínio das técnicas está igualmente se modificando profundamente no sentido em que algumas dentre elas escapain cada vez mais ao controle dos profissionais. Se estes foram freqüentemente colocados ao lado, recentemente no quadro de urna crítica social ou política de seu mandato, é porque os supunham os principais agentes da instrumentalização dos dispositivos que instalavam. Ora, em razão mesmo da autonomização das tecnologias, acontece em certos setores uma inversão da relação dos profissionais e dos administradores (capítulo 3) que, se inocenta os primeiros, subordina-os aos segundos. Torna-se de agora em diante possível, especialmente em matéria de prevenção, programar protocolos de intervenção liberados de toda referência a um assunto concreto: determinação dos fatores de risco, por exemplo, que pennite planificar antecipadamente operações combinadas sobre tal ou tal fluxo de população, e que não são evidentemente da origem do próprio técnico. Mudança tecnológica e história

Na medida em que ê nova, esta situação convida a que nos interroguemos sobre as relações que ela poderia manter com mudanças igualmente re· centes do contexto social e político. Uma das características da evolução político-social desses últimos anos (aproximativamente, sob os sete anos giscardianos) é o fato de que o Estado parece ter voltado a certas das responsabilidades que tinha tomado, desde a era keynesiana, na regulação dos mecanismos econômicos em geral e na administração da assistência em particular. Se trata, para ele, corno dizem alguns, de "organizar seu próprio desfazer"? 3 De fato, a análise da transformação do setor sanitário e social já sugeriu uma outra interpretação. O Estado se desfez de certas tarefas que são bem ou melhor assumidas de outra maneira e a um 3

NORA, Simon & MINC, Alain. A informatização da sociedade. Documentação Francesa, 1978,p. !08.

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custo melhor, tudo reforçando seu monopólio sobre a definição das grandes opções imperativas, a planificação da carta de conjunto dos serviços e o controle a posteriori da conformidade das realizações dos objetivos que se propôs. Existe assim uma relação entre o fechamento de novas formas de controle centralizadas, através em particular dos sistemas informáticos, e o desenvolvimento de setores em liberdade sob vigilância, quer dizer, convidados a autogerar as obrigações que lbes são impostas. Conjunção, então, de um pólo de organização estrita e de um pólo de iniciativas circunscritas. É, sobre o plano de um novo modelo geral de sociedade "dual", a complementaridade que poderia existir entre um setor econômico altamente competitivo e submetido às exigências da concorrência internacional e um setor de serviços coletivos e comunitários, dispensando sobretudo amenidades, onde a autonomia da sociedade civil seria diz-se preservada.• Mas uma dualidade desse tipo, apresentada nesse nível como um grande desígnio, já está realizada concretamente em alguns setores .da vida social. Assim, nas grandes empresas de implantação internacional, em que as decisões engajam a política da firma, são tomadas por um número limitado de dirigentes em função de imperativos bancários ou de mercado que permanecem opacos ao conjunto do pessoal, cuja opinião nem mesmo seria solicitada. Por outro lado, a política da firma a respeito desse pessoal o incita a fazer prova de iniciativa e mesmo de criatividade, a intensificar seu potencial psicológico e a mobilizar sua espontaneidade para ser atuante nesse quadro imposto. 5 E não é sem dúvida por acaso ou filantropia que essas empresas estão, através da organização de diferentes estágios internos ou externos, entre as maiores consumidoras das novas técnicas psicológicas. Mas as instituições sanitárias e sociais são também convidadas a funcionar como empresas competitivas e dinâmicas, enquanto que as imposições e os controles se apertam no plano dos objetivos que lhes são assinalados ( capítulo 3). Este relacionamento de um pólo hiper-racionalizado e controlado e de um pólo onde pode se expandir uma liberdade de bom tom, à condição de que seja cuidadosamente enquadrada - no final, um casal funcional informatizaçãa-psicologização - se distingue de formas mais bem analisadas e mais freqüentemente criticadas do exercício do poder, pelos quais 1J!llª autoridade se impõe do alto reduzindo os alvéolos de liberdade que tentam lbe resistir. A este último esquema corresponde a problemática da repressão e a, correla4 Idem,p. 115. 5 Cf. PAGÊS, Max; BONETTI, Michel; DE GAULEJAC, Vincent & DESCENDRE, Daniel. O domínio da organização. Op. cit.

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tiva, da liberação; ele está longe de representar a forma única sob a qual se impõe hoje o consenso. Um outro modelo de regulação se desenvolve: a incitação a colaborar, de seu lugar e segundo suas necessidades, com a gestão das imposições no quadro de uma divisão do trabalho entre as instâncias de dominação e as que a ela se sujeitam. "E se cada um criasse seu próprio emprego?" Esse slogan nascido num período de desemprego poderia passar por uma brincadeira de mau gosto. É de fato uma ilustração limite dessa estratégia geral que consiste em mobilizar os indivíduos submetidos às imposições para que tomem eles mesmos o encargo da exigência de regulá-las. É a mesma lógica, de fato, que vimos operar na reorganização da Ação Sanitária e Social, e que comanda uma redefmição das relações do público e do particular, do central e do local. É ela também que conquista os setores econômicos mais avançados, onde o pessoal é requisitado a levar ele mesmo em conta as exigências draconianas da competitividade. Assim, em um número crescente de situações, a sustentação da obrigação sobre o indivíduo mio passa pela' coerção, mas pela sua mobilização voluntária. A alternativa não é se submeter ou se revoltar, mas reunir seu potencial pessoal a serviço da tarefa a cumprir, ou ser marginalizado. Uma nova fi. gura da morte social se desenha. Ela não passa pela exclusão brutal, a segregação, ela anula os indivíduos desconectando-os dos centros de decisões e·dos circuitos de trocas. É também um modelo possível da sociedade dual: a que secreta a morte lenta do desemprego assistido, os impasses existenciais em forma de divagações bucólicas, a divisão entre os que produzem e que decidem, de um lado, e dos que sobrevivem em novas reservas indígenas, de outro. Uma tal estratégia implica uma recomposição profunda da funçãopessoa. Ela a chama para se impor a tecnologias psicológicas diferentes das que prevaleciam até agora. A pessoa deve viver a exigência do hic et nunc, saber se fazer acolhedora à eventualidade e ao acontecimento, estar apta a reagir a isso imediatamente. É o perfil psicológico promovido pelos técnicos do "trabalho sobre a normalidade", através de sua maneira de instrumentalizar a mudança pessoal. A analogia é pelo menos perturbadora entre esse novo homo psychologicus e a mobilidade requisitada de um ser sem história e sem raízes, capaz desse feito de se reconverter ou de se reciclar a cada instante para responder às exigências de não importa qual planificação tecnocrática. Estar sujeito segundo uma tal lógica é igualmente maximizar suas atuações e reduzir seus afastamentos em relação a uma norma-média. Aqui também novas tecnologias psicológicas, em particular as do comportamentalismo, 177

tornam possível um tal reforço das condutas positivas_ e uma tal eliminação dos comportamentos negativos. Não há nem mesmo mais necessidade de supor uma origem patológica dos sintomas a tratar, já que o que é levado em conta, é somente a distância dos comportamentos em relação à média. Esse maravilhoso instrumento de consolidação do consenso suscetível a um só tempo de reduzir os afastamentos indeséjáveis e de reforçar as condutas de~e-. jáveis não deu ainda sua medida. As críticas do comportamentalismo acentuaram em geral os métodos de advertir brutais do tipo Laranja mecânica, enquanto que cada vez mais ele funciona melhor a pedido e no contrato do que na imposição selvagem. Propondo um modelo pedagógico de reforçamento da normalidade que ultrapassa o modelo clínico de eliminação dos sintomas, as terapias comportamentais estão, nisso também, inovando profundamente. Da mesma maneira, as novas tecnologias preventivas não se deixam reduzir à função de detectação das anomalias, das deficiências e dos riscos. Elas poderiam constituir redes para os superdotados, tanto quanto para os seus contrários, programar circuitos promocionais tão bem quanto segregativos, e até distribuir indivíduos normais-médios segundo itinerários traçados antecipadamente. Não somente limpar o corpo social arrancando deles as plantas indesejáveis, mas dele fazendo um jardim francês com suas aléias reais e seus becos, seus fluxos de população de circulação variável e os circuitos montados em derivação que levam a ruas sem saída. A crítica das intervenções médico-psicológicas centrou-se no decorrer do último decênio na denúncia de seu caráter diretamente coercitivo. Além da sensibilidade política da época, esse preconceito se deveu ao fato de que as práticas tomadas por alvo pertenciam principalmente aos dois grandes dispositivos que historicamente se constituíram como paliativos dos disfuncionamentos do consenso social: o modelo segregativo e o modelo assistencialista. A exclusão de certas formas de desvio, depois a intervenção in vivo na comunidade para reduzi-las, foram de fato .as principais estratégias da gestão das populações com problemas que sucessivamente, depois simultaneamente, ocuparam a frente do palco desde o século XIX. A situação está hoje profundamente modificada em razão da emergência recente de uma terceira estratégia, cuja vocação poderia ser também global: não se trata somente, mesmo se se trata ainda, de manter a ordem psicológica ou social corrigindo seus desvios, mas de construir um mundo psicológico ou social ordenado trabalhando o material humano; não somente reparar ou prevenir deficiências, mas programar a eficiência. Tal seria a ordem pós-disciplinar que não passaria mais pela imposição dos constrangimentos, mas pela mudança e a gerência do fator 178

humano em função das figuras novas sob as quais se apresenta a necessidade social. Uma última nota sobre o "pessimismo" dessas análises. Para quê e a quem servem elas se elas nos aparecem sitiadas de todos os lados pelas estratégias todo-poderosas e se volta a afirmar, como dizia Alain, que "o invisível nos conduz: os deuses mais terríveis permanecem escondidos"? Precisamente para que os novos deuses não fiquem escondidos, e que designando-os se desprenda uma via para dominá-los. Pois não há destino a não ser lá onde não há mais história, e é bem a última implicação desse propósito. A chegada de fórmulas inéditas de gestão e de manipulação das populações, o domínio crescente das empresas de programação que culminam no projeto de programar a si mesmo, a exigência de relatar o sentido de toda iniciativa a uma rentabilidade imedi,, La, segundo os critérios de eficiência inspirados pelos cálculos mercadores, recobriram progressivamente, nestes últimos anos, os espaços desertados por uma outra concepção da prática pessoal e coletiva. Se continuasse evoluindo assim, logo só haveria otimistas ou imbecis. O que significaria isso? Que a história dos homens se deixou dissolver na glorificação da mudança tecno16gica. Mas uma constatação de evolução tendencial não significa sua aceitação, e a lição pode da mesma maneira se dar ao contrário. E se era verdade que nesse momento a vela da história se infla novamente, isto liberaria oportunidades novas para combater essas orientações, cujo domínio se fez cada vez mais válido ao longo dos últimos anos. Para combatê-las e não para se contentar em assistir ao seu desaparecimento: elas estão tão profundamente inscritas nas lógicas de reestruturação das sociedades modernas que não basta certamente uma mudança de maioria política para torná-las caducas.

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Índice remissivo Ação sanitária e social, 17, 50, 60, Antipsiquiatria, desenvolvimento da 101, 116, 119-20, 129-32, 177;ver -, 13, 21, 24-5, 27-8, 81-2; limitambémD.A.S.S., políticas sociais. tes da-, 18, 29-32; efeitos da -, Administração (papel da -), 32,4929-30, 76-7, 91. 50, 51, 59-60, 62, 63-4, 119-21, Anzieu, D., 134. 122, 129-31; relação da- e a prá- Aqui e agora (culto do-), 142, 143, tica terapêutica, 42, 59-60, 102, 165, 172. 107-10, 112-3, 116-7, 130-1, 175; Asilo, 16, 22; ver também hospital. ver também Estado, políticas so- A-social-sociabilidade, ver cultura psiciais, pública cológica (autonomização da -), Alain, 179. psicológica (instalação na -). Alienação (mental), 69, 72-3, 80-1; Assistência, 15, 51, 62, 69, 71, 76, ver também loucura; - social, 13, 101, 117-8, 123-4, 175-6. 14, 146, 153, 172-3. Assistencialismo, 36-7, 45, 69, 71-3, 170, 178; ver também filantropia. Alienismo, alienistas, 36, 49-50, 5960, 68, 70-1, 72, 73, 74, 77; ver Associacionismo, 19,118,120,176. também assistencialismo. Audisio, M., 38, 49. Althusser, L., 136. Autogestão, 19, 119-20, 157, 173; Amiel, H.-F., 14, 144. ver também associacionismo. Análise transacional, 14, 141, 145-6, 148, 149. Baciocchi, M., 74. Anderson, V., 159. Back, K., 142. Anomalias, 52, 70-1, 98, 112, 114, Ballly-Salin, J ., 41. 116, 124, 125, 178; ver também Basag]ia, Fr., 31, 48, 55. desvio, deficiéncia. Bec, C., 34. 191

Beers, CL, 70. Benevoléncia, ver associacioP..ismo. Benhaim, S., 58. Berne, E., 141. Bioenergia, 14, 140, 141, 148, 149, 152, 172-3. Bioquímica, 92-4, 99, 171, 172. Blanc, J., 102. Bles, G., 65. Bloch-Lainé, Fr., 102 Bodman, E. de, 160. Bonetti, M., 161, 176. Bonnafé, L., 36, 41, 42, 44, 46, 49, 53, 71. Brisset, Ch., 33, 38, 77.

Caillard, V., 94. Canguilhem, G., li!. Caplan, G., 129. Carpentier, J., 147, 162. Carter, R., 62. Castel, F., 47, 57, 94, 129, 142. Castel, R., 27, 38, 4 7, 52, 57, 69, 84, 94, 124, 129,135,142,154, 162. Centros de Ajuda para o Trabalho (C.A.T.), ver oficinas protegidas. Chauviere, M. 53, 1 18. Chesse], P., 103. C.H. U. (Centros Hospitalares Universitários), ver universitária C.M.P.P. (Centros Médico-Psicopedagógicos), 52, 135. Coerção, 19, 23, 24-5, 28, 40, 50, 111, 176-7, 178; ver também repressão, segregação. Comrnunity Mental Health Centers, 15,47,62, 129. Comportamentalismo, ver terapias comportamcn tais. Comunidade terapêutica, 44, 48, 86. Consenso, 18, 173, 176- 7. 192

Consultante (papel - do psiquiatra), 46-7, 50, 70. Continuidade dos cuidados, 15, 4 7, 51,68, 70, lOl;vertambémsetor. Contracultura, 63, 120, M5, 155, 172-3. Contrato (terapêutico), 107, 138, 177-8. Controle social, 13, 18-9,42-3,49-50, 111,121, 125-6, 131-2, 175-6, 178; ver também coerção, segregação, vigilância, Estado, expansionismo. Convivência, 19, 120, 141-2, 165. Cooper, D., 25. Corpo (técnicas do -), 14, 141-2, 146, 166-7, 173-4. Crônicas (doenças), 45, 56-7, 70, 71, 76. Cultura psicológica, 17, 67-8, 89, 140-1, 145-6, 157, 171, 172;autonomização da -, 133, 139-40, 151, 153-4, 156, 158-9, 167; ver também relações, psicológica (instalação na - ), sociabilidade. Cultura relacional, ver relações. Cura, 89, 145, 175. Darwin, Ch., 93. D.A.S.S. (Direções à Ação Sanitária e Social) (papel das-), 50-1, 59, 63-4, 103, 104. Daumezon, G., 41,43,44, 45, 54, 85. Debray, Q., 94. Debré, Pr., 37, 38. Décima terceira região ( experiência da-), 38, 42, 85, 86. Deficiéncia, ver anomalias. Deficiência, deficientes, 50, 51, 64, 76, 97-8, 102, 123, 178; nova gestão da-, 101-5, 107-9, 112-4; e doença, 105-6; - e inadaptação, 102, 106;vertambémleide 1975, anomalias, fieiras.

9, 27, 32, 43, 49-51, 62-3, 113-4, Deleuze, G., 24. 117-21, 122-4, 131-2, 175-7; ver Delors, J., 160. também administração, políticas Demay, J., 39. sociais, pública. Demay, M., 39. Etiologia, 68, 80, 82-3, 98, 177. Descendre, D., 161, 176. Descoberta, 52-3, 114-5, 125-6; ver Etiquetagem (labe/ling), ver diagnóstico, expertise. também prevenção. Eugenismo, 92-3, 95; ver também hiDespsiquiatrização, 87-8, 98, 106. Desvio, 32, 42-3, 76-7, 116, 124-5, giene social. 178; ver também anomalias, dife- Exclusão, ver segurança Expansionismo (psiquiátrico), 40-4, renças, deficiência. 49, 66, 96-7, 128-30, 174; ver Devereux, G., 164. Diagnóstico, 100-1, 107-8, 110-1, 112, também controle social. 127; ver também expertise, fieira. Expertise, 16-7, 41, 64-5, 67, 70, 100, 107-10, 111, 123, 131; ver Diferenças (tratamento das -), 30, 98,112,113,115,124, 178;ver também diagnóstico, fieira. também anomalias, fragilidades. Extra-hospitalar, 35, 46, 47, 48, 56, 57, 59, 61. Ecletismo (terapêutico), 53-4, 55, 98, Ey, H., 33, 34, 35, 41, 53, 54, 88, 134, 149, 150. 89, 90. Educação nacional (papel da -), 33, 34, 44, 51-2, 103-8, 111-2, 136- Falret, J.-P., 69, 98, 128. 7; ver também psicopedagogia, sis- Família, 53, 87, 96- 7, 108, 135; critema escolar. se da -, 25, 145-6, 154-5, 157-9, Empresa, 70, 108-9, 112-3, 118-9, 161, 167, 173-4. 120, 139, 145-6, 151, 159-62;ver Fatores(de riscos), 114, 115-6, 126também gerência, psicologia indus. 7, 133, 177-8; ver também pericutriai. losidade, populações, riscos. Empresário, gerente, 146, 147-8, 161, Faure, E., 33, 35. 178. Fenomenologia, 54, 81, 170. Enfermeiros, 57, 79-80; ver também Fieiras, redes, malhas, 14, 65, 104, formação. 112-4, 124, 178. Equipe (terapêutica), 38, 58, 101, Filantropia, 52, 63, 67, 69, 131-2, 104. 176. Escoffier-Lambiotte, Dr., 95. F ollin, S., 53. Espontaneidade, 19, 25, 145, 150, Formação, dos psiquiatras, 34-5, 39, 162, 172, 176. 58, 77-80, 82-5; dos enfermeiros, Esquema médico, 54, 5 8, 88, 174. 57, 79-80; dos psicólogos, 96, 134Esquema de reparação, 16, 89, 106, 6, 148; dos psicanalistas, 82-3, 133,144,151,159,170. 137-8, 139, 148; ver também proEsquirol, J.E.D., 44, 93. fissionais ( estratégias dos - ). Estado (papel do aparelho do -), 16- Formação permanente, 150, 161-2. 193

Foucault, M., 23-4, 126, 136. Fousset, J., 113. Fragilidades, 18, 144, 147, 149-50, 155, 1634, 173; ver também anomalias, diferenças, patológico ( avanço do - ). Freud, S., 16, 29, 82, 134, 135, 136 141,143, 16~ ' G.A.M.I.N. (GestãoAutomatizadaem Medicina Infantil) (sistema -), 103, 114-6, 117, 118, 131. Gaulejac, V. de, 161, 176. Genética, 92, 171; ver também euge-

msrno. Gentis, R., 148. George, Fr., 138. Gestalt-terapia, 14, 141, 152. Gestão'. . ver anomalias, diferenças, fragilidade, população, riscos; ver também administração, Estado, políticas sociais, neoliberalismo; ver também controle social, informatização, prevenção, programa. ção, segregação. Glowinski, J., 93. Goffman, E., 23, 157. Green, A., 83. Grito primai, 141. Grupo, terapias de-, 142, 145, 1489; instância do--,, 152-4, 157, 1646, 167; ver também psicossociologia, relações, cultura psicológica. Guattari, F., 83. Guillemin, R., 95.

História, deconstrução da-, 9 9, lOO. !, 106,142,152,171,179. Hobbes, T., 164. Hospício, 73, 75. Hospital psiquiátrico (preeminên . dei -), 44-8, 55-7, 100, 169.;~~ relação com o hospital geral, 36_7 • 70-1,. 73: 7; ver também hospício'. pSiquratna (especificidade da -). Imaginário profissional, 90-2 9g. 9 174. ' ' Inconsciente, 14, 84, 99, 100-J 167 171. ' ' Infância, criança (psiquia !ria da _ ), 39, 51-3, 54, 87; do se encanegar da -, 64-5, 70-1, 96-7; novas políticas em relação ã -, 102-5, l089,_ 112-7; ver também G.A.M.I.N. (sIStema), intersetar, psicopedagogra, nscos. Informática, informatização 59-60 96, 101, 110, 113, 129-32 171' 176, 177. ' ' Instituição totalitária, 15 23 24 32 86.

'

194

'

'

Internamento, 29, 42-3, 50, 72-3, !00, !03-4, 127. Intersetar, 53, 61, 64-5. Intimidade, 9-IO, 22, 146, 163-6 167; ver também narcisismo. '

Jakins, H., 141. James, M., 146. Janet, P., 82. Janov, A. 141. Hesnard, A., 81. Jaspers, K., 81. Heuyer, G., 52, 70, 71. Jaureguiberry, J., 118. Hic et nunc (culto do-), ver aqui e Justiça, 29, 41, 44, 64, !08. agora. Higiene mental, 69, 70, 71, 151. Higienismo, 151, 153.

'

Kadushin, Ch., 154. Kant, E., 156.

Kardiner, A., 164. Kennedy, J.-F., 62. Kernberg, O., 163. Keynes, J.M., 175. Kittrie, N., 129. Koechlin, Ph., 44. La Borde, 83, 85, 86. Laborit, H., 99. Lacan, J., 26, 53, 84, 136, 139. Lacronique, J.-F., 75. Lacrasse, J.-M., 147, 149, 153, 155, 166. Lagache, D., 134, 137. Lanteri-Laura, G., 54. Lapassade, G., 141. Lasch, Ch., 163, 164, 165. Le Cerf, J.-F., 52, 135, 154. Legrain, M., 69. Le Guillant, L., 54, 84. Lei de 1838, função da -, 50, 60, 11 O, 124, 130; crítica da -, 28, 32, 35, 61, 69; reforma da-, 36-7. Lei de 1975 em favor das pessoas deficientes, 50, 97, 119; funcionamento da-, 104-14; as Comissões e a-, 103-5, 107-IO, 111, 114-5; ver também administração, fieira, deficiência. Lenoir, R., 103, 118. Lévi-Strauss, Cl., 136. Lewin, K., 142, 167. Liberação (problemática da-), 13-5, 19, 26-8, 172-3, 176-7. Lindeman, E., 129. Livre escolha, ver privado. Lipovetsky, G., 163. Localização, ver internamento. Losserand, J., 73. Loucura, 21, 24, 29, 30, 72, 80, 81, 95, 105-6; ver também alienação. Lovell, A., 47, 57, 94, 129, 142, 147,

153,154,155, 167. Lowen, A., 141, 167. Major, R., 139. Mamelet, M.R., 56. Mannoni, M., 27-8. Mao Tsé-Toung, 29. Marginalização, marginalidade, 19, 37, 77, 154-6, 176-7; ver também anomalias, diferenças. Martin, D., 83. Marx, K., 24, 157. Marxismo, 23, 54. Masson, A., 103, 113. Medicamentos, 44, 45, 4 7, 56-7, 72-3, 88, 92-3. Médico-social (setor), 58, 64-5, 117, 118-9. Mendel, J.G., 93. Meyer, A., 151. Mine, A., 175. Minkowski, E., 81. Míses, R., 83. Morei, B., 93, 128. Moscovici, S., 137. Mudanças (instrumentalização da-), 150, 161, 174, 177; ver também corpo ( técnicas do - ). Nacht, S., 135. Narcisismo, 14, 144, 163-5; vertambém cultura psicológica, psicológico (instalação no -), privatização. Neoliberalismo, 19,118, 119-24, 171; ver também Estado. Neurolépticas) ver medicamentos. Neuropsiquiatria, 34, 35, 40, 52, 78n, 87-8, 149-50. Neutralidade (analítica), 16-22, 28, 32, 122. Nora, S., 175. Normalidade (trabalho sobre a-), 19, 195

67, 89, 133, 143-6, 153-4, 172-3, 177-8; ver também patológico, saúde, cura, terapia para os nor-

mais. Nosografia, 28, 68, 127. Objetivismo médico, 18, 45, 67, 71, 73, 90, 95, 98-9, 100, 169, 171, 173-4; ver também positivismo. Oficinas protegidas, 104-5, 108, 112, 128; ver também produtividade. Ortodoxia (psicanalítica), 85, 135, 137-40, 141-2. Oury, J., 83. Pages, M., 161, 176. Paraterapêutico, 76, 138, 148, 150, 172; ver também fragilidades, terapia para os normais. Partido comunista, 26, 82. Patológico (avanço do-), 67, 89, 989, 133, 144-5, 149-50, 153-4, 155, 158-9, 162-3, 170, 178; vertambém nonnalidade ( trabalho sobre a -), terapia para os normais.. Pedagogia, ver psicopedagogia. Perfis, 99, 112-4, 115, 127; ver também gestão. Periculosidade, 105-6, l 25-8;ver também riscos.

Perls, F., 141. Piaget, J., 135. Pinel, Ph., 80-1, 105. Planificação, ver programação. Política (redefinição da-), 13-4, 18, 22-3, 26- 7. Políticas sociais, 17, 18-9, 101, 116-7, 118-24, 130-2, 171, 175-6, 178; ver também administração, Estado, programação. Populações (gestão das -), 17-8, 4950, 68, 100-1, 110-8, 125, 127, 196

129-32, 170, 175; ver também fragilidades, riscos, fieira, programação. Positivismo, 67, 69, 80, 90, 91, 92, 95, 100, 127, 169-70, 1734; ver também objetivismo. Pós-cura, 44, 55, 101. Pragmatismo, 99,142,146,171,173, 174; ver também objetivismo. Prevenção, 18, 42, 46, 48, 54, 66, 69, 101, 115, 117, 127, 133, 144, 151, 171; novas estratégias da-, 114-7, 124, 125-6, 129-30, 171, 175, 178. Previdência Social, 59,103,104, 119. Prisões, 14, 23, 24, 29. Privado (setor), 28, 49-5 l, 52, 53, 625, 73, 97-8, 149, 150, 171, 176; ver também administração, pública. Privatização, ver intimidade. Procacci, G., 147. Produtividade, 104, 106, 1114, 1545, 159-62, 173, 176-8. Profissionais (estratégias dos'--), 33-4, 54-5, 60-1, 81-2, 108-10, 121-2, 134-5, 138. Programação, 112-4, 116, 117-8, 119, 124,146,175, 178-9. Psicanálise, promoção da-, 26-9, 32, 34-5, 44, 48, 53-4, 55, 81-8, 89, 134-40; crise da -, 16-7, 88-92, 95, 98-9, 100-1, 138-40, 145,148; - e psiquiatria, 15, 16, 26-9, 8390, 95, 101, 134, 144-5; - e cultura psicológica de massa, 26, 289, 134-8, 140-1, 143-5, 149-50, 153-4; sociedades de-, 137, 13840; pós- -, 17, 27, 67, 89, 133, 140-3, 150, 162-3, 166. Psicologia, clínica, 134, 137, 150, 151,167, 177-8;-industrial, 146,

151, 156, 159-62, 166-7; - da criança, ver psicopedagogia. Psicológico, instalação no -, 13, 19, 133, 134-5, 146, 149-50, 153-4, 156, 161-2, 163-6, 167; vertambém cultura psicológica, narcisismo, relações. Psicopedagogia, 52, 108-9, 111, 135, 144-5, 151,156,167. Psicossociologia, 135, 166. Psicotecnologias, 14, 15, 18, 19, 97, 100-1, 140-2, 163-4, 176-7, 178-9. Psicoter~pia, 4 7, 79, 82-3, 87, 88, 96.7, 100-1, 140-2, 148-9. Psicoterapia institucional, 45, 83-6, 91. Psiquiatria, modernização da -, 15, 16-7, 22, 29-30, 32-40, 59-60, 723, 83-4, 85, 86; especificidade da -, 17, 34, 39-40, 45-6, 53-4, 623, 65, 73-80, 81-7, 124, 134;perda da hegemonia da -, 55, 61-6, 67-8, 72-3, 75-7, 80, 89, 133, 14950, 169-70;- comunitária, 15, 289, 46, 47, 58, 74, 77, 85, 86, 87, 129, 170; - social, 91, 99, 100-1, 105-6, 174; - e psicanálise, ver psicanálise. Público (caráter - dos serviços), 15, 27-8, 40, 62-5, 86, 90, 118-24, 149,150,173, 175-7; ver também administração, Estado.

gica, psicológico (instalação no-). Repressão, 14, 17, 27, 29, 32, 100, 126, 127, 132, 176-7. Responsabilidade, ver assistência, continuidade dos cuidados. Richard, B., 160. Riessman, D., 164. Riscos (populações de - ), 17, 1 8, 101, 114-7, 130-2, 169, 175, 178; ver também administração, prevenção. Rouart, S., 53. Roucard, L., 71. Sartre, J.-P., 14. Saúde (explosões do conceito de -), 145-6, 149-50, 151, 166; vertambém cura, normalidade, terapia para os normais.

Schutzenberger, A., 135, 141. Segregação, 16, 17, 18, 30, 35, 40, 71-2, 73, 95, 103, 109, 127, 170, 177,178. Seguin, 51. Sennett, R., 157, 163, 164, 165. Setor, ideologia da política do-, 16, 28-9, 32, 91, 101, 122, 130; em lugar do -, 38-40, 73, 87; contradições internas do-, 44-55, 71-2; balanço do-, 55-60, 61-6, 76, 778, 92, 99, 124, 150, 170; ver também psiquiatria comunitária, s0-

Reagan, R., 63. Recamier, P.C., 82, 85. "Recuperação" ( da psicanálise), 16, 28, 139, 140. Reich, W., 27, 141, 167, 172. Relações, 54, 70, 78, 80-1, 89, 90, 92, 98, 101, 134, 136, 145, 147, 149, 150, 157-8, 159-62, 164-6, 167; ver também cultura psicoló-

cial, especificidade da -. Sistema escolar (como sistema de nonnas), 104, 105:6, 107-10, li 1-

2, 135, 137-8, 156; ver também educação nacional, psicopedago-

gia. Sivadon, P. 83. Skinner, B.F., 96. Smirnoff, V., 82. 197

Sociabilidade, 19, 133, 152-3, 154-5, 157, 164-6, 168; ver também cultura psicológica, relações. Social, redefinição do -, 18, 116, 133, 1534, 156, 157, 161-3, 1636, 167; ver também cultura psicológica. Soljenitsin, A., 19. Sterlin, e., 42. Stewart, J., 94. Stora, B., 135, 137. Sujeito, problemática do -, 16, 22, 26, 28, 68, 99, 106, 152, 156; dissolução do -, 19, 99, 100, 126, 130, 170-2, 175; ver também objetivismo, positivismo, pragmatismo. Taylor, F.W., 146. Tecnicismo, 32, 45, 67, 91, 95,122, 172, 175, 177-8. Tecnocracia, 41, 59, 70, 108, 115, 123,177. Terapias comportamentais, 96-8, 149, 171,174, 177-8. Terapia familiar, 150, 174. "Terapia para os normais", 17·9, 89, 98, 144-6; ver também normalidade.

Toffler, A., 157. Tominson, 106. Tosquelles, Fr., 84. Toulouse, E., 52, 70, 71-2, 75, 77. Toxicomania, 50, 76, 102, 123. Traoalho, ver produtividade. Trabalho sobre a normalidade, ver normalidade. Trabalho social, 17, 24, 50,145,147, 167. Transferência, 84, 85, 86, 88, 143. Tratamento moral, 62, 128. Turkle, S., 136, 137. Tutela, 51,123. Universitária (medicina -), 34, 52, 71, 72, 79, 94, 97; ver também neuropsiquiatria. Usuário (serviço do-), 49, 50, 59, 66, 129. Vacher, N., 103. Veil, C!., 106, 112. Visitas a domict1io, 51, 59. Weber, M. 150. Welger, C., 98. Wildocher, Dr., 174. Wolpe, J., 96.

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